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E se tudo não passasse de um teste? Considerações sobre a hipótese basanística e a leitura dos Diálogos de Platão

What if it were only a test? Remarks on the basanistic hypothesis and the interpretation of Plato’s Dialogues

RESUMO

Este artigo discute uma hipótese hermenêutica da exegese de Platão com o intuito de mostrar que, ante os paradigmas de leitura existentes, ela oferece resposta original para o problema da crítica aos diálogos médios contida nos diálogos tardios. Depois de comentar algumas dificuldades da interpretação de Platão (seção I) e a vigência de diferentes paradigmas de interpretação dos Diálogos, a hipótese basanística é apresentada (seção II) com auxílio de dois trechos da República. Em seguida, são analisadas algumas de suas vantagens (seção III) e alguns de seus problemas (seção IV). A conclusão aponta para seu caráter inovador e sua eficiência como ferramenta de leitura dos Diálogos.

Palavras-chave:
Platão; interpretação; basanístico; Altman

ABSTRACT

In this paper, I consider a hermeneutic hypothesis regarding Platonic exegesis in order to show that it presents an original response to the problem posed by the critique of the middle-period dialogues in the so-called late dialogues After commenting on some difficulties of Platonic interpretation (section I) and on the existence of different hermeneutic paradigms for interpreting the dialogues, I present the basanistic hypothesis with the aid of two passages from Plato’s Republic.Next, I analyze some of its advantages (section III) and problems (section IV). In the conclusion (section V), I argue for the efficiency of this innovative approach as a tool for reading and interpreting the Dialogues.

Keywords:
Plato; interpretation; basanistic; Altman

E o próprio Platão, quando estava prestes a morrer, viu a si mesmo transformando-se em cisne, pulando de árvore em árvore e gerando assim muitos dissabores aos caçadores de aves, incapazes de agarrá-lo. Tendo ouvido tal sonho [de Platão], Símias, o socrático, disse que todos os homens envidariam esforços para captar o pensamento de Platão, ninguém, todavia, seria capaz de fazê-lo; e cada um elaboraria a interpretação conforme sua opinião, seja em sentido teológico, seja em sentido físico, seja ainda em qualquer outro sentido (Prolegômenos à filosofia de Platão, I, 29-35, trad. minha).

1 Dificuldades da interpretação de Platão

Nos últimos anos dos Studia Platonica, a pergunta sobre a maneira como os Diálogos devem ser lidos tem sido insistentemente colocada. Em retrospecto, observa-se uma tendência nítida e comparável à tendência já estabelecida em considerar os elementos literário-dramatúrgicos da escrita de Platão. Hoje, a questão de saber o que Platão de fato disse está inextricavelmente ligada à questão de saber como é que deve ser lido o que ele disse. Essa pergunta assenta-se na óbvia percepção de que o conteúdo de um texto varia conforme a maneira como é lido e interpretado. Desde a Antiguidade, há vestígios dessa percepção: o fato de Aristóteles classificar os Diálogos como obras miméticas ( Po. 1447b9ARISTÓTELES, -. 1965. De Arte Poetica Liber. Recognovit brevique adnotatione critica instruxit Rudolfus Kassel. Oxford: Oxford University Press.), aplicando-lhes o critério definidor da poesia; o fato de Trásilo organizá-los em tetralogias dramáticas ( Engler, 2017ENGLER, M. R. 2017. “Zu Platons künstlericher Bestimmung der Philosophie: die Dialoge als höchste Form von Dichtung”, Archai, (19): p. 93-128. , p. 95); ou o fato de Proclo discutir a relevância dos prólogos dos Diálogos (Gill, 2006, p. 53), pois, representam incipiente preocupação com a metodologia de leitura de Platão. Outros testemunhos antigos poderiam ser citados, como os Prolegômenos à filosofia de Platão (2003WESTERINK, L. G. 2003. Prolégomènes à la philosophie de Platon. Traduit par J. Trouillard. Deuxième tirage. Paris : les Belles Lettres.), escrito anônimo que também dedica alguns parágrafos à maneira como os Diálogos devem ser lidos. No Protágoras, no Górgias, no Íon, no Hípias Menor, na República e no Fedro, o próprio Platão segue um campo de investigações aberto pela sofística, para quem a educação consistia em grande parte em interpretar os poetas ( Prot. 338e-339a), e discute a hermenêutica de textos poético-filosóficos, assinalando como tais problemas eram comuns à sua época ( Westermann, 2002WESTERMANN, H. 2002. Die Intention des Dichters und die Zwecke der Interpreten: zu Theorie und Praxis der Dichterauslegung in den platonischen Dialogen. Berlin - New York: Walter de Gruyter.). Na Modernidade, a introdução de Schleiermacher (1969SCHLEIERMACHER, F. 1969. Einleitung zu Platons Werke. In: GAISER, K. (Hrsg). Das Platon Bild: Zehn Beiträge zum Platonverständnis. Hildesheim: Georg Olms Verlagsbuchhandlung. ) aos Diálogos, as descobertas da filologia do século XIX ou os cursos do jovem Nietzsche (2020NIETZSCHE, F. W. 2020. Introdução ao estudo dos Diálogos de Platão. São Paulo: Martins Fontes.), entre outros, contêm indicações sobre como interpretar Platão, as quais sugerem que todo o estudioso dos Diálogos deve enfrentar, mais cedo ou mais tarde, o problema de como lê-los. Isso não parece comparar-se, todavia, com o que ocorre na pesquisa atual, quando essa pergunta tem sido amiúde colocada por intelectuais de diferentes escolas ( Balansard, Koch, 2013BALANSARD, A.; KOCH, I. 2013. Lire les dialogues, mais lesquels et dans quel ordre: Définitions du corpus et interpretations de Platon. Sankt Augustin: Akademia. ). Mais do que em outras épocas, tem-se consciência agora de que o grau de refinamento filológico-hermenêutico com que os Diálogos são encarados determina profundamente as doutrinas e a imagem do Platonismo que deles se extraem.

O livro editado por Francisco Gonzalez - The Third Way: New Directions in the Platonic Studies (1995GONZALEZ, F. 1995. The Third Way: New Directions in the Platonic Studies. Lanham: Rowman and Littlefield Publishers. ) - constitui exemplo dessa consciência. No afã de lançar as bases de uma terceira via no interior da hermenêutica tradicional de Platão, ele contém artigos de eminentes estudiosos que debatem, sob diversas perspectivas, problemas relativos à leitura de Platão: os diálogos como dramas; os meandros da composição; a metodologia de leitura dos diálogos; as relações de Platão com a retórica etc. Como Gonzalez explica em sua elucidativa introdução, desde o início a interpretação de Platão tem sido marcada pela vigência de diferentes paradigmas hermenêuticos. Até o século XVIII, o paradigma neoplatônico foi dominante; seus traços mais marcantes consistiam na tentativa de conciliar Platão e Aristóteles e na pressuposição de uma henologia como resposta final a vários problemas metafísicos ( 1995PLATÃO, - . 1995. Platonis Opera. Tomus I ( org. E. A. Duke et alli). New York: Oxford University Press., p. viii). No século XIX, com a filologia alemã e inglesa, o texto platônico adquiriu proeminência e passou a representar de forma isolada e autossuficiente o que seria o Platonismo; o objetivo era explicar Platão sistematice, como se fosse outro representante da filosofia moderna. Entretanto, essa leitura logo notou que os Diálogos se contradiziam e não demorou para fazer dois movimentos (como que soluções ad hoc) para a manutenção de suas teses: primeiro, excisar como inautênticos os diálogos que não se acomodavam ao suposto sistema do Platonismo; segundo, supor um desenvolvimento evolutivo de Platão, mercê do qual certas teses teriam sido abandonadas ( Prior, 2012PRIOR, W. 2012. Developmentalism, In: PRESS, G. (ed.). The Continuum Companion to Plato. London: Continuum Companions to Philosophy , p. 289. , p. 288). Nesse paradigma ainda influente enquadram-se imponentes interpretações do XIX e do XX, como as de Zeller, Willamowitz, Ryle, Friedländer, Guthrie, Stenzel, Jaeger etc. Ademais, Gonzalez (1995GONZALEZ, F. 1995. The Third Way: New Directions in the Platonic Studies. Lanham: Rowman and Littlefield Publishers. , p. viii, n. 2) acentua um acontecimento essencial, ocorrido por volta de 1950, que esclarece por que a questão da leitura dos Diálogos adquiriu tamanha centralidade: a reivindicação explícita de um novo paradigma de leitura, escudado por uma tradição doxográfica que atribuía a Platão ensinamento oral e esotérico. Com a emergência da escola de Tubinga-Milão, portanto, tornou-se impossível contornar o problema de como ler os Diálogos. Em parte, o livro editado por Gonzalez pretende responder ao desafio lançado por tal escola.

Elaborando pesada crítica do paradigma moderno, em especial da autossuficiência do texto escrito assumida por Schleiermacher, a escola de Tubinga-Milão obrigou os estudiosos a revisarem pressuposições e fundamentos da interpretação de Platão. Para dizê-lo como Thomas Kuhn, frequentemente utilizado por Reale (1997REALE, G. 1997. Para uma nova interpretação de Platão. Releitura da metafísica dos grandes diálogos à luz das “Doutrinas não-escritas” . Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Loyola., cap. I), tratava-se de um período revolucionário dos Studia Platonica, em que crenças e perspectivas foram questionadas, revisadas e às vezes abandonadas. Isso conduziu os estudos a diferenças abissais de interpretação, as quais podem exasperar os leitores não habituados às discussões da bibliografia secundária e dar a impressão de que Platão não teria ensinamento claro. Por exemplo, não raro o conflito entre os diversos paradigmas torna difícil determinar quais seriam - caso de fato os haja - os dados positivos dos Diálogos. Dependendo do paradigma adotado, uma personagem, uma cena ou uma afirmação podem ser lidas de forma totalmente distinta: podem ser essenciais em uma análise e descartáveis em outra. Algo parecido ocorre, no sentido de Kuhn, quando os paradigmas científicos passam por revoluções: por exemplo, os sonhos, os chistes e os atos falhos, irrelevantes para teorias psicológicas e psiquiátricas do XIX, adquiriram importância central a partir da psicanálise. O resultado positivo disso foi a inauguração de um campo de pesquisas que incitou a criação de instituições, de técnicas de trabalho, de profissões etc., tornando-nos atentos a fenômenos antes ignorados. Para Reale, a atual fase dos estudos platônicos é marcada pela ciência extraordinária, i.e., um período em que várias certezas se perderam e novas hipóteses devem ser ventiladas até que outro paradigma venha a instalar-se ( Reale, 1997REALE, G. 1997. Para uma nova interpretação de Platão. Releitura da metafísica dos grandes diálogos à luz das “Doutrinas não-escritas” . Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Loyola., p. 21)

É possível ver traços desse movimento kuhniano no caso da interpretação de Platão. Tome-se, à guisa de exemplo, a crítica à escrita expressa no Fedro (274b-278b) e na Carta VII (340b-345c). Na interpretação de Reale e da escola de Tubinga-Milão, reveste-se essa crítica de papel absolutamente primordial. Ao lado de testemunhos antigos, ela é o marco fundador das conclusões a que Reale chega, i.e., Reale e demais intelectuais que lhe são simpáticos, a despeito de certas diferenças ( Lopes, Cornelli, 2016LOPES, R.; CORNELLI, G. 2016. “As chamadas doutrinas não-escritas de Platão: algumas anotações sobre a historiografia do problema desde as origens até nossos dias”, Archai, (18): p. 259-281., p. 271), interpretam todos os Diálogos a partir da ênfase no ensino esotérico e na desconfiança em relação à escrita. Essa crítica estaria escudada por autotestemunhos de Platão nas obras referidas, sendo também a forma que ele encontrou para preservar a oralidade dialética de Sócrates e fazer frente à revolução cultural de sua época, marcada pela introdução da escrita e pela perda paulatina da tradição oral ( Reale, 2011REALE, G. 2011. A interpretação de Platão inaugurada pela escola de Tübingen e por mim apresentada em sentido epistemológico como “paradigma hermenêutico” alternativo àquele dominante, Archai, (6): p. 11-26. , p. 11ss) Passagens inócuas em outras leituras, desse modo, assumem agora um brilho próprio: uma interjeição - “por Apolo!” - no interior da discussão sobre o Bem, na República, deixa de ser um simples artifício literário para transformar-se numa alusão ao Uno ( R. 508b-509cPLATÃO, - . 2001. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.; Reale, 1988REALE, G. 1988. Storia della filosofia antica. 6 ed. Milano: Vita e Pensiero. , p. 131-133). Ou seja, a interjeição de Glauco é compreendida como uma indicação velada da tese metafísica que defende a identidade entre o Bem e o Uno. É a pressuposição inicial de Tubinga-Milão que faz essa passagem prima facie inocente iluminar-se, tal como, na Psicanálise, a negação de uma ideia emergente, que poderia ser descartada por um psiquiatra comum, possui sentido oculto a ser descortinado pelo psicanalista. Depois da escola de Tubinga-Milão, em suma, impuseram-se novas questões aos estudiosos e foram reconhecidas diversas estratégias literárias de Platão, as quais seriam usadas para aludir à sua doutrina oral, para escondê-la de não-iniciados etc. O resultado disso foi inegavelmente positivo.

Não há lugar para examinar aqui, entretanto, a correção da magistral interpretação de Reale. Importa apenas chamar a atenção para o fato de que os diversos paradigmas acarretam diferentes interpretações de dados os mais elementares. Noutras palavras, não se trata de um caso isolado, mas de um fenômeno abrangente que faz com que a obra inteira de Platão se modifique e apresente variadas facetas, dependendo da escola que a interpreta. Como sabido, vários motivos há para que as coisas estejam nesse pé. No que toca a Platão, às dificuldades intrínsecas à conservação dos textos antigos - ausência de informações concretas sobre sua publicação; divergência de manuscritos; intepretações conflitantes de discípulos; doxografia etc. - alia-se uma miríade de problemas inerentes à forma de comunicação escolhida por ele. Noutras palavras, é mais difícil interpretar Platão do que Aristóteles, pela simples razão de que um texto com traços dramatúrgico-literários é aberto a mais possibilidades interpretativas do que um tratado com sentenças diretas e objetivas. Nos dois casos, pode-se ler a obra isoladamente ou fazer conexões com outros escritos do autor. Nos Diálogos, todavia, o cenário, as várias personagens, as descrições de momentos, de lugares e de emoções, pois, acarretam uma riqueza de possibilidades ausentes no tratado. Longe de superficiais, esses dados dramatúrgicos constituem com frequência os guias mais seguros para uma interpretação fidedigna e filosoficamente exigente da obra de Platão. Por conseguinte, o difícil consenso entre as principais correntes hermenêuticas da atualidade, sem mencionar as tradições antigas, não deriva de uma deficiência de Platão, como se ele fora incapaz de atingir conclusões derradeiras e de comunicá-las via escrita. À inversa, tal exuberância de interpretações é a prova de que os Diálogos realizam o ideal do Fedro: em sua magnífica volatilidade conceitual e dramática, eles são organismos vivos que interagem, se modificam e expandem com ajuda de seus leitores; são espécie de jogos ( paidiá) ou enigmas capazes de quebrar dialeticamente o silêncio monocórdio do texto escrito e criar interlocução ativa com quem os lê ( Phdr. 276e4- 277a4; 277e4-278b4).

No interior desse contexto, sobressai-se a crítica que Platão faz da própria obra, um problema que, de algum modo, sempre assombrou os estudiosos modernos de Platão ( Schäfer, 2012SCHÄFFER, C. 2012. Léxico de Platão. São Paulo: Loyola ., p. 158). Tal problema não se refere diretamente aos diálogos ditos aporéticos ou juvenis, os quais configurariam a primeira fase de composição literária de Platão, pois se admite que tais diálogos, quando não têm o intuito de retratar a vida de Sócrates, sejam intencionalmente insuficientes, apesar de dirigirem o leitor para as obras maduras. Esse problema atinge sobretudo os diálogos ditos tardios ou da senectude. Embora haja divergências quanto a seu significado, é inegável que estas obras - o Sofista e o Parmênides e o Filebo, por exemplo - assumam postura crítica diante de diálogos como o Fédon, a República, o Fedro e o Banquete, nas quais Platão expressa o que seria o núcleo de seu pensamento doutrinal (ou uma fase dele): a teoria das ideias e a da reminiscência ( Ryle, 2010RYLE, G. 2010. Plato’s Progress. New York: Cambridge University Press., p. 252). Como ambas as obras tardias mencionem de forma crítica as ideias ( Prm. 127b; Soph. 246c), é inegável que Platão tenha discutido ou revisado sua postura anterior. Contudo, a inexistência de um consenso sobre a interpretação de Platão torna difícil descrever o status quaestionis do problema. A própria formulação acima não é neutra e acarreta consequências: se o Fédon, a República, o Fedro e o Banquete são “anteriores” ao Sofista e ao Parmênides, pois, há então forte tendência em supor que não veiculem a doutrina final de Platão e que tenham sido rejeitados por ele em sua maturidade filosófica. De resto, a própria palavra “revisão” fomenta a crença numa modificação ou evolução do pensamento platônico. Nada disso é pacífico, como dito, e várias objeções podem ser levantadas contra essa postura. Sem embargo, não pretendo salientar as deficiências do desenvolvimentismo; menciono-o com o fito de ilustrar os paradigmas de leitura de Platão e como eles dificultam a mera descrição de pontos que deveriam ser pacíficos, como a suposta ordenação dos diálogos.

Levando em conta o problema constatado acima - a saber, as incoerências entre os Diálogos, sobretudo os diálogos de crítica e revisão - pretendo comentar uma hipótese hermenêutica que, em um recente e desafiador paradigma, oferece resposta original a esse problema. Trata-se de uma hipótese que identifica um estratagema pedagógico-literário de Platão e explica o que ocorre não apenas com os diálogos tardios em relação aos da maturidade, senão também com a argumentação de diálogos isolados. Como será visto, de fora parte suas vantagens, ela também tem suas pressuposições e pode ser criticada em certos pontos. Porém, seu potencial hermenêutico faz jus às dificuldades e à exuberância pedagógico-literária dos Diálogos e, assim, ela pode talvez lançar nova luz sobre questões que o desenvolvimentismo e a ordem de composição, sem falar de outras correntes, se mostraram incapazes de identificar ou resolver.

2 A hipótese basanística

A hipótese basanística foi formulada pela primeira vez em um artigo de William H. F. Altman publicado na revista Phoenix, da Associação de Estudos Clássicos do Canadá, intitulado The Reading Order of Plato’s Dialogues (2010ALTMAN, W. H. F. 2010. “The Reading Order of Plato’s Dialogues”, Phoenix, 64: p. 18-51.). Ela apareceu junto de outros seis princípios utilizados pelo autor para explicar o que parece ter sido uma preocupação antiga da hermenêutica de Platão: a possível ordem em que os diálogos devem ser lidos. Após o desenvolvimento das ideias do autor, a hipótese foi empregada em uma obra que, ao longo de cinco volumes e mais de duas mil e quinhentas páginas, interpreta todos os trinta e cinco Diálogos e as treze cartas de Platão 1 1 Para um panorama das obras do autor: Engler, 2013; Idem, 2019; Idem, 2022. . No artigo de 2010, Altman apresenta os princípios para reconstruir a possível ordem de leitura dos Diálogos de Platão (OLDP). Convém enfatizar esse “possível”, porque o autor não afirma que sua ordem seja a derradeira; seu intento é antes chamar a atenção para o problema e propor uma ordem viável de leitura dos Diálogos, atenta tanto à dramaturgia quanto à doutrina de Platão e sua preocupação com o ensino do leitor. Mesmo que divirja em pontos substanciais do paradigma filológico da ordem de composição - o Lísis é considerado posterior ao Banquete, por exemplo, e a tetralogia sobre a morte de Sócrates deve ser lida, por razões dramáticas e doutrinais, junto de diálogos “tardios”, como o Sofista e as Leis - ela preserva marcos tradicionais da ordem de composição. Por exemplo, Hípias Menor, Hípias Maior, Alcibíades Maior, entre outros, são também diálogos da juventude ( Jugenddialoge), isto é, diálogos que antecedem as obras maduras, como o Górgias e a República. Ou seja, o autor admite que eles devam ser lidos antes dos diálogos maduros, como no paradigma desenvolvimentista. Contudo, sua ênfase na ordem de leitura faz com que esse fato seja visto sob outra luz: a ideia de diálogos da juventude sugere, em sua visão, obras dirigidas para a juventude, e não obras escritas por um jovem filósofo ( Altman, 2020ALTMAN, W. H. F. 2020. Ascent to the Beautiful: Plato the Teacher and the Pre-Republic Dialogues from Protagoras to Symposium. Lanham, MD: Lexington Books ., p. 125; 210). Assim, ele compreende Platão como um pensador que arquitetou desenho completo de sua obra e que, tendo por escopo a educação do leitor/estudante, trabalhou em seus diálogos não publicados até o final da vida, a fim de criar um sistema de estudos que parte dos temas mais simples e progride aos mais complexos.

No artigo de 2010 2 2 Utilizo aqui a tradução de 2019. , Altman propunha que o termo basanístico fosse lido ao lado de dois conceitos empregados para entender os Diálogos e seus inúmeros movimentos de comunicação com o leitor: o conceito de proléptico e de visionário. Para o autor, tanto passagens quanto diálogos inteiros de Platão podem ser considerados prolépticos, uma palavra emprestada de Charles Kahn (1996KAHN, C. 1996. Plato and the Socratic Dialogue: The Philosophical Use of a Literary Form. Cambridge, UK: Cambridge University Press. , p. 59-65), no sentido de que antecipam problemas ou conclusões com que o leitor há de deparar-se em outras obras. Entendido como quarto princípio da OLDP, a composição proléptica exemplifica-se no fato de que “o estudante que chega à República com o Protágoras em mente - onde a piedade pode ser a quinta virtude e a virtude pode não ter partes ( Prot. 349b1-3) ( Altman, 2019ALTMAN, W. H. F. 2019. “A ordem de leitura dos Diálogos de Platão”, Dissertatio, (49): p. 312-355., p. 316)” - assumirá postura crítica diante definição de justiça oferecida no livro IV, cujo método dianoético, declarado como insuficiente por Sócrates ( R. 435d), define a justiça como harmonia das partes da alma/cidade, descurando de elementos centrais da República: a alegoria da caverna e o retorno do filósofo. Inúmeros exemplos podem ser oferecidos desse princípio. Haja vista Altman seja sobreposse atento ao cunho educativo do Platonismo, a composição proléptica traduz a ideia de que é pedagogicamente útil confundir os leitores e estudantes, expondo-os a falsidades, para depois revelar-lhes a verdade. Para Altman, que nomeia sua série de livros Plato the Teacher, essa ideia seria prova cabal da veia pedagógica do Platonismo, pois bons professores costumam primeiro levantar problemas, gerar dúvidas em seus alunos para, em seguida, discutir com eles possíveis soluções ( Altman, 2019ALTMAN, W. H. F. 2019. “A ordem de leitura dos Diálogos de Platão”, Dissertatio, (49): p. 312-355., p. 217). Algo similar estava embutido no método de Sócrates, o professor a quem Platão jamais abandona.

Esse momento de contato com as respostas verdadeiras representa o segundo dos conceitos mencionados acima: passagens e diálogos inteiros podem ser chamados de visionários, no sentido de que revelam a visão de Platão sobre determinado assunto. Acima de tudo, isso diz respeito à lição máxima ( mégiston máthē ma) do Platonismo: a ideia do Bem e as ideias em geral ( R. 505a2). O objetivo do Platonismo é escancarar a insuficiência do mundo empírico e de filosofias correlatas. Começando com diálogos mais simples, porém retoricamente sedutores, Platão escrutina temas e tendências da época, instruindo seus leitores sobre questões básicas de ética, de epistemologia, de lógica etc. Depois de confundi-los salutarmente e enredá-los em aporia, ele descortina seu pensamento e os conduz em um caminho ascendente à ideia da Beleza. Esse ensinamento visionário, primeiro contato duradouro com o inteligível, só é ofertado depois que o aluno é ensinado sobre temas menores. Em termos de OLDP, ele aparece pela primeira vez no Banquete, diálogo que sucede outras oito obras e cujo objetivo é utilizar a ideia do Belo para nos libertar da caverna. Seduzindo seus leitores com a promessa de um Beleza inteligível, Platão consegue livrá-los do predomínio do critério do útil ou vantajoso, então usado pelos sofistas para julgar ações morais. Ou seja, o Belo é a primeira ideia que nos faz duvidar do mundo sensível e anelar por algo que o ultrapasse. Depois do Banquete, porém, o momento máximo de revelação dar-se-á na República, como comentado abaixo.

No interior desse esquema conceitual, o conceito de basanístico é o terceiro termo: depois da confusão pedagogicamente salutar, da antecipação de temas e da subsequente revelação da verdade, Platão testa seus leitores e estudantes para ver se captaram seu ensinamento. Sétimo e último princípio da OLDP, o neologismo basanístico reflete o uso desse termo no Górgias (486d3-487e2PLATÃO, - . 1988. Górgias. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA.) e na República (537b5-540a2PLATÃO, - . 2001. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.), apesar de haver mais de trinta ocorrências no Corpus. O verbo basanízein é comum para termos como “teste” ou “prova”, e pode também ser utilizado para descrever a “tortura” 3 3 Note-se que, na visão de Reale, Platão também submetia os estudantes a uma prova/experiência ( peîra) ( Carta VII, 340b-341b4), a qual consistia em lhes descortinar as dificuldades da vida filosófica e ver quais deles se sentiam aptos a continuar com os estudos. . Sua ideia principal é expressa no Górgias, quando Sócrates afirma:

Se eu tivesse a alma de ouro, Cálicles, não achas que me fora sumamente grato encontrar uma dessas pedras de toque [basanízousín], a melhor de todas, com a qual eu faria a aferição de minha alma, para ver se estava bem e, uma vez obtida essa certeza, dispensaria qualquer outra prova [basánou] desse gênero? ( Grg. 486d2-5, C. A. NunesPLATÃO, - . 1988. Górgias. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA.)

Altman explica que o conceito deve ser lido em conjunto com os princípios acima e que não é rígido termo técnico, porém espécie de trampolim que Platão utiliza para elevar o aluno à Ideia do Bem. Ele é também um trampolim no sentido educativo básico, a saber, no fato de que um teste, quando bem elaborado, pode ensinar a verdade aos estudantes e fazer com que a distingam em meio a falsidades pedagogicamente arquitetadas pelo professor.

Platão utiliza o elemento basanístico com um propósito triplo: (a) para assegurar que o estudante captou seu ensinamento visionário, (b) para fazer com que aquele ensinamento salte do texto para o espírito do estudante (R. 435a1-2), e (c) para dirigi-lo para algo ainda maior do que aquilo que o professor já ensinou ( Altman, 2019ALTMAN, W. H. F. 2019. “A ordem de leitura dos Diálogos de Platão”, Dissertatio, (49): p. 312-355., p. 318).

No artigo de 2010, Altman analisa uma passagem da República como exemplo da pedagogia basanística. Nesse trecho, o teste é usado numa argumentação específica do livro I, a qual aparentemente não possui grande relevância para o restante do diálogo. Todavia, ela revela dois pontos fundamentais: primeiro, se o leitor está familiarizado com o Platonismo e pode redarguir às teses supostamente assumidas por Sócrates; segundo, se o leitor será capaz de compreender a lição derradeira de Platão, a saber, o retorno à caverna em prol dos outros. Ao supor a existência de uma cidade feita apenas de homens bons, Sócrates lança uma tese sobre a relação entre egoísmo e governança política que é basanística, pois exige que o leitor a rejeite com base no fato de que o altruísmo é moralmente superior ao egoísmo. Segundo Sócrates, os bons só decidem participar do governo para que não sofram a pena de serem governados por quem lhes é inferior. Em havendo uma cidade feita apenas de homens bons, porém, seria preciso instituir competições para não governar, contrariamente à prática de agora, porque todo o homem de conhecimento preferiria “receber benefícios de outrem a ter o trabalho de ajudar ele os outros” ( R. 347d-8). Em primeiro lugar, isso contradiz o que Sócrates, interessado na refutação do egoísmo de Trasímaco, afirmou algumas linhas acima, quando disse que um chefe deve velar pela conveniência de seus súditos e não pelo próprio interesse. Em segundo lugar, a assunção de tal paradigma ético acarretaria “um universo moral onde nenhum pai tomaria cuidado de um infante, nenhuma criança iria assistir seus pais moribundos, e certamente nenhum gênio rico e independente iria despender tempo para ensinar estudantes jovens ou com engenho vagaroso o bastante para precisarem da claridade cristalina do Alcibíades Maior” ( Altman, 2019ALTMAN, W. H. F. 2019. “A ordem de leitura dos Diálogos de Platão”, Dissertatio, (49): p. 312-355., p. 320). Noutras palavras, trata-se de uma visão moral que contradiz o âmago do Platonismo e da própria República, pois repudia o heroísmo e a nobreza moral necessários para o retorno desinteressado ao interior da caverna.

Altman lê esse trecho como mais um dos casos em que Platão exige do leitor que participe dialética e ativamente do debate com as personagens do texto. A leitura literal e passiva da passagem compromete o leitor não apenas com o egoísmo moral de Trasímaco, mas também com a visão equivocada de que Platão teria sido um aristocrata com desdém pelo seu próximo. Para Altman, embora essa contradição seja dificilmente invisível, o leitor familiarizado com a OLDP pode interromper o debate, como Glauco fizera há pouco, e rejeitar a decisão do homem de conhecimento que só pensa em si mesmo ( Altman, 2019ALTMAN, W. H. F. 2019. “A ordem de leitura dos Diálogos de Platão”, Dissertatio, (49): p. 312-355., p. 321). Isso porque tal leitor já encontrou no Górgias a tese controversa de que “é mais feio cometer injustiça do que ser vítima de injustiça” ( Grg. 428, d8PLATÃO, - . 1988. Górgias. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA.). Assim, sendo o Górgias anterior à República na OLDP, esse leitor está apto para passar no teste de Platão e perceber as implicações morais do egoísmo. Acima de tudo, ele percebe o fato de que o filósofo é o contrário do homem de conhecimento aqui aludido, pois decide descer à caverna e governar a cidade mesmo contra seu interesse em permanecer na região pura das ideias.

But there is far more to be said about this basanistic element: it has a nobler purpose. All teachers can test their students but few can do so well. A good test, on the other hand, is one from which the student will actually learn. The ideal test teaches both student and teacher. In other words, there is a danger in taking the notion of “test” too literally. To be sure Plato the Teacher wanted to test his students, but hardly as an end in itself. By teaching as well as testing them through the basanistic element, he was able to create a truly dialectical pedagogy: his students come to know themselves in battle with the errors to which Plato carefully and deliberately exposes them. When students reject for themselves the selfishness of the “man in the know” (“homem de conhecimento”), they not only show themselves worthy but also confirm the insights toward which Plato has been leading them. Just as Socrates long ago chose Callicles to be his basános, so too Plato has now chosen us ( Altman, 2012ALTMAN, W. H. F. 2012. Plato the teacher: the crisis of Republic. Lanham, MD: Lexington Books., p. 98).

Há outros usos do conceito de basanístico na extensa obra de Altman, os quais mostram sua aplicação a trechos e diálogos variados 4 4 Para a análise da mesma passagem da República: Altman, 2012, p. 90. . Para terminar essa parte, convém citar um exemplo em que tal elemento provoca discussão direta com o leitor, fazendo com que o texto seja transcendido e a fagulha da filosofia se acenda ( Ep. VII, 341c8). Antes disso, porém, deve-se notar que, para Altman, essa fagulha é o efeito mais genuíno da educação que Platão nos proporciona. Através do constante contato com o texto, o leitor é testado sucessivamente, e ao fim vê nascer em sua alma o conhecimento que transcende o escrito. No trecho abaixo, além do uso do verbo basanízō , o leitor é incitado a pensar por conta própria sobre a insuficiência do método da República, reconhecendo o nível meramente dianoético da analogia entre a cidade e o indivíduo. É esse reconhecimento que o torna apto a entender o sentido da obra.

Aquilo que aí se nos revelou, vamos transferi-lo para o indivíduo, e, se se acertar, bom será. Mas se a justiça se manifestar como algo diferente no indivíduo, regressaremos novamente à cidade, para tirar a prova (basanioûmen), e em breve, comparando-as e friccionando-as uma contra a outra, como de uma pederneira, faremos saltar a faísca (eklámpsai) da justiça, e, depois de ele se ter tornado bem visível, fixá-la-emos em nós mesmos (R. 434e3-435a3, Rocha Pereira).

No livro sobre a República, Altman analisa uma passagem da obra em que Sócrates supostamente conversa com os guardiões imaginários da cidade ideal recém-criada. A passagem é fundamental para a correta compreensão da obra. Nela, Sócrates destrói o arcabouço dianoético criado nos livros anteriores (II a IV), pois infringe o postulado segundo o qual cada pessoa deve ter apenas um ofício ( R. 420e8;421a2) e exige do filósofo que assuma as rédeas da política. Assim, a existência do filósofo abala a regra geométrica com que o esquema da cidade e da alma tripartite foi criado, revelando que as palavras de Sócrates, ao mostrar a necessidade de um caminho mais longo ( R. 435c9-d5, makrótera hodós) para a investigação, devem ser levadas a sério. Dado que Sócrates suponha resistência por parte dos guardiães, os quais não abandonariam de bom grado suas investigações para administrar as mesquinharias da política, ele lhes dirige um discurso parenético. Nesse discurso, há um uso do pronome “vós” que, na visão de Altman, encerra um elemento basanístico.

Repara ainda, ó Gláucon, que não causaremos prejuízo aos filósofos que tiverem aparecido entre nós, mas teremos boas razões para lhes apresentar, por os forçarmos a cuidar dos outros e a guardá-los. Diremos, pois, que as pessoas da mesma espécie nascidas noutras cidades é natural que não tomem parte nas suas dificuldades; efetivamente, fizeram-se por si mesmas, a despeito da respectiva constituição política; e tem razão, quem se formou por si mesmo e não deve a alimentação a ninguém, em não ter empenho em pagar o sustento a quem quer que seja. Mas a vós, nós formamos-vos, para vosso bem e do resto da cidade, para serdes como chefes e os reis nos enxames de abelhas, depois de vos termos dado uma educação melhor e mais completa do que a deles, e de vos tornarmos mais capazes de tomar parte em ambas as atividades. Deve, portanto, cada um por vez descer à habitação comum dos outros e habituar-se a observar as trevas (R. 520a7-c3, Rocha Pereira).

Para Altman, o “vós” a que Sócrates alude não deve ser interpretado de forma literal, como se tratasse de fato de um discurso aos imaginários guardiães. Ao contrário, ele deve promover a faísca de entendimento no interior do leitor e fazer com que ele se pergunte se Platão não estaria, nesse preciso momento, dirigindo-se a quem o lê. A redação ambígua da passagem, escabichada em detalhes por Altman (2012ALTMAN, W. H. F. 2012. Plato the teacher: the crisis of Republic. Lanham, MD: Lexington Books., p. 177), deixa aberta essa possibilidade. E, ademais, o leitor foi educado, tal como os guardiães, ao longo dos livros da República e pode decidir ele mesmo se há de retornar ou não à caverna ( Altman, 2012ALTMAN, W. H. F. 2012. Plato the teacher: the crisis of Republic. Lanham, MD: Lexington Books., p. 8). De um lado, ele tem a opção cômoda de abraçar o egoísmo moral ou de filosofar de forma que se alheie da política concreta, permanecendo em sua torre de marfim e visando tão-somente a harmonia de sua alma. Essa é a opção do caminho mais curto, onde a preocupação com o próprio bem-estar cria um filósofo alheio às lutas da política. De outro, pode optar pelo caminho mais longo e seguir o hino de batalha da República (534b8-d2PLATÃO, - . 1988. Górgias. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA.), o que há de levá-lo não apenas a enfrentar a política rasteira da cidade real, enquanto sua alma habita a pólis do pensamento, mas também as lutas teóricas para manter-se fiel à ideia do Bem e distingui-la de simples opiniões.

3 A hipótese basanística e os diálogos tardios

Para o problema aqui visado, a hipótese basanística é uma solução ainda não pensada por nenhum intérprete. Há várias saídas possíveis para o problema dos diálogos “tardios” que criticam a teoria das ideias. A saída tradicional da filologia (ordem de composição) e do desenvolvimentismo consiste em afirmar que Platão modificou sua teoria; assim, os diálogos tardios seriam sua emancipação do socratismo e da ânsia de descrever as ideias de seu mestre, o que o levou ao abandono da sua maior conquista do período de maturidade, a teoria das ideias ( Erler, 2013ERLER, M. 2013. Platão. São Paulo: Annablume Clássica; Brasília: Editora UnB., p. 56). Baseando-se nos métodos da estilometria, que permitiu identificar três conjuntos de diálogos, posto que sem precisão acerca da anterioridade ou posteridade de diálogos específicos, tais autores assumem que os diálogos compostos posteriormente devem espelhar melhor as posições de Platão ( Gill, 2011GILL, C. 2011. “O diálogo platônico”, In: FRONTEROTTA, F; BRISSON, L.(orgs.). Platão: leituras. São Paulo: Loyola, p. 53-73., p. 61). Logo, se confrontam ou criticam diálogos anteriores, estes devem ser abandonados ou vistos como tentativas imperfeitas de um gênio juvenil. Mais preocupado com a materialidade do texto do que com seus movimentos dialéticos ou pedagógicos, o desenvolvimentismo não cogita o caso de uma obra que seja composta temporalmente mais tarde, muito embora, por amor à educação e ao entendimento, deva ser apreciada mais cedo, como ocorre em certas trilogias do cinema. Sem atentar propriamente para o efeito que a leitura exerce no estudante, tal paradigma concentra-se nos dados filológicos dos Diálogos, ignora a ordenação dramática proveniente da Antiguidade e retira amplas conclusões filosóficas da suposta ordem de composição que Platão teria seguido. Ele também assume, de forma implícita, o postulado psicológico segundo o qual as pessoas tendem a abandonar suas opiniões da juventude à medida que envelhecem. Não por acaso, ele tem sofrido diversas críticas na atualidade 5 5 “It was once hoped that determining the order in which Plato composed his dialogues would permit the mapping of his philosophical development, but that approach, dominant for some 150 years, now creaks unreliably” ( Nails, 2012, p. 289). . Em que pesem as diferenças entre os intérpretes que seguem tal perspectiva, todos concordam com a ideia de revisão, de crítica, de abandono ou de aperfeiçoamento dos diálogos menores e médios, e creem Platão ter-se-ia afastado do socratismo e substituído Sócrates por Timeu, Crítias, o Estrangeiro de Eleia, Parmênides, Filebo e o Ateniense, os quais têm proeminência nos diálogos da senectude ( Gill, 2011GILL, C. 2011. “O diálogo platônico”, In: FRONTEROTTA, F; BRISSON, L.(orgs.). Platão: leituras. São Paulo: Loyola, p. 53-73., p. 67).

Por sua vez, há a saída do isolacionismo. Segundo tal perspectiva, cada diálogo cria seu próprio microcosmo no interior do Platonismo e vale por si mesmo; assim, as relações entre eles não são colocadas em questão, e o problema das contradições, do desenvolvimento ou da superação de certas teorias é pouco discutido ( Altman, 2012ALTMAN, W. H. F. 2012. Plato the teacher: the crisis of Republic. Lanham, MD: Lexington Books., p. 16). Por óbvio, essa posição enfrenta a suspeita de ignorar as conexões que o próprio Platão quis enfatizar, como é o caso da ligação entre o Lísis e o Banquete, ou da alusão à República no início do Timeu. Ela tampouco esclarece as relações entre os diálogos da trilogia do Teeteto, Sofista e Político, a qual foi intercalada por Platão, em claras alusões dramáticas, aos diálogos relativos à condenação e à morte de Sócrates ( Eutífron, Apologia, Críton e Fédon). Tal como o paradigma da ordem de composição, que separa tais diálogos por razões filológicas, ela passa por cima do que pode ter sido a intenção do autor. Embora seja difícil nomear seus adeptos, essa abordagem encontra muitos defensores na atualidade, pois se adapta a contento à forma de composição monográfica de trabalhos acadêmicos e, de resto, consegue ir a fundo em cada obra e fazer justiça à beleza, aos detalhes e aos diversos movimentos da escrita platônica.

Por fim, há ainda o paradigma das doutrinas não-escritas. Aqui, as conclusões da filologia não são abandonadas ( Altman, 2016ALTMAN, W. H. F. 2016a. The Guardians in Action: Plato the Teacher and the Post-Republic Dialogues from Timaeus to Theaetetus. Lanham, MD: Lexington Books ., p. 74); porém, as possíveis contradições entre os diálogos resolvem-se através da ideia de que a verdadeira metafisica de Platão não está na teoria das ideias e, sim, na doutrina do Uno e da Díade indefinida. Além de contradizer o Platão do período da maturidade, para quem o Uno é apenas uma hipótese da diánoia e não possui as qualidades de um fundamento, essa abordagem descreve um Platão mais próximo de Aristóteles e de Plotino, menos hostil em relação ao devir e à participação material das formas na constituição do mundo. Por esse motivo, diálogos tardios, onde certo retorno à filosofia da natureza parece estar presente, como o Filebo ou o Parmênides, costumam ter a palavra final diante da República ( Ausland, 2012AUSLAND, H. 2012. “Nineteenth Century Platonic Scholarship”. In: PRESS, G. (ed.). The Continuum Companion to Plato. London: Continuum Companions to Philosophy, p. 286-288., p. 301; Perine, 2011bPERINE, M. 2011b. “O Filebo de Platão e as doutrinas não-escritas”, Educação e Filosofia, 25(49): p. 149-171., p. 150). Não obstante os diálogos sejam compreendidos em sua profundidade dramática e filosófica, o que representa enorme ganho, no fundo recai sobre elas a suspeita de que sejam obras imperfeitas que, pelos limites impostos à forma escrita, jamais poderão expressar a doutrina de Platão. A tarefa do intérprete consiste em rastrear as indicações veladas de Platão sobre sua doutrina oral e reconstituí-la com auxílio tanto do texto platônico, quanto dos testemunhos de discípulos.

A hipóteses basanística diz algo assaz inovador sobre esse complexo problema. Ele pensa que Platão projetou conscientemente os diálogos críticos, depois da República, como formas de testes que devem dizer se o leitor compreendeu a mensagem da opus magnum de Platão. Um dos princípios de OLDP garante que a República é absolutamente central.

O quinto princípio é a absoluta centralidade da República na OLDP. Embora menos acessível àqueles que não completaram recentemente a série de diálogos que começa com o Protágoras e termina com o Clitofonte (R. 520b6-7), o livro VII da República contém a essência do Platonismo: o ensinamento de Platão constitui sua resposta à questão de Clitofonte (R. 520c1) ( Altman, 2019ALTMAN, W. H. F. 2019. “A ordem de leitura dos Diálogos de Platão”, Dissertatio, (49): p. 312-355., p. 316).

Apesar de conter passagens prolépticas e basanísticas, ela é sobretudo uma obra visionária onde Platão resolve as questões dos diálogos menores e apresenta a máxima lição sobre o Bem, sem mencionar a importantíssima distinção entre dois tipos de dialética, pela qual o Uno perde seu caráter de fundamento e se transforma numa abstração da diánoia. Logo, o que vem depois dela deve ser visto com distanciamento, máxime quando contesta suas teorias. O diálogo que lhe sucede, em termos dramáticos, é o Timeu, o qual inicia justamente com uma referência ao dia anterior e um resumo defeituoso da República ( Ti. 17c). Porém, o Timeu é no fundo crítico do dualismo que Platão defendia, sem mencionar as contradições que mantém em relação à República, como a posição das mulheres, a valorização da astronomia etc. Embora inicie seu discurso com a distinção entre ser e devir ( Ti. 27d6-28e), expressando o que seria sua opinião ( dóxa), Timeu vai aos poucos apagando essa distinção e dá à luz um cosmo algo monístico e dependente da filosofia da natureza: graças ao Demiurgo, à Alma do Mundo e ao Receptáculo, o cosmo se transforma em algo unitário ( monogens), isto é, em um “deus sensível feito à imagem do inteligível”, ou em um “céu único e singular em sua espécie” ( Ti. 92c7-9) ( Altman, 2016ALTMAN, W. H. F. 2016a. The Guardians in Action: Plato the Teacher and the Post-Republic Dialogues from Timaeus to Theaetetus. Lanham, MD: Lexington Books ., pp. 45-46). Em certo sentido, pode-se dizer que o objetivo final do diálogo é a reabilitação do devir. Assim, Altman compreende esse diálogo inteiro como o caminho da opinião que Platão, na esteira de Parmênides, projeta depois de ter revelado sua verdade ( Altman, 2012ALTMAN, W. H. F. 2012. Plato the teacher: the crisis of Republic. Lanham, MD: Lexington Books., p. 22). Tal como Parmênides, conquanto de forma mais ousada ( Altman, 2016ALTMAN, W. H. F. 2016a. The Guardians in Action: Plato the Teacher and the Post-Republic Dialogues from Timaeus to Theaetetus. Lanham, MD: Lexington Books ., p. 47), Platão inventa um discurso refinado e teoricamente exigente, mas deliberadamente falso, com o intuito de averiguar se o leitor de fato compreendeu sua verdade. Aliando-se a algumas reflexões de Cícero e à tese defendida por A. Taylor, Altman (2016ALTMAN, W. H. F. 2016a. The Guardians in Action: Plato the Teacher and the Post-Republic Dialogues from Timaeus to Theaetetus. Lanham, MD: Lexington Books ., p. 25) acredita, por conseguinte, que o Timeu não fale por Platão.

In short, by immediately following Republic with Timaeus, Plato the Teacher aims to confirm “Truth” in his puppies by using his own mastery of antilogía in order to create a deliberately antithetical discourse - pedantic, encyclopedic, and replete with problematic claims that no one in the dialogue itself will challenge - that will channel the potentially dangerous capacity of “dialectic misused” (vide R. 539b1-6) to refute the truth into the profoundly salutary task of provoking his students instead to refute its antithesis ( Altman, 2016ALTMAN, W. H. F. 2016a. The Guardians in Action: Plato the Teacher and the Post-Republic Dialogues from Timaeus to Theaetetus. Lanham, MD: Lexington Books ., p. 93, grifo do autor).

Segundo Altman, Platão nos fornece as ferramentas necessárias para perceber esse fato: além de seus ecos parmenídicos, o Timeu se segue imediatamente à República e possui um discurso que não é feito por Sócrates ( Altman, 2016ALTMAN, W. H. F. 2016a. The Guardians in Action: Plato the Teacher and the Post-Republic Dialogues from Timaeus to Theaetetus. Lanham, MD: Lexington Books ., p. 315). Destarte, o leitor que se engajar ativamente em sua leitura poderá perceber o teste criado por Platão e usar do que aprendeu na República para refutar o discurso de Timeu. Desde o início do diálogo, Platão projetou a pergunta que deve engajar o leitor na refutação de Timeu: ao começar a obra fazendo notar a ausência de uma quarta “personagem”, presente embora no dia anterior ( Ti. 17a), Platão nos obriga a fazer a mesma pergunta e a tentar encontrar quem estaria faltando no encontro entre Sócrates e os outros sábios. Platão não se oculta ao deixar o leitor sem uma resposta clara para a pergunta que levanta; ao contrário, ele se revela então como um professor que acabou de construir um diálogo inteiro com o propósito pedagógico de desafiar e testar o leitor. Dado que a sequência do texto contenha, como dito, defeituoso resumo da República, o qual parece deixar de lado especialmente as passagens relativas à transcendência, Altman sugere que a quarta personagem ausente é o próprio leitor ativo e dialético, que há pouco fazia parte da audiência da República. Tendo sido educado por essa obra e como que se tornado um guardião ele mesmo, ele deve agora enfrentar uma série de batalhas para defender a verdade aprendida diante de testes cada vez mais difíceis, persuasivos e bem elaborados.

The point I want to emphasize is: this is not my question, but Plato’s. Plato has deliberately posed the question of the “Absent Fourth” to everyone who tries to read and understand Timaeus, and my claim is that it is best understood as a puzzle deliberately constructed for a pedagogical purpose. It is therefore the elusive Plato who poses this question, not his Socrates, not Timaeus, and not I. By this mysterious opening, Plato might be thought to make himself more elusive, but this is really a misconception: Plato reveals himself here. More specifically, Plato has revealed himself as a teacher who has deliberately provoked us, his readers and students, to raise this question, and then to search for his hidden answer, and he has placed this mystery at the threshold of his Timaeus for a pedagogical reason ( Altman, 2016ALTMAN, W. H. F. 2016a. The Guardians in Action: Plato the Teacher and the Post-Republic Dialogues from Timaeus to Theaetetus. Lanham, MD: Lexington Books ., p. 1, grifos do autor).

A resposta dessa hipótese para o problema da crítica à teoria das ideias presentes nos diálogos tardios, portanto, é original e instigante. Ela admite que certos diálogos critiquem os diálogos intermediários onde Platão teria revelado sua verdade, a começar pelo Timeu. Porém, ela afirma que o próprio Platão idealizou tais críticas para ver se seus leitores permaneceriam fiéis à verdade revelada na República e, mais do que isso, para ver se seriam capazes de discutir com o texto e refutar suas flagrantes mentiras. O lugar em que Platão teria dito isso de forma explícita, para Altman, é o que ele chama de hino de batalha da República, acima mencionado.

Ora não é também da mesma maneira relativamente ao bem? Quem não for capaz de definir com palavras a ideia do bem, separando-a de todas as outras, e, como se estivesse numa batalha, exaurindo todas as refutações, esforçando-se por dar provas, não através do que parece, mas através do que é, avançar através de todas essas objeções com uma raciocínio infalível - não dirás que uma pessoa nestas condições não conhece o bem em si, nem qualquer outro bem, mas, se acaso toma contato com alguma imagem, é pela opinião, e não pela ciência que agarra nela, e que a sua vida atual a passa a sonhar e a dormir, pois, antes de despertar dela aqui, primeiro descerá ao Hades para lá cair num sono completo? (R. 534b9-d1, Rocha Pereira).

Trata-se da mais pura essência da pedagogia basanística e de uma estratégia digna de um grande professor: depois de revelar e ensinar a verdade, apresenta-se ao aluno um teste extremamente difícil, o qual, contrariando as lições recém-aprendidas, obriga o aluno a rejeitar a postura passiva diante do texto, engajar-se com ele e refutá-lo dialeticamente.

It is basanistic pedagogy that offers a way to begin thinking about how to achieve this integration. When one of Plato’s characters says something false, the reader who recognizes that falsehood ipso facto becomes engaged in a dialogue with Plato: basanistic pedagogy creates and intended to create extratextual dialogue. And the reason why basanistic passages multiply after Republic - the reason, for example, that Plato wrote Timaeus - is that he is now taught you what he regards as the truth. In accordance with the Battle Hymn, post-Republic falsehood will contradict the Idea of the Good - and all that follows from, prepares for, or depends on it - and if there were such a thing as a paradigmatic basanistic passage, it would contradict the “crisis of the Republic” [scil. a decisão de retornar à caverna] ( Altman, 2016ALTMAN, W. H. F. 2016a. The Guardians in Action: Plato the Teacher and the Post-Republic Dialogues from Timaeus to Theaetetus. Lanham, MD: Lexington Books ., p. 390).

A resposta de Altman a todos os que dizem, movidos por diferentes razões, que Platão abandonou suas doutrinas mais caras do período intermediário, pois, é uma e a mesma: tais leitores falharam nos testes intencionalmente projetados por Platão, porque não responderam aos desafios do texto e, como consequência, abdicaram da fidelidade à transcendência do Bem.

In terms of reading order - i.e., a question they entirely ignore - a number of prominent modern philosophers (to say nothing of Plato scholars) have fallen prey to the basanistic dialogues, just as Plato knew that many students would. They have forgotten the eternal lesson of the Socrates who both said and practiced the immortal katébēn (scil. o retorno à caverna), thereby passing along the truly Platonic torch: the eidos of Justice ( Altman, 2012ALTMAN, W. H. F. 2012. Plato the teacher: the crisis of Republic. Lanham, MD: Lexington Books., p. 345).

Logo, a hipótese basanística realiza uma guinada ao mesmo tempo pedagógica e hermenêutica. Ao invés de ancorar-se na filologia ou nas supostas doutrinas orais de Platão, ela se arrima no processo de educação do leitor, o qual é revelado ao longo de uma ordem de leitura em que ele passa por diversos momentos: é ensinado sobre os fundamentos do Platonismo; é repetidamente exposto ao falso e testado; é encaminhado à revelação da verdade e outra vez examinado, a fim de que fique claro se entendeu as máximas lições de Platão. Se as primeiras escolas mencionadas acima são centradas na coerência doutrinal do texto, seja escrito ou oral, a hipótese de Altman é centrada no leitor e em sua reação à admirável e divertida ordem pedagógica criada por Platão. Com isso, Altman mantém o unitarismo de Paul Shorey, porém explica as divergências entre os diálogos como estratégias urdidas pelo próprio Platão

4 Algumas vantagens da hipótese basanística.

Altman julga que a elucidação do elemento basanístico é sua maior contribuição aos Studia Platonica ( Altman, 2012ALTMAN, W. H. F. 2012. Plato the teacher: the crisis of Republic. Lanham, MD: Lexington Books., p. 22). Com efeito, sua capacidade de nomear uma ferramenta dialético-pedagógico dos Diálogos de forma clara e consistente, conectando-a a outros elementos não menos importantes, deveria ser imediatamente reconhecida. Trata-se de um dado hermenêutico que pode ser usado por diferentes escolas. Pode haver divergência quanto aos intentos de Platão: se ele visa efetivamente nos ensinar, ou se está apenas a variar ideias livremente, a escrever belas obras literário-filosóficas em uma espécie de brincadeira etc. Entretanto, é inegável que, em diversas ocasiões, ele provoque e teste seu leitor. A percepção mais básica disso está no fato de que Sócrates conversa diretamente com uma pessoa; noutras palavras, o diálogo exige por natureza que a subjetividade do interlocutor seja imediata e constantemente requisitada, e Platão descreve o efeito de Sócrates como um tipo de teste ( Lach. 188b4-6, ypò Sȏ krátous basanízesthai). Isso é muito diferente dos longos discursos retóricos que se dirigem a um vasto público. Embora possam ser pedagogicamente úteis em certos contextos - no Mênon (76d6-e9), v.g., é um discurso talhado conforme o interlocutor de Sócrates que o abre à dialética - Sócrates os evita em prol da educação de seu interlocutor, deixando de lado o transe circunstancial provocado por palavras eloquentes. A essência do diálogo é a atenção que um interlocutor deve prestar no outro; a conversa desenvolve-se entre duas pessoas e, por conseguinte, é salutar testar se o outro realmente entendeu aquilo que se pretendia dizer. Em uma obra que tem por fito estabelecer contato íntimo com seu leitor, fazendo com que o texto viceje em sua alma, Platão deve ter percebido isso. Em suma, a escolha do diálogo como meio de expressão não é algo casual, porém parte da mais íntima reflexão sobre os fundamentos, os efeitos e a finalidade da filosofia platônica.

Isso dito, a principal vantagem do elemento basanístico é ressaltar a conexão que os diálogos criam com o leitor. Inventando obras que interagem com quem as lê, Platão quebra o mutismo do texto escrito e torna a filosofia uma experiência viva que, como um organismo, cresce e se desenvolve na alma do leitor.

In testing student’s grasp of the truth by denying it, basanistic pedagogy creates a living dialogue between the reader and the merely written text, and leads to a new kind of writing about things just, beautiful, and good, necessarily imprinted in the student’s soul (Phd. 278a2-5) ( Altman, 2016ALTMAN, W. H. F. 2016a. The Guardians in Action: Plato the Teacher and the Post-Republic Dialogues from Timaeus to Theaetetus. Lanham, MD: Lexington Books ., p. 172-3, grifos do autor)

A filosofia é entendida como uma experiência de vida revelada através de uma intertextualidade fantástica que permite ao leitor não apenas pôr-se em jogo e aplicar os problemas dos diálogos à sua experiência, como também romper os limites históricos que se interpõem ele e o texto. Altman parece ter razão ao afirmar que Platão tinha isso em mente quando disse que a filosofia não está propriamente no texto, mas na faísca de entendimento que a árdua interpretação do escrito provoca no leitor. Isso faz com que ele concorde, quiçá ironicamente, com a tese de Tubinga- Milão, pois admite que a verdade do platonismo não esteja no texto escrito. Porém, ele discorda que ela esteja em uma doutrina oral fragmentária e aristotelizante; ao contrário, ela deve ser encontrada na conversa que um texto dinâmico e interativo suscita em seus múltiplos leitores ( Altman, 2016ALTMAN, W. H. F. 2016a. The Guardians in Action: Plato the Teacher and the Post-Republic Dialogues from Timaeus to Theaetetus. Lanham, MD: Lexington Books ., xxiii). Desnecessário dizer que, ao assumir tal posição, Altman aceita que Platão faça uso consciente de falácias. Como professor, Platão pode mentir e dar argumentos falaciosos, como o Hípias Menor inteiro 6 6 Para um estudo minucioso do Hípias Menor, que se vale da metodologia de Altman, conferir Baratieri, 2022, p. 146-218. , pois confia em uma interpretação dialética e combativa de seus leitores, não na recepção passiva do texto do mestre.

Em segundo lugar, o elemento basanístico ressalta a veia profundamente pedagógica do platonismo. Embora de há muito se diga que Platão foi um professor, Altman parte desse fato em sua interpretação e retira dele consequências admiráveis. Por exemplo, ele enfatiza que os Diálogos devem ter servido de currículo aos estudantes da Academia, e que Platão era um professor generoso, algo zombeteiro e amante da juventude, tendo composto uma série de obras divertidas e provocativas para educar uma geração de jovens ameaçada por doutrinas perigosas ( Altman, 2020ALTMAN, W. H. F. 2020. Ascent to the Beautiful: Plato the Teacher and the Pre-Republic Dialogues from Protagoras to Symposium. Lanham, MD: Lexington Books ., p. 484). Assim, se lidas em determinada ordem, essas obras educam o leitor por meio da resolução de problemas que elas mesmas aventam, além de mantê-lo entretido com uma história em que os principais temas de interesse da juventude são discutidos: amor, poesia, guerra, vinho, educação, virtude, ginástica, debates intelectuais etc. A esse respeito, a figura de Alcibíades é paradigmática. Para Altman (2020ALTMAN, W. H. F. 2020. Ascent to the Beautiful: Plato the Teacher and the Pre-Republic Dialogues from Protagoras to Symposium. Lanham, MD: Lexington Books ., p. 189), Platão utiliza a controversa relação entre o efebo e Sócrates para suscitar a atenção de seus jovens leitores e mantê-los atento à história que os Diálogos contam. Desde o encontro inicial entre o filósofo e o objeto de sua eterna caça, o belo Alcibíades, até a pungente e algo cômica revelação dos pormenores da relação de ambos no Banquete, Platão faz com que o leitor adolescente se pergunte, como é típico em sua idade, se Sócrates estava, de fato, tendo relações sexuais com Alcibíades. Desse modo, a fim de descobri-lo, esse leitor avança na leitura das obras e vê o elogio de Sócrates no Banquete como o cume de uma história que o interessara desde o início da OLDP, no Protágoras, primeiro diálogo a ser lido.

Em terceiro lugar, a hipótese basanística e a OLDP, sendo unitaristas, são simpáticas à totalidade do Corpus Platonicum e restauram a importância e o sentido de diálogos excisados pela crítica de autenticidade da filologia ( Echtheitskritik). Admitindo que todos os diálogos mencionados por Trásilo e transmitidos pela tradição são autênticos (35 diálogos e 13 cartas), Altman encontra lugar para pequenas obras-primas de introdução à filosofia, como o Amatores e o Teages ( Altman, 2019ALTMAN, W. H. F. 2019. “A ordem de leitura dos Diálogos de Platão”, Dissertatio, (49): p. 312-355., p. 315). Ele mostra com sucesso que, quando interpostos entre outras obras, esses diálogos amiúde desprezados possuem sentido pleno e foram escritos tal como são por Platão, o qual, nunca é demais recordar, tinha em sua academia alunos jovens que careciam de lições elementares de filosofia. Assim, o leitor não precisa recorrer aos difíceis cálculos da filologia para saber o que Platão escreveu; o próprio enigma de tentar ordenar os Diálogos, levando em conta sua dramaturgia e sua progressão pedagógica, é suficiente para educá-lo e divertir.

Em quarto lugar, a consequência metafísica mais importante é que, alijando-se do sono dogmático do desenvolvimentismo, Platão ressurge como platônico, isto é, como o Platão dualista dos diálogos intermediários. Altman restaura assim o Platão antigo, em clara contraposição com Aristóteles, e defende sua fidelidade irrestrita à separação entre sensível e inteligível ( Altman, 2012ALTMAN, W. H. F. 2012. Plato the teacher: the crisis of Republic. Lanham, MD: Lexington Books., p. 19). Para ele, uma das razões por que Platão foi tão mal interpretado ao longo da história, pois, é justamente o fato de ter sido lido por eruditos simpatizantes de Aristóteles, os quais estavam sempre ansiosos para ver Platão renegar o dualismo e transformar-se na versão imperfeita do próprio discípulo, o qual, então, daria as respostas finais da filosofia clássica via aperfeiçoamento do platonismo. Para Altman, ao contrário, Aristóteles falhou nos diversos testes que Platão desenhou e decidiu conscientemente recusar o dualismo de seu mestre ( Altman, 2020ALTMAN, W. H. F. 2020. Ascent to the Beautiful: Plato the Teacher and the Pre-Republic Dialogues from Protagoras to Symposium. Lanham, MD: Lexington Books ., p. 244).

Em quinto lugar, a união da noção de teste com a atenção dedicada à dramaturgia, atenção que evidencia a dívida de Altman com Leo Strauss e seus discípulos, permite identificar personagens que não falam por Platão. Noutras palavras, Altman leva a sério o fato de que Platão deu voz a antagonistas e “vilões” filosóficos que, em seus discursos minuciosamente elaborados, podem até desencaminhar os alunos. Mesmo em leituras que aceitam a importância do viés dramático, esse ponto nem sempre é reconhecido. Em geral, tem vigorado na leitura dos Diálogos uma tese velada que, quando questionada, é incapaz de esconder sua ingenuidade: crê-se que a personagem que tiver maior número de linhas, ou que conduzir o diálogo, represente o pensamento de Platão. Portanto, o Estrangeiro de Eleia, Timeu e o Ateniense, v.g., seriam os porta-vozes do Platonismo.

Porém, essa tese é ingênua por vários motivos. Além de desconsiderar que, em sua polifonia, Platão deu voz a eloquentes adversários, como Cálicles e Trasímaco, ela aceita passivamente o fato de que a personagem que conduziu a maioria dos Diálogos e foi retratada como um modelo moral e herói mítico, Sócrates, seja substituída por “ilustres desconhecidos”. Tome-se, por exemplo, o tríptico Teeteto, Sofista e Político. Nas leituras convencionais, o Estrangeiro de Eleia, por assumir as rédeas da discussão, expressa a doutrina de Platão, ou seja, Platão calaria Sócrates para deixar falar um desconhecido. Isso acontece porque as considerações do Estrangeiro têm maior número de linhas e ele conduz a discussão, não obstante suas teses sejam contrárias aos amigos das formas. Altman (2016bALTMAN, W. H. F. 2016b. The Guardians on Trial: The Reading Order of Plato’s Dialogues from Eutyphro to Phaedo. Lanham, MD: Lexington Books ., cap. 2) apresenta várias razões plausíveis para ver o Sofista como outro teste; sobretudo, o fato de estar próximo do Eutífron e da Apologia. Na OLDP, Sócrates mantém a centralidade até o último diálogo ( Fédon), quando sua morte encerra a história que Platão vinha nos contando; ele canta seu canto profético de cisne e reafirma as verdades da República 7 7 Isso não quer dizer, naturalmente, que o próprio Sócrates sempre diga a verdade. A análise da República acima evidenciou que até mesmo o mestre de Platão profere mentiras basanísticas que devem ser detectadas pelo leitor; o Hípias Menor inteiro é outro exemplo. . Assim, partindo do núcleo visionário do Platonismo, a hipótese basanística mostra que Platão criou personagens sedutoras e persuasivas, as quais, entretanto, representam deformações de seu pensamento e devem ser rejeitadas pelos estudantes. Isso é uma vantagem porque incentiva uma leitura dialética por parte do estudante e não menoscaba a inventividade literária de Platão, como se ele fora incapaz de retratar seus adversários com ousadia e argúcia.

Cabe dizer ainda uma palavra sobre o uso da ironia e sua relação com o elemento basanístico. De algum modo, Platão só poderia manter Sócrates e a Atenas de seu tempo vivos, diante de leitores que os sabiam mortos, usando constantemente da ironia que aprendera de seu mestre. A hipótese basanística tem os elementos de oralidade, de contato vivo e de desconfiança em relação à comunicação direta que também vigoravam ironia de Sócrates. Acreditando que é pedagogicamente melhor que o aluno aprenda por si mesmo, ela não comunica o saber sem uma boa dose de brincadeira, de teste e de provocação. Tal como Sócrates, ela confronta o leitor e o incita a achar suas próprias respostas. Assim, a restauração do período intermediário como verdadeira doutrina de Platão resgata igualmente a personagem que, assumindo inúmeras facetas (curandeiro, soldado, médico, sofista, amante, ginasta, poeta etc.), dirige esses diálogos. Em suma, a hipótese basanística é fiel ao legado de Sócrates e mostra como Platão nunca se distanciou de seu mestre.

5 Alguns problemas da hipótese basanística.

O principal problema da hipótese basanística está no fato de que nenhuma fonte antiga a reivindicou. Ou seja, Altman é vox clamantis in deserto. Embora isso pareça ser um grande problema, cabe lembrar que os autores antigos tampouco citam o desenvolvimentismo: Aristóteles, v.g., assume posição incomodamente unitarista, e nada diz do suposto abandono de teorias por parte de seu mestre. Inclusive, ele também levanta sérios empecilhos para a crítica filológica, ao garantir a autenticidade do Hípias Menor, um diálogo muitas vezes tido por inautêntico. Nesse quesito, apenas a escola de Tubinga-Milão possui algum respaldo em autores antigos, já que a existência de uma doutrina oral é mencionada por Aristóteles e Aristóxeno, por exemplo. Porém, o autor moderno pode perguntar-se, contra a visão de Altman, por que Aristóteles nunca teria chamado a atenção dos leitores de Platão para o fato de que seu mestre era dado a brincadeiras e testes pedagógicos. Será que isso era tão evidente para época, que Aristóteles nem se dignou a mencioná-lo? Ou será que, à inversa, Aristóteles jamais o percebeu, mesmo depois estudar por vinte anos na Academia? Essas perguntas são incômodas para Altman. No primeiro caso, é difícil supor que nenhuma fonte antiga jamais mencionaria o elemento basanístico dos Diálogos, especialmente no tempo em que eles se tinham tornado objeto de intensa interpretação. No segundo, é também fazer pouco caso da inteligência de Aristóteles, ou mesmo da capacidade de Platão de revelar o sentido primordial de sua obra. A resposta de Altman, como dito acima, consiste em afirmar que Aristóteles recusou conscientemente o Platonismo: ele falhou nos inúmeros testes projetados por Platão e se recusou a fazer a travessia para o dualismo a que os diálogos da juventude conduziam ( Altman, 2020ALTMAN, W. H. F. 2020. Ascent to the Beautiful: Plato the Teacher and the Pre-Republic Dialogues from Protagoras to Symposium. Lanham, MD: Lexington Books ., p. 244).

Ademais, Altman pressupõe certa onisciência de Platão como autor, o que pode incomodar os leitores contemporâneos acostumados à crítica literária da autoria. Para ele, Platão deve ter tido consciência completa de sua obra em algum momento, trabalhando nos diálogos não publicados para que, através de emendas, revisões e modificações, eles criassem a ordem de leitura capaz de ser percebida pelo leitor. Um testemunho de Dionísio de Halicarnasso ( Comp. 1. 6HALICARNASSUS, D. 1985. Critical Essays. Vol. II. Loeb Classical Library.) dá a entender, com efeito, que Platão trabalhou em seus Diálogos ao longo de sua vida e não os publicou de forma acabada. Logo, pode-se supor que ele tenha modificado obras compostas na juventude, depois de muito tempo, para que fizessem referência a obras posteriores ( Altman, 2019ALTMAN, W. H. F. 2019. “A ordem de leitura dos Diálogos de Platão”, Dissertatio, (49): p. 312-355., p. 337) 8 8 A esse respeito, Ferrari (2022, p. 16) lembra a possível existência de dois prólogos do Teeteto. . Porém, isso ainda não explica quando ele teria chegado à consciência completa da obra que pretendia criar. Às vezes, parece que é preciso supor demasiado como teria sido a personalidade de Platão, o que infelizmente não está ao alcance de nenhum intérprete, por mais criativa que seja sua imaginação.

6 Conclusão

A maior lição que o Platonismo ensina, quando se trata de interpretar um texto, é que a brincadeira, o jogo e a ironia são elementos de leitura indispensáveis e devem aliar-se ao engajamento ativo por parte do leitor. Os Diálogos não são tratados estanques que dizem sempre a mesma coisa e não se podem defender. Como enfatizado, eles são organismos vivos que florescem no interior dos leitores e, assim, renovam seu próprio horizonte. A forma mais simples de percebê-lo consiste em relê-los: depois de um tempo dedicado ao pensamento e à leitura da bibliografia secundária, o diálogo nos parece novo. Se a escola de Tubinga-Milão pensasse nesse dado elementar, talvez visse o que há de basanístico na crítica à escrita 9 9 “The simple answer to the famous critique of writing in Phaedrus - i.e., to those scholars who take that critique to express its author’s own view - is a question: “Have you ever taught a dialogue of Plato the same way twice?” What makes reading Plato so much fun - and I would suggest that it is just this kind of “fun” that underwrites the notion that the best writing is a “play” - is that we find something new there each time we do. It is therefore simply not true, at least where one of Plato’s own writings are concerned, that “it signifies one thing only, always the same ( Phdr. 275d9)” ( Altman, 2016, p. 189). Esse é um clássico exemplo de uma provocação basanística, cujo caráter de teste (e de brincadeira) foi obscurecido pela seriedade de Tubinga-Milão. Talvez o principal problema dessa escola consista em tomar literalmente uma ou duas passagens dos Diálogos, referentes à crítica à escrita, para depois asseverar que os Diálogos não devem ser lidos literalmente, uma vez que a real doutrina de Platão não esteja neles, mas no registro oral. .

Sobretudo por esse motivo, quer me parecer que a hipótese basanística possui mais qualidades do que problemas e deveria ser apreciada e discutida pelos intérpretes. Por um lado, não é necessário aceitar os demais corolários das teses de Altman para ver que Platão testa seus leitores; o elemento basanístico pode receber versão mais suave, em que se compararia à estratégia de retenção de saber ( Aussparungsstellen) admitida por Tubinga-Milão ( Szlezák, 1993SZLEZÁK, T. 1993. Platon lesen. Frommann-Holzboog., p. 93). Por outro lado, a hipótese é indissociável da OLDP e torna o leitor mais receptivo à imagem que Altman pinta de Platão, depois interpretar todos os seus diálogos e cartas: a imagem de um professor algo brincalhão, imbuído do legado de Sócrates, consciente da imperfeição do mundo empírico e, ao mesmo tempo, grego o bastante para encorajar seus alunos a retornarem à caverna e batalharem pelo Bem, mesmo que à custa da própria vida. Vistos sob tal ótica, autores posteriores, como Demóstenes, Cícero e Quíon de Heracleia, dão verossimilhança ao retrato imaginado por AltmanALTMAN, W. H. F. 2018a. Ascent to the Good: The Reading Order of Plato’s Dialogues from Symposium to Republic. Lanham, MD: Lexington Books . ( Altman, 2018bALTMAN, W. H. F. 2018b. The Revival of Platonism in Cicero’s Late Philosophy: Plato’s aemulus and the Invention of Cicero. Lanham, MD: Lexington Books .; 2023ALTMAN, W. H. F. 2023. Plato and Demosthenes: Recovering the Old Academy. Lanham, MD: Lexington Books .).

Assim, se é impossível chegar a uma prova cabal de sua abordagem, pelo menos ela deve servir como um paradigma original que tem sua função básica reconhecida, a saber, desafiar o paradigma dominante, apontar seus problemas e tornar patentes suas pressuposições. Ela nos faz desconfiar da suposta emancipação do socratismo vivida por Platão, por exemplo, ao criar uma personagem com amplo interesse no mundo físico, que descreve com minúcias o corpo humano e que cria em seu discurso verossímil um cosmo similar à filosofia pré-socrática, cuja metodologia foi rejeitada por Sócrates em seu leito de morte ( Altman, 2016ALTMAN, W. H. F. 2016a. The Guardians in Action: Plato the Teacher and the Post-Republic Dialogues from Timaeus to Theaetetus. Lanham, MD: Lexington Books ., p. 111). Esse é precisamente o sentido da revolução científica de Kuhn: num cenário de crise, em que anomalias assombram os paradigmas dominantes, é mister lançar mão de procedimentos extraordinários para abrir novos horizontes e conduzir as pesquisas a uma solução ( Kuhn, 2013KUHN, T. 2013. A estrutura das revoluções científicas.12ª edição. São Paulo: Perspectiva., p. 175). Não obstante seja complicado aplicar a dinâmica da teoria de Kuhn à história da filosofia, não é precipitado concluir que modificações fulcrais em nosso modo de ver uma questão ou autor devem advir de hipóteses ousadas e bem fundamentadas, ainda quando vistas com suspeita pela opinião corrente. A hipótese basanística cumpre perfeitamente esse papel revolucionário e provocador 10 10 Algumas reflexões deste artigo foram apresentadas, sob forma de palestra, no XIV Simpósio Internacional da Sociedade Brasileira de Platonistas, organizado pelos professores Renato Matoso e Irley Franco, ambos da PUC-Rio. Gostaria aqui de agradecer publicamente ao gentil convite e aos comentários e críticas que recebi dos/das colegas. Em especial, agradeço ao prof. Anastácio Borges de Araújo Júnior (UFPE) por mencionar a anedota que vai como epígrafe. .

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  • 1
    Para um panorama das obras do autor: Engler, 2013ENGLER, M. R. Resenha de ALTMAN, W. H. F. Plato the teacher: the crisis of Republic. Lanham, MD: Lexington Books , 2012, Hypnos, (30): p. 139-146. ; Idem, 2019ENGLER, M. R. 2019. Rezension von ALTMAN, W. H. F. (2016). The Guardians in Action: Plato the Teacher and the Post-Republic Dialogues from Timaeus to Theaetetus. Lanham, Lexington Books, Archai, (27): p. 1-10.; Idem, 2022ENGLER, M. R. 2022. Review of Ascent to the Beautiful: Plato the Teacher and the Pre-Republic Dialogues from Protagoras to Symposium. Lanham, MD: Lexington Books , 2020, Plato Journal, p. 117-122..
  • 2
    Utilizo aqui a tradução de 2019.
  • 3
    Note-se que, na visão de Reale, Platão também submetia os estudantes a uma prova/experiência ( peîra) ( Carta VII, 340b-341b4), a qual consistia em lhes descortinar as dificuldades da vida filosófica e ver quais deles se sentiam aptos a continuar com os estudos.
  • 4
    Para a análise da mesma passagem da República: Altman, 2012ALTMAN, W. H. F. 2012. Plato the teacher: the crisis of Republic. Lanham, MD: Lexington Books., p. 90.
  • 5
    “It was once hoped that determining the order in which Plato composed his dialogues would permit the mapping of his philosophical development, but that approach, dominant for some 150 years, now creaks unreliably” ( Nails, 2012NAILS, D. 2012. “Compositional Chronology ”. In: PRESS, G. (ed.). The Continuum Companion to Plato. London: Continuum Companions to Philosophy , p. 289-292., p. 289).
  • 6
    Para um estudo minucioso do Hípias Menor, que se vale da metodologia de Altman, conferir Baratieri, 2022BARATIERI, P. L. 2022. Da ambição à música: o erro como caminho à perfeição no Banquete de Platão. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Orientador: Prof. Dr. Admar Costa., p. 146-218.
  • 7
    Isso não quer dizer, naturalmente, que o próprio Sócrates sempre diga a verdade. A análise da República acima evidenciou que até mesmo o mestre de Platão profere mentiras basanísticas que devem ser detectadas pelo leitor; o Hípias Menor inteiro é outro exemplo.
  • 8
    A esse respeito, Ferrari (2022FERRARI, F. 2022. Introdução a Platão. São Paulo, Paulus. , p. 16) lembra a possível existência de dois prólogos do Teeteto.
  • 9
    “The simple answer to the famous critique of writing in Phaedrus - i.e., to those scholars who take that critique to express its author’s own view - is a question: “Have you ever taught a dialogue of Plato the same way twice?” What makes reading Plato so much fun - and I would suggest that it is just this kind of “fun” that underwrites the notion that the best writing is a “play” - is that we find something new there each time we do. It is therefore simply not true, at least where one of Plato’s own writings are concerned, that “it signifies one thing only, always the same ( Phdr. 275d9)” ( Altman, 2016ALTMAN, W. H. F. 2016b. The Guardians on Trial: The Reading Order of Plato’s Dialogues from Eutyphro to Phaedo. Lanham, MD: Lexington Books ., p. 189). Esse é um clássico exemplo de uma provocação basanística, cujo caráter de teste (e de brincadeira) foi obscurecido pela seriedade de Tubinga-Milão. Talvez o principal problema dessa escola consista em tomar literalmente uma ou duas passagens dos Diálogos, referentes à crítica à escrita, para depois asseverar que os Diálogos não devem ser lidos literalmente, uma vez que a real doutrina de Platão não esteja neles, mas no registro oral.
  • 10
    Algumas reflexões deste artigo foram apresentadas, sob forma de palestra, no XIV Simpósio Internacional da Sociedade Brasileira de Platonistas, organizado pelos professores Renato Matoso e Irley Franco, ambos da PUC-Rio. Gostaria aqui de agradecer publicamente ao gentil convite e aos comentários e críticas que recebi dos/das colegas. Em especial, agradeço ao prof. Anastácio Borges de Araújo Júnior (UFPE) por mencionar a anedota que vai como epígrafe.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2023
  • Aceito
    19 Fev 2024
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