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O Senso de Justiça em John Rawls1 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

“The Sense of Justice”, publicado inicialmente em 1963 na revista estadunidense The Philosophical Review, está presente também na coletânea Collect Papers, publicada em 1999RAWLS, J. 1999. Collected Papers. Samuel Freeman (org). Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press., com os principais artigos de John Rawls (1921-2002) sobre o problema que orientou seu percurso intelectual, a saber: a natureza e a possibilidade de realização da justiça. RawlsRAWLS, J. 2013. El sentido de la justicia. In: RAWLS, J. Justicia como equidad - materiales para una teoria de la justicia. Tradução de Miguel Ángel Rodilla. 3. ed. Madrid, Editorial Tecnos. apresentou uma versão preliminar desse texto em maio de 1961, no encontro da APA (American Philosophical Association) com o título “The Sense of Justice: Moral Feelings & Natural Attitudes”.2 2 Conferir Bok (2017, p. 284, n. 51) e Gališanka (2019, p. 233, n. 45). Muitos dos argumentos apresentados no texto ora traduzido foram aprofundados e incorporados à seções do Capítulo VIII do livro A Theory of Justice, publicado em 1971, como é o caso, por exemplo, dos três estágios do desenvolvimento moral que, neste artigo são formulados como culpa em relação à autoridade, culpa em relação à associação e culpa em relação a princípios.

Um dos aspectos importantes deste texto é que ele aponta para uma base natural da teoria da justiça, na medida em que defende que os sentimentos morais, em especial o senso de justiça, possuem uma conexão lógica com os sentimentos naturais, e estes, por sua vez, formam-se a partir de um desenvolvimento natural de nossas atitudes e afeições naturais primitivas. O objetivo de RawlsRAWLS, J. 2008. Uma Teoria da Justiça. Edição revista. Tradução de Jussara Simões. Revisão técnica da tradução de Álvaro de Vita 3.ed. São Paulo, Martins Fontes. é apresentar a moralidade como um fenômeno natural, vinculada de tal forma com nossa humanidade, que a ausência de nossa sensibilidade moral implicaria em uma desfiguração de nós mesmos. Em A Theory of JusticeRAWLS, J. 1971. A Theory of Justice. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press . a psicologia moral passa a ter papel fundamental na escolha dos princípios de justiça, na medida em que o senso de justiça engendrado nas pessoas que crescem sob instituições por ele orientadas, deve ser tal que gere nelas o desejo de seguir apoiando as instituições justas. A escolha da concepção de justiça na posição original não estará completa até que a psicologia moral, que agora faz parte do argumento da estabilidade, seja levada em conta.

Ainda que eu considere muito importante que utilizemos uma linguagem inclusiva de gênero na nossa produção e comunicação cotidiana e acadêmica (acompanhada, claro, de outras ações para a inclusão), optei por traduzir as ocorrências do termo “man/men” por “homem/homens” na medida em que aponta para a tensão e diferença que há na teoria do filósofo (e que ficará mais explícita com a publicação, em 1993, do Political LiberalismRAWLS, J. 2005. Political Liberalism. Expanded Edition. New York, Columbia University Press.) entre a psicologia moral dos seres humanos em geral e a psicologia moral de cidadãos razoáveis.

Referências

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    » https://www.jstor.org/stable/90002030
  • GALIŠANKA, A. 2019. John Rawls: The Path to a Theory of Justice Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press.
  • RAWLS, J. 1971. A Theory of Justice Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press .
  • RAWLS, J. 1999. Collected Papers Samuel Freeman (org). Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press.
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  • RAWLS, J. 1963. The Sense of Justice.The Philosophical Review, 72(3): 281-305. Disponível em: <https://doi.org/10.2307/2183165>
    » https://doi.org/10.2307/2183165
  • RAWLS, J. 2008. Uma Teoria da Justiça. Edição revista Tradução de Jussara Simões. Revisão técnica da tradução de Álvaro de Vita 3.ed. São Paulo, Martins Fontes.
  • 2
    Conferir Bok (2017BOK, P. M. 2017. ‘The Latest Invasion from Britain’: Young Rawls and His Community of American Ethical Theorists. Journal of the History of Ideas, 78(2): 275-85. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/90002030.>
    https://www.jstor.org/stable/90002030...
    , p. 284, n. 51) e Gališanka (2019GALIŠANKA, A. 2019. John Rawls: The Path to a Theory of Justice. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press., p. 233, n. 45).
  • 1
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
  • 3
    Livro IV, a parte inicial. Na edição Everyman (London, 1911), ver pp. 172-215, em particular pp. 196, 215. Ver também Emile, traduzido por Allan Bloom (New York: Basic Books, 1979), pp. 211-253, em particular pp. 235, 253.
  • 4
    Para uma tentativa de lançar as bases para tal análise, conferir meu artigo “Justice as Fairness”, Philosophical Review, LXVII (1958), 164-194. Começo esta seção esboçando as partes de referido artigo que são necessárias na discussão a seguir.
  • 5
    Tentei mostrar isso no ensaio “Constitutional Liberty and the Concept of Justice”, Nomos, vol. VI.
  • 6
    Como um caso típico do que a justiça exige em casos particulares, pode-se assumir o dever prima facie do jogo limpo (fair play). Se os participantes em uma instituição (ou prática) aceitam suas regras como justas ou equitativas e, portanto, não têm queixa a apresentar contra ela, surge o dever prima facie das partes umas para com as outras de agirem de acordo com as regras quando lhes incumbir cumpri-las. Quando um número qualquer de pessoas envolvem-se em uma instituição ou orientam um empreendimento conjunto de acordo com regras, restringindo assim a sua liberdade, os que se submeteram a essas restrições, quando exigido, têm direito a uma aquiescência semelhante daqueles que se beneficiaram por sua submissão. Essas condições são obtidas se uma instituição for corretamente reconhecida como justa ou equitativa, pois neste caso todos os participantes se beneficiam dela. Assim, um trapaceiro que não paga impostos viola um dever de jogar limpo: ele aceita os benefícios do governo, mas não fará sua parte em liberar recursos para ele. Para a definição deste dever prima facie, estou em dívida com H. L. A. Hart. Ver seu artigo, “Are There Any Natural Rights?” Philosophical Review, LXIV (1955), pp. 185-186.
  • 7
    Esta construção baseia-se na obra de Jean Piaget, The Moral Judgement of the Child (London, 1932). Ela segue as linhas principais da explicação do desenvolvimento do senso de justiça e incorpora sua (de Piaget) distinção entre a moralidade da autoridade e a moralidade do respeito mútuo
  • 8
    Na seção VI, discutirei brevemente algumas das características definidoras dos sentimentos morais, mas não proponho uma definição formal desses sentimentos. Para efeitos do argumento basta considerá-los como dados por enumeração; e, portanto, como sendo, por exemplo, sentimentos de culpa e remorso, ressentimento e indignação, e certas formas de vergonha e desgosto.
  • 9
    As atitudes naturais também podem ser tomadas como dadas por enumeração e, portanto, como sendo, por exemplo, amor e carinho, fé e confiança mútua. Quando se afirma, então, que o afeto, digamos, implica estar exposto a sentimentos de culpa, essa reivindicação depende dos conceitos de afeto e sentimentos de culpa. Não se requer uma definição de uma atitude natural e de um sentimento moral.
  • 10
    A formulação desta lei psicológica é extraída do Emílio de Rousseau (ver p. 174). Rousseau diz que, enquanto amamos desde o início aquilo que contribui para nossa preservação, esse apego é completamente inconsciente e instintivo. O que transforma esse amor instintivo pelos outros em amor é sua “evidente intenção de nos ajudar”.
  • 11
    A satisfação destes princípios é estritamente necessária apenas no caso da estrutura fundamental do sistema social em que cada um começa; porém nenhuma generalidade essencial se perde ao tomar esses princípios como satisfeitos. Essa suposição tem a vantagem de tornar o argumento menos abstrato e de ilustrar o modo como os princípios da justiça entram na formulação das leis psicológicas da construção.
  • 12
    Sobre este assunto, ver W. J. Baumol, Welfare Economics and the Theory of the State (London, 1952). Também é esclarecedora a discussão em R. D. Luce e H. Raiffa, Games and Decisions (New York, 1957), cap. 5.
  • 13
    Essas questões são, penso eu, a consequência direta de aplicar aos conceitos dos sentimentos morais as formas de análise usadas por Wittgenstein em Philosophical Investigations (Oxford, 1953). Veja também, por exemplo, o que G. E. M. Anscombe diz sobre a raiva em “Pretending”, Proceedings of the Aristotelian Society, supl. Vol. XXXII (1958), pp. 285-289, e o que Philippa Foot diz sobre orgulho e medo em “Moral Beliefs”, Proceedings of the Aristotelian Society, LIX (1958-1959), pp. 86-89.
  • 14
    Aqueles que questionam esta proposição provavelmente oferecerão várias formas de sentimentos de culpa como contraexemplos. Isso é fácil de entender, uma vez que as primeiras formas de sentimentos de culpa são as de culpa com relação à autoridade, e é improvável que cresçamos sem ter o que se pode chamar de sentimentos de culpa residual. Por exemplo, uma pessoa criada em uma seita religiosa rígida pode ter sido ensinada que ir ao teatro é errado. Embora ela não acredite mais nisso, nos diz que ainda se sente culpada quando vai ao teatro. Porém, estes não são sentimentos de culpa característicos, uma vez que neste caso não está prestes a pedir desculpas a ninguém, ou a resolver não assistir novamente, e assim por diante. Na verdade, essa pessoa deveria dizer que tem certas sensações e sentimentos de desconforto, e coisas do gênero, que se assemelham aos que tem quando se sente culpada.
  • 15
    Sobre este ponto, ver A.F. Shand, The Foundations of Character, 2ed. (London: Macmillan, 1920), pp. 55-56.
  • 16
    Tentei demonstrar, no ensaio mencionado na nota 3, a maneira pela qual a concepção de justiça como equidade requer essa posição.
  • 17
    Ver Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Gesammelte Sechriften, editada pela Academia Real Prussiana (Berlim, 1903), IV, 393, pp. 434-436.
  • 18
    Pode-se dizer que essa concepção de justiça expressa o sentido do pensamento de Kant segundo o qual as pessoas nunca devem ser tratadas como meros meios, mas sempre, ao mesmo tempo como um fim. Ver Grundlegung, pp. 427-431.

O Senso de Justiça

RAWLS, JRAWLS, J. 1963. The Sense of Justice.The Philosophical Review, 72(3): 281-305. Disponível em: <https://doi.org/10.2307/2183165.>
https://doi.org/10.2307/2183165...
. 1963. The sense of justice. The Philosophical Review, 72(3): 281-305. Tradução de Raquel Cipriani Xavier.

I

No Emílio, Rousseau afirma que o senso de justiça não é uma mera concepção moral formada somente pelo entendimento, mas um verdadeiro sentimento do coração iluminado pela razão, o resultado natural de nossas afeições primitivas.3 3 Livro IV, a parte inicial. Na edição Everyman (London, 1911), ver pp. 172-215, em particular pp. 196, 215. Ver também Emile, traduzido por Allan Bloom (New York: Basic Books, 1979), pp. 211-253, em particular pp. 235, 253. Na primeira parte deste artigo, apresento uma construção psicológica para ilustrar a maneira pela qual a tese de Rousseau poderia ser verdadeira. Na segunda parte, utilizo várias das ideias elaboradas na formulação desta construção para considerar duas questões que surgem na análise sistemática do conceito de justiça.

Estas duas questões são: primeiro, a quem se deve a obrigação de justiça? Ou seja, em relação a quem se deve regular a conduta tal como exigido pelos princípios da justiça? E em segundo lugar, o que explica que os homens façam o que a justiça requer? Muito brevemente, as respostas a essas perguntas são as seguintes: à primeira, o dever de justiça é devido àqueles que são capazes de um senso de justiça; e à segunda, se os homens não fizerem o que exige a justiça, não apenas não considerariam a si mesmos vinculados aos princípios da justiça, como também seriam incapazes de sentir ressentimento e indignação, e careceriam de vínculos de amizade e confiança mútua. Faltar-lhes-iam certos elementos essenciais da humanidade.

Para fins desta discussão, tomo o senso de justiça como sendo algo que as pessoas efetivamente possuem. Referimo-nos a ele quando dizemos, por exemplo, que punições cruéis e fora do comum ofendem o senso de justiça. O senso de justiça pode ser estimulado ou amenizado, e está relacionado não apenas aos sentimentos morais como ressentimento e indignação, mas também, como argumentarei, a atitudes naturais como a confiança mútua e o afeto. A construção psicológica é concebida para mostrar como o senso de justiça pode ser visto como o resultado de um certo desenvolvimento natural; será útil para entender porque a capacidade para um senso de justiça é o aspecto fundamental da personalidade moral na teoria da justiça.

II

Antes de apresentar a construção psicológica eu gostaria de considerar o pano de fundo das duas questões. O principal problema em fazer uma análise sistemática do conceito de justiça é derivar e arranjar os princípios associados ao conceito4 4 Para uma tentativa de lançar as bases para tal análise, conferir meu artigo “Justice as Fairness”, Philosophical Review, LXVII (1958), 164-194. Começo esta seção esboçando as partes de referido artigo que são necessárias na discussão a seguir. . Estes princípios são aqueles que explicam os juízos ponderados de pessoas competentes a respeito da justiça das instituições políticas e sociais. Por instituições, entende-se sistemas de regras publicamente reconhecidas, as quais são geralmente aplicadas e que, ao definir cargos e posições, direitos e deveres, conferem à atividade política e social sua forma e estrutura. Assim sendo, podemos caracterizar a família de princípios associados ao conceito de justiça como os princípios que pessoas racionais reconheceriam quando as restrições da moralidade lhes forem impostas em circunstâncias que dão origem a questões de justiça. Essas circunstâncias são aquelas em que as pessoas direcionam demandas conflitantes às suas instituições comuns e que consideram a si mesmas como representando ou possuindo interesses legítimos de tal modo que suas pretensões fazem com que se sintam dispostas pressionar umas às outras para garanti-los. Questões de justiça e equidade surgem quando pessoas livres, que não possuem autoridade umas sobre as outras, estão participando de suas instituições comuns e estabelecendo ou reconhecendo entre si as regras que as definem e que determinam as ações resultantes de seus benefícios e encargos. Uma instituição é justa ou equitativa, então, quando satisfaz princípios que as pessoas poderiam propor umas às outras para a aceitação mútua a partir de uma posição original de igual liberdade. Derivar os princípios familiares da justiça é mostrar como eles seriam mutuamente reconhecidos; e organizar estes princípios é determinar as respectivas prioridades, dada a natureza dos casos a que se aplicam.

Quando o conceito de justiça é aplicado à estrutura básica do sistema político e social, os princípios associados ao conceito são os seguintes: (i) cada pessoa que nela participe ou que seja afetada por ela tem um igual direito à liberdade mais extensa compatível com uma liberdade igual para todos; e (ii) as desigualdades (tal como definidas e permitidas pelo padrão de distribuição de direitos e deveres) são arbitrárias, a menos que seja razoável esperar que resultem em benefício de todos, e que garantam que os cargos e posições a que estão vinculados - ou de onde podem ser obtidos - estejam abertos a todos. (Eu afirmo esses princípios aqui e esboço sua derivação tal como são usados na formulação da construção psicológica. A ideia subjacente a essa derivação eu chamarei a concepção de justiça como equidade).

A derivação destes princípios é indicada pela seguinte construção analítica. Imaginemos um número de pessoas racionais e mutuamente auto-interessadas, situadas numa posição inicial de igual liberdade. Suponhamos que elas devam propor e reconhecer entre si os princípios gerais aplicáveis ​​às suas instituições comuns como sendo padrões pelos quais suas queixas contra essas instituições devem ser julgadas. Em vez de começar registrando queixas, elas tentam chegar a um acordo sobre os critérios a partir dos quais uma queixa deve ser tida como legítima. O procedimento para isso consiste no que segue: a cada pessoa é permitido propor os princípios a partir dos quais deseja que suas próprias queixas sejam julgadas, estando este privilégio sujeito a três condições. Entende-se (i) que, se os princípios propostos forem aceitos, as queixas de outros serão julgadas de modo similar; (ii) que ninguém terá sua queixa ouvida até que todos estejam aproximadamente de acordo sobre como as queixas devem ser julgadas; e (iii) que os princípios propostos e reconhecidos nessa ocasião são vinculatórios a todas as situações futuras, exceto em circunstâncias especiais. A principal ideia do procedimento é que a cada um se exige que adote, de antemão, um firme compromisso, o qual razoavelmente se possa esperar que os demais possam igualmente assumir, e que a ninguém seja oportunizado adaptar os cânones de uma queixa legítima para atender a sua própria condição particular e, em seguida, descartá-los quando já não se adequam ao seu propósito. Os princípios aceitos expressarão os padrões segundo os quais cada pessoa está disposta a aceitar que seus interesses sejam restringidos na suposição de que os interesses dos outros serão limitados da mesma maneira. As restrições que assim poderiam surgir podem ser pensadas como aquelas que uma pessoa teria em mente se ela estivesse projetando um sistema social no qual o lugar que ocuparia lhe seria atribuído por seu inimigo. Os dois princípios da justiça anteriormente mencionados são aqueles que seriam reconhecidos, dadas as condições desta construção analítica; eles constituem os princípios da justiça neste caso fundamental.5 5 Tentei mostrar isso no ensaio “Constitutional Liberty and the Concept of Justice”, Nomos, vol. VI.

Podemos agora distinguir três casos em que o conceito de igualdade é aplicado. O primeiro se aplica às instituições como parte de sua definição. A noção de instituição envolve o conceito de igualdade na medida em que a noção de atividade de acordo com regras implica que casos semelhantes, conforme definidos por essas regras, devem ser tratados de forma semelhante. Em seguida, o conceito de igualdade aplica-se à estrutura de uma instituição, ou de um sistema social. O que a igualdade requer, no caso da constituição fundamental da sociedade, está incluído nos dois princípios da justiça. Em geral, uma instituição satisfaz as exigências da igualdade se estiver de acordo com os princípios que seriam reconhecidos por pessoas racionais e mutuamente auto-interessadas a partir de uma posição original de igual liberdade. Por fim, o conceito de igualdade aplica-se à própria posição original, dando lugar à primeira questão, a saber: o que qualifica uma pessoa como titular em uma posição original, de modo que, em suas relações com outrem seja necessário que se conduza de acordo com princípios que poderiam ser reconhecidos por todos a partir de uma posição inicial de igualdade? A resposta a esta pergunta, argumentarei abaixo, é que é necessário e suficiente que a pessoa seja capaz, pelo menos em um grau mínimo, de um senso de justiça.

A segunda questão - ou seja, o que explica que os homens façam o que a justiça requer - surge da seguinte maneira. Se o argumento da construção analítica está correto, o conceito de justiça associou a ela uma certa família de princípios. O conceito de moralidade, quando imposto a pessoas racionais e auto-interessadas, dá origem a certas restrições definidas. Quem tem moralidade não apenas aceita princípios gerais e universais que limitam a busca tanto de seus próprios interesses como os interesses dos outros, mas também que esses princípios devem enunciar certas restrições específicas. Entre as pessoas racionais é impossível uma moralidade sem certos princípios de justiça que nos sejam familiares. O argumento da construção analítica não mostra, no entanto, que pessoas racionais, concebidas como participantes em um esquema de cooperação, farão o que a justiça exige em casos particulares.6 6 Como um caso típico do que a justiça exige em casos particulares, pode-se assumir o dever prima facie do jogo limpo (fair play). Se os participantes em uma instituição (ou prática) aceitam suas regras como justas ou equitativas e, portanto, não têm queixa a apresentar contra ela, surge o dever prima facie das partes umas para com as outras de agirem de acordo com as regras quando lhes incumbir cumpri-las. Quando um número qualquer de pessoas envolvem-se em uma instituição ou orientam um empreendimento conjunto de acordo com regras, restringindo assim a sua liberdade, os que se submeteram a essas restrições, quando exigido, têm direito a uma aquiescência semelhante daqueles que se beneficiaram por sua submissão. Essas condições são obtidas se uma instituição for corretamente reconhecida como justa ou equitativa, pois neste caso todos os participantes se beneficiam dela. Assim, um trapaceiro que não paga impostos viola um dever de jogar limpo: ele aceita os benefícios do governo, mas não fará sua parte em liberar recursos para ele. Para a definição deste dever prima facie, estou em dívida com H. L. A. Hart. Ver seu artigo, “Are There Any Natural Rights?” Philosophical Review, LXIV (1955), pp. 185-186. O objetivo da construção analítica é derivar os princípios de justiça que se aplicam às instituições. Como as pessoas atuarão nas circunstâncias concretas - conforme as regras especificam - quando for sua vez de fazer a parte que lhe cabe, é uma questão completamente diferente. As pessoas engajadas em uma instituição normalmente farão sua parte caso se sintam compelidas a agir de acordo com os princípios que reconheceriam sob as condições da construção analítica. Entretanto seu sentimento assim vinculado não é explicado por esta construção, e não pode ser explicado enquanto as partes são descritas unicamente pelo conceito de racionalidade.

Na construção psicológica a seguir, são descritos os estágios de um desenvolvimento através dos quais o senso de justiça pode surgir a partir de nossas atitudes naturais primitivas. Esta construção pode ser considerada puramente hipotética. Não afirmo que represente o que realmente acontece. No entanto, tentei torná-la razoavelmente plausível e incluir nela apenas os princípios psicológicos que são compatíveis com nossa concepção de nós mesmos como seres morais. Para responder às duas perguntas, usarei muitas das ideias elaboradas ao expor essa construção.

III

A construção psicológica por meio da qual o senso de justiça pode se desenvolver consiste em três partes que representam o desenvolvimento de três formas de sentimento de culpa nesta ordem: culpa com relação à autoridade (authority guilt), culpa com relação à associação (association guilt) e culpa com relação a princípios (principle guilt).7 7 Esta construção baseia-se na obra de Jean Piaget, The Moral Judgement of the Child (London, 1932). Ela segue as linhas principais da explicação do desenvolvimento do senso de justiça e incorpora sua (de Piaget) distinção entre a moralidade da autoridade e a moralidade do respeito mútuo Existem outras formas de sentimento de culpa, e em outros contextos seria essencial discuti-las; entretanto, para o momento, essas outras formas podem ser deixadas de lado. O lugar central dado ao sentimento de culpa é uma questão de conveniência e simplesmente uma maneira de organizar o que é dito sobre os sentimentos morais.8 8 Na seção VI, discutirei brevemente algumas das características definidoras dos sentimentos morais, mas não proponho uma definição formal desses sentimentos. Para efeitos do argumento basta considerá-los como dados por enumeração; e, portanto, como sendo, por exemplo, sentimentos de culpa e remorso, ressentimento e indignação, e certas formas de vergonha e desgosto.

Para caracterizar a culpa com relação à autoridade, assumimos uma situação institucional em que certas pessoas estão sujeitas aos preceitos gerais ou às injunções particulares dos outros. O caso específico a ser tomado é a relação dos pais e seus filhos. Vamos supor que esses sujeitos - os filhos - amem, confiem e tenham fé naqueles que detêm autoridade, os pais. Suponhamos também que esses sujeitos não estejam em posição de questionar os preceitos gerais ou injunções particulares que se espera que eles obedeçam, seja porque não possuem conhecimento e compreensão suficientes, ou porque não têm o conceito de justificação, sendo ambos o caso das crianças Além disso, para evitar complicações desnecessárias, supomos que os preceitos e injunções dadas sejam razoáveis, de modo que as atitudes de amor, confiança e fé não estão fora de lugar. Dadas essas condições que envolvem as atitudes naturais de amor, confiança e fé no interior de um determinado contexto institucional, segue-se que esses sujeitos manifestarão o que chamarei de culpa com relação à autoridade quando violarem os preceitos que lhes foram definidos.9 9 As atitudes naturais também podem ser tomadas como dadas por enumeração e, portanto, como sendo, por exemplo, amor e carinho, fé e confiança mútua. Quando se afirma, então, que o afeto, digamos, implica estar exposto a sentimentos de culpa, essa reivindicação depende dos conceitos de afeto e sentimentos de culpa. Não se requer uma definição de uma atitude natural e de um sentimento moral. Sua ação será reconhecida e vivida como uma violação da relação de amor e confiança com a pessoa que detém a autoridade. Uma ausência de sentimento de culpa revelaria uma ausência de amor e confiança. Sentimentos de culpa são mostrados (dentre outras maneiras) na inclinação de confessar e pedir perdão para restaurar a relação anterior; eles fazem parte daquilo que define uma relação de amor e confiança.

Estas observações exigem uma elaboração mais aprofundada. Suponhamos que essa lei psicológica é válida: a criança, movida por certos instintos e regulada apenas (se é que o é) por um amor-próprio racional, vem a amar a - e a reconhecer o amor de - seus pais caso eles manifestamente a amem.10 10 A formulação desta lei psicológica é extraída do Emílio de Rousseau (ver p. 174). Rousseau diz que, enquanto amamos desde o início aquilo que contribui para nossa preservação, esse apego é completamente inconsciente e instintivo. O que transforma esse amor instintivo pelos outros em amor é sua “evidente intenção de nos ajudar”. O amor dos pais pela criança envolve uma intenção evidente de cuidá-la, de fazer por ela tal como o amor-próprio racional que elas têm de si inclina a fazer; envolve alegria na sua presença, o apoio a seu senso de competência e manifesto prazer em seu sucesso. Pode-se supor que, com o tempo, o amor dos pais nutrirá na criança um amor igual por eles e que, embora a capacidade de amar seja inata, requer circunstâncias especiais para seu desenvolvimento. O amor dos pais pela criança pode, então, explicar o amor de uma criança por seus pais; seu amor por eles não tem - e de fato, não pode ter - uma explicação racional em termos de seus instintos e desejos antecedentes. Ela não os ama para assegurar, digamos, sua segurança, muito embora possa parecer amá-los por essa razão. Que o seu amor por eles não tenha uma explicação racional resulta do conceito de amor: amar o outro é cuidar dele por si mesmo, como o seu amor-próprio racional se inclinaria a fazê-lo. O amor da criança por seus pais tem uma explicação - a saber, de que eles a amaram primeiro - mas não uma explicação racional por referência ao seu amor-próprio original.

Se, então, aceitamos esse princípio psicológico e se supomos que o amor da criança é uma estrutura ordenada de disposições - ou, noutras palavras, um sentimento, - como ele se mostrará? Aqui é necessário ter em mente a característica peculiar da situação da autoridade: a de que a criança não tem seus próprios padrões de crítica. Ela não está em uma posição racional para rejeitar as prescrições de seus pais, de modo que, se ela os ama e neles confia, ela aceitará seus preceitos. Ela também se esforçará para viver de acordo com eles como objeto digno de estima, e aceitará a maneira que seus pais têm de julgá-la. Ela imporá a si mesma o padrão que os pais encarnam, e julgará a si mesma como faria quando violasse preceitos por eles impostos. A criança, dada a sua peculiar posição na situação de autoridade, agirá desse modo se, de fato, como supomos, amar seus pais e neles confiar. Ao mesmo tempo, a criança é tentada a transgredir os preceitos dos pais. Ela pode querer rebelar-se contra a autoridade parental, o que, na medida em que os pais conseguem dar-lhe autoestima, é um humilhante lembrete de sua dependência. Seus próprios desejos podem exceder os limites do que é permitido, de modo que os preceitos são experimentados como restrições insuportáveis. A criança terá sentimentos de ódio pelos pais, porém, se os ama, uma vez que tenha cedido à tentação e violado suas injunções, aceitará em parte a atitude dos pais para consigo. Ela estará disposta a revelar sua culpa por meio da confissão e buscar a reconciliação. Aquele que está envergonhado, redime a si mesmo mediante um êxito, porém aquele sujeito à culpa com relação à autoridade quer ser perdoado e ver restaurada a relação anterior. Nestas várias inclinações e em suas expressões os sentimentos de culpa se tornam manifestos. Sua ausência manifestaria uma ausência de amor e confiança.

IV

A segunda parte da construção psicológica descreve a maneira como se forma a culpa em relação à associação (association guilt). O estabelecimento dessa forma de culpa envolve a participação em uma atividade conjunta por parte daqueles que consideram a si mesmo como associados. Essas atividades conjuntas podem assumir várias formas, desde jogos até instituições sociais propriamente ditas. Presumo que todos os participantes sabem que as regras que definem o esquema de cooperação efetivamente satisfazem os dois princípios da justiça, e suponho também que a derivação desses princípios, tal como é dada na construção analítica, é compreendida.11 11 A satisfação destes princípios é estritamente necessária apenas no caso da estrutura fundamental do sistema social em que cada um começa; porém nenhuma generalidade essencial se perde ao tomar esses princípios como satisfeitos. Essa suposição tem a vantagem de tornar o argumento menos abstrato e de ilustrar o modo como os princípios da justiça entram na formulação das leis psicológicas da construção. Este conhecimento pode ser mais ou menos intuitivo, suponho, entretanto, que esses fatos são conhecidos.

Suponhamos agora que, dado um sistema de atividade conjunta que satisfaça essas condições - talvez algum esquema de cooperação econômica - os participantes estejam vinculados por laços de amizade e confiança mútua, e que cada um deles conta com que os outros façam a parte que lhes cabe. Vamos supor que esses sentimentos são gerados em qualquer pessoa em razão de sua participação na atividade em si. Presumo, como uma segunda lei psicológica que, se a capacidade de uma pessoa para o sentimento de companheirismo foi realizada de acordo com a primeira lei, então, quando outro - que se encontra engajado com ele em uma atividade conjunta que notoriamente realiza os dois princípios - cumpre com intenção o seu dever de jogar limpo, se desenvolvem em relação a ele sentimentos amistosos, bem como sentimentos de confiança e um senso de garantia mútua. (Pode-se supor que os participantes se introduzem no esquema um a um ao longo de um período de tempo, e deste modo vão adquirindo estes sentimentos na medida em que os outros cumprem o seu dever de jogar limpo). Portanto, se os participantes em uma iniciativa conjunta agem regularmente, com a intenção evidente, de acordo com seu dever de jogar limpo, a tendência é que adquirirão laços de amizade e confiança mútua.

Considerando, então, estes sentimentos e relações no contexto de um esquema de cooperação conhecido para satisfazer as condições declaradas, se uma pessoa não fizer a sua parte, experimentará um sentimento de culpa com relação à associação. Esses sentimentos se mostrarão de várias maneiras: na inclinação para compensar aos outros por sua perda (reparação) e admitir o que se fez e pedir desculpas; na inclinação para pedir reintegração e para reconhecer e aceitar reprovações e penalidades; e em uma capacidade diminuída ficar com raiva dos outros se eles deixarem de fazer a sua parte. A ausência de tais inclinações revelaria a ausência de laços de amizade e de relações de confiança mútua. Tornaria evidente que uma pessoa é capaz de associar-se com outros desprezando aqueles princípios que se sabe serem mutuamente reconhecidos. Isso mostraria que ninguém tem escrúpulos ante as perdas infligidas aos outros (ou a ganhos retirados deles) como consequência de seus próprios atos, e que ninguém se preocupa com as violações da confiança mútua pelas quais os outros são enganados. Se existem laços de amizade e confiança mútua, existem essas várias inibições e reações quando alguém deixa de fazer a sua parte. Se essas restrições e reações inexistirem, na melhor das hipóteses, temos apenas uma aparência de companheirismo e confiança mútua.

Pode-se observar que o efeito da segunda lei psicológica e as atitudes geradas por ela desempenham um papel importante na manutenção de esquemas de cooperação conhecidos por satisfazerem os dois princípios da justiça (enunciados na Seção II). Tais regimes estão sujeitos a pelo menos dois tipos de instabilidade. A instabilidade do primeiro tipo está presente quando a alguém vale a pena deixar de fazer a sua parte se souber que os outros farão a parte que lhes cabe: as consequências de uma pessoa não fazer a sua parte quando os outros o fazem podem nem ser notadas, ou pode não ter nenhum efeito ostensivo, de modo que um uso alternativo de tempo e esforço é um ganho pessoal. Tal sistema de cooperação é instável: cada um é tentado a afastar-se dele se supõe que os outros o manterão em funcionamento. Uma vez que cada um está ciente da tentação do outro, a relação de confiança mútua corre o risco de ser rompida. A instabilidade do segundo tipo está presente quando é o caso que, se alguém sabe ou razoavelmente supõe que os outros não farão a sua parte, valerá a pena ser o primeiro, ou estar entre os primeiros, a não fazer a sua parte, ou mesmo que seria perigoso não estar nesse primeiro grupo de pessoas que deixam de cumprir com sua parte. Esses dois tipos de instabilidade estão relacionados ao fato de que, se o primeiro tipo consegue, então pode-se pensar que os outros não farão a sua parte, e isso pode conduzir à instabilidade do segundo tipo. Quando os dois tipos de instabilidade estão presentes, o esquema de cooperação é frágil e os participantes são levados a retirar-se, ou mesmo a ter medo de fazê-lo. (Os esquemas de desarmamento estão sujeitos à instabilidade de ambos os tipos.) Hobbes parece ter sido o primeiro a colocar o problema de tais situações instáveis ​​no centro da questão da obrigação política. Uma maneira de interpretar o soberano hobbesiano é como uma agência adicionada aos sistemas instáveis ​​de cooperação, de tal forma que já não é mais vantajoso a ninguém não fazer sua parte, dado que os outros farão a deles. Ao vigiar e fazer cumprir as sanções, o soberano age para inibir violações e para restaurar o sistema quando ocorrem violações; a crença na eficácia do soberano elimina a instabilidade de ambos os tipos.12 12 Sobre este assunto, ver W. J. Baumol, Welfare Economics and the Theory of the State (London, 1952). Também é esclarecedora a discussão em R. D. Luce e H. Raiffa, Games and Decisions (New York, 1957), cap. 5.

As relações de amizade e confiança mútua têm um efeito semelhante. Uma vez que um sistema de cooperação que satisfaz as condições especificadas tenha se estabelecido e sobrevivido a um período de incerteza, a passagem do tempo torna-o mais estável, dada a intenção evidente de todos em fazer a sua parte. A formação dos sentimentos de amizade e confiança mútua tende a reforçar o esquema de cooperação. Uma maior tentação é requerida e, caso ocorram violações, os sentimentos de culpa, mostrados na tentativa de reparação e outros, tendem a restaurar as relações rompidas. Assim, não só esse sistema de cooperação pode ser estável no sentido de que, quando cada um pensa que os outros farão a sua parte, não tenderá a deixar de fazer a sua parte; ele pode ser inerentemente estável no sentido de que a persistência do esquema gera, de acordo com a segunda lei psicológica, as inclinações que o sustenta. O efeito, então, das relações de amizade e confiança mútua é análogo ao papel do soberano; somente nesse caso é a consequência de um certo princípio psicológico da natureza humana em tais sistemas e das implicações das atitudes geradas.

V

A terceira parte da construção psicológica diz respeito à culpa em relação a princípios (principle guilt). Nas duas formas anteriores de culpa presumimos que ela estava conectada a uma atitude natural real em relação a certas pessoas em particular: com a culpa em relação à autoridade essas pessoas são os pais; na culpa com relação à associação, os companheiros. Muitas vezes, no entanto, nos sentimos culpados por fazer algo quando aqueles prejudicados ou colocados em desvantagem são pessoas com quem não estamos ligados por qualquer forma de sentimento particular de companheirismo. Para explicar os sentimentos de culpa deste tipo - culpa em relação a princípios - assumo uma terceira lei psicológica da seguinte maneira: dado que as atitudes de amor e confiança, sentimentos amistosos ​​e respeito mútuo, foram geradas de acordo com as duas leis psicológicas anteriores, então, se uma pessoa (e seus associados) forem os beneficiários de uma instituição bem-sucedida e duradoura ou de um esquema de cooperação conhecido por satisfazer os dois princípios da justiça, a pessoa adquirirá um senso de justiça. Isto se manifestará pelo menos de duas maneiras: primeiro, no reconhecimento de que essas instituições são justas (conforme definido pelos dois princípios) e das quais tanto a pessoa como seus associados se beneficiaram. Este reconhecimento de instituições particulares se manifesta no sentimento de culpa por conta de infrações que prejudicam outras pessoas, mesmo que essas pessoas não sejam objeto de quaisquer sentimentos específicos de companheirismo. Pode ser que elas ainda não tenham tido oportunidade suficiente para mostrar uma intenção evidente de fazer a sua parte, e assim não são ainda objeto de tais sentimentos pela segunda lei. Ou pode ser que a instituição seja muito grande para permitir a ocasião de estabelecer esses laços particulares. O senso da justiça se manifestará, em segundo lugar, na disposição de trabalhar para (ou, pelo menos, não se opor) a criação de instituições justas, ou à reforma das existentes, quando assim requerer a justiça. Os sentimentos de culpa associados ao senso de justiça caracterizam-se como sentimentos de culpa em relação à princípios, pois sua explicação é feita com referência a princípios, neste caso a princípios de justiça. Esses sentimentos fundamentais de culpa surgem de violações à instituições aceitas como satisfazendo os princípios da justiça ou a partir da resistência às reformas que se considera que esses princípios exigiriam.

A culpa com relação a princípios está, então, vinculada à aceitação dos princípios da justiça. Representa um passo além na compreensão da derivação da culpa que é pressuposta na culpa com relação à associação. Poder-se-ia dizer que a culpa em relação a princípios (principle guilt) é a culpa propriamente dita. Ela é, de uma maneira como as duas formas anteriores de culpa não o foram, um sentimento moral completo. Por esta razão, culpa de autoridade e de associação devem ser mencionadas com sua expressão adjetiva correspondente. Elas não são, tal como foram definidas, sentimentos morais completos, embora incluam muitos dos aspectos característicos dos sentimentos morais. No entanto, uma vez que o pleno desenvolvimento da culpa com relação a princípios tenha ocorrido, e que os princípios de justiça que especificam as condições de culpa de associação são aceitos, então as infrações que deram origem à culpa de associação serão a culpa propriamente dita; por enquanto a referência ao princípio reconhecido faz parte da explicação que uma pessoa oferece sobre o seu sentimento. Além disso, onde os laços de atitudes naturais estão presentes na forma de amizade e confiança mútua, os sentimentos de culpa serão maiores do que onde estão ausentes. A culpa em relação à associação, transformada, reforçará a culpa com relação a princípios. Caso se pressuponha que um sentimento de culpa apropriado - isto é, um que seja baseado em crenças verdadeiras sobre o que se fez - implica uma falta, e que um sentimento maior de culpa implicará uma falta maior, pode-se inferir que a conduta que origina sentimentos de culpa de associação é errado. Assim, todas as violações das atitudes naturais geradas pela associação - em particular a amizade, o afeto e a confiança mútua - são erradas.

O senso de justiça ajuda a manter os esquemas de cooperação assim como o fazem as atitudes naturais de amizade e confiança. Na ausência de uma explicação especial, a aceitação dos princípios de justiça implica que se evite sua violação e o reconhecimento de que as vantagens obtidas em conflito com eles são desprovidas de valor; e se tais violações, no entanto, ocorrem, em casos de tentação, os sentimentos de culpa tenderão a restaurar a atividade conjunta. Para compreender este fato, basta considerar a variedade de inclinações e inibições em que esses sentimentos são expressos. Um sistema em que cada pessoa tem - e sabe que todas as demais também têm - um senso de justiça é inerentemente estável. As outras coisas permanecendo iguais, as forças que contribuem para sua estabilidade aumentam com o passar do tempo. (Tais forças, entretanto, podem se romper com o passar do tempo caso elementos externos alimentem tentações cada vez maiores.) Essa estabilidade inerente é consequência direta da relação recíproca entre a segunda e a terceira lei psicológica. A construção psicológica como um todo é consistente e autorreforçada: é intrinsecamente estável. Para explicá-la adequadamente, é preciso que as instituições constituam a moldura da culpa da autoridade sob a regulamentação dos princípios da justiça, não há, porém, nenhuma dificuldade insuperável nisso.

VI

É evidente que a construção psicológica que acabamos de expor depende fortemente do conceito de sentimento moral. Será útil fazer uma breve digressão e discutir as principais características deste conceito. Estas características podem ser especificadas considerando as principais questões que se deve fazer ao examinar os conceitos dos vários sentimentos morais.13 13 Essas questões são, penso eu, a consequência direta de aplicar aos conceitos dos sentimentos morais as formas de análise usadas por Wittgenstein em Philosophical Investigations (Oxford, 1953). Veja também, por exemplo, o que G. E. M. Anscombe diz sobre a raiva em “Pretending”, Proceedings of the Aristotelian Society, supl. Vol. XXXII (1958), pp. 285-289, e o que Philippa Foot diz sobre orgulho e medo em “Moral Beliefs”, Proceedings of the Aristotelian Society, LIX (1958-1959), pp. 86-89.

Há, em primeiro lugar, questões como: (a) Quais são as várias expressões linguísticas utilizadas para dar voz à existência de um sentimento moral particular, e quais as variações significativas, se houver, entre as expressões que se empregam para diferentes sentimentos? (b) Quais são as manifestações comportamentais características de um determinado sentimento moral, e quais são as maneiras pelas quais uma pessoa comumente revela o modo como ela se sente? (c) Quais são as sensações características e sentimentos cinestésicos (kinesthetic), se é que existem, que acompanham um determinado sentimento moral? Por exemplo, quando uma pessoa está com raiva, pode sentir-se quente; pode tremer e sentir um aperto em seu estômago; pode ser incapaz de falar sem que sua voz fique tremendo; ou pode ser incapaz de suprimir certos gestos. Entretanto, se há sensações e manifestações comportamentais típicas para, pelo menos, alguns sentimentos morais, estes não serão, em qualquer caso, a culpa, a vergonha ou o que quer que seja o sentimento. Tais sensações e manifestações características não são nem necessárias nem suficientes em casos particulares para que alguém se sinta culpado ou envergonhado. Isso não é negar que algumas sensações características e manifestações comportamentais de perturbação podem ser necessárias se alguém se vê oprimido por sentimentos de culpa, ou se alguém está intensamente envergonhado. Entretanto, para sentir-se culpado ou envergonhado, muitas vezes é suficiente que a pessoa sinceramente diga que se sente culpada ou envergonhada, desde que disponha do conceito de culpa ou de vergonha e que esteja preparado para dar uma explicação adequada do porquê sente-se assim.

Esse fato introduz, ao examinarmos os sentimentos morais, a questão que é possivelmente a principal, a saber: (d) qual é o tipo definitivo de explicação que é requerida para se ter um determinado sentimento moral, e como essas explicações diferem de um sentimento para outro? Assim, quando alguém diz que se sente culpado, que tipo de explicação esperamos e dentro de que limites? Certamente não é qualquer explicação que é aceitável. Mesmo fenômenos como sentimentos neuróticos de culpa, que reconhecidamente são um desvio do caso definitório, são admitidos como um tipo de sentimento de culpa apenas por causa do tipo especial de explicação aceita para esses desvios da norma, e porque supõe-se que uma investigação psicológica mais completa revelará a semelhança com outros sentimentos de culpa. Em geral, uma condição necessária e uma característica definidora dos sentimentos morais é que a explicação oferecida pela pessoa invoque um conceito moral e o(s) princípio(s) a ele associado(s), e com ele faça uma referência a algo que é reconhecido como errado ou como correto.14 14 Aqueles que questionam esta proposição provavelmente oferecerão várias formas de sentimentos de culpa como contraexemplos. Isso é fácil de entender, uma vez que as primeiras formas de sentimentos de culpa são as de culpa com relação à autoridade, e é improvável que cresçamos sem ter o que se pode chamar de sentimentos de culpa residual. Por exemplo, uma pessoa criada em uma seita religiosa rígida pode ter sido ensinada que ir ao teatro é errado. Embora ela não acredite mais nisso, nos diz que ainda se sente culpada quando vai ao teatro. Porém, estes não são sentimentos de culpa característicos, uma vez que neste caso não está prestes a pedir desculpas a ninguém, ou a resolver não assistir novamente, e assim por diante. Na verdade, essa pessoa deveria dizer que tem certas sensações e sentimentos de desconforto, e coisas do gênero, que se assemelham aos que tem quando se sente culpada. Por exemplo, uma pessoa sente-se culpada porque sabe que tomou mais do que a parte que lhe cabia e tratou os outros injustamente, ou uma pessoa sente-se envergonhada por ter sido covarde e insincera. O que distingue os diferentes sentimentos morais são os princípios e transgressões que suas explicações tipicamente invocam. Um mesmo ato pode dar origem, por exemplo, tanto à culpa quanto à vergonha, se, como muitas vezes pode acontecer, a pessoa considera a ação de acordo com as exigências de casa um destes sentimentos. O indivíduo que trapaceia pode sentir-se culpado e envergonhado: culpado porque violou uma confiança e injustamente favoreceu a si mesmo, e envergonhado porque, recorrendo a tais meios, admite sua falta de capacidade e cede à fraqueza. Pode-se observar aqui que para uma pessoa ter um sentimento moral não é necessário que tudo aquilo declarado em sua explicação seja verdadeiro. Uma pessoa pode estar errada, por exemplo, ao pensar que acabou tomando para si mais do que lhe correspondia. Ela pode não ser culpada. Sua explicação, porém, está em ordem, uma vez que é do tipo correto e que as crenças que expressa são sinceras.

Em seguida, há um grupo de questões acerca do alcance dos sentimentos morais para a ação. Assim, (e) quais são as intenções, empenhos e inclinações características de uma pessoa que tem um determinado sentimento; quais são os tipos de coisas que ela sente vontade de fazer, ou se sente incapaz de fazer? É característico de uma pessoa irritada tentar contra-atacar ou bloquear os propósitos da pessoa com quem está zangada. Aquele que é atormentado pela culpa com relação à autoridade está disposto a revelar sua culpa e tentar corrigir as questões pela confissão e reconciliação, enquanto aquele que sofre de culpa com relação à associação está inclinado a admitir o que fez e a pedir a reintegração, a reconhecer e aceitar repreensões e penalidades, e também se vê menos capaz de ficar zangado com os outros quando se comportam de maneira indevida. Novamente, pode-se perguntar: (f) que sentimentos e reações uma pessoa que tem esse sentimento espera por parte de outras? e como ela prevê que eles agirão em relação a si, como se mostra, por exemplo, em várias distorções características em sua interpretação da conduta dos outros para com ela? Além disso, (g) quais são as tentações características para as ações que dão origem a determinado sentimento, e de que forma característica se resolve esse sentimento ou se liberta dele? Algumas dessas conexões com a ação são, além de uma explicação apropriada, uma condição necessária para ter um sentimento moral. (As duas últimas perguntas têm pouca importância na construção que define as formas de sentimento de culpa, mas elas seriam importantes, por exemplo, para distinguir sentimentos de culpa dos de vergonha).

Finalmente, uma questão que enfatizei é: (h) qual é, caso haja alguma, a base natural de um sentimento moral? Existem dois tipos distintos de perguntas envolvidas aqui. Uma delas é: se uma pessoa, dadas suas circunstâncias, não tem um determinado sentimento moral, existe uma atitude natural que, desse modo, se demonstraria que está ausente? A outra é: se uma pessoa, tendo em conta suas circunstâncias, tem um sentimento moral, há uma atitude natural que se demonstraria, desse modo, estar presente? Ao apresentar a construção psicológica, ocupei-me unicamente do primeiro tipo de questão. Esta construção fornece um pano de fundo para o segundo tipo também, embora eu a tenha deixado inteiramente de lado. Assim, sustentei que, no contexto da situação de autoridade, a existência de amor e confiança nas pessoas dotadas de autoridade implica sentimentos de culpa por violar as prescrições da autoridade, e que a ausência de tais sentimentos de culpa implica a ausência de atitudes naturais de amor e confiança. De maneira similar, no contexto dos arranjos associativos, as atitudes naturais de amizade, afeto e confiança mútua implicam em sentimentos de culpa por violações reconhecidas de deveres de justiça e a ausência de tais sentimentos de culpa implica a ausência das atitudes naturais de amizade, afeto e confiança mútua. Essas proposições não devem, portanto, ser confundidas com seus contrários, o que levanta problemas completamente diferentes.

O pensamento aqui é que, por definição, uma atitude natural e um sentimento moral são ambos ordenamentos de certas disposições características, e que as disposições ligadas às atitudes naturais e as ligadas aos sentimentos morais estão relacionadas de tal modo que a ausência de certos sentimentos morais implica a ausência de certas atitudes naturais; ou, alternativamente, que a presença de certas atitudes naturais implica uma tendência para certos sentimentos morais. Essas proposições são verdades necessárias: elas se sustentam em virtude das relações entre os conceitos dos sentimentos morais e as atitudes naturais. Como isso ocorre pode ser apreendido a partir de um exemplo. Se A ama B, então, na falta de uma explicação especial, A teme por B quando B é ameaçado e tenta afastá-lo do perigo; e quando C ataca B, A fica zangado com C e esforça-se para impedir que seu ataque seja bem-sucedido. A menos que existam circunstâncias especiais, A alegra-se quando está junto com B, e quando B sofre um dano ou morre, A é afligido pela dor e sofrimento, e assim por diante. O amor é um sentimento - isto é, dentre outras coisas, um conjunto de disposições para experimentar e manifestar essas emoções primárias de uma determinada maneira.15 15 Sobre este ponto, ver A.F. Shand, The Foundations of Character, 2ed. (London: Macmillan, 1920), pp. 55-56. Agora, as verdades necessárias da forma mencionada acima simplesmente afirmam que a disposição para se sentir culpado em certas circunstâncias é tanto uma característica definidora da atitude natural do amor como a disposição de sentir-se alegre na presença do outro ou de ficar pesaroso ante sua dor.

Para o argumento a seguir, os pontos essenciais sobre os sentimentos morais são os seguintes: (a) esses sentimentos não devem ser identificados com características e expressões comportamentais, mesmo que existam, mas devem ser entendidos como incluindo essencialmente certos tipos de explicação e certas conexões com condutas e atitudes naturais; (b) esses sentimentos pressupõem o reconhecimento de certos princípios morais que são invocados em sua explicação, e em parte o que distingue diferentes sentimentos são os diferentes princípios que entram nessas explicações; e (c) esses sentimentos têm conexões necessárias com certas atitudes naturais tais como amor, afeto e confiança mútua, e, se a tendência a tais sentimentos estiver completamente ausente, também o estarão essas atitudes naturais.

VII

Consideremos agora a segunda questão: a saber, o que explica que os homens ajam pelo seu dever de justiça em casos particulares? Quando possuem um senso de justiça, uma resposta é que eles aceitam os princípios da justiça e consideram a si mesmos obrigados a agir de acordo com esquemas de cooperação que satisfazem esses princípios quando chega a sua vez. Esta explicação é perfeitamente satisfatória. Além disso, no mais das vezes, é uma razão suficiente para quem está fazendo a sua parte de acordo com que os princípios de justiça exigem; ou, de modo mais geral, que fazer isso está de acordo com princípios que seriam reconhecidos numa posição original de igual liberdade. No entanto, gostaria de ver a segunda questão de outro modo. Quero considerar o que ocorre a partir do pressuposto de que certas pessoas nunca iriam agir de acordo com seu dever de justiça, exceto quando as razões de autointeresse e conveniência ditarem.

A partir do que dissemos sobre a culpa com relação à associação, se seguiria que entre quaisquer duas pessoas que participam num esquema de cooperação não existem laços de amizade e de confiança mútua. Se tais laços existissem, eles aceitariam razões diferentes daquelas da conveniência e interesse próprio para agir equitativamente. Essa consequência é relativamente óbvia. Mas também se segue que, se excluirmos o autoengano, essas pessoas são incapazes de sentir ressentimento e indignação em relação às ações injustas dos outros. Se um deles trapaceia e engana ao outro, e isto é descoberto, nenhum deles tem motivo para queixar-se. O prejudicado não pode sentir ressentimento; os outros não podem sentir indignação. Eles não aceitam os princípios da justiça, e não experimentam inibições dos sentimentos de culpa com relação a princípios pelas violações de seu dever de jogar limpo. Ressentimento e indignação são sentimentos morais. O ressentimento é a nossa reação às injúrias e danos que as ações indevidas de outros infligem a nós, e a indignação é a nossa reação às injúrias que as ações indevidas dos outros infligem aos demais. Tanto o ressentimento como a indignação exigem, então, uma explicação que invoque um conceito moral, digamos o conceito de justiça e o(s) princípio(s) a ele associado(s), fazendo assim referência a uma noção de certo ou de errado. Para experimentar ressentimento e indignação é preciso aceitar os princípios que especificam essas noções de certo e errado. Em tese, os membros deste esquema não aceitam estes princípios nem experimentam qualquer inibição dos sentimentos de culpa com relação a princípios. Agora, negar que essas pessoas são incapazes de ressentimento e indignação não é dizer que elas não podem ficar furiosas ou irritadas uns com os outros. Uma pessoa sem um senso de justiça pode ficar enfurecida com alguém que não age de maneira equitativa. Mas a raiva e o aborrecimento são distintos do ressentimento e da indignação; eles não são - como ressentimento e indignação - sentimentos morais. Sem dúvida, há muitas semelhanças comportamentais entre esses sentimentos: a exibição emocional na expressão e no gesto às vezes pode ser indistinguível. Ainda assim, a explicação do sentimento normalmente nos permitirá distingui-los.

Pode-se dizer, então, que uma pessoa a quem falta um senso de justiça e que nunca agiria como justiça requer - a não ser que o interesse próprio e a conveniência a induzam - não apenas não tem laços de amizade, afeto e confiança mútua, como também é incapaz de sentir ressentimento e indignação. Assim, uma pessoa que não tem um senso de justiça também não tem certas atitudes naturais e certos sentimentos morais de um tipo particularmente elementar. Dito de outra forma, aquele que não tem um senso de justiça carece de certas atitudes e capacidades fundamentais incluídas sob a noção de humanidade. De fato, os sentimentos morais são reconhecidamente desagradáveis, em algum sentido ampliado do termo desagradável; entretanto, não há nenhuma maneira de evitarmos a sujeição a eles sem nos desfigurarmos a nós mesmos. Essa sujeição é o preço do amor e da confiança, da amizade e do afeto, e de uma devoção às instituições e tradições de que temos nos beneficiado e que servem aos interesses gerais do gênero humano. Além disso, enquanto os homens possuírem interesses e aspirações próprias, enquanto estiverem dispostos a buscar seus próprios fins e ideais, estarão dispostos a fazer valer suas pretensões uns perante os outros - isto é, enquanto as condições que dão origem às questões de justiça entre eles - é inevitável que, dada a tentação e a paixão, essa tendência seja realizada. (Uma vez que mover-se por fins e ideais de excelência implica estar sujeito à humilhação e a vergonha, e que ausência de tal capacidade implica a falta de tais fins e ideais, pode-se dizer que vergonha e humilhação também são parte da noção de humanidade). Ora, o fato de que a quem falta de um senso de justiça - e, portanto, não se vê como estando sujeito a sentimentos de culpa - faltam certas atitudes e capacidades fundamentais incluídas na noção de humanidade, não deve ser tomado como uma razão para agir conforme dita a justiça. Mas esse fato é uma verdade importante. Ao entender como seria que não tivéssemos um senso de justiça - que nos faltaria também uma parte de nossa humanidade- somos levados a entender que temos esse senso.

VIII

Consideremos agora a primeira questão: a quem se deve a obrigação de justiça, isto é, em relação a que tipo de seres devemos regular nossa conduta pelos princípios da justiça? Dito de outra forma, o que qualifica um ser como tendo o direito de manter uma posição inicial de igual liberdade, de modo que em nossas relações com ele devemos nos conduzir de acordo com princípios que poderiam ser reconhecidos em tal posição? A resposta a esta questão é que é necessário e suficiente que o ser seja capaz de um senso de justiça. Esta resposta requer alguma explicação.

Primeiro tentarei mostrar que a capacidade para um senso de justiça é suficiente. A capacidade para um senso de justiça inclui as seguintes capacidades: compreender, pelo menos de forma intuitiva, o significado e o conteúdo dos princípios de justiça e sua aplicação à instituições particulares; compreender, pelo menos de maneira intuitiva, a derivação desses princípios como indicado na construção analítica; e ter as capacidades de sentimento, atitude e conduta, mencionadas nas três leis da construção psicológica. Nenhuma dessas capacidades impõem condições que sejam de todo rigorosas, e presumo que elas sejam satisfeitas, no grau requerido, pela grande maioria do gênero humano. Agora, o pensamento por trás de tomar a capacidade para um senso de justiça como suficiente é que os princípios da justiça são caracterizados como os princípios que as pessoas poderiam propor umas às outras para sua aceitação mútua em uma posição original de igual liberdade. Nesta posição assume-se que há ausência de informação; em particular, supõe-se que as partes não conhecem sua posição social, nem conhecem seus talentos e habilidades peculiares - ou seja, seus dotes inatos. Resumidamente, elas não sabem como se saíram na loteria natural. No entanto, na posição original, conhecendo a possibilidade de (ou tendo-a em conta) diferentes aptidões inatas, é racional para elas reconhecer os dois princípios da justiça. Estes princípios exigem que qualquer benefício especial para aqueles mais afortunados na loteria natural deve ser ganho de maneira que, ao mesmo tempo, melhore a condição dos menos afortunados. Supomos que as partes na posição original são consideradas como pessoas morais abstraídas de certos tipos de conhecimento de si mesmas e de sua situação. Elas têm, contudo, a capacidade de entender e de adotar o compromisso descrito na construção analítica, e, então, agir a partir dele: isto é, elas têm a capacidade expressada pelo senso de justiça. Dizer que o senso da justiça é suficiente significa, então, dizer que o dever de justiça se deve àqueles que poderiam participar da situação contratual da posição original e agir a partir dela. E, certamente, isso é suficiente, pois na concepção de justiça da construção analítica as consequências da loteria natural são irrelevantes na posição original. A distribuição desconhecida de talentos e habilidades pode, contudo, ser explorada de acordo com princípios que todos na posição original reconheceriam.

Além disso, capacidade para um senso de justiça precisa ser possuída apenas na medida necessária para a participação na posição original. Certamente algumas pessoas têm uma maior capacidade para um senso de justiça do que outras. Essas pessoas podem ser adequadamente colocadas em posições nas quais as virtudes judiciosas são especialmente adequadas, mas sua capacidade superior deve ser considerada como qualquer outra vantagem na loteria natural, os benefícios advindos dela estão sujeitos aos princípios da justiça. Uma capacidade especial para um senso de justiça pode, então, qualificar um homem para certos cargos, mas assumindo que um certo mínimo é satisfeito, esses dotes peculiares não são um fundamento apropriado para estabelecer diferentes graus de cidadania. O mínimo basta para compartilhar a posição de igual cidadania em uma democracia constitucional.16 16 Tentei demonstrar, no ensaio mencionado na nota 3, a maneira pela qual a concepção de justiça como equidade requer essa posição.

Demonstrar que a capacidade para um senso de justiça é necessária talvez seja mais difícil. Além disso, reluta-se em se admitir que essa capacidade é necessária, pois somos avessos a conceder que talvez que o dever de justiça pode não ser devido a todo ser humano. Contudo, é possível admitir essa possibilidade se alguém sustentar que uma capacidade para um senso de justiça é necessária e que um ser humano pode não possuí-la. Porém, essa relutância talvez seja apenas a aversão à admitir que qualquer ser humano é incapaz de um senso de justiça. Em qualquer caso, parece quase certo que pelo menos a grande maioria do gênero humano tem uma capacidade para um senso de justiça e que, para todos os efeitos práticos, pode-se seguramente assumir que todos os homens a possuem originariamente. É plausível supor que qualquer ser capaz de linguagem é capaz dos desempenhos intelectuais exigidos para ter um senso de justiça; e, tendo em conta estas capacidades intelectuais, a capacidade para as atitudes naturais de amor e afeto, fé e confiança mútua, parece ser universal. Parece não haver dúvida de que os homens possuem, como parte de sua capacidade natural original, os requisitos mínimos para o desenvolvimento de um senso de justiça e é essa capacidade original que é dita necessária. É completamente outra questão saber se o dever de justiça é devido a pessoas que, embora possuíssem originalmente tal capacidade, perderam-na sem culpa própria: por doença ou acidente, ou por experimentar tal privação de afeto na infância de modo que sua capacidade para atitudes naturais não tenha se desenvolvido adequadamente.

As considerações seguintes podem mostrar que a capacidade para um senso de justiça é necessária. Em primeiro lugar, do fato que a uma pessoa não lhe seja devido o dever de justiça, não se segue que ela possa ser tratada de qualquer forma, do modo que se queira. Normalmente não pensamos em nós mesmos como tendo um dever de justiça para com animais, mas é certamente errado ser cruel com eles. Sua capacidade de sentir prazer e dor, alguma forma de felicidade, é suficiente para confirmar isso. Negar que essa capacidade seja suficiente não é, pois, permitir tudo. Todavia, outras falhas ainda serão possíveis, uma vez que os princípios da humanidade e da liberalidade são mais extensos em sua aplicação. Por outro lado, algo deve explicar que aos animais não é devido o dever de justiça, e uma explicação plausível é a sua falta de capacidade para um senso de justiça e as outras capacidades que este senso pressupõe.

Novamente, poderíamos dizer que o dever de justiça é devido apenas àqueles que podem queixar-se de não terem sido tratados de modo justo. Uma vez que, como argumentamos anteriormente, uma pessoa a quem falta um senso de justiça não pode ela própria queixar-se nem sentir ressentimento se os outros não agirem em relação a ela conforme os princípios da justiça exigem, pode-se dizer que o dever de justiça não lhe é devido. Esta sugestão decorre da ideia de que se uma pessoa tem direito a algo, ela deve poder reivindicar e protestar quando não lhe for concedido. Essa ideia não é incompatível com pessoas que reivindicam direitos para os outros em certos tipos de situações. Por exemplo, pensemos no caso de tutores para crianças e de curadores para os direitos dos outros em situações especiais. No caso das crianças, supõe-se que a capacidade para um senso de justiça existe e apenas está na expectativa do seu desenvolvimento. Os tutores devem assegurar esse desenvolvimento e devem tomar as decisões com relação aos tutelados tendo em vista o que a pessoa presumivelmente desejaria e reivindicaria uma vez que chegue à idade da razão. O caso em questão, no entanto, supõe que nunca houve e nunca haverá tal capacidade. Todavia, se é dito que outros podem queixar-se, pode-se dizer que o dever - se houver algum - é a eles devido. Em todo caso, a construção analítica exclui essa possibilidade com a posição inicial, de modo que aceitar essa base da necessidade de um senso de justiça concordaria com essa construção.

Finalmente, alguém pode sustentar, seguindo Kant, que uma vontade boa, ou, no caso presente, um senso de justiça é uma condição necessária de dignidade (worthiness) para ser feliz.17 17 Ver Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Gesammelte Sechriften, editada pela Academia Real Prussiana (Berlim, 1903), IV, 393, pp. 434-436. Pode-se afirmar que o senso de justiça é uma parte necessária da dignidade da pessoa e que é essa dignidade que atribui um valor à pessoa distinto e logicamente anterior à sua capacidade de satisfação e sua capacidade de contribuir para a satisfação das demais através do desenvolvimento de seus talentos. É por essa dignidade que a concepção de justiça como equidade está correta ao ver cada pessoa como, por assim dizer, um soberano individual, cujos interesses não devem ser sacrificados por um maior saldo líquido de felicidade, mas apenas de acordo com princípios que todos poderiam reconhecer numa posição inicial de igual liberdade.18 18 Pode-se dizer que essa concepção de justiça expressa o sentido do pensamento de Kant segundo o qual as pessoas nunca devem ser tratadas como meros meios, mas sempre, ao mesmo tempo como um fim. Ver Grundlegung, pp. 427-431. Pode-se dizer que se ninguém tivesse um senso de justiça, não haveria qualquer objeção ao princípio utilitarista. Na ausência desta capacidade, o fato de estar sujeito ao prazer e à dor, à alegria e à tristeza, pode ser tomado como o único relevante, e então o princípio da maior felicidade seria totalmente natural. Certamente, na ausência da capacidade para um senso de justiça, ninguém poderia queixar-se caso o princípio utilitarista fosse aplicado, e, de tal modo, a posse de um senso de justiça é necessária para garantir a concepção de justiça como equidade. A falta de um senso de justiça, entretanto, minaria nossa capacidade de nos identificarmos e de nos preocuparmos com tais pessoas, se é que tal sociedade pode existir. Em uma sociedade em que as pessoas não possuíssem senso de justiça, não ficaríamos comovidos com a injustiças, já que elas não poderiam se ressentir e ficar indignadas sobre si mesmos, não poderíamos nos ressentir e ficar indignados por eles. Isso não é dizer que nós não podemos ficar comovidos com crueldades de uma tal sociedade, mas que do ponto de vista da justiça, essa não seria uma sociedade que despertaria nossos sentimentos morais.

A capacidade para um senso de justiça é, então, necessária e suficiente para que o dever de justiça seja devido a uma pessoa - ou seja, para que uma pessoa seja considerada como ocupando uma posição inicial de igual liberdade. Isso significa que a conduta de alguém em relação a outrem deve ser regulada pelos princípios da justiça ou, de maneira mais geral, pelos princípios que pessoas racionais e auto-interessadas poderiam reconhecer umas diante da outras em tal posição. Esta conclusão pode ser contrastada com duas outras visões possíveis. É distinta do utilitarismo clássico que sustenta que a capacidade de prazer e dor, de alegria e tristeza, é suficiente para ser um sujeito pleno de direitos. A conclusão é também distinta de uma ética aristocrática que toma como necessários certos atributos e capacidades, tais como força, beleza e inteligência superior, os quais imporiam a exigência da igualdade inicial apenas dentro do mesmo nível e permite desigualdades originais entre os níveis superiores e inferiores. Essa doutrina aristocrática só pode ser mantida, penso eu, caso se pressuponha que as partes na posição original assumem uma obrigação específica: a obrigação de desenvolver pessoas humanas de um certo estilo e graça estética, ou a obrigação de buscar conhecimento e cultivo das artes, ou ambas obrigações. Não posso discutir aqui se esse pressuposto é adequado, ou se, caso fosse aceito, justificaria as desigualdades comumente associadas à aristocracia. Basta dizer que na construção analítica nenhuma obrigação deste tipo é assumida. As únicas restrições impostas são aquelas expressas nos elementos formais do conceito de moralidade, e as únicas circunstâncias assumidas são aquelas que evidenciam conflitos de pretensões que dão origem a questões de justiça. A consequência natural dessa construção é que a capacidade para o senso de justiça é o aspecto fundamental da personalidade moral na teoria da justiça.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    28 Dez 2020
  • Aceito
    05 Abr 2021
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