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Percepção e imaginação na estética sartriana

Perception and imagination in Sartre`s aesthetic

RESUMO

A percepção é a maneira como interagimos com o mundo exterior. É a nossa capacidade de receber informações sensoriais do ambiente, como ver, ouvir, tocar e cheirar. Através da percepção, experimentamos o mundo e seus objetos como eles são em sua materialidade. A imaginação, por outro lado, é a capacidade de criar representações mentais e de ir além das informações sensoriais diretas, nos permitindo conceber o que não está presente, recriar o passado, ou até mesmo antecipar o futuro. Baseados na interpretação sartriana segundo a qual há uma tensão dinâmica entre percepção e imaginação, nosso objetivo é problematizar a distinção rígida entre esses dois conceitos, reconhecendo que essa dinâmica desempenha um papel central em nossa experiência existencial e que a relação entre esses dois elementos não é dicotômica, mas sim uma interação constante que enriquece nossa compreensão do mundo e de nossa própria existência.

Palavras-chave:
percepção; imaginação; fenomenologia; estética; Sartre

ABSTRACT

Perception is the way we interact with the external world. It is our ability to receive sensory information from the environment, such as seeing, hearing, touching, and smelling. Through perception, we experience the world and its objects as they are in their materiality. Imagination, on the other hand, is the ability to create mental representations and go beyond direct sensory information, allowing us to conceive what is not present, recreate the past, or even anticipate the future. Based on the Sartrean interpretation that there is a dynamic tension between perception and imagination, our goal is to problematize the rigid distinction between these two concepts, recognizing that this dynamic plays a central role in our existential experience, and that the relationship between these two elements is not dichotomous but a constant interaction that enriches our understanding of the world and our own existence.

Keywords:
perception; imagination; phenomenology; aesthetic; Sartre

1 Considerações iniciais

Na tentativa de compreendermos como se operam os jogos da percepção e da imaginação em Sartre, apoiados no método fenomenológico husserliano, expressos, notadamente, em A imaginação (1936) e n’O imaginário (1940), teceremos considerações acerca das definições desse binômio conceitual com vistas a subsidiar parte ponderável de perquirições sobre a obra do autor.

De acordo com uma compreensão da tradição metafísica, Sartre afirma não existir, de maneira estrita, nenhuma distinção nítida e categórica entre percepção e imaginação. Entretanto, partindo de uma abordagem fenomenológica do tema, os estudos sartrianos anunciam, na primeira metade do século XX, que há uma diferenciação entre esses dois conceitos que cabe, ainda, no debate atual, destacar.

Segundo Sartre, de Descartes a Bergson, passando por Leibniz e Hume, por terem confundido imagem e coisa, identidade de essência e identidade de existência, os grandes sistemas metafísicos brindaram a posteridade com uma “metafísica ingênua” da imagem. Com efeito, a percepção de uma coisa coloca-se ora do lado da própria coisa, ora do lado da imagem da coisa, quer dizer, do seu simulacro.

Essa é a questão fundamental que conduz as reflexões propostas pelo filósofo nas bases primevas nas quais repousa o seu projeto estético. A exemplo do projeto moral prometido, mas nunca realizado, também o projeto estético se apresenta de maneira dispersa, fragmentada, polvilhada, aqui e acolá, no âmbito das produções sartrianas, mas, se capturado, passa a integrar um corpus estruturado, suscetível de ser analisado, autorizando-nos a considerar Sartre um refinado crítico de arte.

2 Experiência perceptiva e experiência imaginativa

Para avançar no pensamento sartriano, entendamos, em linhas gerais, que a percepção produz “estados perceptivos”, enquanto a imaginação tem por função produzir “estados imaginativos”. Opondo-se a qualquer tipo de confusão entre percepção e imaginação por intermédio da imagem, Sartre as distingue rigorosamente:

Há uma diferença de natureza entre sensação e imagem [...], mas o fracasso de [uma] tentativa de diferenciação nos mostra que a forma não é suficiente para distinguir a imagem da percepção. Sem dúvida, veremos mais adiante que a intenção de uma imagem não é a de uma percepção (Sartre, 1936SARTRE, J-P. 1936. L’imagination. Paris: Presses Universitaires de France ., p. 93).

Em O Imaginário, quatro anos mais tarde, o filósofo existencialista apertaria ainda mais o ferrolho ao afirmar:

No início deste trabalho mostramos as dificuldades levantadas por qualquer tentativa de constituir a percepção por um amálgama de sensações e imagens. Agora entendemos por que essas teorias são inadmissíveis: é que a imagem e a percepção, longe de serem dois fatores psíquicos elementares de qualidade semelhante e que simplesmente entrariam em combinações diferentes, representam as duas grandes atitudes irredutíveis da consciência. Segue-se que elas são mutuamente excludentes (Sartre, 1940SARTRE, J-P. 1940. L’imaginaire. Paris : Gallimard., p. 231) (grifos nossos).

Cabe aqui salientar que, para Sartre, percepção e imaginação constituem atitudes irredutíveis da consciência e essa irredutibilidade traduz-se, por um lado, pela impossibilidade de a consciência ser explicada (ou reduzida) em termos de processos físico-químicos do cérebro; por outro, devido à sua apresentação distinta de todos os demais objetos do mundo, ser capaz, ademais, de distanciar-se de si mesma, bem como de refletir sobre si própria.

Nesse sentido, é a reflexividade que torna a consciência irredutível, à medida que tampouco pode ser determinada por fatores internos ou externos, já que ela é única, incomparável, livre, autônoma e reflexiva. Tal irredutibilidade, portanto, é imperativa para compreendermos a importância da liberdade vis-à-vis do existencialismo, porquanto a consciência irredutível não se resume a uma entidade passiva que apenas recebe informações do mundo exterior.

Pelo contrário, a consciência irredutível afirma-se, antes, como uma entidade ativa que está continuamente criando significados e doando sentidos mediante suas escolhas e intenções porque, pela “intencionalidade”, ela é sempre consciente de algo e não esqueçamos a lição de Husserl (1966HUSSERL, E. 1966. Méditations Cartésiennes - Introduction à la phénoménologie. Traduit de l’allemand par Gabrielle Peiffer et Emmanuel Levinas. Paris: Vrin., p. 28): “toda consciência é consciência de alguma coisa”, ou, mais exatamente: “A palavra intencionalidade não significa outra coisa senão esta particularidade fundamental e geral que a consciência possui de estar ciente de algo, de portar, em sua qualidade de cogito, seu cogitatum em si”. É, efetivamente, por essa razão que sua autonomia permanece resguardada.

Logo na introdução de A imaginação, Sartre enfrenta o problema: “Olho para uma folha em branco sobre a minha mesa; percebo sua forma, sua cor, sua posição, [...] essa forma inerte que está abaixo de toda espontaneidade consciente, que é preciso observar, assimilar aos poucos, é a isso que se chama coisa” (Sartre, 1936, p. 1SARTRE, J-P. 1936. L’imagination. Paris: Presses Universitaires de France .).

Se a forma inerte descrita acima não depende de nenhuma espontaneidade, ela não está, consequentemente, sujeita a nenhuma consciência externa para existir. Não por acaso, a denominamos de pura existência (em si), como a dos objetos, por exemplo. É, com efeito, graças à sua inércia que a coisa escapa ao domínio da consciência livre (para si).

Existe, todavia, outra forma de contemplar a folha de papel e de reter a sua imagem: “Trata-se efetivamente da mesma folha [...] existindo, porém, de forma diferente. Não a vejo, [ela] não se impõe como limite à minha espontaneidade; nem é um dado inerte existente em si mesmo. Em suma, ela não existe de fato, existe em imagem (Sartre, 1936SARTRE, J-P. 1936. L’imagination. Paris: Presses Universitaires de France ., p. 2).

Cumpre esclarecer que, sob a terminologia de imagem, Sartre vislumbra um objeto intermediário entre o sujeito e o mundo, como uma representação mental que surge na consciência do sujeito a partir da percepção de um objeto ou fenômeno externo. Esse é o motivo pelo qual a imagem é sempre uma simplificação do objeto que ela representa, uma vez que ela se limita a destacar apenas alguns de seus aspectos, sintetizando-os numa forma mais simples.

Por outro lado, a imagem é sempre parcial e subjetiva, já que é moldada pelos desejos, pelas expectativas e pelas experiências do sujeito que a percebe. Consoante Sartre, a imagem também pode ser usada para expressar ideias e emoções que transcendem o mundo físico, a exemplo da obra de arte, capaz de criar imagens que representam conceitos abstratos ou estados emocionais despidos de forma física concreta.

A folha real (experiência perceptiva) e a folha em imagem (experiência imaginante) são uma única e mesma folha. O que as distingue é sua existência como coisa e sua existência como imagem. O que Sartre denuncia como uma “metafísica ingênua da imagem” é a conclusão segundo a qual a imagem existe como coisa ou como cópia da coisa: “É justamente da relação entre a coisa-folha e a imagem-folha, entre real e irreal, que toda teoria da imaginação deveria dar conta” (Souza, 2018SOUZA, T. M. 2018. “Da irredutibilidade e inseparabilidade entre percepção e imaginação em Sartre”. Educação e Filosofia, Uberlândia: EDUFU, 32(64): p. 311-338. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/35096 . Acesso em: 24/02/2023.
https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFi...
, p. 315-316).

É claro que a apreensão da imagem como imagem e da coisa como coisa não é tão óbvia, o que leva o filósofo a questionar: “Você às vezes confunde a imagem do seu irmão com a presença real dele? (Sartre, 1936SARTRE, J-P. 1936. L’imagination. Paris: Presses Universitaires de France ., p. 3). E Sartre segue seu fio condutor mostrando que o único meio de constituir uma verdadeira teoria da existência em imagem encontra sua fonte numa experiência reflexiva, já que “a existência em imagem é um modo muito difícil de apreender” (Sartre, 1936, p. 3SARTRE, J-P. 1936. L’imagination. Paris: Presses Universitaires de France .).

A título de ilustração do “coisismo ingênuo das imagens”, nosso autor se reporta à teoria epicurista dos simulacros, pois as coisas emitem constantemente “simulacros”, “ídolos” que são simplesmente invólucros da coisa (como a folha de papel em branco, por exemplo), mantendo, porém, todas as qualidades do objeto, da coisa - conteúdo, forma etc. - que “uma vez emitidos, [eles] existem em si mesmos, assim como o objeto emissor, e podem vagar pelo ar por tempo indeterminado” (Sartre, 1936SARTRE, J-P. 1936. L’imagination. Paris: Presses Universitaires de France ., p. 3).

Não afirmamos que haja uma diferença nítida entre a experiência perceptiva e a experiência imaginante, consideradas isoladamente. Vislumbramos, contudo, uma diferença entre a mente de quem percebe e a mente de quem imagina, já que o cerne dessa cisão se sustenta no julgamento empírico do sujeito, como afirma Kriegel:

“Vejo um cachorro” ou “Visualizo um cachorro”. Tais avaliações devem ter alguma razão de ser: há uma razão pela qual a experiência é considerada perceptiva em alguns casos e imaginante em outros. Sartre considera que esses julgamentos são baseados em relações recíprocas entre experiências (e crenças permanentes) (Kriegel, 2015KRIEGEL, U. 2015. Perception and Imagination: A Sartrean account., Sofia M.; Gerhard P.; Clara B. (éd.), Prereflective Consciousness: Sartre and Contemporary Phi losophy of Mind (p. 245-276). Abingdon: Routledge. Disponível em: Disponível em: https://philpapers.org/rec/ KRIPAI-2 . Acesso em: 06/10/2019.
https://philpapers.org/rec/ KRIPAI-2...
, p. 249).

A percepção é a experiência direta e imediata de um objeto presente diante de nós, envolvendo uma relação direta entre o sujeito (nós) e o objeto (o que percebemos). De acordo com essa interpretação, a percepção é uma experiência sensorial que nos dá acesso ao mundo ao nosso redor. A imaginação, por seu turno, é a capacidade de representar mentalmente objetos que não estão presentes.

Não é por outra razão que a imaginação implica o estabelecimento de uma relação indireta entre o sujeito e o objeto (fisicamente ausente), à medida que é ela que nos permite representar mentalmente objetos ausentes, criando realidades em nossa mente. De acordo com Sartre, essa diferença entre os dois termos é fundamental para compreendermos a nossa relação com o mundo e a nossa liberdade como seres humanos, isto é, como “realidades humanas”.

Podemos, talvez, sumarizar os elementos mais significativos do que expusemos até aqui por intermédio da seguinte máxima: “consciência imaginante” é sempre consciência de um objeto dado como irreal (não-presente ou não-existente) e consciência não-tética1 1 De acordo com a fenomenologia, a “consciência tética” é sempre direcionada para algo: uma lembrança, uma ideia, um sentimento ou uma percepção e refere-se à intencionalidade da consciência. A “consciência não-tética”, por sua vez, é a consciência pura, uma forma de autoconsciência desprovida de objeto. de si, do mesmo modo que “consciência perceptiva” é consciência de um objeto dado como presente e consciência não-tética de si.

3 Percepção e imaginação

Na conclusão de O imaginário, Sartre antecipa o reconhecimento do papel capital que a “dinâmica da situação” ocupa ao esgrimir a significação contida nas categorias de “percepção”, de “imagem” e de “imaginação”, por compreender que a situação se define como relação existente entre a liberdade e o dado, isto é, entre o “para-si” e o “em-si”:

[...] “Situações” [são] os diferentes modos imediatos de apreensão do real como mundo. Podemos dizer assim que a condição essencial para que uma consciência imagine é que ela esteja “em situação no mundo” [...]. É a situação-no-mundo, apreendida como realidade concreta individual da consciência que serve de motivação para a constituição de um objeto irreal qualquer. [...] Desse ponto de vista apreendemos por fim a ligação do irreal com o real” (Sartre, 1940SARTRE, J-P. 1940. L’imaginaire. Paris : Gallimard., p. 355-356).

As questões que circunscrevem e definem o elo de junção entre a referida dinâmica e o “paradoxo da liberdade”, entretanto, seriam mais robustamente e mais bem arrematadas em O ser e o nada: “Iniciamos, assim, a entrever o paradoxo da liberdade: não há liberdade senão em situação e não há situação senão pela liberdade” (Sartre, 1943SARTRE, J-P. 1943. L’être et le néant. Paris : Gallimard. , p. 534).

Perseguindo o nosso escopo primevo de desvelar a díade de conceitos-chave, lancemo-los, pois, em situações concretas, que nos auxiliarão no entendimento de como se dão os processos de percepção (pela consciência perceptiva) e da imaginação (pelo viés da consciência imaginante e intencional), sem negligenciar a importante abordagem da imagem, apresentada n’ O imaginário, como detentora de uma “pobreza essencial” por não nos acrescentar nada que “já não saibamos”.

De um ponto de vista mais pragmático, antes de nos referirmos à teoria da imaginação, teçamos alguns comentários sobre seu corolário obrigatório − a teoria da percepção. Nesta, observam-se os objetos que nunca nos são mostrados senão de um lado de cada vez, ou seja, de forma parcial, fragmentada ou fraturada.

Nosso filósofo existencialista usa o cubo - na qualidade de um poliedro, o cubo (ou hexaedro regular) é uma figura geométrica tridimensional, caracterizada como um sólido geométrico, que possui seis faces, doze arestas e oito vértices - a título exemplificativo. Com vistas a ilustrar seu pensamento, optamos por jogar dados:

Conhecemos o exemplo do cubo [dado]: não posso saber que se trata de um cubo até que eu tenha apreendido suas seis faces; no limite, posso ver três de cada vez, mas nunca mais do que isso. Devo, portanto, apreendê-las sucessivamente. E quando passo […] da apreensão das faces ABC para as faces BCD, há sempre a possibilidade de que a face A tenha sido aniquilada durante minha mudança de posição. A existência do cubo [dado] permanecerá, portanto, sendo duvidosa (Sartre, 1940SARTRE, J-P. 1940. L’imaginaire. Paris : Gallimard., p. 23).

Figura 1-
Dados / Dice

Do latim percipere, isto é, “apreender pelos sentidos”, “coletar”, “compreender”, a percepção revela-se a faculdade pela qual o sujeito forma uma representação de objetos externos a ele. Este é o primeiro grande passo sartriano no processo de esclarecimento do que seja a percepção de um objeto: o de observá-lo de todos os ângulos; considerá-lo cuidadosamente.

Para estudá-lo, prossegue Sartre: “Devemos apreender os objetos, multiplicar os pontos de vista possíveis sobre eles. O próprio objeto é a síntese de todas essas aparências. A percepção de um objeto é, portanto, um fenômeno com uma infinidade de faces” (Sartre, 1940, p. 23). De todo modo, o cubo − como a folha de papel ou o cachorro, já citados − está presente fisicamente, em “carne e osso”.

A ideia central sustentada n’A imaginação é que “a característica precípua da percepção é que nela [na percepção] o objeto só aparece numa série de perfis ou projeções. O cubo está muito presente para mim, posso tocá-lo, vê-lo; mas eu só o vejo de uma certa maneira que ao mesmo tempo remete a ou exclui uma infinidade de outros pontos de vista” (Sartre, 1940SARTRE, J-P. 1940. L’imaginaire. Paris : Gallimard., p. 23).

A percepção envolve, assim, aprendizagem. Coloca um objeto como realmente existente, fazendo com que consigamos observar suas inúmeras possibilidades de doação de sentidos. Representa um tipo de consciência. Não é uma imagem nem uma ideia, e os recursos da percepção são infinitos porque uma infinidade de “perfis” é sempre concebível.

Por outro lado, quando pensamos no exemplo do cubo ou do dado através de um conceito, estamos considerando seus seis lados (faces) e seus oito ângulos (vértices) ao mesmo tempo. Nosso pensamento conclui que todos os seus ângulos são retos e todos os seus lados são quadrados, pois nos colocamos no centro da ideia do cubo, apreendendo-a inteiramente de uma só vez.

Talvez a distinção mais clara entre percepção e pensamento seja esta: sem aprendizagem a adquirir, somos capazes de pensar as essências num único ato de consciência. Enquanto o pensamento se organiza em torno de um conceito, é o objeto que ocupa o centro do olhar no que diz respeito à percepção.

Façamos agora o cotejo com outro exemplo, inscrito no circuito da imaginação, reavivando, uma vez mais, a indeclinável “dinâmica da situação”, preponderantemente presente nas ricas formulações sartrianas:

Todo imaginário aparece “sobre o fundo do mundo”, mas, reciprocamente, toda apreensão do real como mundo implica uma ultrapassagem velada em direção ao imaginário. Toda consciência imaginante mantém o mundo como fundo nadificado do imaginário, e, reciprocamente, toda consciência do mundo chama e motiva uma consciência imaginante apreendida como resultante do sentido particular da situação (Sartre, 1940SARTRE, J-P. 1940. L’imaginaire. Paris : Gallimard., p. 361) (grifo do autor).

Em síntese, o que Sartre reafirma aqui é a necessidade de que a “consciência imaginante” esteja inserida no mundo ou, como prefere o autor, de que a consciência esteja em “situação-no-mundo” para que haja qualquer imaginário. Reflitamos, pois, sobre um ipê amarelo.

Numa ensolarada manhã de domingo, se paro o meu carro, à beira do caminho, e desço para admirá-lo, eu o percebo de maneira imediata. A consciência que tenho da minha percepção é dada pela relação direta entre os meus órgãos dos sentidos (no caso, a visão) e o objeto que é percebido (a coisa − ipê − tomada pelos meus órgãos sensoriais). Minha consciência tem, portanto, uma vivência do ipê, que é a experiência imediata e subjetiva do ipê. Quando eu já não estou mais percebendo o ipê, mas ainda assim sou capaz de me lembrar dele, eu o represento por meio de uma imagem. Toda imagem é uma representação, ou seja, um tornar presente o que se encontra ausente.

Quando imagino o ipê, não é mais o ipê em sua concretude de ser que se apresenta à minha consciência, mas uma representação (imagem) daquele ipê − “o grande erro no que toca à imagem foi de considerá-la uma realidade” (Sartre, 1936SARTRE, J-P. 1936. L’imagination. Paris: Presses Universitaires de France ., p. 106). Ao evocar essa imagem, posso relacioná-la com muitas outras imagens, produzindo uma realidade composta de representações e que estrutura as vivências subjetivas da minha consciência.

Retornando aos jogos da percepção e da imaginação, ou melhor, da “consciência perceptiva” e da “consciência imaginante”, em A imaginação, apoiado na fenomenologia husserliana, Sartre tem razão em estabelecer uma crítica ácida contra os grandes sistemas metafísicos que sustentavam a falsa hipótese segundo a qual existe um amálgama entre imagem e objeto, percepção e imaginação.

Felizmente, há literatura disponível demonstrando que Sartre logrou inequívoco êxito na sua busca de desvelamento da maneira como também a filosofia moderna e a psicologia, de modo derivado, apostaram na indistinção entre imagem e objeto percebido, e com isso foram incapazes de compreender o papel essencial da imagem e sua relação com o real.

No seu artigo, “Da irredutibilidade e inseparabilidade entre percepção e imaginação em Sartre”, (Souza, 2018SOUZA, T. M. 2018. “Da irredutibilidade e inseparabilidade entre percepção e imaginação em Sartre”. Educação e Filosofia, Uberlândia: EDUFU, 32(64): p. 311-338. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/35096 . Acesso em: 24/02/2023.
https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFi...
) ressalta a incompreensão da filosofia sartriana por comentadores contemporâneos, que consideram que o filósofo francês jamais tenha superado a dicotomia sujeito-objeto, “em-si” e “para-si”.

De modo contrário, a autora anuncia como a dicotomia é hipostasiada pela instauração de uma tensão, na qual a separação de direito está sempre conectada à inseparabilidade de fato, e, como, sem nunca se confundir com a imagem, a percepção é impensável sendo dissociada dela:

Sartre se encaminha, ao longo de seus livros sobre a questão da imagem, para a afirmação paradoxal (e não contraditória) de que concretamente percepção motiva a imaginação e nela se completa, e que imaginação mantém o real negado e a ele se volta, dando sentido geral ao que antes não havia, de tal modo que, de fato, é impossível realizar aquilo que de direito é necessário: a irredutibilidade das consciências (Souza, 2018SOUZA, T. M. 2018. “Da irredutibilidade e inseparabilidade entre percepção e imaginação em Sartre”. Educação e Filosofia, Uberlândia: EDUFU, 32(64): p. 311-338. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/35096 . Acesso em: 24/02/2023.
https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFi...
, p. 313).

Recuperando o exemplo da folha de papel, a autora prossegue sua análise, elucidando como Sartre estabelece planos distintos para a “coisa-folha” e a “imagem-folha”: no plano da essência, a folha imaginada é igual à folha percebida, entretanto, “o modo de existência” da imagem e da coisa são muito distintos: à primeira falta [essa] inércia e presença que caracterizam a segunda e fazem esta escapar à consciência” (Souza, 2018SOUZA, T. M. 2018. “Da irredutibilidade e inseparabilidade entre percepção e imaginação em Sartre”. Educação e Filosofia, Uberlândia: EDUFU, 32(64): p. 311-338. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/35096 . Acesso em: 24/02/2023.
https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFi...
, p. 316).

É nessa via que, em A imaginação, a necessidade de partir da distinção de natureza entre o que é a coisa real e a imagem irreal, de forma a nunca confundir o que é percebido e o que é imaginado, leva essa distinção indubitável até mesmo aos exemplos mais radicais, como a alucinação e o sonho, em O imaginário (Souza, 2018SOUZA, T. M. 2018. “Da irredutibilidade e inseparabilidade entre percepção e imaginação em Sartre”. Educação e Filosofia, Uberlândia: EDUFU, 32(64): p. 311-338. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/35096 . Acesso em: 24/02/2023.
https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFi...
, p. 317).

O filamento condutor dessa análise esclarece as razões pelas quais Sartre proporá uma “teoria da imagem” com vistas a melhor compreendê-la:

É contra a subordinação da imagem à percepção e de explicá-las por meio de uma teoria do conhecimento que Sartre pensa uma teoria da imagem, colocando como ponto de partida que a imagem é uma consciência (primeira característica) que coloca seu objeto como um nada (terceira característica) e que quase o observa (segunda característica) (Souza, 2018SOUZA, T. M. 2018. “Da irredutibilidade e inseparabilidade entre percepção e imaginação em Sartre”. Educação e Filosofia, Uberlândia: EDUFU, 32(64): p. 311-338. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/35096 . Acesso em: 24/02/2023.
https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFi...
, p. 318).

Nesse sentido, a formulação sartriana de que “é preciso que a imagem, tomada em si mesma, guarde em sua natureza íntima um elemento de distinção radical” (Sartre, 1940SARTRE, J-P. 1940. L’imaginaire. Paris : Gallimard., p. 31) evoca o conceito de “quase-observação”: “o movimento da consciência perceptiva é de observação, enquanto o da consciência imaginante é o da quase-observação” (Souza, 2018SOUZA, T. M. 2018. “Da irredutibilidade e inseparabilidade entre percepção e imaginação em Sartre”. Educação e Filosofia, Uberlândia: EDUFU, 32(64): p. 311-338. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/35096 . Acesso em: 24/02/2023.
https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFi...
, p 323). É exatamente na tentativa de distinguir a imagem tanto do “percepto” quanto do “conceito”, aliás, que Sartre alude ao termo.

A “quase-observação” opõe, assim, o objeto da percepção - apreendido por esboços ou por aspectos - ao da imagem - da qual todos os perfis nos são dados imediatamente, como ocorre com o conceito: “Na percepção, o conhecimento se forma lentamente; na imagem, o conhecimento é imediato” (Sartre, 1936SARTRE, J-P. 1936. L’imagination. Paris: Presses Universitaires de France ., p. 25).

A imagem põe seu objeto, então, como um nada, e, por essa razão, o ato de imaginação comporta a atitude fenomenológica sui generis de “quase-observação” - tais são as características da intencionalidade imaginativa que, n’O imaginário, Sartre descobre a partir da reflexão. De fato, a consciência imaginativa não tem objeto, nada problematiza, nada informa, nada questiona. Não implica, a rigor, um conhecimento.

Que a imagem seja “quase-observada” significa, para Sartre, que ela não pode ser tomada como objeto de um estudo atento, minucioso, como pode ser o mais ínfimo objeto da percepção. O que efetivamente define a riqueza da percepção no confronto com a debilidade da imagem é a rede de relações engendradas pelos objetos percebidos. A infinidade de relações associativas representa a própria essência da coisa: “há a cada momento, sempre infinitamente mais do que podemos ver” (Sartre, 1940, p. 26).

É por isso que retornamos à referência feita pelo autor à “pobreza essencial” da imagem que, intimamente ligada ao seu caráter “quase-observado”, leva Sartre à conclusão de que “não se pode aprender nada de uma imagem que já não se conheça” (Sartre, 1940, p. 27) e que, contraditando o que acontece no mundo da percepção, “o mundo das imagens é um mundo onde nada acontece” (Sartre, 1940, p. 34). Dito de outro modo, n’O imaginário, é a vacuidade intrínseca do objeto em imagem que remete a um tipo particular de atitude fenomenológica: a da “quase-observação”, definindo a postura de nossa consciência em face da imagem.

4 A imaginação e a imagem

As partes conclusivas do Imaginário e de A imaginação nos fornecem subsídios incipientes sobre como se desenvolveria, a posteriori, o projeto estético sartriano, nos seus ensaios como crítico de arte. Em A imaginação, a metafísica, as explicações psicológicas, a rota cartesiana, todos os percursos conhecidos mostram-se incapazes de propor uma distinção eficaz nas relações entre imagem e coisa, pensamento e imagem, percepção e imaginação.

Diante dessa impossibilidade prospectiva, Sartre envereda-se na trilha de Husserl que, apoiado na revolucionária redução eidética, elabora uma série de sugestões originais relativa à “consciência imaginante”. Embora o filósofo alemão não dispusesse de uma formulação completamente arrematada sobre o tema, a descoberta da intencionalidade e a fenomenologia propriamente dita concediam a Sartre as condições de finalmente desatrelar percepção de imaginação, além de nos brindar com um método até então desconhecido de inspeção do problema.

Como afirma Souza (2017, p. 318PERTSEVA, A. 2017. Le regard de l’autre chez Sartre: L’entre-deux de l’imagination et de la perception. Bulletin d’analyse phénoménologique, XIII (2), actes 10, p. 413-432. Liège: Bibliothèques de l’Université de Liège.), “ao ir em busca de Husserl, o filósofo francês tem a pretensão de radicalizá-lo e ir, de fato, ‘às coisas mesmas’, fazendo um movimento em direção ao realismo, [...] fazendo com que a percepção deixe de manter a primazia que a história da filosofia lhe deu”. Em que pesem algumas críticas pontuais, as opiniões de Sartre são muito favoráveis aos novos aportes husserlianos:

No que diz respeito ao problema da imagem, Husserl não se contenta em nos fornecer um método: há nas Ideen as bases de uma teoria das imagens inteiramente nova. Para dizer a verdade, Husserl aborda a questão en passant, aliás, como se poderá ver, não estamos de acordo em todos os pontos. Além disso, suas observações carecem ser aprofundadas e completadas. Mas as indicações que ele dá são da maior importância (Sartre, 1936SARTRE, J-P. 1936. L’imagination. Paris: Presses Universitaires de France ., p. 121).

O último capítulo de A imaginação é dedicado à fenomenologia husserliana. O suporte essencial deste método alicerça-se na “redução fenomenológica”, na “epoché”2 2 Para a fenomenologia, a epoché é a abstenção do pensamento ante a constância do “espetáculo do mundo”, sendo definida na Krisis-Schrift como uma “distância em relação às validações naturais ingênuas” (Husserl, 1989, p. 154). e, mais objetivamente, no enquadramento da atitude natural observada no mundo: “a fenomenologia é uma descrição das estruturas da consciência transcendental baseada na intuição das essências dessas estruturas” (Sartre, 1936SARTRE, J-P. 1936. L’imagination. Paris: Presses Universitaires de France ., p. 118).

No capítulo precedente, Sartre se interessara pelas contradições da concepção clássica, no que concerne ao estabelecimento de uma cisão observada entre percepção e imaginação. Baseando-se, em particular, na consistente obra de Albert Spaier, Pensamento Concreto (1927SPAIER, A. 1927. La pensée concrète − Essai sur le symbolisme intellectuel. Paris: Alcan.), o filósofo francês constrói sólidas refutações que colocam em xeque essa concepção, considerando que:

Afirmar que a imagem não é percepção é muito bom. Mas não basta afirmá-lo: é preciso ainda fundamentar essa afirmação numa descrição coerente do fato psíquico “imagem”. Se continuarmos implicitamente confundindo imagem e percepção, não faz sentido gritar tão alto que sejam distinguíveis (Sartre, 1936SARTRE, J-P. 1936. L’imagination. Paris: Presses Universitaires de France ., p. 92).

Qual seria, então, o aporte original da teoria sartriana sobre a imagem? Acreditamos que é possível localizá-lo, sem simplificá-lo demais, nas formulações contidas no explicit de O imaginário: “A imagem é um certo tipo de consciência. A imagem é um ato e não uma coisa. A imagem é consciência de alguma coisa” (Sartre, 1936SARTRE, J-P. 1936. L’imagination. Paris: Presses Universitaires de France ., p. 136) (grifos do autor).

Em contraposição ao pensamento clássico, nosso filósofo encadeia, nessa fórmula, uma sequência de argumentos que preterem a ideia de que a imagem seja uma “percepção enfraquecida”, um “objeto degradado” ou apenas um “retrato mental” pousado na consciência. Ela é, antes, e sobretudo, um ato, ou melhor, é mesmo uma consciência.

Isso implica dizer que a teoria da intencionalidade husserliana permite a Sartre revestir a representação de um status completamente novo, à medida que lhe capacita distinguir a “consciência imaginante” da “consciência perceptiva”, requalificando a definição de imagem, de maneira clara:

[A] imagem é um ato que visa, na sua corporeidade, a um objeto ausente ou inexistente, através de um conteúdo físico ou psíquico que não se dá como próprio, mas como “representante analógico” do objeto visado. As especificações serão feitas de acordo com a matéria, já que a intenção informativa permanece a mesma (Sartre, 1940SARTRE, J-P. 1940. L’imaginaire. Paris : Gallimard., p. 46) (grifo do autor).

No primeiro capítulo de O imaginário, intitulado “O certo”, Sartre enumera o que considera constituir as quatro características da imagem, organizadas, a seguir, de modo bastante sintético: primeira característica - A imagem é uma consciência: “A palavra imagem não poderia, pois, designar nada mais que a relação da consciência ao objeto; dito de outra forma, é um certo modo que o objeto tem de aparecer à consciência ou [...] um certo modo que a consciência tem de se dar um objeto” (Sartre, 1940, p. 21SARTRE, J-P. 1940. L’imaginaire. Paris : Gallimard.).

Segunda característica - O fenômeno da “quase-observação”: “minha percepção pode me enganar, mas não minha imagem. Nossa atitude em relação ao objeto da imagem poderia se chamar “quase-observação”. Estamos efetivamente situados numa atitude de observação, mas se trata de uma observação que não nos ensina nada” (Sartre, 1940SARTRE, J-P. 1940. L’imaginaire. Paris : Gallimard., p. 28) (grifo do autor).

Terceira característica - A consciência imaginante põe seu objeto como um nada:

Essa posição de ausência ou inexistência só pode ser encontrada no plano da quase-observação. Por um lado, de fato, a percepção pressupõe a existência do seu objeto; por outro, os conceitos, o saber, implicam a existência de naturezas (essências universais) constituídas por relações, sendo indiferentes à existência “em carne e osso” dos objetos (Sartre, 1940SARTRE, J-P. 1940. L’imaginaire. Paris : Gallimard., p. 32).

Quarta característica - A espontaneidade: “Essa consciência, que poderíamos chamar de transversal, não tem objeto, não informa nada. Não é um conhecimento, mas uma luz difusa que a consciência liberta para ela mesma” (Sartre, 1940SARTRE, J-P. 1940. L’imaginaire. Paris : Gallimard., p. 35). Mas também é: “criadora do mundo e dela mesma no mundo. Livre criação a partir de uma situação real. Inicialmente, é irrefletida, “não-tética de si”, “não-posicional”, antes de se tornar consciência reflexiva e conhecimento) (Noudelmann, Philippe, 2013NOUDELMANN, F. ; PHILIPPE, G. 2013. Dictionnaire Sartre. Paris: Champion Classiques., p. 475).

Resultam dessas características algumas acumulações interpretativas: a da identificação da imaginação como uma visão nadificante da consciência e do imaginário como um irreal; que a condição necessária para que uma consciência possa imaginar é que ela seja capaz de propor uma tese de irrealidade; que a imagem está intimamente interconectada com o fenômeno da “quase-observação”; que a “consciência imaginante” inicialmente irrefletida, em algum momento, tornar-se-á refletida.

Pela reflexão, vige o movimento de observação da “consciência perceptiva”, que se compreende como passiva, sendo incapaz de produzir o objeto real da percepção. A contraparte é a “consciência imaginante”, não-tética de si, que, pelo movimento da “quase-observação”, revela-se dotada de espontaneidade, sendo produtora ou criadora da imagem que imagina em imagem, essa imagem sendo um irreal (inexistente ou ausente): “O irreal é produzido fora do mundo por uma consciência que permanece no mundo e é porque ele é transcendentalmente livre que o homem imagina” (Sartre, 1940SARTRE, J-P. 1940. L’imaginaire. Paris : Gallimard., p. 358) (grifos do autor).

5 Analogon

Recapitulemos o importante exame sartriano concernindo ao “representante analógico” do objeto visado. A imagem, física ou mental, através da qual a consciência visa a um objeto posto em imagem é um analogon, não importando se o objeto visado está presente ou ausente, se existe em algum lugar ou simplesmente é inexistente −, o que constitui o objeto em questão como “um nada de ser”.

Por desaparecer atrás do objeto imaginário, o analogon − de origem grega, a palavra designa o elemento de uma analogia − é o suporte material da imagem, essencial para que a consciência se relacione com o mundo no modo imaginário. A hipótese é que a imagem não está na consciência tanto quanto o objeto da imagem não está na imagem. Denominado por Sartre como “ilusão de imanência”, o erro comum consiste em se acreditar no contrário.

Para Vincent Coorebyter (2012COOREBYTER, V. 2012. De Husserl à Sartre. La structure intentionnelle de l’image dans, L’Imagination et L’Imaginaire”, Methodos [Online], since 28 March 2012. Disponível em: Disponível em: http://journals.openedition.org/methodos/2971 . Acesso em 21/03/2023.
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) “estamos diante da segunda dívida de Sartre para com Husserl: este último é o inventor da noção de analogon da qual o filósofo francês fará um uso extraordinário em O Imaginário e em livros posteriores”. O objeto imaginário, para nosso autor, portanto, é um análogo do objeto percebido, já que a imagem guarda certa semelhança com a coisa que representa.

Para entendermos o papel do analogon, devemos pensar numa forma de imagem consciente que opera na contemplação de uma gravura. Nesse caso, os desenhos, as iconografias ou os riscos contidos no papel (representante analógico/suporte material) remetem analogicamente à imaginação dos observadores/espectadores, sensibilizando e ativando sua consciência imaginante, qualquer que seja o conteúdo aposto na folha de papel (um centauro − personagem inexistente − , uma pintura ou um ipê amarelo).

Inúmeras considerações foram feitas com o escopo de lançar luz sobre a função do analogon, no circuito do imaginário, ora por Sartre (1940SARTRE, J-P. 1940. L’imaginaire. Paris : Gallimard., p. 34) “O objeto intencional da consciência imaginante tem algo de particular: não estando presente é posto como tal, ou ele não existe e [...] é colocado como inexistente, ou, ainda, não é colocado de modo algum”; ora por seus pesquisadores: “[É] a maneira pela qual a consciência imaginante visa ao seu objeto irreal a partir de uma matéria figurativa (Cabestan, 2009CABESTAN, P. 2009. Dictionnaire Sartre. Ellipses, Paris. , p. 20).

Em sua dissertação de mestrado, intitulada “O conceito de analogon em Sartre”, Lopes (2019LOPES, L. R. F. 2019. O conceito de analogon em Sartre. Maringá. PR. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Centro de Ciência Humanas, Letras e Artes da Universidade Estadual de Maringá. 96 p. Disponível em: Disponível em: http://www.pgf.uem.br/dissertacoes/2019/dissertacao-2019-02 . Acesso em: 23/03/2023.
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, p. 21-22) sintetiza, com acurácia, a proposta do autor:

Quando realizamos um esforço para produzir uma consciência imaginante de algo, como tentar reproduzir mentalmente o rosto de alguém, o objetivo é alcançado, mas de um modo imperfeito, pois faltam detalhes, tornando vaga a imagem. Entretanto, ao observarmos uma fotografia dessa mesma pessoa, é possível ver todos os detalhes de seu rosto. Contudo se olharmos para uma caricatura, com todos seus “toques” extravagantes, é possível nos depararmos com o que na fotografia está ausente, a saber, a sugestão de características de vida colocada sobre a imagem, uma espécie de emoção. Em todos estes casos citados encontramos uma “intenção” que visa um mesmo objeto, sendo que este objeto não é nem a representação, nem a foto, nem a caricatura, mas um objeto estético (Grifos nossos).

Com efeito, Sartre deixa transparecer seu grande apreço pelo componente estético ao recorrer a exemplos como o teatro de Hamlet e todo o seu décor, a Sétima Sinfonia de Beethoven, a tela de Dürer ou o castelo de Elseneur e suas muralhas, com o objetivo de esclarecer o papel desempenhado pelo analogon nas obras de que nos ocupamos, na qualidade de suporte material, equivalente da percepção, uma vez que os objetos das imagens não podem surgir da percepção diretamente.

O analogon, aliás, é o fio condutor de eleição de Sophie Astier-Verzon (2013, p. 87), na elaboração de seu livro Sartre e a pintura (para uma redefinição do analogon pictórico), promovendo uma incursão filosófica no projeto estético sartriano e vice-versa: “O analogon figura como o ponto de articulação da vida da ‘consciência imaginante’ E como ponto de inflexão da estética pictórica sartriana” (maiúscula destacada pela autora).

Não por acaso, a segunda parte da conclusão de O imaginário é dedicada “[à] obra de arte”, demonstrando que Sartre concebe a fruição estética como real, mas “o objeto estético é constituído e apreendido por uma ‘consciência imaginante’ que o põe como irreal” e é “o conjunto desses objetos irreais que eu qualificarei como belo” (Sartre, 1940, p. 366-367) (grifo do autor).

Ancorada na epistemologia singular do conhecimento em primeira pessoa, bem como na análise fenomenológica das experiências perceptivas, o sequenciamento de argumentos sartrianos acusa a diferença fenomenal existente entre experiências perceptivas e imaginativas.

Falando na primeira pessoa, num primeiro momento, Sartre apela para a imagem do amigo Pierre (ou se serve dela como exemplo) para revelar de que modo Husserl libertou o mundo psíquico de um peso que obscurecia o problema clássico da relação entre imagem e pensamento: “ao rejeitar [Pierre] da consciência, ao afirmar que existe apenas um e o mesmo Pierre, objeto de percepções e imagens” (Sartre, 1936, p. 124).

Em segundo lugar, o filósofo se apoia num objeto estético − a gravura de Dürer 3 3 Nascido em 1471, Albrecht Dürer foi um gravador, pintor, ilustrador, matemático, teórico de arte alemão e, provavelmente, o mais famoso artista do Renascimento nórdico, tendo influenciado artistas do século XVI, no seu país e nos Países Baixos. O artista entalhava levemente o contorno da gravura antes de preenchê-la de detalhes, com linhas delicadas, que criavam sombra e textura. Sua maestria como gravador só seria igualada, depois, por Rembrandt (1606-1669). A técnica da xilogravura utilizada por Dürer já era popular na Alemanha, mas foi em suas mãos que atingiu nova dimensão expressiva. O Cavaleiro, a Morte e o Diabo −, para reforçar, uma vez mais, a distinção intrínseca entre imagem e percepção, porque a consciência perceptiva é aquela que está diante da coisa visada, de modo que ela se dá no oposto da consciência imaginante, a qual visa à imagem do objeto percebido.

Figura 2 -
Dürer. O Cavaleiro, a Morte e o Diabo (1513)

A “hylé” [matéria-prima] que apreendemos para constituir a aparição estética do cavaleiro, da morte e do diabo é sem dúvida a mesma da percepção pura e simples [de uma] folha de álbum. A diferença repousa na estrutura intencional. [...] O que conta para nós é que a matéria não consiga, por ela mesma, distinguir a imagem da percepção. Tudo depende do modo de animação dessa matéria, ou seja, de uma forma que brota das estruturas mais íntimas da consciência (Sartre, 1936SARTRE, J-P. 1936. L’imagination. Paris: Presses Universitaires de France ., p. 126).

O que significa a imagem do cavaleiro, afinal? Trata-se de um analogon por intermédio do qual a consciência visa a um objeto, porquanto, para o nosso autor, o objeto imaginário é um analogon do objeto percebido, já que, como vimos, a imagem guarda uma certa semelhança com a coisa que ela representa.

É nesse contexto que a obra sartriana sustenta que a intencionalidade imaginativa é uma relação com o mundo que permite a transformação de seus objetos em imagens. Encontrando-se intimamente relacionadas, a imagem se apresenta, ali, na qualidade de um produto da percepção sensorial, enquanto a imaginação reflete uma capacidade mental que permite ao sujeito criar representações mentais de objetos ou fenômenos que não estão presentes na percepção sensorial imediata.

Sobre aquilo que na tradição metafísica se estabelecia como categoricamente fusionado e, num primeiro momento, em Sartre, como imperativamente dissociado, isto é, no que tange à percepção e à imaginação, é a leitura arguta de Souza (2018SOUZA, T. M. 2018. “Da irredutibilidade e inseparabilidade entre percepção e imaginação em Sartre”. Educação e Filosofia, Uberlândia: EDUFU, 32(64): p. 311-338. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/35096 . Acesso em: 24/02/2023.
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, p. 313) que ilumina o problema: “se a imaginação se distingue claramente da percepção, ao mesmo tempo, em outro aspecto (dinâmico, concreto e de fato) são inseparáveis”; posição confirmada por Sartre: “não poderia haver consciência realizante sem consciência imaginante, e reciprocamente” (Sartre, 1940, p. 361).

Resumidamente, para Sartre, a imagem e a imaginação não são duas faculdades mentais distintas, mas sim duas formas diferentes de produzir representações mentais. Em outras palavras, a imaginação é simplesmente uma extensão da capacidade perceptiva do sujeito, permitindo-lhe criar livremente imagens mentais de objetos que não estão presentes no mundo físico, ambas desempenhando um papel importante na construção da experiência humana e na relação do sujeito com o mundo.

6 Considerações finais

Ainda que fragmentadas, as indicações fornecidas por Husserl, a concepção de intencionalidade e, sobretudo, a importância concedida às ciências fenomenológicas descritivas abrem um caminho que permite a Sartre articular uma abordagem mais consistente acerca da problemática relação entre percepção e imaginação.

Profundamente enraizada no estatuto ontológico do objeto da experiência, esta análise denuncia que uma experiência perceptiva é acompanhada pela convicção de que seu objeto é real, enquanto uma experiência imaginativa está associada à convicção de que seu objeto é irreal.

Sem descurar as lições anteriores figurando no quadro de uma concepção clássica, que são minuciosamente analisadas e paulatinamente refutadas, Sartre entra na arena do debate intelectual para aí apor o seu selo de qualidade, oferecendo-nos uma interpretação que valoriza os estudos já existentes sobre a espinhosa matéria. Ao fazê-lo, demonstra que a percepção é uma fonte primária de conhecimento e que, na maioria das vezes, o curso de nossas imagens é regulado pelo de nossas percepções.

Ao denunciar a confusão concernente à “ontologia ingênua da imagem”, o autor de A transcendência do ego sublinha a importância dos fundamentos sobre os quais assenta a distinção entre “identidade de essência” e “identidade de existência”, pedra angular que nos impede de estabelecer uma teoria da imagem aprioristicamente, porquanto reforça a identidade fundamental entre percepções e imagens.

Na perspectiva sartriana, imagem e imaginação são duas faces complementares de uma mesma moeda. A imagem fornece um ponto de partida para a imaginação, que pode recriá-la e transformá-la de várias maneiras com o fito de produzir imagens mentais. A imaginação, por seu turno, é capaz de produzir imagens que não têm um correspondente no mundo físico, ampliando as possibilidades de expressão da consciência humana, capaz de manipular representações mentais.

Contrapondo-se ao associacionismo geral que consiste em vislumbrar a imagem como percepção enfraquecida, Sartre as distingue rigorosamente. Além disso, o filósofo declara que são incompatíveis. Para que a consciência assuma uma atitude imagética, ela deve renunciar à percepção. Por exemplo, para ver a imagem de Pierre em uma foto, é preciso abdicar de percebê-lo como um objeto físico com certas propriedades perceptíveis.

A tendência a um realismo, contudo, se mantém tanto em O imaginário quanto em A imaginação porque o estudo da imaginação não é desvinculado do da percepção. A separação entre consciência imaginante e consciência perceptiva existe de direito, sendo inseparável de fato.

Assim sendo, no que diz respeito às questões atinentes à percepção e à imaginação, há e haverá sempre um mundo de saberes a adquirir, uma panóplia de informações reflexivas a acrescentar, o que nos convida a lançar um olhar no espelho retrovisor da história para nos dar conta do precioso inventário fenomenológico ofertado por Sartre à posteridade.

Referências

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  • COOREBYTER, V. 2012. De Husserl à Sartre. La structure intentionnelle de l’image dans, L’Imagination et L’Imaginaire”, Methodos [Online], since 28 March 2012. Disponível em: Disponível em: http://journals.openedition.org/methodos/2971 Acesso em 21/03/2023.
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    » https://seer.ufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/35096
  • 1
    De acordo com a fenomenologia, a “consciência tética” é sempre direcionada para algo: uma lembrança, uma ideia, um sentimento ou uma percepção e refere-se à intencionalidade da consciência. A “consciência não-tética”, por sua vez, é a consciência pura, uma forma de autoconsciência desprovida de objeto.
  • 2
    Para a fenomenologia, a epoché é a abstenção do pensamento ante a constância do “espetáculo do mundo”, sendo definida na Krisis-Schrift como uma “distância em relação às validações naturais ingênuas” (Husserl, 1989, p. 154HUSSERL, E . 1989. La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendentale. Tradução. Gérard Granel. Paris: TEL-Gallimard.HUSSERL, E. 1913. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie: Allgemeine Einführung in die reine Phänomenologie. Jahrbuch für Phi- losophie und phänomenologische Forschung, n° 1(1), Halle: Niemayer Verlag.).
  • 3
    Nascido em 1471, Albrecht Dürer foi um gravador, pintor, ilustrador, matemático, teórico de arte alemão e, provavelmente, o mais famoso artista do Renascimento nórdico, tendo influenciado artistas do século XVI, no seu país e nos Países Baixos. O artista entalhava levemente o contorno da gravura antes de preenchê-la de detalhes, com linhas delicadas, que criavam sombra e textura. Sua maestria como gravador só seria igualada, depois, por Rembrandt (1606-1669). A técnica da xilogravura utilizada por Dürer já era popular na Alemanha, mas foi em suas mãos que atingiu nova dimensão expressiva.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2023
  • Aceito
    19 Fev 2024
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