Open-access Falar e coordenar-se: do social ao privado

Speech and coordination: from social to private

RESUMO

O paradigma informacional da comunicação estipula que agentes usam a fala para transmitir informação não-redundante a outros agentes. Se olharmos para a fala auto-direcionada e, em particular, para a fala privada, no entanto, nos deparamos com um claro contraexemplo: nela, os papéis de falante e ouvinte coincidem no mesmo agente. Meu objetivo aqui será, então, somar-me aos esforços de buscar um paradigma alternativo que explique a fala privada, em seus vários usos, intrapessoais e intersubjetivos. Para isso, considero dois candidatos: o paradigma disposicional e o deôntico, segundo os quais a fala serve, respectivamente, para gerar disposições e para negociar compromissos em ações coordenadas. Ao comparar os méritos de ambos, mostro que o segundo é preferível por conseguir explicar usos da fala privada com função fática mais facilmente que o primeiro. Tais usos evidenciam que a comunicação também pode voltar-se para aspectos de sua própria infraestrutura e da ação-entre-participantes. Lamentavelmente, eles vêm sendo negligenciados na literatura filosófica, embora pareçam ser peça-chave de qualquer resposta completa à pergunta “Por que falamos?”.

Palavras-chave: fala privada; coordenação; comunicação fática

ABSTRACT

The informational paradigm of communication stipulates that agents talk to convey non-redundant information to other agents. If we turn to self-directed talk and, in particular, to private speech, however, we find a clear counterexample. After all, in self-directed speech, the roles of speaker and hearer coincide in the same agent. My goal here is to search for an alternative paradigm that explains private speech in its various intrapersonal and intersubjective uses. To that end, I consider two alternatives, the dispositional and the deontic paradigms, which assume respectively that we talk to generate dispositions and to negotiate commitments in coordinated actions. In comparing their merits, I show that the second one is preferable because it explains private uses of language with phatic function better than the first one. Such uses show that communication can turn to aspects of its own infrastructure; regrettably, they have been systematically neglected in the philosophical literature, even though they seem to be a crucial part of a complete answer to the question “Why do we talk?”.

Keywords: Private speech; coordination; Phatic Communication

1 Introdução

Se nos pedirem para imaginar um caso paradigmático de fala, certamente pensaremos em uma dessas interações conversacionais em que dois participantes se intercalam nos papéis de falante, o realizador do ato de fala, e de ouvinte, o destinatário. Alguns filósofos da linguagem contemporâneos dirão, seguindo ideias de H.P. Grice (1975; 1989), que, em casos assim, o papel do ouvinte é reconhecer a intenção comunicacional do falante e o do falante é expressar-se de forma adequada para garantir que sua intenção comunicacional seja reconhecida pelo ouvinte.

Dirão, além disso, que, em interações desse tipo, atos de fala são realizados sobre um pano de fundo de pressuposições mutuamente aceitas, chamadas de common ground (Stalnaker, 2002; 2014). Cada novo ato de fala - particularmente, cada nova asserção - funcionará como uma solicitação de atualização do common ground e será avaliada como aceitável ou não pelos demais participantes, de acordo com critérios de racionalidade, como o Princípio de Cooperação ou PC (Grice, 1975). O PC estabelece que o falante “faça sua contribuição conversacional tal como é requerido no estágio no qual ela ocorre, aceitando o propósito ou direção da troca conversacional” (Grice, 1975, p.48). Afinal, para Grice, conversas são “um caso especial ou variedade de comportamento propositado, [de fato] racional” (Grice, 1975, p.47), no qual o tipo de racionalidade envolvida é cooperativo. Da formulação standard do PC, derivam-se quatro máximas, que servem para explicar como intérpretes entendem ou inferem o significado intencionado pelo falante (speaker’s meaning) a partir de sua enunciação. De acordo com elas, quando produzimos ou interpretamos uma enunciação, assumimos que: 1) ela é verdadeira (Máxima de Qualidade); 2) ela transmite a quantidade adequada de informação (Máxima de Quantidade); 3) que tal informação é relevante no contexto (Máxima de Relevância); e, finalmente, 4) que a enunciação foi apresentada em termos compreensíveis (Máxima de Modo) (Davis, 2000). A Máxima de Quantidade, em particular, estipula que a redundância, assim como a baixa informatividade, devem ser evitadas.

Segue-se dessas observações que casos paradigmáticos de fala possuem cinco elementos básicos: um falante/emissor (F), um ouvinte/receptor, (R), um ato de fala, (S), a informação por ele transmitida (φ) e um common ground conversacional (C), onde F se dirige a R para transmitir a informação φ, que deve ser não-redundante em C, através da realização de S. Em outros termos, casos paradigmáticos possuem:

a) direcionalidade externa (other-directedness): F dirige S a R, onde F ≠ R;

b) informatividade (indutora de crenças) (Ryle, 1979): F tem uma crença P e realiza S, transmitindo φ, com a intenção de levar R a também ter P.

c) cooperatividade: sendo F um agente cooperativo, φ será não-redundante em C.

Tomemos um exemplo. Imagine que você começou uma conversa sobre maus hábitos de saúde com a passageira desconhecida que sentou ao seu lado em uma viagem de avião. Em dado momento, ela profere (1),

(1) Estou tentando parar de fumar.

Suponha que você tem boa disposição para com sua interlocutora e nenhuma razão para pensar que se trate de um agente insincero. Visto que, além disso, (1) respeita o tópico em questão - i.e., a QUD (ver Roberts, 2012) - você, provavelmente, realizará um movimento de acomodação (Lewis, 1979) para incluir no common ground a pressuposição, até então ausente, de que sua interlocutora fuma. Tal movimento tornará (1) uma contribuição cooperativa.

Agora imagine que a conversa segue e que, momentos depois, a passageira profere (2).

(2) Eu fumo.

Essa nova asserção será mais problemática. Enquanto, no primeiro caso, (1) pressupunha uma informação que não era parte do common ground no instante da enunciação, o conteúdo de (2) já se encontra pressuposto e mutuamente manifesto, como resultado da aceitação prévia de (1). Nessas circunstâncias, o ouvinte (você) provavelmente considerará (2) rejeitável em virtude de sua clara redundância - ou seja, por violar c).

O que acabo de descrever, a partir de seus elementos constitutivos e características, é o que podemos chamar de:

Paradigma informacional (PI): agentes usam a fala para transmitir informação não-redundante a outros agentes.

No passado, o PI esteve na raiz do que Austin (1962 [1990]) chamou de “falácia descritiva” ao discutir a análise verificacionista dos atos declarativos. Na Conferência I, Austin sugere que algo como o modelo informacional estaria por trás da pouca atenção dada, na filosofia de sua época, aos atos de performativos - i.e., aqueles nos quais realizar S é realizar uma ação. Nesse sentido, sua crítica alveja pontualmente b), já que admite que uma interação conversacional entre F e R pode se dar para outros fins, além da transmissão de informação.

Mas há desafios para o PI que vão além das observações de Austin. O fenômeno que discuto neste texto, a fala privada, é um deles. Trata-se de um tipo de fala bastante pervasivo (em especial na infância ou em contextos que requerem autorregulação cognitiva ou comportamental), no qual os papéis de F e R coincidem no mesmo agente. Emissões audíveis auto-direcionadas de frases como:

(3) Vamos, você consegue! (e.g., em um contexto esportivo)

(4) O que vem agora? (e.g., seguindo uma receita)

são bons exemplos. Note que, à primeira vista, essa descrição da fala privada exclui além de a), c) do PI. Em consequência, para explica-la, pareceria ser necessário ou negar que a fala privada seja um tipo de fala ou abandonar parcial ou integralmente tal paradigma. Uma dificuldade para quem assume a primeira opção é explicar as semelhanças e continuidades funcionais e estruturais observadas entre fala privada1 e a fala social. Apostando na segunda opção, meu interesse aqui será discutir paradigmas alternativos2. Isso será realizado pontualmente na seção 3, na qual discuto os paradigmas disposicional e deôntico, que sustentam que falamos, respectivamente, para gerar disposições em outros agentes e para negociar compromissos. Atentarei, em particular, a que peso cada um deles dá às características a) e c) e em que medida acomodam dados acerca da fala privada que apresento na seção 2. Por fim, na seção 4, comparo méritos dos dois paradigmas para indicar aquele que está mais bem-equipado para explicar a fala em suas dimensões social e privada e em seus vários níveis, desde os mais fundamentais.

2 Fala social, fala privada e discurso interno

A fala privada se caracteriza principalmente pela sua auto-direcionalidade, que marca um aparente contraste com a fala social, direcionada a outros falantes. Esse contraste, à primeira vista, pareceria evidenciar também uma dicotomia funcional: a fala social seria interpessoal, isto é, ajustada para fins comunicacionais, e a fala privada, intrapessoal e ajustada para fins autorregulatórios.

Contudo, é amplamente aceito atualmente, graças à influência do programa vygotskyano (iniciado em Vygostsky 1934 [1981]), que a fala privada representa um estágio de internalização da fala social, sendo funcionalmente contígua e não dicotômica com relação à fala social. Mais especificamente, supõe-se que seu papel é de precursora do chamado discurso interno, uma modalidade de experiência interna que envolve “falar palavras na própria voz, geralmente com as mesmas características vocais de seu próprio discurso externo, mas sem som ou movimento externo (real)” (Heavey, Hurlburt, 2008, p. 802). Vejamos mais sobre a hipótese de contiguidade e sobre o que é o discurso interno.

A hipótese de contiguidade social-privado

A posição dos vygotskyanos está empiricamente motivada pela observação de que, na espécie humana, a fala auto-direcionada explícita é comum na infância - entre dois e cinco anos de idade3 - e diminui consideravelmente até a vida adulta. Tal diminuição é concomitante tanto com o aumento de relatos de uso de discurso interno quanto com uma mudança nas características da fala privada, que se torna mais fragmentada e inacabada. Temos, assim, H, como hipótese resultante:

Hipótese de contiguidade social-privado (ou H): no desenvolvimento de capacidades psicológico-cognitivas, a fala privada representa um estágio de internalização da fala social e, portanto, compartilha com ela características estruturais e funcionais.

Uma vez desenvolvidas capacidades psicológicas executivas de autorregulação e controle sobre processos cognitivos, o uso da fala privada se torna específico e ocasional. De acordo com H, portanto, o uso adulto (a partir de 5 anos de idade) da fala privada é funcionalmente contíguo à fala social e estruturalmente semelhante ao discurso interno (i.e., marcado, principalmente, pela fragmentariedade e repetição, como veremos na subseção 2.1.).

O discurso interno

Há uma ampla literatura em ciências cognitivas e filosofia da linguagem sobre o discurso interno e seu lugar na cognição humana. Por razões de espaço e escopo, não tratarei detalhadamente desse tema aqui, mas é importante mencionar que autores como Clark (1998), Bermudez (2003) e Prinz (2007), por exemplo, assumem que a função do discurso interno é operar como uma espécie de “veículo de pensamento consciente” (Vicente, Martinez-Manrique, 2011). Sua suposição comum de base é de que a comunicação entre partes diferentes da mente é subótima e a função do discurso interno é, basicamente, possibilitar integração informacional ao trazer pensamentos à modalidade linguística e, nesse sentido, à consciência.

Aqueles que se opõem a essa “visão veicular” sugerem, em contrapartida, que o discurso interno herda da fala social uma multiplicidade de funções - de cunho motivacional, avaliativo, atencional etc. - e não pode ser funcionalmente reduzido a um papel veicular. Vicente e Martinez-Manrique (2011), Martinez-Manrique e Vicente (2015) e Castro (2016) oferecem abordagens interessantes dessa discussão e defesas da visão baseada-em-atividades do discurso interno, como veremos brevemente na seção 3.

Apesar dessas divergências filosóficas quanto à natureza do discurso interno, sua investigação empírica tem sido uma das principais fontes de dados acerca da fala privada, já que a observação de episódios de fala privada é parte crucial da metodologia de investigação do discurso interno4. Porém, essa ênfase também tem se mostrado inquisitivamente limitante por dar excessivo peso às funções intramentais da fala privada quando, em realidade, existem atualmente importantes desenvolvimentos empíricos sobre seus usos sociais, especialmente provenientes de pesquisas vygotskyanas em aprendizado interativo de segunda língua (L2). Tratarei deles na próxima subseção, mais especificamente dos trabalhos de Smith (2007) e de Kohler e Thorne (2011). Meu objetivo é ressaltar o quadro multifacetado que esses estudos promovem, no qual a fala privada ganha um caráter híbrido: por um lado, espelha a fala social dado seu papel na comunicação em atividades conjuntas. Por outro, como o discurso interno, auxilia a autorregulação cognitiva e comportamental.

2.1 Tipos de fala privada: usos intrapessoais e intersubjetivos

Como seria de se esperar, a fala privada, sendo auto-direcionada, manifesta traços linguísticos, para-linguísticos e não-linguísticos típicos e distintivos e há uma literatura bem-estabelecida acerca deles (Winsler et al (2005) oferecem um panorama). Naturalmente, tais traços não estão conjuntamente presentes em todas as ocorrências de fala privada, então o que mostro aqui são os mais comumente observados e meu objetivo é separar mais claramente a fala com direcionalidade externa da fala privada.

Linguisticamente, a principal marca da fala privada é a sua fragmentariedade, observada ainda por Vygostky (1934 [1981]) na fala privada infantil. Essa característica estrutural é, em geral, compartilhada com o discurso interno, tipicamente mais abreviado que a fala social, inclusive em adultos (Duncan, Cheyne, 2001) e é frequentemente mencionada como evidência em favor de H. Além disso, encontramos indicações prosódicas, como queda de intensidade e de volume da voz do falante (John-Steiner, 1992 [2014]).

No que concerne às marcas paralinguísticas e não-linguísticas, foi observado que o contato visual, nos contextos conversacionais em que a fala privada aparece, é cortado e/ou tem sua direção alterada - assim como a orientação corporal e gestual da falante com relação à ouvinte (Smith, 2007; Kohler, Thorne, 2011). Esses seriam sinais de que nenhuma resposta é esperada dela. Alguns estudos também notaram musicalização de palavras e word play (Goudena, 1992). Finalmente, as repetições5 são marcas muito frequentes. Uma falante engajada em fala privada tende a, além de mudar a direção do olhar e do corpo - caso esteja em uma interação conversacional -, repetir palavras já enunciadas. Supõe-se que a principal função da repetição é ativar raciocínios quando há dificuldade de recuperação de memória e necessidade de manutenção de foco (DiCamilla, Anton, 1997).

Talvez como consequência desse papel no controle atencional, as repetições de fala privada aparecem em contextos de atividades interativas com múltiplos agentes. Neles, como Smith (2007, p. 353) sugere, as repetições teriam uma função social e intersubjetiva. Elas são percebidas como tentativas de atrair a atenção de outros agentes, convites para a realização conjunta de uma etapa da atividade e/ou como demonstração de aceitação de uma contribuição conversacional anterior.

Tais sugestões foram feitas no estudo de aprendizado de inglês como L2, publicado em 2007, no qual Smith observou interações em jogos de tabuleiros. No experimento, cada tabuleiro continha um circuito ao longo do qual foram colocadas penalidades, tais como lançar dados e puxar cartas que continham palavras pouco familiares do inglês. A cada penalidade, um pequeno time de crianças (de idades entre 7 e 10 anos) deveria formar colaborativamente uma frase contendo a palavra indicada na face do dado ou da carta em questão.

Tomemos o extrato abaixo como exemplo (Smith, 2007, p. 348). As letras maiúsculas no início de cada linha numerada (1-7) representam os nomes dos três participantes do jogo, T, S e D6.

1 T how did the how did the (..) reads the card (LOOKS TO S FOR SUPPORT)

2 T+S dolphin swi(:)m

3 T+S the dolphin

4 S [swam]

5 T [swim]

6 T swi(::)m (REPEATS WORD, LOOKS AT CARD, ELONGATES VOWEL, SPEAKS MORE QUIETLY)

7 S beautifully? gracefully, carefully, neatly, or happily [...]

1 T Como é como é que é (..) lê a carta (OLHA PARA S PEDINDO APOIO)

2 T+S golfinho na(:)da

3 T+S o golfinho

4 S [nadou]

5 T [nada]

6 T nad(::)a (REPETE A PALAVRA, OLHA PARA A CARTA, ALONGA A VOGAL, FALA MAIS BAIXO)

7 S lindamente? graciosamente, cuidadosamente [...]

A repetição realizada por T em 6, em particular, tem todas as marcas de fala auto-direcionada discutidas acima, mas sua função não parece ser intrapessoal. Ao contrário, ela serve para endossar a contribuição anterior de S sobre a qual T constrói sua própria resposta. S, em seguida, toma a repetição de T como uma espécie de convite para oferecer uma conclusão para a atividade, ao finalizar a penalidade com sugestões de como terminar a frase7. Smith toma esse e outros casos semelhantes como evidência da natureza híbrida da fala privada: as repetições serviriam tanto para auxiliar a recuperação de memória quanto para indicar a aceitação das contribuições de outros agentes.

Posteriormente, Kohler e Thorne (2011) publicaram uma continuação do programa iniciado por Smith, na qual analisaram grupos de adolescentes (14-15 anos) falantes de alemão suíço, interagindo em dois tipos de atividades pedagógicas de francês como L2: encenação e descrições de itinerários de viagens. Seus resultados, em primeiro lugar, favorecem as conclusões de Smith sobre o uso da fala privada para fins de coordenação e manutenção de foco coletivo, mas também mostraram que episódios de fala privada podem servir para pausar a interação, gerando oportunidades para reconfigurações momentâneas do quadro de participação - i.e., quando um falante “fala consigo mesmo”, retirando-se brevemente da conversa, o outro pode tomar o turno. Em segundo lugar, episódios de fala privada foram observados logo após desalinhamentos participativos momentâneos, o que, segundo os autores, serve para indicar a disponibilidade ou não de participantes para a continuação da conversa. Seguindo a linha de Smith, Kohler e Thorne apresentam a fala privada como um híbrido cognitivo-social que atua sobre a organização sequencial de ações conjuntas e, em particular, sobre a distribuição de turnos entre falantes e sobre a arquitetura participativa da interação (Schegloff, 2007)8.

Chamarei os casos discutidos por Smith e Kohler e Thorne, i.e., episódios de fala privada para fins de coordenação e/ou (re)configuração participativa, de usos intersubjetivos. Eles são definidos pelos contextos de atividades interativas nos quais ocorrem. Estão, ademais, subdivididos em usos intersubjetivos para coordenação e infraestruturais. Nos usos intersubjetivos para coordenação, o ato de fala privado gera uma resposta interativa do(s) interlocutor(es), funcionando como convites para ação. Os casos estudados por Smith (como o extrato acima) são bons exemplos.

Usos intersubjetivos infraestruturais, por sua vez, caracterizam-se pelo seu efeito na arquitetura participativa, mas não necessariamente servem para “convidar” outros participantes para a solução conjunta de uma tarefa ou para determinar o foco de atenção coletiva. São os casos em que participantes sinalizam indisponibilidade em lacunas momentâneas que permitem reorganização. Os casos estudados por Kohler e Thorne são bons exemplares desses usos. Por fim, um subtipo de uso intersubjetivo infraestrutural pouco discutido aparece no trabalho pioneiro de Ervin Goffman (1978, 1981): neles, o objetivo do falante é salvar a face (save face) diante de ameaças à sua credibilidade como agente racional.

2.2 Usos save face

Um dos objetivos iniciais de Goffman no texto Response Cries, de 1978, é buscar compreender porque, embora a fala privada em adultos seja considerada socialmente inapropriada, em alguns casos, ela é não apenas apropriada como esperada. Goffman explica, primeiro, a ideia de inadequação da fala privada, tomando a atividade de falar como situacional, ou seja, como definida pelo seu entorno originário que, no caso da fala, envolve o agrupamento e a interação entre pessoas (Goffman, 1978, p.790)9. Isso significa que falar demanda dos agentes uma atitude que ele chama de “vivacidade deferente”, dentro da e para com a situação na qual a fala ocorre. Goffman afirma, por fim, que a fala privada é tipicamente inapropriada socialmente porque mostra que o falante está distraído de seu papel situacional.

Há, porém, claras exceções, nas quais a fala privada é esperada. O uso auto-direcionado de “exclamações de reação” (response cries) convencionalizadas, como ‘Oops!’, do inglês, é um exemplo. Suponha que ao tentar ajudar o comissário de bordo a passar um copo de água para a passageira desconhecida da seção 1, você derrubou um pouco de água na própria roupa. Essa é uma situação na qual uma emissão auto-direcionada de ‘Oops!” sinaliza seu reconhecimento de uma falha. Mais importante: ela evidencia sua “vivacidade deferente” para com a situacionalidade do evento, no sentido definido acima, acionada para remediar a ameaça de perda de credibilidade.

A vivacidade deferente da qual Goffman trata é mais fundamentalmente uma demonstração de competência social. No exemplo, sua emissão auto-direcionada de ‘Oops! é “uma reação compreensível para um evento compreendido” (Goffman, 1978, p. 798). Você sinaliza que, apesar do seu lapso momentâneo, ainda é um agente social e racionalmente competente, capaz de reconhecer o próprio equívoco e fazer o que é necessário para “limpar a própria barra” (save face). O mesmo ímpeto de reparação pode ser encontrado também em casos de lapso nos quais não há testemunhas. Goffman (1978, p. 793) discute, por exemplo, as muitas estratégias de reparação disponíveis para um homem que tropeça caminhando sozinho pela rua: um sorriso constrangido, a enunciação de uma “exclamação de reação” - ‘Ôpa!’, do português brasileiro é uma opção adequada -, ou a enunciação de uma frase como (5), com marcas de auto-direcionalidade.

(5) Nossa! Eu quase caí!

Nenhuma dessas reações tem propriamente um destinatário. O homem “conta uma história para a situação” (Goffman, 1978, p. 794), que servirá a testemunhas potenciais.

O que interessará sobre o tratamento de Goffman de casos como (5) e a enunciação de ‘Oops!’ - chamemo-los de casos save face - para os presentes fins é que eles têm efeitos sobre a infraestrutura da atividade conjunta, a saber, sinalizam a aptidão do agente para agir como participante de uma ação social. Nesse sentido, usos save face visam a garantir que a infraestrutura intersubjetiva necessária para uma atividade conjunta esteja disponível, seja para seu início seja para sua continuação. Em favor dessa classificação, está o fato de que Kohler e Thorne também reconhecem esses usos como infraestruturais (2011, p. 68). A tabela abaixo traz uma apresentação dos tipos de uso da fala privada discutidos até aqui.

Tomarei a Tabela 1 como parte do corpo de dados que orientará a escolha do paradigma alternativo, i.e., será um desideratum que o paradigma alternativo possa explicar satisfatoriamente tanto usos intrapessoais quanto intersubjetivos. Além disso, uma ressalva: considerando quão bem-estabelecida é H, os paradigmas que tomarei como candidatos deverão ser compatíveis com ela.


Tabela 1.

3 Duas alternativas ao paradigma informacional

Irei me deter em dois paradigmas de fala: o disposicional, sugerido em Castro (2016)10, e o deôntico, proposto por Geurts (2018)11, e buscarei averiguar em que medida eles atendem ao desideratum anterior. Como veremos, o paradigma disposicional assume que a função da fala humana, tanto social quanto privada, é dispor agentes a crenças, emoções, comportamentos etc. Já o paradigma deôntico estabelece que a função da fala humana é permitir a negociação de compromissos.

A razão da escolha dessas duas posições é o fato de que ambas representam propostas recentes de revisão do PI às luzes de H. Desse modo, em primeira instância, ambos satisfazem à ressalva da última seção. Por exemplo, o paradigma disposicional assume, seguindo H, que a variedade de atividades intrapessoais que podemos realizar através da fala auto-direcionada - como motivar, encorajar, expressar emoções etc. - só é explicada adequadamente assumindo-se que a fala privada e o discurso interno herdam da fala social essa variedade (Martinez-Manrique, Vicente, 2015, p. 5-7). O paradigma deôntico, por sua vez, assume que há uma clara continuidade entre o tipo de planejamento em torno de compromissos sociais coordenados e o auto-planejamento em nossas “vidas internas”.

3.1 O paradigma disposicional

O paradigma disposicional é apresentado, em Castro (2016), no contexto de uma crítica à visão veicular do discurso interno. Nesse sentido, seu foco não é propriamente a fala privada, mas é possível encontrar em sua proposta muitas indicações de uma postura crítica mais ampla à aceitação do PI, razão pela qual ela figura aqui12.

Em particular, Castro assume que o propósito de um falante ao realizar um ato de fala é gerar um resultado disposicional e não simplesmente compartilhar informação. Nessa concepção, então, o paradigma de fala envolve quatro elementos básicos: um falante/emissor (F), um ouvinte/receptor, (R), um ato de fala, (S), e uma disposição, (δ), onde F se dirige a R para gerar nele/a uma δ13. Uma asserção, por exemplo, gera em R a disposição de realizar inferências e chegar a novas crenças. No caso de uma ordem ou pedido, será a disposição de agir de uma determinada maneira. Note que o paradigma disposicional é consideravelmente mais relaxado quanto a b) da seção 1, já que aceita diferentes tipos de ações linguísticas (veriditivas, comissivas, exercitivas etc.) para diferentes tipos de resultados convencionais14.

O discurso interno e a fala privada entram nesse quadro tendo como função a auto-implementação de disposições. A suposição de base é que dizer algo de maneira auto-direcionada ativa comportamentos, respostas emocionais, crenças etc., em si mesmo e tais resultados disposicionais seriam semelhantes àqueles produzidos pela fala social15. Na proposta disposicional, então, uma instanciação mental ou ocorrência auto-direcionada de (3) - “Vamos, você consegue!” -, por exemplo, ativaria a resposta emocional e comportamental de mais autoconfiança. O discurso interno e a fala privada também auxiliariam a ativação de processos cognitivos. Por exemplo, uma instanciação mental ou ocorrência auto-direcionada de (4) - “O que vem agora?” - ajudaria a ativação de memória, ao trazer as etapas da receita à atenção do agente16.

Em outros termos, o paradigma disposicional atribui dois papeis ao discurso interno e à fala privada, derivados de funções da fala social: (i.) motivar alterações de conduta e (ii.) manipular o comportamento atencional. No que concerne a (ii.), a explicação de Castro recorre a atos de fala observativos, que são geralmente usados para expressar episódios de reconhecimento. Um exemplo vem do uso da expressão ‘Lo’, do inglês, em (6).

(6) Ao ver um coelho saltar em um arbusto, grito (em inglês), ‘Lo, a rabbit!’. 17

Atos observativos são constativos mandatoriamente ancorados na percepção e com função ostensiva. Isto é, eles servem especificamente para manipular a atenção do ouvinte para aspectos do ambiente. No âmbito da autorregulação de processos cognitivos (i.e., (ii.)), portanto, o discurso interno e a fala privada funcionariam como um observativo: serviriam para acionar capacidades atencionais no próprio agente. Por exemplo, uma instanciação mental ou ocorrência auto-direcionada de (4) ajudaria a conduzir a atenção do agente para um aspecto específico da tarefa de realizada - a saber, o próximo passo na preparação de uma refeição.

Por fim, Castro completa seu quadro ao explicar a função de autorregulação comportamental/motivacional do discurso interno e da fala privada - i.e., (i.). Para isso, ele recorre a expressões avaliativas e orientadoras, como ‘correto’, ‘errado’, ‘bem’, ‘mal’ etc. Sua motivação é o fato de que expressões avaliativas são, em geral, capazes de gerar alterações de conduta. Por exemplo, é bastante comum que pais, cuidadores, professores, usem com sucesso essas palavras para estimular condutas desejáveis e coibir comportamentos inadequados. O insight aqui é que, de modo semelhante a esse uso social, avaliações internas ou auto-direcionadas positivas acerca de uma conduta estimulam a formação de disposições em torno de tal conduta, ao passo que avaliações negativas bloqueiam essa disposição18. Assim, uma ocorrência privada de (7) - que contém a expressão avaliativa, ‘errar’ -, por exemplo, no contexto de uma partida esportiva, pode ajudar o agente a corrigir uma conduta equivocada.

(7) Você errou nessa jogada!

3.2 O paradigma deôntico

Uma defensora do paradigma deôntico assumirá que, como membros de uma espécie social, constantemente dependemos da coordenação nas interações com nossos pares e compromissos são a base dessas interações. Considere, por exemplo, um caso cotidiano de ação coordenada, como dirigir em uma via pública. Como motorista, ao sair à rua dirigindo seu carro, você assume certos compromissos e confia que outros motoristas farão o mesmo. A comunicação aparece, nesse cenário, para estabelecer e negociar os compromissos envolvidos. Por exemplo, se você liga a sinaleira direita, você comunica a quem vem atrás que vai entrar à direita na próxima rua, comprometendo-se, assim, com certo curso de ação futura.

Geurts (2018, p. 279) propõe que um compromisso é: 1) uma relação triangular entre dois indivíduos e um conteúdo proposicional; e 2) uma restrição autoimposta sobre uma ação futura (Geurts, 2018, p. 280). O componente 2) é particularmente importante para atividades coordenadas. No caso acima, por exemplo, quando você liga a sinaleira direita (ou enuncia uma frase no viva-voz), avisando à motorista de trás da intenção de virar à direita, você abre a possibilidade de que ela aja ou venha a agir segundo a premissa de que você irá virar à direita na próxima rua. O compromisso comunicado, assim, permitirá à motorista de trás coordenar ações em torno de um estado de coisas futuro - o componente 1) da definição.

Defensores do paradigma deôntico assumem, ademais, que há dois tipos de compromissos: télico e atélico (ver Harris, 2019). Os compromissos télicos envolvem metas de conduta e estados de coisas possíveis futuros (os casos típicos seriam os atos comissivos, como as promessas) e os atélicos envolvem apenas a verdade de uma crença (os casos típicos seriam as asserções). Essa distinção já ficará mais clara.

Assim, no quadro do paradigma deôntico, a fala teria cinco elementos: F, R, S, Γ (um compromisso) e P (um conteúdo proposicional), onde F realiza S para estabelecer um compromisso Γ com R para o efeito de que P seja verdadeiro. No exemplo do trânsito, você, F, avisa através de um S (no caso da comunicação por viva-voz) a R, a motorista de trás, que irá virar à direita (P), assumindo com R o compromisso, Γ, de agir de modo a tornar P verdadeiro.

Os compromissos estabelecidos através do discurso interno ou da fala privada são do tipo privado, ou seja, são compromissos que assumimos com nós mesmos. De modo semelhante aos compromissos que expressamos a outros, compromissos privados também habilitam a coordenação. Por exemplo, se a passageira desconhecida da seção 1 promete a si mesma que irá parar de fumar, ela estabelece um compromisso privado do tipo télico19. Já você, dirigindo até a casa de sua amiga Ana, por exemplo, ao enunciar privadamente (8),

(8) Esta é a casa da Ana.

estará trazendo à consciência um compromisso atélico assumido (Geurts, 2018, p. 282) a partir do qual poderá, por exemplo, realizar inferências.

Geurts oferece um tratamento de diretivos e comissivos no discurso interno e na fala privada (2018, p. 283) e esse passo será importante para explicar usos intrapessoais de tipo motivacional, como (3) e (4). Comecemos por (4). Para Geurts - e, com efeito, para toda uma tradição de filósofos da linguagem (ver Krifka, 2015) -, perguntas são atos diretivos. A ideia aqui é que perguntas são pedidos de informação e, na visão deôntica, quando F pergunta a R (sendo F ≠ R), por exemplo, “qual é o próximo passo da receita?”, F gera em R o compromisso de prover a informação requerida. O que ocorre no caso de uma ocorrência auto-direcionada de (4) é que, sendo F=R, (4) gera no próprio realizador do ato o compromisso de prover a informação faltante. Isso explica a força motivacional da ocorrência, já que, como vimos, compromissos funcionam como restrições autoimpostas sobre a conduta futura. Note que, no paradigma deôntico, a realização de um ato interrogativo auto-direcionado não acarreta desconhecimento. O ato pode ter o propósito meramente motivacional de gerar no agente o compromisso de buscar uma informação momentaneamente inacessível, digamos, por um lapso de memória. Geurts ilustra esse ponto tomando como modelo as perguntas feitas por professores aos seus pupilos: os professores já sabem as respostas, mas fazem perguntas com o objetivo de testar e motivar seus alunos20.

Infelizmente, Geurts não oferece um tratamento específico para usos auto-direcionados de frases como (3), que envolvem atos do tipo perlocucionário. Afinal, em um uso social (F ≠ R) de (3), ao que parece, F intenciona inspirar ou motivar (que são perlocuções). Ainda assim, parece ser possível complementar o quadro deôntico ao analisar (3) em termos de compromisso privado télico, dado que um ato perlocucionário feliz de inspirar/motivar também gera em R o compromisso com certa conduta futura: R se comprometa a tornar P - o conteúdo proposicional de (3) - verdadeiro, sendo que F =R.

4 Comparando paradigmas

Até aqui, vimos que os paradigmas alternativos estão menos comprometidos com requisitos problemáticos - a saber, informatividade e não-redundância - do que o PI. Além disso, eles partem de H21, satisfazendo a ressalva da seção 2. A pergunta, então, é se esses paradigmas explicam todos os itens da tabela 1, i.e., as variedades de uso da fala privada. Ambos parecem poder explicar satisfatoriamente os usos intrapessoais, como (3), (4) e (7). No paradigma disposicional, a fala privada auxilia, por um lado, a otimização de processos cognitivos relacionados, por exemplo, à memória - para (4). Por outro, auxilia na geração de disposições em torno de condutas preferíveis, a partir, por exemplo, de palavras avaliativas, como no caso de (7). No paradigma deôntico, compromissos télicos explicam o poder de usos auto-direcionados de (3) e (4) em motivar alterações cognitivas e comportamentais a partir da força de autorestrição sobre condutas que compromissos têm.

Os casos intersubjetivos e, em particular, os infraestruturais, requerem, no entanto, maior esforço interpretativo. Efeitos sobre a arquitetura da interação conversacional ou sobre as condições de participação na interação não parecem previstos em nenhum dos paradigmas discutidos. Entretanto, o paradigma deôntico mostra-se, à primeira vista, com mais potencial explicativo. Antes de desenvolver essa afirmação, destaco que os usos infraestruturais da fala privada não são excepcionais. Ao contrário, eles parecem pertencer ao domínio do que se chama de “comunicação fática” - que inclui basicamente atos de fala cuja função é estabelecer vínculos entre participantes pela mera troca de palavras, sem o uso de significados (Malinowski, 1923).

Esse tipo de comunicação é observado em contextos de estabelecimento de sociabilidade (Zegarac, 1998), e especialmente em situações nas quais dois falantes se conhecem pouco e/ou desejam evitar o silêncio. São exemplos típicos as saudações e cumprimentos, mas também congratulações, elogios (por motivos óbvios), narrações - geralmente histórias sobre o falante, eventos conhecidos pelos participantes ou sobre o próprio local e ambiente da interação (Schneider, 1988) - e comentários sobre eventos triviais e mundanos. É nelas que, muitas vezes, a dominância de um falante ou a escolha de um tópico conversacional é decidido (Nunan, 2007). Por exemplo, narrações, perguntas iniciais direcionadas ao interlocutor e backchannel responses22, que são casos típicos de interações fáticas, costumam determinar quem domina a sucessão de turnos (Sommars, Beatty, 2015).

Usos intersubjetivos infraestruturais da fala privada compartilham muitas dessas características. Como vimos, as repetições auto-direcionadas parecem servir para reconfigurar a sucessão de turno e a arquitetura participativa. Os usos save face também servem para (re)estabelecer a sociabilidade de uma situação de fala. Assumindo H, desse modo, parece razoável supor que tais usos auto-direcionados são contíguos à comunicação fática social e, nesse sentido, não são excepcionais.

Retornando aos dois paradigmas alternativos, como afirmei, o deôntico parece mais promissor para lidar com os usos infraestruturais por centrar-se numa visão da comunicação como ação coordenada e interativa. Geurts (2019) salienta particularmente o sentido em que um compromisso é uma relação social e mútua. O contraste que ele deseja marcar é entre uma visão mentalista da comunicação, segundo a qual indivíduos se comunicam para veicular estados mentais discretos, e uma visão baseada-em-compromissos, em que agentes se comunicam para estabelecer e negociar, de modo relacional, compromissos23. O paradigma disposicional assume uma visão mentalista e, como consequência, não cede o devido espaço aos níveis mais básicos nos quais a arquitetura da comunicação se estabelece e estrutura entre agentes.

Em contrapartida, o foco em ações coordenadas permite ao paradigma deôntico explicar os vários níveis para os quais a comunicação pode se voltar: a relação entre agentes, a relação dos agentes com eles mesmos e, enfim, para a própria ação-entre-agentes. Os usos infraestruturais cairiam na última categoria, os usos intrapessoais, na segunda, e os usos para coordenação, na primeira. Note que o paradigma disposicional precisa de uma história adicional para lidar com os usos intersubjetivos (infraestruturais e para coordenação). Em particular, ele precisaria explicar que tipo de disposições são geradas em tais casos e como elas se relacionam com os efeitos produzidos na segmentação da conversação. Sem respostas para tais questões, o paradigma deôntico se apresenta como mais adequado.

Isso não significa que essas respostas não possam ser oferecidas ou que a ideia de que disposições motivam a realização de atos de fala deva ser completamente descartada. Na perspectiva da psicologia folk, falar em disposições pode ser útil: é intuitivamente plausível que um agente se comunique visando às disposições de seus interlocutores. Contudo, em última instância, parecem ser os compromissos estabelecidos e não as disposições geradas que lhe permitirão relacionar sua ação e a ação do outro quando objetivos comuns estão em jogo.

5 Conclusão

A fala privada é um desafio para qualquer concepção de fala e comunicação que esteja comprometida com o que chamei aqui de PI, dado que ela viola algumas de suas pressuposições, como, por exemplo, de que a comunicação serve para transmitir informação de forma não-redundante. Afinal, onde F = R, a suposição de não-redundância parece sem sentido. Essa limitação à hora de explicar modalidades de fala motivou o objetivo geral deste artigo, que foi buscar paradigmas alternativos. Nesse sentido, passei em revisão dois candidatos menos comprometidos com as pressuposições do PI: os paradigmas disposicional e deôntico.

Porém, como vimos, a fala privada admite usos que, via de regra, a literatura filosófica tem com frequência ignorado. Por exemplo, ela pode não ser intrapessoal. Contudo, encontramos, em experimentos de psicologia do desenvolvimento e em aprendizado de L2, muitos usos intersubjetivos da fala privada, cuja finalidade é a coordenação (e suas condições de possibilidade) em atividades interativas. Tendo em vista essa complexidade imprevista, assumi que o paradigma alternativo deveria explicar ambos tipos de uso, intrapessoais e intersubjetivos.

Frente a esse desideratum de adequação empírica, concluí que o paradigma deôntico é o mais adequado para substituir o PI, já que ele pode explicar mais facilmente a fala privada em seus diversos usos, e, em especial, naqueles cujo foco é o que chamei de ação-entre-agentes e sua infraestrutura (ou sua própria possibilidade, como os usos save face). Além do mais, o paradigma eleito nos oferece a vantagem adicional de colocar em cena a função fática, “infraestrutural” da comunicação, que não é tão explorada filosoficamente, e que parece ser peça-chave de uma resposta completa à pergunta “Por que falamos?”.

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  • 1
    O sentido de “privada” aqui tem a ver com a direcionalidade da enunciação - como ficará mais claro na seção 2 -, não com sua inacessibilidade para um ouvinte competente. No caso de uma asserção, por exemplo, dado que a fala privada envolve ocorrências audíveis, um espectador, interceptador, etc., que compartilhe a mesma língua e o mesmo ambiente físico pode acessar algum tipo de conteúdo vero-condicional, embora a enunciação não tenha sido concebida para possibilitar o reconhecimento de intenções reflexivas entre o falante e tal ouvinte. Ver Clark & Carlson (1982) para mais sobre tipos de ouvintes e Korta & Perry (2011), para mais sobre tipos de conteúdo vero-condicional.
  • 2
    Outra opção ainda seria assumir o PI, mas em uma versão mais fraca em que a) e c) admitem a fala privada como exceção. O principal problema com essa via é explicar funcionalmente a fala privada como exceção, ou seja, sem estipular uma relação com a fala social.
  • 3
    Em favor do programa de Vygotsky na psicologia do desenvolvimento, há evidências de que crianças no espectro autista (Winsler et al, 2007) e com deficiência auditiva (Jamieson et al, 1995) também fazem uso da fala privada.
  • 4
    Alguns experimentos, por exemplo, usam tarefas com grau de complexidade executiva elevado para suscitar episódios de fala privada e, a partir deles, investigar as características estruturais do discurso interno. Para mais metodologias, ver Vicente e Martinez-Manrique, 2011.
  • 5
    As repetições frequentemente aparecem associadas também a prolongações de vogais (marcas prosódicas).
  • 6
    As falas de cada participante estão indicadas em itálico. O símbolo ‘+’ entre duas maiúsculas representa que dois dos participantes falam juntos (e.g., nas linhas 2 e 3, T e S falam juntos a mesma frase). As frases em maiúscula e entre parênteses descrevem as características paralinguísticas e não-linguísticas da interação. Em negrito, estão indicadas as ações dos participantes, como ler a carta, mover algo na cena etc. Já os “(:)” representam prolongações de vogais.
  • 7
    Para explicar como isso é possível, apesar das claras marcas indicadoras de auto-direcionalidade, Smith recorre à ideia de que uma enunciação, por ser um objeto material, com o qual outros podem interagir e ao qual podem responder, será potencialmente percebida como um ato intersubjetivo (Smith, 2007, p. 352).
  • 8
    Pesquisas semelhantes foram realizadas também por Hauser et al (2015).
  • 9
    Mesmo quando os agentes não se encontram em situações sociais, eles tenderão a responder a situações de fala qua situações sociais, em virtude do que Goffman (1978) chama de embedment - e de processos de ritualização, no “sentido etológico”. Embedment é, grosso modo, a remoção de uma forma de interação de seu lugar natural para ser empregada “em um sentido especial” em outro lugar.
  • 10
    Castro (2016), na verdade, desenvolve ideias apresentadas em Martinez-Manrique & Vicente (2008; 2015) e Vicente & Martinez-Manrique (2011), com algumas diferenças não muito substanciais. Desse modo, apesar de não discutir diretamente esses trabalhos, considero que suas principais ideias estão contempladas pela análise do texto de Castro, o mais recente desse conjunto.
  • 11
    A nomenclatura preferida por Geurts é ‘commitment-based’, mas, dado que ele define compromissos como membros da mesma família que deveres e obrigações, usarei a nomenclatura ‘deôntico’.
  • 12
    De fato, Castro não se concentra na fala privada, mas assumirei que suas afirmações sobre o discurso interno se estendem a ela, já que, como vimos na seção 2, as duas são funcionalmente contíguas.
  • 13
    O common ground foi retirado das descrições dos dois paradigmas alternativos por questão de relevância para a argumentação, mas obviamente essas interações acontecem em contextos.
  • 14
    Esses resultados convencionais são tipicamente produtos de uma ilocução, embora, em princípio, eles também possam ser perlocucionários (ver Austin, 1962 [1990]). Por exemplo, um falante que deseja persuadir (um ato perlocucionário) seu interlocutor também gera uma disposição doxástica.
  • 15
    Para Castro, muitas funções do discurso interno e da fala privada são derivadas da fala social, embora nem todos atos da fala social possuam contrapartes internas diretas. Por exemplo, performativos comissivos e diretivos precisam ser devidamente ajustados à experiência interna, já que pressupõem direcionalidade externa.
  • 16
    De fato, na literatura sobre fala privada e L2, encontramos evidência de que o ensaio mental auxilia o aprendizado (Guerrero, 2018).
  • 17
    Essa expressão, até onde sei, não possui uma tradução direta para o português. Algumas tentativas são palavras mais comuns no registro informal do português brasileiro, como ‘Ó!’ ou o regionalismo ‘Pia!’ (de verbo ‘espiar’) etc. Ver Castro (2016, p. 249-251) para uma descrição mais detalhada da expressão (e do ato de fala) em inglês.
  • 18
    Há evidência desse papel privado das palavras avaliativas, já que elas têm sua frequência consideravelmente aumentada na fala privada quando tarefas de nível superior têm sua complexidade aumentada (Dios, Montero, 2014).
  • 19
    O que, segundo Geurts, nada mais é do que uma intenção, no sentido de Bratman (1987), i.e., um compromisso interno de atingir certo objetivo.
  • 20
    Castro (2016: 254-255) recorre a uma estratégia semelhante ao lidar com perguntas internas ou auto-direcionadas no paradigma disposicional.
  • 21
    A versão mais forte do PI - i.e., que toma a)-c), a da seção 1 - falha em dar conta da fala privada de modo geral. Similarmente, uma versão mais moderada (ver nota 2) - i.e., que toma a fala privada como uma exceção a c) - ainda teria dificuldades em explicar H, visto que assume que a fala privada é uma exceção e não uma modalidade contígua à fala social. Assim, ao contrário dos paradigmas alternativos, o PI, em suas duas versões, falha em satisfazer a ressalva.
  • 22
    Expressões como ‘uh-huh’, ‘hmm’, que são dadas como respostas a um falante para sinalizar o engajamento ou colaboração do interlocutor com a atividade comunicativa. Ver Clark e Wilkes-Gibbs, 1986.
  • 23
    Para mais sobre a disputa entre abordagens mentalistas e commintment-based, ver Bratman (1987) e Brandom (1994).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    13 Mar 2023
  • Aceito
    17 Ago 2023
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