RESUMO
No Brasil, a chegada, os registros, as solicitações de refúgio e as matrículas escolares por parte de crianças e adolescentes migrantes e refugiados vêm aumentando desde meados da última década. Procurando contribuir para o debate sobre migração e educação, este artigo teve como objetivo analisar as práticas pedagógicas de inclusão voltadas para a educação de crianças e adolescentes migrantes e refugiados que chegaram ao país desde 2010. O estudo foi realizado por meio de uma pesquisa qualitativa, nos anos de 2020 e 2021, período em que se levantaram informações sobre os instrumentos jurídicos que garantem o direito de acesso dessas crianças e adolescentes às instituições de ensino no Brasil. Ademais, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com profissionais da educação, responsáveis por desenvolver atividades pedagógicas, a fim de promover a inclusão educacional na escola. O estudo concluiu que há diversos obstáculos para a inclusão dessas crianças e adolescentes e que o corpo escolar vem desenvolvendo, de forma autônoma, práticas pedagógicas para superação das dificuldades e realização do processo de inclusão escolar.
Palavras-chave Migração; Educação; Inclusão escolar; Práticas pedagógicas
ABSTRACT
In Brazil, since the middle of the last decade, the arrival of migrant and refugee children and adolescents have led to an increase in school enrolments. Seeking to contribute to the debate on migration and education, this article analyzes the pedagogical practices made by education professionals in order to include migrant and refugee children and adolescents in the Brazilian schools. We analyze the migrant’s flows that have arrived in the country since 2010. The study was carried out through qualitative research, in the years 2020 and 2021. During the fieldwork, we collected information on the legal instruments, which guarantee the right of access of migrant, and refugee children and adolescents to educational institutions in Brazil. Furthermore, semi-structured interviews were carried out with education professionals, who developed pedagogical activities. The study concluded that there are several obstacles to the inclusion of migrant and refugee children and adolescents, and that the school body has been autonomously developing pedagogical practices to overcome difficulties and carry out the process of school inclusion.
Keywords Migration; Education; School inclusion; Pedagogical practices
RESUMEN
En Brasil, la llegada, los registros, las solicitudes de asilo y la matrícula escolar de niños y adolescentes migrantes y refugiados siguen aumentando desde mediados de la última década. Buscando contribuir al debate sobre migración y educación, este artículo tiene el objetivo de analizar las prácticas pedagógicas de inclusión dirigidas a los niños, niñas y adolescentes migrantes y refugiados llegados al país desde 2010. El estudio se realizó a través de una investigación cualitativa, durante los años 2020 y 2021, donde se recopiló información sobre los instrumentos jurídicos que garantizan el derecho de acceso de estos niños y adolescentes a las instituciones educativas en Brasil. Además, se realizaron entrevistas semiestructuradas a profesionales de la educación que desarrollan actividades pedagógicas para promover la inclusión en la escuela. El estudio concluyó que existen varios obstáculos para la inclusión de estos niños y adolescentes, y que el equipo de gestión escolar viene desarrollando de forma autónoma prácticas pedagógicas para superar las dificultades y realizar el proceso de inclusión escolar.
Palabras clave Migración; Educación; Inclusión escolar; Prácticas pedagógicas
Introdução
Crianças e adolescentes são parte importante dos fluxos de migrantes, pessoas refugiadas e solicitantes da condição de refugiado que vêm aumentando, ano a ano, em todo o mundo, ao longo das duas últimas décadas. Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (UNHCR, 2022), em 2021, por exemplo, 89,3 milhões de pessoas viviam em situação de deslocamento forçado – 20,9 milhões de refugiados e 4,1 milhões de solicitantes de refúgio –, e as crianças e adolescentes de até 18 anos eram 42% de todas as pessoas forçadas a se deslocar. Entre os anos de 2018 e 2021, 1,5 milhão de crianças já nasceram como refugiadas. De acordo ainda com esses dados, em 2021, 68% das crianças refugiadas conseguiram matricular-se no nível primário (primeiros anos do ensino fundamental) no país de destino, e apenas 34% dos adolescentes refugiados estão matriculados entre os anos finais do ensino fundamental, do 6º ao 9º ano, e o fim do ensino médio.
No caso particular do Brasil, segundo Oliveira e Tonhati (2022) com base nos dados produzidos pelo Observatório das Migrações Internacionais, em 2011 foi registrado no Sistema de Registro Nacional Migratório o total de 74.339 migrantes, sendo 4.363 crianças (5,9%) e 4.959 adolescentes (6,7%). No início da década seguinte, no ano de 2021, foi contabilizado o total de 151.155 migrantes, sendo 29.795 crianças (19,7% do total) e 14.555 adolescentes (9,6% do total). Portanto, aproximadamente 30% dos migrantes registrados no país tinham menos de 18 anos de idade. Os autores ressaltam ainda que, ao longo da série histórica (2011–2021), os países de nascimento das crianças e adolescentes migrantes foram se alternando. No começo da década, entre as crianças, a principal nacionalidade era a boliviana. Já no fim da última década e início da atual, o número de crianças haitianas e venezuelanas superou o de bolivianas.
Além dos registros, as solicitações de reconhecimento da condição de refugiado também aumentaram para crianças e adolescentes no Brasil nos últimos anos. Segundo dados do Sistema de Tráfego Internacional – Módulo de Alertas e Restrições, até meados da década de 2010, o número de solicitações de refúgio para menores de 12 anos era muito baixo, apenas 4,3% do total. No início da década de 2020, contudo, as crianças e adolescentes correspondiam a 26,6% do total de pedidos.
No que se refere à participação no sistema educacional do país, conforme o estudo feito por Oliveira e Tonhati (2022), as matrículas de crianças e adolescentes na educação brasileira na década de 2011–2020 cresceram nos três segmentos (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio). Esse crescimento foi expressivo e exponencial nos anos de 2018, 2019 e 2020. O ensino fundamental foi o que teve o maior número de crianças matriculadas, o que levou à constatação de que houve aumento do número de crianças migrantes, na faixa etária de 6 a 14 anos, que buscam as escolas no país. Outro destaque importante foi que em 2020, mesmo com a pandemia de Covid-19, se registrou o maior número de matrículas de crianças e adolescentes migrantes em toda a série histórica analisada. As nacionalidades das crianças e adolescentes na educação básica também se alteraram ao longo dos anos. Se no início da última década as principais nacionalidades eram a boliviana e a paraguaia, no fim da década predominavam a haitiana e a venezuelana.
Com vistas a contribuir para o debate sobre migração e educação, este artigo teve como objetivo apresentar as práticas pedagógicas de inclusão escolar promovidas por profissionais da educação voltadas para as crianças e adolescentes migrantes e refugiados1 que chegaram ao país desde 2010. O levantamento dessas práticas foi realizado por meio de uma pesquisa qualitativa, durante os anos de 2020 e 20212, por uma equipe de pesquisadoras/es3 da Universidade de Brasília.
Neste artigo apresentamos, portanto, na sequência desta introdução, uma breve discussão da literatura sobre a presença de crianças e adolescentes migrantes nos estudos de migração e educação, mais especificamente os debates sobre a inclusão delas em ambiente escolar. Posteriormente, mostram-se a metodologia de produção e coleta dos dados, a discussão dos resultados encontrados e, por fim, as nossas considerações finais.
As Crianças Migrantes e Refugiadas nos Estudos Sobre Educação e Inclusão Escolar
O sujeito criança e o conceito de infância são categorias socialmente construídas. Com base na iconografia e em textos medievais produzidos na Europa, Philippe Ariès (2017, p. ix) pontua que a infância durava “enquanto o filhote do homem ainda não conseguia bastar-se”, ou seja, caminhar e alimentar-se sozinho. Depois disso, misturava-se aos adultos e com eles compartilhava as atividades do dia a dia, como uma espécie de adulto em miniatura. Para o autor, o processo de socialização da criança, assim como a transmissão de valores e conhecimentos, não era controlado pela família – que tinha função de sobrevivência, não afetiva. A criança afastava-se de seus pais tão logo entrasse no mundo dos adultos, e era por meio desse fazer junto, em grupos de adultos e crianças, que a socialização acontecia (Ariès, 2017).
Com a implantação das escolas, no fim do século XVII – resultado de um movimento promovido pelos reformadores católicos e professores ligados à Igreja e ao Estado –, a dinâmica de transmissão do conhecimento foi definitivamente alterada. A divisão dos alunos em classes etárias coincidiu com a reforma dos costumes ocorrida entre a Idade Média e a Idade Moderna na Europa, também marcada pelo surgimento da sociedade industrial de classes (Elias, 1993, 1994). Nesse contexto, a família passou a ser um espaço de afeição, em que cabiam a valorização da educação e o interesse dos pais nos estudos dos filhos (Ariès, 2017, p. xi).
Até muito recentemente, a maioria das crianças e adolescentes em países que acolhiam grandes grupos de migrantes e refugiados ia para escolas e/ou classes específicas, separadas dos alunos nacionais, que muitas vezes ofereciam currículo e idioma do país de origem (Dryden-Peterson, 2016). Em sua Estratégia Global de Educação, a Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados passou a propor a inclusão desses estudantes nos sistemas nacionais de educação, assim como a adoção do currículo escolar dos países de acolhimento, como uma forma de inclusão escolar e social desses grupos na sociedade receptora (UNHCR, 2012, p. 8).
Com relação às formas de inclusão escolar de migrantes, autores como Terhart e von Dewitz (2018) realizaram um estudo sobre alunos migrantes (sírios e afegãos) recém-chegados a escolas alemãs, elencando as estruturas e práticas inclusivas e excludentes. Para eles, a inclusão é utilizada como termo normativo, enfatizando a ideia de “todos diferentes, todos iguais”. Os autores citam o posicionamento da Associação Alemã de Investigação Educacional, que enfatiza uma postura de não admitir exceções na inclusão de crianças no sistema educativo. Com isso, a educação lidera e direciona o debate político, atuando como ator-chave na defesa da integração social das pessoas migrantes (Terhart; von Dewitz, 2018, p. 293).
Como explicam os autores, o sistema federal alemão não adota uma política válida para todo o país, possibilitando que as abordagens para a inclusão de crianças migrantes e refugiadas nas escolas variem enormemente de acordo com a região. Em Hesse e Hamburgo, por exemplo, existem regulamentações rigorosas sobre como incluir crianças migrantes e refugiadas que chegam com pouco ou nenhum domínio do idioma alemão. Existem ainda muitas variações em nível local, já que as escolas adaptam os modelos de acordo com sua realidade e necessidades específicas. Outro exemplo é a Renânia do Norte-Vestefália, maior estado alemão em termos de população, onde a legislação permite a implementação de diferentes princípios, e, com isso, as abordagens variam entre as escolas, assim como em termos de recursos pessoais e financeiros empenhados (Terhart; von Dewitz, 2018, p. 293).
Dessa forma, para Terhart e von Dewitz (2018), os modelos de inclusão de alunos migrantes nas escolas podem variar entre dois extremos, desde a imersão total desses estudantes em classes regulares – sem apoio adicional, independentemente do seu nível de conhecimento do idioma alemão – à segregação, com a existência de classes especiais para alunos migrantes durante toda a trajetória escolar. Todavia, a maioria das iniciativas combina a participação desses estudantes em classes regulares com um apoio paralelo em classes específicas (exclusivas para estudantes migrantes) com atenção para a conquista do idioma alemão (Terhart; von Dewitz, 2018, p. 294).
Para além do debate da organização da estrutura escolar na inclusão dos estudantes migrantes, outro ponto importante no debate do campo migração e educação é trazido pelos autores Guo-Brennanand e Guo-Brennanand (2019, p. 76). Segundo eles, os anos iniciais de transição para novos sistemas de ensino são os mais críticos na formação das identidades interculturais de crianças migrantes e refugiadas. Dados empíricos desses autores sobre a inclusão de crianças migrantes e refugiadas nas escolas do Canadá mostram que o sentido de pertencimento é uma necessidade fundamental para esses estudantes. Sentir-se parte do grupo e aceito por ele influencia positivamente o desenvolvimento pessoal, social e escolar de estudantes migrantes e refugiados. Amor-próprio, autoconfiança, saúde e coesão social, no espaço escolar e fora dele, tendem a levar essas crianças a terem melhores resultados acadêmicos e oportunidades de emprego. Essas são algumas das características observadas pelos autores ao longo da inclusão escolar desses alunos.
Guo-Brennanand L. e Guo-Brennanand M. (2019) afirmam, ainda, que professores que recebem muitos alunos migrantes se dividem entre atender às necessidades individuais desses estudantes e seguir com o conteúdo curricular e os resultados esperados para o grupo, o que torna a tarefa de docência mais desafiadora. Segundo os autores, “nem todos os professores se sentem confiantes e suficientemente preparados para trabalhar com alunos cujas origens culturais e linguísticas sejam diferentes das suas” (Guo-Brennanand L.; Guo-Brennanand M., 2019, p. 77, tradução livre), e aqueles que têm mais contato e entendem melhor as necessidades de crianças e adolescentes migrantes se sentem desamparados pela falta de uma abordagem escolar mais completa, que dialogue com as agências de integração comunitária e com a construção de debate público e ações políticas mais amplas sobre a temática.
Nessa mesma direção, Welply (2022), que estudou as experiências escolares das crianças migrantes na França e Inglaterra, afirma que, apesar de esse não ser um campo de estudo novo, há necessidade de avanços nas pesquisas. Para a autora, a correlação migração e educação entra no debate social, acadêmico e político de forma paradoxal. Por um lado, há discursos que lamentam o fracasso das escolas em promover a inclusão bem-sucedida das populações de migrantes, seja isso entendido como a “assimilação” das crianças migrantes na sociedade, ou em como as escolas continuam a reproduzir as desigualdades (sociais, econômicas, raciais, étnicas, linguísticas ou religiosas). Por outro lado, há também falas de que as escolas são investidas de um papel integrador e socializador e responsáveis por equipar os migrantes e refugiados com o conhecimento, as habilidades e as credenciais para pertencer à sociedade onde vivem e participar com sucesso dela.
Essas visões contraditórias, segundo a autora, são expressas nas políticas educacionais e estão presas em uma tensão entre uma visão tanto meritocrática e idealizada da educação quanto pelas pressões de profundas desigualdades estruturais, sociais e geográficas que sustentam os sistemas educacionais nacionais. Welply (2022), portanto, afirma que os filhos de migrantes continuam enfrentando problemas de desigualdade, baixo desempenho, racismo, discriminação e exclusão nas escolas de todo o mundo, e o papel integrador da educação tem sido questionado.
Para autores como Barlett, Rodríguez e Oliveira (2015), que examinaram três fluxos de migração, jovens de ascendência haitiana que vivem na República Dominicana, colombianos no Equador e filhos de mães mexicanas que migraram para os Estados Unidos, é preciso analisar a extensão que a escola e as interações sociais que ocorrem nesse espaço ocupam na vida desses estudantes e suas estratégias de escolarização. Para as autoras, entender as relações sociais construídas nas inter-relações entre migração e educação permite um desenvolvimento desse campo de investigação. Nessa direção, Welply (2022) reforça a necessidade urgente de mais pesquisas na área:
Embora esses debates tenham ganhado maior visibilidade nos últimos anos, os desafios associados à imigração e à integração não são novos, particularmente a questão de como as instituições públicas nacionais [como a escola], historicamente inscritas em estruturas nacionalistas e modernistas, podem integrar populações mais diversificadas. Isso tem estado na vanguarda dos debates sobre multiculturalismo nas últimas décadas, de modo particular na Europa e nos Estados Unidos (Banks et al., 2016; Blommaert, 2010; Jackson, 2016; Joppke, 2017; Modood & Salt, 2011; Modood, 2021; Torres & Tarozzi, 2020). A educação e o papel das escolas têm sido posicionados de forma central nesses debates sobre imigração e inclusão, nos quais ocupam um lugar paradoxal
(Welply, 2022, p. 3, tradução livre).
Conforme dito na introdução deste artigo, nos últimos anos, o Brasil passou a ser um importante destino para as migrações Sul-Sul. Particularmente, notamos um incremento da presença de crianças e adolescentes migrantes e refugiados nas escolas brasileiras, o que incentivou o aumento de estudos sobre a correlação migração, educação e inclusão. Segundo Fusaro (2019), em estudo sobre crianças sírias no Distrito Federal, “a escola tem uma importância central na vida das crianças e famílias refugiadas e migrantes” (Fusaro, 2019, p. 70). É um espaço de conquista de autonomia, onde a criança aprende o português – “mais rápido do que os adultos” –, constrói laços e adquire formação profissional e intelectual. A escola tem ainda o papel de inserir as crianças e os adolescentes nos debates políticos e sociais, estimulando-os a refletir sobre as pautas atuais e seus direitos como cidadãos. Por outro lado, a autora reforça a incapacidade do Estado de elaborar políticas que garantam o pleno acesso às escolas e universidades no país e a efetiva inclusão dessas crianças e adolescentes nesses espaços, culminando no paradoxo de eles se sentirem integrados e estrangeiros/excluídos, simultaneamente.
Freitas e Silva (2015), que analisaram crianças bolivianas na educação infantil de São Paulo, Busko (2020), em pesquisa sobre políticas públicas educacionais para migrantes e refugiados no Rio Grande do Sul, e Andrade e Santos (2010), que estudaram crianças migrantes no Distrito Federal, destacam que há poucas ações estruturadas do Estado brasileiro para incluir as crianças e adolescentes migrantes e refugiados no sistema escolar. Segundo os autores, é importante debater certas práticas escolares, como o apagamento da cultura e linguístico de origem, a fim de inserir os migrantes no ambiente escolar, desconsiderando sua trajetória de vida. Eles apontam, ademais, para a relação entre identidade e autoestima e para as questões de racismo e xenofobia, vividas principalmente por crianças migrantes negras, indígenas e orientais.
Outro ponto relevante trazido pelos autores é a falta de uma política linguística específica para os estudantes migrantes. Tal fato dificulta atingir a proficiência em português por parte destes. Para Demartini (2017), em estudo sócio-histórico sobre a escolarização dos migrantes no país, o aprendizado do português vai além da questão linguística; também é instrumento essencial para dominar a cultura e entender os códigos sociais do país onde se vive. Araújo e Contreras (2017), que estudaram crianças haitianas nos colégios públicos de Curitiba (PR), para além do aprendizado da língua portuguesa, é preciso uma adaptação curricular e social na escola para auxiliar as crianças migrantes a aprender. Para esses autores:
A aprendizagem e socialização da criança imigrante é conturbada, mas sua adaptação e aprendizagem são rápidas. Para fortalecer esse processo é necessária uma adaptação dos currículos e de estratégias de aprendizagem significativas que valorizem a cultura dos sujeitos aprendentes. O desafio percebido foi a necessidade de compreender que o processo de inclusão da criança imigrante perpassa a significação do currículo em vistas a favorecer processos pedagógicos que integrem a perspectiva da interculturalidade no ensino
(Araújo; Contreras, 2017, p. 2).
Tanto Ghiggi e Coutinho (2022) quanto Rocha, Pires e Mendes (2022), que se dedicaram ao mapeamento bibliográfico das crianças e adolescentes migrantes e refugiados no Brasil, observam a prevalência da temática sobre os direitos do coletivo estudado. Os artigos, dissertações e teses mapeados pelos autores tendem a estar respaldados em abordagens documentais e bibliográficas que procuram entender os direitos fundamentais das crianças migrantes e refugiadas e dar visibilidade aos documentos que os preveem. Segundo Melo e Rocha (2022), que elucidam as leis, convenções e resoluções que garantem às crianças e aos adolescentes a proteção e o direito à educação no Brasil, vale destacar a Resolução nº 1, de 13 de novembro de 2020, que “dispõe sobre o direito de matrícula de crianças e adolescentes migrantes, apátridas e solicitantes de refúgio no sistema público de ensino brasileiro” (Brasil, 2020). Conforme Melo e Rocha (2022), a resolução supracitada fornece orientações a respeito de acesso, equivalência (ano/série) e acolhimento das crianças migrantes nas escolas públicas do país.
Em suma, os estudos analisados neste artigo levantam, em sua maioria, questionamentos sobre a relação migração, educação e inclusão com base em diferentes pontos de partida que se entrelaçam no decorrer das pesquisas. Sendo assim, os principais temas abordados foram: a existência e aplicação de políticas educacionais voltadas para migrantes e refugiados, a necessidade de formação/capacitação das/os professoras/es para lidar com a diversidade escolar, o acesso à educação, os anos iniciais e a duração da escolaridade, o idioma de ensino, as políticas de avaliação, a cultura escolar, as relações professor-aluno, o envolvimento das famílias e as relações entre pares.
A análise dessas categorias é essencial para entender o que molda diferentemente as oportunidades e experiências educacionais dos migrantes e refugiados. Buscando, portanto, contribuir para o debate sobre migração e educação, o presente artigo procurou responder às seguintes perguntas:
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As crianças e adolescentes migrantes e refugiados têm direito pleno de acesso à educação no país?;
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Quais instrumentos jurídicos os permitem acesso à escola e inclusão escolar?;
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Quais são as práticas pedagógicas implementadas por profissionais da educação a fim de buscar a inclusão das crianças e dos adolescentes migrantes e refugiados nas escolas?
Metodologia
Com o objetivo de responder às perguntas supracitadas, a pesquisa, realizada entre dezembro de 2020 e agosto de 2021, foi dividida em três momentos. No primeiro momento, tivemos como foco levantar informações sobre os instrumentos jurídicos que garantem o direito de acesso de crianças e adolescentes migrantes e refugiados às instituições de ensino no Brasil.
No segundo, realizamos um mapeamento nacional de iniciativas e atores (escolas e/ou instituições governamentais e não governamentais) que desenvolviam atividades pedagógicas para promover a inclusão educacional e sociocultural desse público no ambiente escolar. Para essa coleta de dados, foram feitas buscas na internet com a combinação de palavras-chave (por exemplo, refúgio, refugiados, (i)migrantes, criança, escola, educação, infância, acolhimento etc.), resultando em diversas notícias sobre projetos e atividades na área de interesse, com indicação de instituições promotoras e seus responsáveis. Paralelamente, enviamos e-mails para um mailing de secretarias estaduais de Educação de todo o Brasil, convidando-as a apresentarem seus projetos. Da mesma forma, fizemos buscas ativas de contatos e entrevistas por telefone com atores específicos (diretores, gestores e professores, órgãos como Defensoria Pública da União, secretarias estaduais e municipais da Educação e representantes de organizações não governamentais – ONGs), previamente selecionados pela equipe do projeto, de modo a conhecer as atividades pedagógicas desempenhadas.
Essa etapa resultou no levantamento de 66 iniciativas, voltadas a melhorar a inclusão de crianças e adolescentes migrantes e refugiados no sistema de escolar, sendo nove delas promovidas por escolas (ou docentes), 14 com algum fomento de instituições públicas vinculadas aos diversos níveis de governo, e o restante (43) por atores da sociedade civil (ONGs e associações). Das cinco regiões brasileiras, a Sudeste teve o maior número de iniciativas (31), seguida pelas regiões Norte (12), Centro-Oeste e Sul (oito cada uma) e, por fim, Nordeste (sete). Esses dados refletem de alguma maneira o tamanho das populações migrantes e refugiadas em cada região à época do estudo, assim como a tradição de algumas localidades, a estrutura e organização da sociedade civil no acolhimento de pessoas migrantes e refugiadas.
Das 14 iniciativas vinculadas a órgãos públicos, especialmente secretarias municipais e estaduais da Educação, a maioria refere-se ao fomento de programas de ensino de português como língua de acolhimento (em parceria com escolas, universidades e ONGs), promoção de direitos (incluindo a publicação de guias e materiais informativos sobre direitos de estudantes migrantes e refugiados à educação) e atividades mais pontuais de inclusão escolar. Não foram encontrados programas estruturados ou políticas públicas perenes que orientam a inclusão desses estudantes no âmbito escolar.
Após análise do resultado do mapeamento, buscamos entrevistar os responsáveis pelas iniciativas vinculadas às escolas. Sendo assim, foram escolhidas duas escolas em Ponta Grossa (PR), seis em São Paulo (SP), três em Boa Vista (RR), uma em Igarassu (PE) e uma em Manaus (AM). A escolha das escolas foi feita de modo a garantir diversidade de perfil escolar, do ensino infantil ao médio, para abarcar diferentes realidades e compreender, de forma ampla, os desafios que compõem o acolhimento e a inclusão dos estudantes migrantes e refugiados. Depois da seleção, seguimos para a terceira fase da pesquisa.
No terceiro momento, foram feitas 13 entrevistas semiestruturadas com profissionais da educação (diretores, coordenadores, assessores técnicos da Secretaria Municipal de Educação, gestores e professores) das escolas mencionadas. Essa parte da pesquisa incluiu, ainda, entrevistas com três mães de crianças e adolescentes migrantes e refugiados matriculados em escolas brasileiras e quatro entrevistas com migrantes maiores de 18 anos que já haviam estudado nas escolas do país. As entrevistas foram realizadas em diferentes unidades da Federação, como Distrito Federal, Amazonas, Paraná, Pernambuco, Roraima e São Paulo. Os relatos dos profissionais da educação envolveram uma pluralidade de experiências com estudantes de países como Angola, Benin, Bolívia, Colômbia, Guiana Francesa, Haiti, Irã, Iraque, Líbano, Palestina, Peru, Moçambique e Tunísia, bem como alunos indígenas Warao. As entrevistas com estudantes e familiares tiveram representantes das nacionalidades congolesa, angolana, venezuelana e haitiana.
A pandemia de Covid-19 exigiu que as entrevistas fossem realizadas, em sua maioria, por ferramentas digitais. Uma preocupação constante das pesquisadoras foi seguir as orientações de técnicas de pesquisa de Eckert e Rocha (2008), que destacam a importância do olhar e do escutar e afirmam que o próprio deslocamento cultural dos olhares é fonte de informação e, por isso, se faz necessário sensibilidade e contextualização durante o processo de entrevistas. Alguns profissionais da educação não quiseram que os nomes das escolas nas quais trabalhavam aparecessem na pesquisa para não serem identificados. Tal fato não prejudicou as entrevistas, já que o objetivo aqui era entender as práticas escolares de acolhimento e inclusão em relação aos migrantes e refugiados. Também, os nomes dos entrevistados foram alterados para pseudônimos.
O material coletado na pesquisa foi analisado e categorizado, culminando em três blocos de resultados, apresentados a seguir.
As Crianças e Adolescentes Migrantes e Refugiados e o Direito à Educação no Brasil
No Brasil, a educação básica compreende o ensino infantil (pré-escola), o ensino fundamental (de nove anos) e o ensino médio (de três anos), como prevê a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996). A educação básica é gratuita, obrigatória e universal, conforme também asseguram a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). O Estado tem, portanto, o dever de garantir a educação básica para todas as crianças e adolescentes vivendo no país, independentemente de sua origem, nacionalidade e status migratório. Esse direito está também expresso na Lei da Migração (Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017), segundo a qual o acesso igualitário e livre à educação deve ser garantido às pessoas migrantes e refugiadas. Nesse sentido, em termos legais, não há no país distinção entre os estudantes nacionais ou migrantes e refugiados. Ou seja, a situação migratória no Brasil não impede o acesso legal à educação básica.
No entanto, apesar da existência das referidas leis, é importante destacar que foi também necessária a criação da Resolução nº 1, de novembro de 2020, do Conselho Nacional de Educação (CNE) e do Conselho de Educação Básica, para traçar diretrizes no que se refere ao acesso à educação das crianças e adolescentes migrantes e refugiados. Tal resolução veio suprir uma necessidade, tanto dos gestores escolares quanto dos migrantes e refugiados, de normativas mais claras para o acesso à matrícula e equivalência idade/série, que é um dos grandes dilemas das escolas em relação à realidade desses alunos.
Algumas entrevistadas do estudo relataram que a resolução foi um importante passo para o processo de gestão escolar, pois enfatiza a não necessidade de apresentação de documentos comprobatórios de escolaridade anterior (do país de origem) para a efetivação da matrícula nas escolas da rede pública. Além disso, o documento ratifica que a matrícula de migrantes e refugiados deve ser imediata, mesmo na educação de jovens e adultos e em creches. Na ausência de histórico escolar, de acordo com a resolução, os estudantes têm o direito de serem avaliados na sua língua materna, e, posteriormente, o processo de adequação idade/série deve ser realizado, levando em conta o conhecimento, o desenvolvimento e a faixa etária do estudante, conforme verificado na afirmação de uma gestora escolar entrevistada:
Para orientar os gestores e os secretários das escolas da rede estadual, a Secretaria Estadual de Educação emitiu uma série de diretrizes. Solicitou, por exemplo, ajustes no Sistema de Gestão i-Educar [Sistema Acadêmico de Matrículas] para que ele possa aceitar a matrícula dessas crianças na ausência de documentos pessoais [como passaporte] e documentos escolares anteriores. Outra ação foi o Manual da Secretaria Escolar do Sistema de Ensino do Distrito Federal, que explica o que fazer quando é preciso verificar a “equivalência de estudos”, ou seja, quando é necessário saber em que ano/série matricular o estudante que não tem como comprovar seu nível de escolaridade. Nesse caso, fica a cargo da escola aplicar um “exame de classificação” que indique o melhor nível para incluir a criança. Também é assegurada a matrícula da criança em qualquer momento do ano, ainda que não coincida com o início do período letivo (Ana, diretora de escola pública, DF).
O estudo constatou que o arcabouço jurídico brasileiro é robusto em termos de garantia de direitos aos migrantes e refugiados ao acesso ao serviço educacional do país, sem distinção por status migratório. As leis sobre educação no país abrangem esses estudantes e ainda se solidificaram com a criação da Resolução CNE nº 1, que deu alicerce jurídico para o acesso e a matrícula e diretrizes para equiparação idade/série. Conforme afirma a entrevistada Amanda, gestora escolar no Distrito Federal:
Eu acho que nós já temos o ponto inicial que é essa resolução de acolhimento que passaram para as escolas, que eles já têm o discernimento que eles recebem migrantes, e a segunda meta vai ser oferecer a segunda língua, e a terceira meta vai ser trabalhar a formação dos professores.
Se, por um lado, a existência de um decreto específico ajudou a dar visibilidade à chegada de migrantes e refugiados nas escolas, a normatizar seus direitos ao sistema escolar e esclarecer sobre estes e a levar em conta suas particularidades (por exemplo, não solicitar documentos comprobatórios de escolaridade); por outro lado, a pesquisa observou que as escolas ainda carecem de diretrizes normativas e pedagógicas em termos institucionais e formais para a inclusão educacional das crianças e adolescentes migrantes e refugiados. Buscando compreender essa questão, o estudo mapeou o que existe (ou não) no que se refere a práticas pedagógicas de inclusão dessas crianças e adolescentes na escola.
Escola como “Centro de Acolhida”: Práticas Pedagógicas para Recepção e Superação da Barreira do Idioma
É direito de toda criança e adolescente o acesso à educação pública, à escola pública. Então, não importa de onde esse adolescente vem. Chegou aqui no nosso território, ele tem direito a essa vaga, é importante dizer isso porque às vezes as coisas se confundem. “Ah, mas ele é de outro país.” Não importa! O [Estatuto da Criança e do Adolescente] ECA não diz, ele não fala de nacionalidade. Tá no nosso território, é nossa responsabilidade
(Carla, assessora técnica da Secretaria Municipal de Educação de Manaus, AM).
Em entrevista, a assessora Carla apontou que a presença de estudantes migrantes e refugiados nas escolas de Manaus cresceu de forma exponencial de 2017 a 2020. A entrevistada relatou que na cidade havia apenas 117 estudantes venezuelanos indígenas Warao matriculados na rede escolar até 2017. De 2018 a 2020, ainda segundo ela, o número de estudantes venezuelanos matriculados na cidade de Manaus atingiu o número de 4.927. Nas palavras da assessora, a escola deveria ser como um “centro de acolhida”, no qual todos os atores, desde a secretaria, a direção, a coordenação, os professores, os responsáveis pela limpeza e alimentação estivessem incluídos na recepção dos estudantes migrantes e refugiados.
Para que a escola seja esse “centro de acolhida”, a falta do estabelecimento de protocolos de atendimento aos estudantes foi apontada pelos profissionais da educação entrevistados como um entrave. A professora Vanessa, de uma escola pública de Ponta Grossa, ressaltou a importância de se criarem protocolos para a recepção dos estudantes. Para ela, as escolas que recebem esses estudantes deveriam seguir uma série de protocolos, o que facilitaria o entendimento das particularidades de cada aluno. Igualmente, sugere a criação de critérios pedagógicos e até de um questionário que auxilie a escola a mapear as condições psicológicas, familiares e de formação da vida desses estudantes: “Eu acho assim, chegou um aluno estrangeiro na escola, primeiro precisa fazer uma entrevista, sabe, com os pais, ver qual é a situação desse aluno, por que ele tá vindo, como que era a vida escolar dele lá no outro país, saber um pouco mais do aluno” (Vanessa, professora de escola pública, PR).
Vanessa sugere que a escola, com base nesse mapeamento, se articule com diferentes instituições, como, por exemplo, o Centro de Referência de Assistência Social e o Centro de Referência de Atendimento ao Imigrante, para trabalhar o que é necessário com os estudantes. Para ela, o mapeamento abordaria questões que transcendem a escola, o que exigiria desse espaço articulação com outros atores para ampliar o cuidado global desses alunos. Tais protocolos, portanto, seriam ferramentas norteadoras para os profissionais das escolas, para outros estudantes e até mesmo envolveriam o encaminhamento para outras instituições ou outros profissionais na escola, como psicólogos e assistentes sociais, a fim de que o acolhimento fosse efetivo.
Outro ponto destacado na busca de uma escola como “espaço de acolhida” foi a necessidade de desenvolver oficinas para o corpo escolar, com vistas a esclarecer sobre os direitos dos migrantes e refugiados à educação no país, assim como criar projetos pedagógicos que apresentem os diferentes aspectos culturais das crianças e adolescentes atendidos na escola. Nas palavras da professora da escola pública do Paraná Vanessa:
Fizemos também um trabalho de conscientização dos funcionários que não entendiam, por exemplo, porque aquelas crianças não comiam carne de porco e outros alimentos oferecidos na merenda. Foi um período de muitos desafios, mas também de muito aprendizado e, especialmente, de aceitação e acolhimento mútuo.
Para além do estabelecimento de protocolos de recepção e conscientização dos profissionais escolares sobre a presença de migrantes e refugiados, alguns profissionais relataram como foi o primeiro contato deles com os migrantes e a utilização de práticas pedagógicas de aproximação. A professora Cláudia, de uma escola pública na capital paulista, mostrou um acervo com diversas músicas de boas-vindas em diferentes idiomas. Segundo ela, tal acervo foi o resultado de anos de pesquisa com os alunos e seus familiares para usar no dia a dia da escola. Localizada em um bairro central de São Paulo, a escola recebe crianças de 4 a 6 anos, muitas delas refugiadas e migrantes, oriundas dos mais diversos países da América Latina, África e Ásia. Cada novo estudante que chega é recebido pela cantoria dos colegas, com instrumentos e coreografias feitas por eles mesmos, coordenados pela professora. Ela conta: “Uma vez recebi uma menina síria que chorou durante toda a semana de adaptação. Percebi que aquela criança estava em sofrimento e que precisava acolher as experiências que ela trazia”. Com esse foco, a entrevistada lançou mão de suas vivências em teatro, artes e música para criar projetos que acolhessem de modo lúdico as crianças refugiadas e migrantes.
Dessa forma, Cláudia relatou que nasceram os projetos “A música e a brincadeira em todos os cantos e encantos da infância”, “Cantos e ritmos brasileiros: outros cantos e outros ritmos”, “Culturas do mundo: a história de muitas vozes, artes do mundo e nosso território”. Segundo ela, em todos os projetos as crianças são incentivadas a compartilhar com a turma as brincadeiras, músicas e histórias tradicionais de seus países. Consequentemente, participam de jogos coletivos, criam danças e peças de teatro que promovem o respeito, a compreensão e a boa convivência entre todos os estudantes. As mães e pais, brasileiros e migrantes, também participam ativamente desse garimpo cultural, além de serem convidados para compartilhar suas experiências e histórias de vida em rodas de conversa abertas a toda a comunidade escolar. “Quando superamos as fronteiras dos mapas, percebemos que as dores do outro são muito parecidas com as nossas”, afirma Cláudia.
O idioma divergente foi reportado como uma das principais barreiras impostas na relação desses estudantes com a escola, desde a matrícula até a inserção em sala de aula. Esse é o fator que concentra as maiores dificuldades por parte dos professores, gestores, pais e dos próprios migrantes e refugiados. No entanto, segundo a professora Vera, de uma escola pública de São Paulo, o idioma não deveria ser encarado como um obstáculo que impossibilita a inserção dos migrantes e refugiados no ambiente escolar. Ela demonstra como é possível superar as barreiras linguísticas:
Foi uma coisa maravilhosa, a melhor experiência da minha vida, dar aula para alunos refugiados e migrantes não falantes de português, porque era uma situação muito colaborativa. Então, é entender que eu, como professora de Língua Portuguesa, estava ali numa posição de igualdade de aprendizado mesmo, porque eu não sei a sua língua e você não sabe a minha, então vamos trocar. Você me ensina um pouco da sua para poder me comunicar minimamente, e você vai aprender a minha. A nossa comunicação era maravilhosa porque, através de imagem, de mímica, de muita risada, de acerto e erros, né, e a gente foi construindo esse aprendizado da língua portuguesa
(Vera, professora de escola pública, SP).
Os profissionais entrevistados revelaram ser muito desafiador trabalhar com os estudantes não falantes de português. O desafio mais citado foi o primeiro contato, ainda na secretaria da escola, quando já surgem obstáculos ao, por exemplo, orientar os alunos sobre a matrícula, a documentação, o calendário escolar, os materiais escolares, a divisão das séries e idades e o aprendizado em cada série. Ainda como dificuldade relacionada ao idioma, os profissionais da educação citaram como pontos de atenção o próprio processo de integração do estudante com a turma e o aprendizado dos conteúdos, que precisa acontecer mesmo que a aprendizagem do idioma não esteja concluída. Assim, é necessário que o profissional da educação tenha métodos e intencionalidade para garantir a inclusão e aprendizagem desses alunos.
Outros dois desafios indicados pelos profissionais da educação também ligados ao idioma foram o pouco tempo com os estudantes migrantes e refugiados e a adaptação ao processo de aprendizagem, que deve ser adequado à particularidade de cada estudante. O primeiro desafio foi, principalmente, citado pelos profissionais do ensino fundamental II e ensino médio, que têm em média duas aulas de 45 minutos por semana com os estudantes; o segundo refere-se aos estudantes do fundamental I.
Para lidar com os desafios apontados, os profissionais da educação fizeram indicações de práticas pedagógicas efetuadas com base em suas experiências. A professora Flávia, que trabalha no ensino de jovens e adultos, em uma escola pública da cidade de São Paulo, revelou o uso da prática de translinguagem:
Eles vão usando o que eles têm à disposição. Sem contar os gestos, que claro que são culturais, mas dá para eles perceberem também os nossos esforços de tentar nos comunicar com eles. Então, mesmo algumas palavras soltas, às vezes eu não consigo fazer uma frase, mas eu consigo dizer algumas palavras que fazem com que eles entendam o que eu quero dizer. Então a gente usa todos os recursos, o que na nossa área [Linguagem] a gente chama isso de translanguage, ou práticas translinguis, que é quando você usa todo repertório verbal e/ou não verbal que você tem à disposição
(Flávia, professora de escola pública, SP).
Após o relato da professora Flávia, fomos entender melhor esse conceito. Williams (1996) foi o primeiro a usar o termo translinguagem. Ele buscava nomear o método que seus estudantes usavam ao alternar idiomas. Já García e Wei (2014) trata o conceito translíngue como a junção de idiomas que, apesar de serem de sistemas linguísticos separados, se fundem, possibilitando a comunicação. Baker (2011, p. 288) define a translinguagem como “o processo de fazer significado, moldar experiências, ganhar entendimento e conhecimento através do uso de duas línguas”. A estratégia da translinguagem utilizada pela professora permitiu que ela, assim como os estudantes, utilizasse todo o seu repertório de comunicação: mímicas, palavras próximas, desenhos etc., por meio de associações, o que culminou na comunicação entre eles. Em suma, como explica a professora: “Na prática, a compreensão do uso da translinguagem liberta os indivíduos para que utilizem sem qualquer constrangimento as mímicas e todas outras possibilidades de comunicação que se fizerem necessárias” (Flávia, professora de escola pública, SP).
Aliado à prática da translinguagem, outro expediente utilizado para a superação do idioma divergente foi a instalação de placas de identificação em diferentes línguas na escola, estratégia que visa também a um melhor acolhimento dos estudantes migrantes e refugiados. A ideia de identificar os lugares com as línguas dos estudantes facilitou a mobilidade deles pela escola. Segundo a professora de ensino fundamental I Lia, de escola pública da cidade de Boa Vista, que acolhe refugiados venezuelanos em sua maioria, a identificação deve ser feita em toda a unidade escolar, incluindo secretaria, coordenação, direção, banheiros, cantina e salas. Essa atividade deve envolver os estudantes brasileiros da escola, já que seria um primeiro passo para a sensibilização do acolhimento. A professora afirma: “As plaquinhas em espanhol [banheiro, sala, secretaria etc.] parece não ser nada pra nós, mas os pais brasileiros chegam na escola e eles ficam rodando, perguntando “onde que é o que?”. Agora, imagina um venezuelano, um estrangeiro, então isso já ajuda” (Lia, professora de escola pública, RR).
Para enfrentar a barreira do idioma, as professoras relatam também a utilização da colaboração estudante-estudante do mesmo país de origem. A pesquisa revelou que essa vivência colaborativa foi utilizada do ensino fundamental I até o ensino médio, como explica Alice, coordenadora de uma escola particular da cidade de São Paulo que trabalhou com estudantes em condição de refúgio de diferentes países, entre eles Líbano, Palestina, Síria, Iraque, Irã, Tunísia, Venezuela, Moçambique e Angola:
Quando a gente recebe uma criança, por exemplo, nós temos dois terceiros que têm algumas crianças muçulmanas, a gente já coloca a criança [refugiada] nessa sala, a gente chama de Anjos, para que eles possam recepcionar essas crianças e fazer a inserção social delas. Então, os nossos próprios alunos são os anfitriões dessas crianças novas
(Alice, coordenadora pedagógica de escola privada, SP).
Segundo as professoras entrevistadas, a variedade linguística entre os estudantes migrantes e refugiados desafia o processo de ensino-aprendizagem. A professora da área de linguagens Amália, de uma escola pública estadual de ensino médio da cidade de São Paulo, afirma que, quando o trabalho é com uma língua próxima ao português, como o espanhol, a aprendizagem pode se dar nas salas de aula comuns, independentemente se de ensino fundamental, se de ensino médio. No caso de idiomas de uma família linguística totalmente diferente, como o árabe, e esse estudante chega para cursar o ensino médio, há a necessidade de salas de adaptação linguística.
Teria que ter um reforço, um reforço de ajuste, pelo menos em português, principalmente para estudantes não falantes de português, como meus alunos do Benin ou Síria. Ah, mas eu também tive uma aluna refugiada angolana e foi mais fácil, pela proximidade da língua
(Amália, professora de escola pública, SP).
As salas de transição são classes especiais nas escolas, ou mesmo em abrigos, que preparam as crianças e adolescentes migrantes e refugiados para ingressar no sistema educacional brasileiro. Para além da adaptação e do aprendizado do idioma, as salas de transição também foram descritas como uma forma de adaptar as crianças à dinâmica escolar, como conta Silvia, gestora escolar de escola pública em Roraima: “Tínhamos um desafio grande, pois algumas crianças, além de não falarem o português, nunca tinham pisado numa escola. Nasceram no trajeto entre Venezuela e Brasil, no caminho ou nos abrigos”. Segundo ela, mesmo as crianças entre 6 e 12 anos tinham dificuldades, por terem ficado muito tempo fora da escola, o que acabou motivando a criação de uma turma especial para as crianças refugiadas. Era um espaço de aprendizado de português, matemática e atividades pedagógicas variadas.
A gestora da escola conta que, mesmo antes do início das atividades, as famílias eram convidadas a frequentar a escola, conhecer o espaço e os funcionários e a interagir com as demais famílias da comunidade escolar. “A professora foi escolhida a dedo: era fluente em espanhol, por ter morado na Espanha”. Essa professora tinha a missão de fazer o diagnóstico de nivelamento dos estudantes, a fim de adequar a série de cada um no ano seguinte. A turma especial funcionou por seis meses, e as crianças logo se entrosaram e foram encaminhadas para suas respectivas salas. Todas as professoras passaram por uma capacitação sobre o contexto de deslocamento forçado dos seus futuros estudantes. Nos anos seguintes, a instituição seguiu recebendo estudantes venezuelanos. Hoje, cerca de 50 frequentam a escola, e não são apenas crianças; muitas mães e pais, já formados nas mais diferentes áreas na Venezuela, matriculam-se no ensino de jovens e adultos, que funciona na escola no período noturno.
Como demonstrado anteriormente, conforme os participantes do estudo, a recepção e o idioma são as primeiras grandes barreiras a serem transpostas para o acolhimento e a inclusão dos estudantes migrantes e refugiados nas escolas. O estudo, portanto, constatou que os profissionais nas escolas realizaram práticas que buscavam envolver a secretaria, a gestão, os funcionários de limpeza e alimentação, a sala de aula e mesmo a estrutura física, por meio de placas informativas em diferentes idiomas. Ou seja, eles destacaram a importância de toda a escola estar envolvida no processo de acolhida desses estudantes. Ademais, outro ponto de destaque foi o protagonismo das professoras em buscar uma comunicação translíngue, que compreende o uso de linguagem não verbal, como a mímica e o desenho, para que o indivíduo possa entender e se fazer entender, bem como a utilização do estudante amigo/tradutor. Ambas as práticas se mostraram essenciais para a efetivação do processo de acolhimento e posterior aprendizado.
Além das práticas de acolhimento na chegada dos estudantes migrantes e refugiados na escola e meios para superar a barreira da diferença do idioma, os participantes do estudo relataram também desafios e práticas pedagógicas para a implementação do processo de ensino-aprendizagem inclusivo, como vemos na próxima seção.
Práticas Pedagógicas de Ensino-Aprendizagem e Superação dos Preconceitos
Entre os desafios concernentes às práticas pedagógicas inclusivas, os educadores relataram dificuldades de estabelecer técnicas de ensino-aprendizagem que alcançassem os estudantes. Esse fato indica a necessidade de formação específica desses profissionais para essa prática e também a carência de materiais de apoio. As práticas adotadas foram conforme a experiência desses professores, que observaram a necessidade de ampliação do conhecimento da cultura dos migrantes e refugiados por parte do corpo escolar. Desse modo, ter acesso a cursos de formação sobre os estudantes migrantes e refugiados no país foi elencado pelas entrevistadas como necessidade e prioridade.
A rede de ensino brasileira é muito diversa, e os estudantes migrantes e refugiados estão presentes em quase todo o território. Em contrapartida, alguns grupos se concentram em regiões específicas, como é o caso de Roraima. A professora de uma escola pública da cidade de Boa Vista de ensino fundamental I Tainá destacou a importância de inserir e ampliar o conhecimento escolar sobre a cultura indígena Warao:
Eu acho que uma das formas [de inclusão] seria inserir um pouco da cultura deles dentro do cronograma escolar. Abordar determinados temas, alimentação, por exemplo. A gente montaria um projeto que envolvesse a cultura, os costumes, a questão indígena agrega muito e a questão do venezuelano também.
Para as entrevistadas, conhecer melhor a cultura, a história, os hábitos, as religiões, o idioma, os problemas sociais do país dos migrantes e refugiados poderia contribuir para melhorar as práticas de ensino-aprendizagem e, ainda, auxiliar na superação dos preconceitos, levando a um maior envolvimento de toda a comunidade escolar no acolhimento desses estudantes. A experiência vivida pela diretora Helena de uma escola em Igarassu mostra que a presença de estudantes migrantes e refugiados agrega aprendizado para toda a comunidade escolar e que o diálogo é essencial para evitar qualquer preconceito. Para ela, é importante um trabalho prévio com as famílias, com os estudantes, com os professores e com todos os trabalhadores da escola, a fim de sensibilizá-los no acolhimento desses estudantes e a promover a reflexão sobre preconceito, empatia e, igualmente, sobre o aprendizado cultural em si.
Olha, minha gente, vocês vão receber venezuelanos, eu fiz uma reunião com os pais pra dizer que não ia ter diferença nenhuma. Eu disse: “Talvez vocês percebam uma assistência maior, por parte do governo, não da parte da gente”. E eles entenderam. A gestão tem que ter um amadurecimento para isso muito forte, preparar seus professores para prepararem sua equipe pedagógica, do porteiro ao professor, para que eles não tenham nenhum olhar, nenhuma fala de preconceito para esses alunos
(Helena, diretora de escola pública, PE).
O projeto Duas Culturas e uma Nação, desenvolvido pela Escola Estadual Olavo Brasil Filho, em Boa Vista, por exemplo, teve o intuito de realizar esse aprendizado cultural. A instituição tem 10% de estudantes de origem venezuelana – cerca de 70 crianças de 6 a 17 anos. Por meio de atividades coordenadas por uma professora da escola, os estudantes brasileiros passaram a ter contato com notícias sobre o país vizinho e até a fazer cálculos para aprenderem sobre a moeda, o câmbio e a inflação. Segundo a entrevistada, esse projeto sensibilizou os estudantes brasileiros e levou-os a entender o deslocamento forçado e a situação dos colegas venezuelanos no Brasil. As atividades propostas suscitaram a empatia das crianças e adolescentes, melhoraram o relacionamento entre os estudantes, evitaram situações de xenofobia e exclusão e impactaram positivamente toda a comunidade escolar. Além disso, os alunos visitaram abrigos na cidade e promoveram coleta de alimentos para os mais vulneráveis. Todas as ações reportadas também resultaram numa cartilha feita pelos próprios estudantes com os conteúdos que aprenderam e poemas que escreveram para os colegas.
No estudo realizado, os profissionais de educação relataram, ainda, a importância de a escola ser sensível às diferenças culturais dos estudantes migrantes e refugiados. Para eles, a escola precisa estar ciente de que o estudante já está passando por um processo longo e difícil de adaptação cultural. Nesse sentido, é relevante a escola aproximar os temas trabalhados da forma como esses alunos viviam no seu país, na sua cultura e costume. Esse ajuste os ajudaria a compreender melhor os próprios temas e conteúdos escolares e promoveria, também, uma aprendizagem mais próxima e atenta às particularidades desses estudantes.
A orientação é pela culturalidade, tentando me aproximar ao máximo da realidade desses estudantes para trazer mais próximo do que é a nossa. Então, é sempre partindo dele para nós, esse é o movimento, orientado pela perspectiva de culturalidade entendendo que a gente parte da realidade, dos interesses e das necessidades de quem está aprendendo
(Eleonor, professora de escola pública, PR).
Em entrevista, a refugiada congolesa Maria, que tem cinco filhos em escola pública na cidade de São Paulo, apontou que a escola, ao trabalhar o tema do refúgio ou a realidade do país de onde o estudante refugiado veio, deve estar atenta e saber apresentar o conteúdo com sensibilidade em sala de aula, de modo a evitar que o estudante refugiado reviva momentos dolorosos. Ela ressalta:
O professor deve mostrar as razões pelas quais essas crianças refugiadas estão aqui no país, explicando no meio de uma conversa ou numa aula história ou geografia, mas tem que saber como explicar. Se não souber, o próprio aluno pode viver de novo o preconceito
(Maria, congolesa, refugiada, com filhos em escola pública em São Paulo).
Portanto, é essencial que o processo de ensino-aprendizagem, ao incluir crianças e adolescentes migrantes e refugiados, realize uma abordagem cuidadosa e que desconstrua e desnaturalize visões preconceituosas que não correspondem às realidades vividas por aqueles estudantes no seu país de origem.
Segundo Helena, diretora de uma escola pública de ensino fundamental I e II, da cidade de Igarassu, a gestão escolar precisa promover a difusão do máximo de informações sobre a cultura e a condição do estudante migrante e refugiado a todos os profissionais da escola. Ela argumenta que, assim, cada professor/a poderá compreender as diferenças e as características que aproximam os estudantes e, então, adaptá-las ao seu trabalho, à forma de lidar com esses estudantes.
No mês de junho de 2018, após o recesso escolar, recebemos os professores com essa notícia: que íamos ter venezuelanos. Então eu preparei alguns vídeos de algumas coisas que eu encontrei na internet da história deles, sobre a crise da Venezuela, até então eu mesma não tinha noção do que estava acontecendo lá, e aí criou um espírito, realmente, de acolhimento para esses alunos, sentimento de querer ajudar. Então, os professores se fortaleceram
(Helena, diretora de uma escola pública, PE).
Em outra entrevista, a professora Vanessa relatou a importância de comunicar aos estudantes brasileiros sobre a recepção de colegas migrantes e refugiados. Para ela, é importante que os educadores da escola tragam aos estudantes brasileiros informações como as nacionalidades, as diferenças e as proximidades culturais e históricas dos novos colegas. Ao passo que têm informações sobre os novos estudantes, os alunos locais iniciam um processo de reflexão, o que auxilia a desmistificar e desfazer possíveis preconceitos, além de que esse conhecimento prévio promove empatia e amplia o conhecimento dos estudantes, em termos de geografia, história, sociologia, e até mesmo pode vir a despertar interesse pelo estudo de outros idiomas.
Os alunos não estão preparados para receber esse colega dentro da sala de aula, ele só chega lá e é um aluno novo. Até essas maneiras do aluno chegar, “quem é você?”, e ele nem sabe se comunicar é uma situação assustadora para esse aluno. A escola é um lugar que acontece muito bullying, muito tudo, então a gente tem que ter um preparo melhor para receber esses alunos. Temos que preparar os estudantes também
(Vanessa, professora de escola pública, PR)
Outra prática relatada pelos profissionais da educação foi a construção de instrumentos para uma aprendizagem balizada na troca de informações culturais e de vivências. Em geral, em sala de aula os professores trabalham seus temas e conteúdos aproximando-os do contexto de vida dos estudantes. O caminho pedagógico já costuma ser a vivência deles, e isso foi apontado como uma prática pedagógica incorporada e potencializada com a presença dos migrantes e refugiados. Ao incluir as vivências desses estudantes, os conteúdos e temas propostos pelos professores tendem a fazer mais sentido e a melhorar o aprendizado e o engajamento deles, como demonstra a professora de escola pública de ensino fundamental I Tainá: “A gente tenta despertar, envolver a criança dentro daquelas situações do dia a dia dela, do cotidiano dela, às vezes você pega um gancho de uma determinada alimentação que ela gosta, para você iniciar uma aula, para que a aprendizagem de fato seja significativa”.
No sistema de ensino brasileiro, em geral, uma das mediações pedagógicas utilizadas pelos professores são projetos. As entrevistadas do estudo contaram que as feiras culturais, que focam nas características de diferentes países, foram um sucesso. Em um projeto desse formato, o envolvimento e mesmo a ação protagonista dos alunos migrantes e refugiados enriqueceram toda a experiência e aprendizado, como demonstra a diretora de uma escola pública de ensino fundamental I e II:
A gente estava organizando a feira cultural sobre a cultura do município, da cultura da cidade. A gente achou melhor fazer uma sala só com a cultura venezuelana, com a culinária venezuelana. Foi um sucesso. Todo mundo só queria ir pra essa sala, eles se vestiram de cozinheiro, chamamos as mães. Foi muita manga verde, incrível choque cultural, muita coisa verde, muita coisa diferente
(Helena, diretora de uma escola pública, PE).
Para a estudante angolana Ana, 18 anos, que vive em São Paulo como solicitante de refúgio, o intercâmbio do conhecimento foi extremamente relevante para o seu engajamento nos estudos. Ela demonstrou entusiasmo com o fato de a professora falar com ela sobre seu país: “Eu acho superlegal. Eu até conversava com minha professora de artes, eu explicava como é que a escola lá em Angola é, do que aqui, e eu falava pra ela”.
As entrevistas com profissionais da educação que têm experiência com estudantes migrantes e refugiados de diversas nacionalidades, como venezuelanos, Waraos, sírios, congoleses, palestinos, colombianos, entre outras, revelaram desafios e práticas que podem ser usadas nas escolas com vistas a uma aproximação com base em uma perspectiva intercultural. Entre os entraves apontados pelos profissionais da educação, está a falta de orientação prévia aos professores sobre a nacionalidade do estudante. Os professores, muitas vezes, descobrem que o estudante migrante e refugiado acompanhará as aulas quando já estão com ele em sala de aula. Nesse caso, para construir uma relação que favoreça o aprendizado, é fundamental que o primeiro contato seja acolhedor. Então, ele deve ser planejado previamente pelo profissional. Ademais, outro desafio para o processo de ensino-aprendizagem é a própria construção dos conteúdos, temáticas e materiais didáticos, que em sua maioria são pensados e elaborados em uma perspectiva nacional, ou seja, não rompem com a barreira do nacionalismo metodológico. Os profissionais entrevistados relataram a necessidade da inclusão de vivências e experiências multiculturais no dia a dia da escola e nos materiais destinados ao processo de ensino-aprendizagem.
O estudo, portanto, reafirmou que é de extrema importância que as escolas tenham sensibilidade para a construção de espaços, projetos e metodologias que promovam o conhecimento intercultural. Em outras palavras, a troca de conhecimento sobre os países é uma estratégia que promove vínculo dos estudantes migrantes e refugiados com os professores, com os demais estudantes e com a escola de modo geral, a qual passa a ser um espaço de acolhida. A amplitude desse acolhimento dependerá da intencionalidade de ações promovidas pela própria escola, tanto nas salas de aula como em todo o ambiente escolar. As entrevistas com os profissionais da educação demonstraram que valorizar a interculturalidade e construir projetos para a promoção do conhecimento de outros países, culturas, idiomas trouxeram ganhos para os estudantes migrantes e refugiados, como também para o corpo escolar como um todo, que aprenderam e vivenciaram diversidades linguísticas, culturais e religiosas, ampliando seus conhecimentos.
Considerações Finais
Como demonstrado na introdução deste artigo, o Brasil de 2010 até os dias atuais se tornou um país receptor de migrantes e refugiados no contexto da migração Sul-Sul. Os fluxos migratórios que chegam ao país têm se caracterizado pela grande quantidade de crianças e adolescentes, o que fez com que aumentasse o número de matrículas escolares. Nesse cenário, surgiu a necessidade de avançar em estudos sobre a correlação migração, educação e inclusão escolar. O estudo aqui apresentado buscou trazer elementos para esse debate por intermédio das práticas pedagógicas implementadas por profissionais de educação nas escolas do país.
Antes de adentrar nas práticas pedagógicas, era preciso saber se as crianças e adolescentes migrantes e refugiados têm direito pleno de acesso à educação no país e quais amparos jurídicos permitem o acesso e a inclusão escolar. O estudo demonstrou que no país há diversas leis, decretos, regulamentações e diretrizes que dão aos migrantes e refugiados direito de acesso e matrícula ao sistema educacional gratuito e oferecido pelo Estado, mesmo antes da Resolução nº 1, de 2020, entretanto essa resolução serviu, segundo as entrevistadas, para reforçar esse direito e normatizar a não necessidade de documentação escolar prévia do país de origem para a realização da matrícula escolar e também para deixar a cargo das escolas a equivalência idade/série. Para as participantes da pesquisa, esse foi um primeiro passo para dar maior visibilidade à presença de migrantes e refugiados no sistema educacional brasileiro.
Em contrapartida, este estudo também mostrou que, para além da garantia de direitos, não existem políticas públicas estruturadas e perenes em nenhum nível que orientem sobre o processo de inclusão de estudantes migrantes e refugiados no sistema de ensino. Ainda, o mapeamento de iniciativas pedagógicas revelou que, com algumas exceções, é mais frequente que o/a professor/a assuma o protagonismo na proposição de práticas de inclusão desses alunos do que as instituições escolares. Já num segundo momento e a depender das características e necessidades da escola, iniciativas individuais podem ganhar dimensão institucional.
No que tange à segunda questão proposta pelo estudo – quais são as práticas pedagógicas implementadas por profissionais da educação para buscar a inclusão das crianças e adolescentes migrantes e refugiados na escola? –, em síntese, o estudo realizado indicou diversos desafios para se alcançar uma escola inclusiva para migrantes e refugiados, bem como os caminhos para a criação de práticas pedagógicas inclusivas em sala de aula e nos demais espaços da escola. Uma das questões ressaltadas unanimemente pelas entrevistadas foi a necessidade de se enfrentar os preconceitos no espaço escolar, que podem aparecer tanto por parte dos outros estudantes quanto por profissionais da escola. A recepção desses estudantes foi outro tópico que se revelou insatisfatório: a falta de orientação e informação prévia sobre a presença do estudante migrante na escola para as/os professoras/es atrapalha o desenvolvimento e a antecipação de práticas inclusivas, que idealmente devem acontecer desde o primeiro contato.
Notamos que, diante das dificuldades encontradas com as crianças e adolescentes migrantes e refugiados em sala de aula, as/os professoras/es assumem a tarefa de dirimir os obstáculos de aprendizagem. Observamos, ainda, ser comum que os projetos das/os professoras/es extrapolem a sala de aula e sejam ampliados para toda a comunidade escolar. Ademais, as iniciativas de integração nas escolas não se limitam a trabalhar com as crianças migrantes e refugiadas; elas envolvem igualmente as crianças nacionais.
Desse modo, é possível concluir que para as entrevistadas do estudo é fundamental que a escola desenvolva práticas pedagógicas inclusivas que vão além das salas de aula, com projetos que envolvam toda a comunidade escolar. Por toda a pesquisa, houve o apontamento, por parte das/os profissionais da educação, do anseio por formação específica e materiais de apoio direcionados aos projetos necessários – idealmente, a serem difundidos de forma institucionalizada, por meio de cursos de atualização e capacitação voltados ao atendimento dos estudantes migrantes e refugiados e que pudessem ser oferecidos a todos os atores escolares. A atuação da gestão escolar, em todos os processos citados, foi indicada como um ponto determinante para o encaminhamento e a efetivação de ações inclusivas com os objetivos de orientar, sensibilizar e deixar explícito o intuito de integrar os estudantes.
Enfim, o presente artigo foi uma contribuição para a construção do campo de debate sobre migração e educação no país, trazendo à tona, por meio das vozes das/os profissionais da educação e de suas práticas pedagógicas, a necessidade de se avançar em estudos acadêmicos sobre a construção de práticas para a inclusão dos migrantes e refugiados nas escolas e a busca por ferramentas didáticas de medição para a construção do conhecimento multicultural. O artigo contribui, ainda, para lançar luzes sobre a necessidade de construção de políticas públicas educacionais voltadas para os migrantes e refugiados que envolvam o acolhimento escolar e o processo de ensino-aprendizagem, que considerem as particularidades dos migrantes, valorizando a diversidade, para que a escola não se torne mais um espaço de reprodução das desigualdades. É preciso pensar um modelo educacional que inclua a temática das migrações e as diversidades das crianças e adolescentes em termos de classe, raça, gênero, religião, sexualidade e, também, nacionalidade/país de origem.
Notas
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1
Apesar de reconhecermos que os diferentes status migratórios – imigrantes, solicitantes da condição de refúgio, refugiados e apátridas – têm suas particularidades jurídicas e sociais, neste texto eles foram aglutinados sob a categoria migrantes e refugiados, com a finalidade de facilitar a apresentação dos dados e o estilo narrativo do texto.
-
2
Esta pesquisa foi realizada com o apoio da Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos e do Alto Comissariado para as Migrações (ACNUR), e um dos produtos do estudo foi o “Guia para pais e educadores sobre integração de crianças e adolescentes refugiadas nas escolas”, disponível em https://www.educacaopararefugiados.com.br/. Acesso em: 14 jan. 2023.
-
3
Além das/o autoras/o deste artigo, a pesquisa contou com a participação de Marcelo Cigales, docente no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), Lara Andreia Sant Ana Cardoso e Priscila Franco Rocha, ambas mestras em Educação pela UnB, e Marina Isabel Correia da Silva Dantas, graduada em Ciências Sociais e Sociologia pela UnB.
-
Este artigo é resultado da pesquisa “Guia para educadores e pais sobre a integração de adolescentes e crianças refugiadas nas escolas do Brasil”, realizada em parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e a Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos.
Referências
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Editora de Seção: Ana Maria F. Almeida https://orcid.org/0000-0002-4504-0423
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
14 Fev 2023 -
Aceito
11 Set 2024