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Entrevista com Bruno Sena Martins

DEPOIMENTOS

Entrevista com Bruno Sena Martins* * Doutorando da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Investigador Associado do Núcleo de Estudos de Democracia, Cidadania Multicultural e Participação do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.. Rua do Brasil, 222A, 4ª Esq. 3030-775 Coimbra, Portugal. E-mail: bsenamartins@gmail.com

Marcia Moraes

Doutora em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense. E-mail: mmoraes@vm.uff.br

Rio de Janeiro/Coimbra, online, 16 de dezembro de 2008

Entrevistadora: De que modo pode-se problematizar as concepções hegemônicas de cegueira tendo como base as políticas públicas voltadas para a inclusão, já que tais políticas atuam no nível macro, enquanto a inclusão, como processo, ocorre no nível micro?

Martins: No que às políticas públicas de inclusão diz respeito, problematizar a relação entre os níveis micro e macro implica reconhecer os limites das abordagens vigentes: abordagens reabilitacionais, centradas na pessoa com deficiência, pouco afeitas a confrontar a sociedade mais ampla com os direitos das pessoas com deficiência. Entendo, portanto, que efectividade das políticas públicas depende de uma mudança de ordem paradigmática, só assim seria possível subverter um quadro cultural, o nosso, onde as pessoas com deficiência tendem a ser agrilhoadas a preconceitos fatalistas e onde os itinerários de inclusão frequentemente resultam de uma lógica marcada pelo paternalismo caritário. Michael Oliver, sociólogo e importante activista na emergência do "modelo social da deficiência", sintetizava esta percepção generalizada com extrema acuidade: "Percebe-se, tanto nas interacções sociais como nas políticas sociais, o presente domínio de uma visão individual e trágica da deficiência" (OLIVER, 1990, p. 3).

Daqui decorre um retrato marcado por políticas públicas que ficam longe de cumprir os objectivos com que são apresentadas, quer porque simplesmente não saem do papel, quer porque que nunca chegam a assumir um papel cabal nos quotidianos, nas micropolíticas e nas interacções sociais que ritualmente marcam a vida das pessoas com deficiência. De facto, o impacto das políticas públicas será sempre mitigado se na prática quotidiana elementos da administração pública, empregadores, engenheiros, arquitectos, educadores, programadores culturais, etc., não estiverem enculturados nos direitos das pessoas com deficiência. Nesse sentido proponho três linhas de reflexão:

1) A consagração de direitos às pessoas com deficiência tem que ser parte de um processo que resulte de (ou aspire a) um reconhecimento de que a actual situação das pessoas com deficiência configura uma flagrante situação de opressão social.

2) À semelhança de outros grupos historicamente marginalizados, as pessoas com deficiência enfrentam diversas formas de opressão cuja reversão dificilmente poderá excluir a acção das organizações que as representam. Importa que o movimento de pessoas com deficiência tenha a capacidade de levar por diante uma agenda que valorize o poder transformativo e construtivo do conflito social, por um lado, e a centralidade de uma democracia participativa, que, sendo exigente e contra-hegemónica, se insurja contra a omissão e contra o continuado silenciamento da deficiência. Por sua parte, o Estado não deve temer a democracia participativa, enfraquecendo-a, deve antes promover o seu enriquecimento como elemento essencial a uma sociedade mais justa.

3) Os obstáculos postos à realização pessoal das pessoas com deficiência prendem-se tanto com uma organização social que sempre negligenciou as suas diferenças, como com poderosos estigmas culturais, historicamente sedimentados, que se presentificam nos dramas sociais quotidianos. Nalguma medida, cabe regressar às identidades molestadas de que Erving Goffman nos falava para referir a tenacidade dos estigmas nos encontros sociais, é também nessa micro-escala que importa fazer uma análise do poder incapacitante dos preconceitos dominantes em torna da deficiência.

Creio, pois, que a implementação de políticas públicas não pode dispensar uma pedagogia social em que as necessidades das pessoas com deficiências sejam enunciadas numa linguagem de direitos. A aproximação deste quadro, sugiro, configura um radical questionamento dos termos pelos quais a deficiência é hegemonicamente pensada. Tal desígnio depende que a afirmação de capacidades das pessoas com deficiência seja articulada com reivindicações insurgentes: pela superação de barreiras, pela superação de preconceitos e pelo fim das lógicas assistencialistas - nas suas múltiplas encarnações.

Entrevistadora: Para formular uma política pública é necessária uma diretriz, mas como articular essa diretriz com as condições singulares das pessoas com deficiência visual? Que ferramentas teórico-práticas permitem e viabilizam uma política pública nesta área?

Martins: A definição de políticas públicas deve ter como princípio crucial a incorporação das experiências e perspectivas das pessoas a quem essas políticas dizem mais directo respeito, no caso as pessoas com deficiência. Este princípio corresponde a uma posição ética política sobre a natureza constitutiva de uma sociedade que se diz democrática, mas corresponde também a uma necessidade substantiva no planeamento, execução e manutenção de estruturas que visam promover a inclusão social. Só a participação activa das pessoas com deficiência, por própria voz ou através das organizações que as representam, pode combater uma propensão normativa para uma planificação social normativa e desinformada das histórias de vida que melhor conhecem as implicações da deficiência. Seja a planificação do espaço urbano, seja definição de serviços, seja na provisão de cuidados especializados, etc., importa que o património das pessoas com deficiência e das suas organizações não seja feito tábua em favor de projectos iluminados de planeadores desconhecedores desse mesmo património. Finalmente, as políticas públicas não podem ignorar que o seu papel não é meramente o de criar igualdade de oportunidades como se a vida social fosse inaugurada por decreto. Ao invés, cabe-lhes considerar um corpo social que há séculos se vem edificando sobre a exclusão e omissão das pessoas com deficiência, pelo que o seu protagonismo no planeamento de políticas, além de um imperativo de inclusão, representa, também, a mais elementar justiça histórica.

Entrevistadora: Qual o papel da universidade - no que diz respeito à produção de conhecimento sobre deficiência visual - na formulação e discussão de políticas públicas?

Martins: Parece óbvio defender que os conhecimentos produzidos e articulados na universidade devem cumprir um papel relevante na criação de condições de igualdade de oportunidades para as pessoas com deficiência visual. No entanto, se observarmos por exemplo os currículos nas ciências sociais, deparamo-nos, não raro, com uma completa omissão da questão da deficiência. Ora, isto é tão mais caricato quando conhecemos a relevância que as questões da desigualdade social têm ocupado nestas disciplinas.

Sabemos que o corpo e as diferenças corporais estão na base de algumas das mais importantes formas de desigualdade e controlo social nas sociedades contemporâneas. A questão é que a atribuição de limitações à actividade e à participação social ao corpo dito deficiente, tende a naturalizar poderosamente o vínculo à inferioridade e à experiência da exclusão social. As significativas minorias constituídas por pessoas com deficiência persistem sendo alvo de formas de opressão particularmente fugazes à crítica e à mobilização social. Isto porque, os seus corpos - para falar das deficiências físicas - facilmente são tomados como indicadores dea uma situação de marginalidade social, entendida como fatal. Nesta leitura o retrato dado pelas ciências sociais pretende ser uma expressão sensível da reduzida presença do tema da deficiência na academia e, por sua vez, visa ilustrar em que medida a academia frequentemente reflecte as percepções sociais dominantes que naturalizam as deficiências sob o exclusivo do paradigma das limitações individuais.

No entanto, e em completo contraponto com o retrato sombrio com que frequentemente nos deparamos na academia, convém lembrar que o próprio movimento social de pessoas com deficiência emergiu nos 1970 muito devido ao contributo das universidades no Reino Unido e nos Estados Unidos da América - onde se viriam a estabelecer os Disability Studies. A emergência e consolidação dos Disability Studies no espaço anglo-saxónico, lado a lado com as lutas sociais, oferece um inspirador testemunho de como a universidade, assim esteja investida em articular-se com as agendas emergentes, superando barreiras históricas, pode fazer uma imensa diferença. Conforme referia Gary Albrecht (2002, p. 19): "Disability Studies [...] is an emergent field that spans the boundaries of academia, personal experience, political activism and public policy".

Quando nos situamos em contextos em que a universidade está começando a contrapor o silenciamento que outras arenas apõem à questão da deficiência - e à deficiência visual em particular - há passos que se podem mostrar decisivos. Pedagógicos, porque não dizê-lo? Um desafio iniciático, profundamente instrutivo, é a exaustiva identificação das barreiras que existem na própria universidade impedindo que alunos, funcionários e professores com deficiência possam usufruir da universidade em iguais condições de acesso. Estamos no campo das micropolíticas que desde logo se darão pela necessidade de consciencialização da comunidade universitária para a relevância da questão. A produção de um meio inclusivo na universidade convida à criação de espaços físicos inclusivos, convida à disponibilidade e desenvolvimento de suportes de informação que permitam o acesso à de pessoas cegas e surdas, convida à criação de um ambiente social informado da diferença, convida à participação das organizações de pessoas com deficiência no processo, convida a uma articulação crítica com a legislação inclusiva no campo da educação, convida a uma articulação crítica com a legislação referente ao espaço edificado.

Há toda uma transdisciplinaridade dos saberes a serem mobilizados para a criação de universidade inclusiva: sociologia, antropologia, psicologia, ciência política, engenharias, arquitectura, urbanismo, etc. Na realidade, tal processo pode ser duplamente produtivo na medida em que engendre um enriquecimento científico e humano que recursivamente concite currículos a incorporarem linhas de investigação e de saber aplicado, linhas cuja pertinência, além da universidade, desejavelmente será estendida a outros espaços sociais (desde logo pela consciencialização de alunos como cidadãos e futuros profissionais).

  • OLIVER, M. The Politics of Disablement Basingstoke: Macmillans, 1990.
  • ALBRECHT, G. L. American Pragmatism, Sociology and The Development of Disability Studies. In: BARNES, C.; OLIVER, M.; BARTON, L. (Ed.). Disability Studies Today London: Polity Press (Routledge), 2002. p. 18-37.
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    Doutorando da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Investigador Associado do Núcleo de Estudos de Democracia, Cidadania Multicultural e Participação do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.. Rua do Brasil, 222A, 4ª Esq. 3030-775 Coimbra, Portugal.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2009
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