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Sobre o valor dos gêneros musicais: desvelando as encenações do rockcentrismo nas categorizações musicais1 1 Este texto foi originalmente apresentado no Grupo de Trabalho (GT) Comunicação, Música e Entretenimento 45º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, e, posteriormente, retrabalhado para essa versão final.

On the value of musical genres: unveiling rockcentrism’s staging in the axiology of musical categorization

Resumo

O artigo busca pensar criticamente as bases teórico-conceituais dos estudos dos gêneros musicais, examinando o papel que tais estudos, com base no rockcentrismo, exerceram na análise das categorizações musicais. Este percurso parte da observação crítica da influência que o livro Performing Rites: on the value of popular music, do britânico Simon Frith, teve sobre as produções brasileiras. Como contraponto a esse modelo de abordagem dos gêneros musicais, observa-se que, nos últimos anos, questões de gênero, raça e geopolítica foram abordadas de modo dinâmico por meio de gêneros musicais como o brega-funk e o funk em ambientações comunicacionais diferenciadas do universo do rock tradicional que balizou as abordagens usuais das categorizações musicais.

Palavras-chave
gênero musical; rockcentrismo; Simon Frith; categorizações musicais

Abstract

The paper seeks to think critically about the conceptual bases of musical genres studies by examining the role that musical genres and rockcentrism played in the analysis of musical categorizations in Brazil. This path starts from the critical observation of the influence that the book Performing Rites: on the value of popular music, by the British Simon Frith, had on Brazilian articles about those questions. As a counterpoint to this model of approach to musical genres, it is observed that, in recent years, gender, race and geopolitics have been addressed in a dynamic way through Brazilian musical genres such as brega-funk and funk carioca in different communicational settings in the universe of traditional musical categorizations studies.

Keywords
musical genre; rockcentrism; Simon Frith; musical categorization

Introdução

Comecei a apreciar os discos de vinil, chamados de bolachas, na pequena discoteca de meu pai: em um móvel de madeira, com rodinhas que sustentava um aparelho “3 em 1”, dispositivo que unia toca-discos, rádio e toca-fitas em um artefato de pouca amplitude sonora. Lembro de escutar um disco de Agepê, outro de Nat King Cole e uma trilha sonora de novela, hoje esquecida em minhas memórias.

Tenho lembranças difusas de quando me aventurei solitariamente pelos sulcos de dois discos, dos Beatles e de sucessos da discoteca que eu havia adquirido em trocas com vizinhos. Não me recordo exatamente do que ofereci em troca por essas primeiras bolachas de vinil, mas pode ter sido uma antiga bola de plástico e/ou uma camisa de time de futebol. As coletâneas foram minhas primeiras portas de entrada para o mundo dos gêneros musicais, afinal, tratava-se de uma coletânea da banda inglesa referência no universo roqueiro e de uma coleção de músicas para dançar.

Logo que adentrei a adolescência, comecei a ensaiar meus primeiros movimentos de afirmação no universo roqueiro. Pouco antes do casamento de uma tia que morava no Ceará, herdei uma coleção de dezenas de discos que continha vários vinis de rock, pois parecia que não era adequado a uma mulher de classe média, que adentrava a séria orbe do matrimônio, continuar a colecionar discos. Com a posse de meu primeiro botim de vinis — descartados os que não eram de rock (inacreditável! Livrei-me de Alucinação, do Belchior!) —, arrastei o antigo aparelho de som 3 em 1 de meus pais para um pequeno quarto avarandado, onde eu podia me isolar. Como se vê, parte da aventura de tornar-me roqueiro pressupôs um quarto para chamar de meu!

Com a afeição à coleção de discos, acabei por mover-me da varanda para um cômodo mais amplo, situado na parte de cima do sobrado que habitávamos no bairro de Maruípe, em Vitória do Espírito Santo. Inicialmente, o cômodo transformou-se em discoteca, biblioteca e depois, sala de som. Foi por meio da categorização de meus primeiros discos de rock pesado que comecei a vivenciar institivamente essa organização categorial, que, como demonstrou Will Straw, é marcada por traços masculinos.

Em um processo circular, as coleções de discos, como as estatísticas esportivas, fornecem a matéria-bruta ao redor da qual os rituais de interação homossocial ganham forma. Assim como a conversa continuada entre homens molda a composição e a extensão da coleção de cada homem, então cada homem encontra, na semelhança de seus pontos de referência entre pares, a confirmação de um universo compartilhado de julgamento crítico

(Straw, 1997STRAW, William. Sizing up record collections: gender and connoisseurship in rock music culture. In: WHITELY, Sheila. (ed.). Sexing the groove: popular music and gender. New York: Routledge, 1997. p. 3-16., p. 5, tradução nossa).

Com a chegada da adolescência e a possibilidade de experienciar a solitude, a sala de som transformou-se em um estúdio de ensaio, que contava com bateria e um amplificador de baixo. No estúdio, além de discos e instrumentos musicais, coloquei um som modulado, formado por toca-discos, amplificador, toca-fitas, equalizador e caixas de som. O espaço passou a ser chamado de quarto de ensaio, o que possibilitou um novo modo de habitar o mundo ― afinal, quantos jovens possuíam nos 1980 seu próprio estúdio de ensaio? Essa arquitetura sônica-espacial, aliada ao fato de, à época, eu tocar bateria em uma banda de rock pesado, destacou ainda mais os aspectos masculinistas da coleção de artefatos musicais, marcador de distinção no modo de experienciar a cultura musical. Aprender a equalizar o som, organizar os vinis, pensar os discos com base em linhas temporais e/ou similaridades sonoras eram reiterações dos traços heteronormativos incorporados aos valores musicais. É bom frisar que isso não quer dizer que mulheres ou pessoas não bináries não colecionam discos ou manuseiam instrumentos musicais de formas diferenciadas, e sim que as bases do colecionismo dos discos de rock, bem como a participação em uma banda de rock pesado, eram práticas arraigadas em imaginações masculinas, brancas, lineares que influenciaram a cultura taxinômica das categorizações musicais até o final do século XX.

Ao perceber como eu me conformava por meio dos artefatos musicais e das escutas do rock em que imergi naquele período, reconheço que os modos de subjetivação em que me investi como roqueiro tinham como pressuposto um amplo processo de sujeição imposto pela canga dos catálogos que nos eram ofertados pelas grandes gravadoras. Minhas aventuras musicais eram formatadas hegemonicamente por bandas anglófonas, que configuravam o universo do rock pelas antigas rotas coloniais. Afora alguns discos de bandas nacionais lançados de forma independente, por selos como Cogumelo e Baratos & Afins, os discos que me agenciavam tinham como protagonistas Black Sabbath, Blue Oyster Cult, Iron Maiden, Led Zeppelin, Rush, Saxon, Van Halen, entre outros. O que minha turma classificava como heavy metal, com raras exceções, era uma maquinação das prescrições de produtores, músicos, críticos e profissionais de gravadoras oriundas de um modelo arquitetado no norte anglófono. O que estava fora da curva, lançado de forma independente ou esquecido como lançamentos dos anos 1970, como Casa das Máquinas, O Peso e O Terço, eram iguarias raras assimiladas pela universalização temporal vivida por meio da linha-mestra da evolução do rock. Isso quer dizer que, em vez de buscar o localismo, dissensos na narrativa da história do rock, aportávamos essas bandas como outsiders, que reforçavam os próprios mecanismos de sustentação da narrativa da história do rock (emulada pela própria ideia de linha evolutiva da MPB!)

Não é o caso de enxergar no colecionismo um modo de operar de forma homogênea as categorizações musicais, e sim como uma categorização hegemônica acabou por criar modelos que atravessavam as contranarrativas desse percurso. Neste sentido, não é intenção deste artigo descartar o papel das categorizações dos gêneros musicais nem as reduzir a uma agência que nos é imposta de fora, e sim produzir reflexões com base em uma visada para o modo como interiorizamos certas categorizações, buscando, a partir daí, observar questionamentos em torno dos sistemas de classificação musical nas práticas de pesquisa, consumo e organização dos conteúdos musicais.

Tecnodiversidades musicais

Neste tópico proponho (re)pensar como algumas vivências em torno das categorizações e organização dos artefatos musicais, quanto o modo como usualmente abordamos a classificação dos gêneros musicais, fazendo-o com base em algumas reflexões do filósofo chinês Yuk Hui, para quem “[...] o universalismo continua a ser um produto intelectual do Ocidente. Na verdade, nunca houve universalismo (até agora, pelo menos), mas a universalização (ou sincronização) ― um processo de modernização possibilitado pela globalização e colonização” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 61). Ou seja, no contexto desta reflexão, a disseminação de uma certa experiência fonográfica, que se coloca como hegemônica, é assimilada como uma linha temporal globalizada que se torna a métrica de outras discografias, ao passo que esta mesma linha-mestra deixa de ser exclusiva, abrindo brechas para reflexões em torno de outras vivências musicais possíveis diante da música gravada.

Ao utilizar o termo fonografia, não pretendo remeter diretamente a ideia de uma escrita do som, mas, apoiado nas ideias de Alexander Weheliye (2005)WEHELIYE, Alexander Ghedi. Phonographies: Grooves in Sonic Afro-Modernity. Durham; London: Duke University Press, 2005., articular as singularidades da música gravada a uma certa grafia sonora que a aproxima da cinematografia, como inscrições culturais incrustadas em ambientações comunicacionais, reconhecendo que, também no caso da música, a configuração de um ambiente comunicacional supõe que vínculos comunicacionais são configurados na conformação conjunta de ambiente, ambientado e ambientando, evitando as armadilhas de uma compreensão linear das transformações dos processos de disponibilização, circulação, consumo e apropriação dos produtos culturais.

Com base nessa chave, é possível pensar que, tal como ocorreu em diversas formas de maquinações estético-existenciais (caso dos produtos culturais oriundos das indústrias cinematográficas, editoriais e musicais), a música gravada acabou gerando diferentes possibilidades de habitar a modernidade ao redor do mundo. As singularidades já observadas nas conformações da literatura da América Latina, por exemplo, demonstram como a ideia de modernidade é configurada de diferentes modos em relação às metrópoles (Santiago, 2019SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Recife: Cepe Editora, 2019.; Sarlo, 2000SARLO, Beatriz. Jorge Luis Borges: um escritor na periferia. São Paulo: Iluminuras, 2000.; Sussekind, 1997SUSSEKIND, Flora. Cinematógrafo das Letras. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.). Assim, é possível observar a construção de um eixo temporal global sincronizado com base na narrativa linear do espraiamento do rock anglófono pelo mundo, elaborada em torno da criação de uma universalização que oblitera as complexidades que envolvem os aspectos coloniais da distribuição/circulação destas produções fonográficas. Nesse processo, a modernidade norte-centrada torna-se o modelo unilinear de seu desenvolvimento, sem levar em conta que a difusão das tecnologias de gravação/produção/distribuição da música faz emergirem outras formas de vivenciar a experiência moderna.

Comparativamente, cabe imaginar que diferentes gêneros musicais, como bolero, samba, reggae, tango etc., em suas diversidades, e a própria produção de rock na América Latina salientam que a modernidade é experienciada, ao mesmo tempo, de modo plural e singular quando antevista de outros prismas. Como é enfatizado, em outra chave, por Iqani e Resende:

O objetivo é entender questões de mídia e do sul global como, de fato, sendo constitutivas e constituintes desta (dentro e desde) territorialidade, o que quer dizer que a mídia não somente se inscreve em um território (o sul global), mas também é responsável por produzir narrativas sobre ele

(Iqani e Resende, 2019IQANI, Mehita; RESENDE, Fernando. Theorising media in and across the Global South: narrative as territory, culture as flow. In: RESENDE, Fernando; IQANI, Mehita. (ed.). Media and the Global South: narrative territorialities and cross-cultural currents. New York: Routledge, 2019. p. 5-17. p. 7, tradução nossa).

Assim, penso que a fonografia pode ser pensada segundo a ideia universal de técnica, ou seja, “a compreensão do humano como uma espécie em função da exteriorização da memória e da superação da dependência dos órgãos” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 89). É importante observar aqui como há um processo de sujeição operado pela internalização da história linear da música gravada distribuída globalmente. De outro lado, há especificidades localizadas neste processo, chamadas por Yuk Hui de tecnodiversidades, que abrangem motivações e percalços delimitados pelas singularidades geográficas e sociais no modo como as tecnologias modernas podem ser agenciadas. Assim: “[...] não pretendo afirmar que fui ‘colonizado’ de modo torpe pelo rock e, por conseguinte, pelo heavy metal. O que vislumbro aqui é que minhas experiências me permitiram vivenciar, ao mesmo tempo, subjetivações e sujeições, que muitas vezes me atravessaram de modo contraditório no modo de categorizar os gêneros musicais” (Janotti Jr, 2022JANOTTI JR, Jeder. Sobre o valor dos gêneros musicais: desvelando as encenações do rockcentrismo na axiologia das categorizações musicais. 45o Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, [s.l.], 2022.).

Silva, por exemplo, notou que as categorizações rock que trazia em sua bagagem de pesquisadora em Angola não davam conta das dinâmicas dos trânsitos das bandas locais por diferentes gêneros musicais. Deste modo, ela propôs repensar os alicerces que marcavam seu pensamento sobre os gêneros musicais, propondo um modo de pensar para além das habituais narrativas lineares do rock: “a descategorização da música não é sinônimo de eliminação dos sistemas de classificação musical, mas proporciona uma abordagem mais próxima das vivências e dos conhecimentos dos atores sociais” (Silva, 2021SILVA, Melina. O que significa descategorizar o gênero musical? Revista Hodie, Goiânia, n. 21, e66600, 2021., p. 4).

Já para Weheliye:

Essa “modernidade diferente” perturba e desloca as grandes narrativas da razão e do progresso tecnológico, incorporando à mistura aqueles que estão fora dessas categorias, cuja ruptura, por sua vez, renova o significado de modernidade ao resistir à separação dessas duas esferas (modernidade e culturas minoritárias) em categorias nitidamente distintas, pedindo-nos para repensar a própria fonte dessa suposta esfera universal e homogênea.

(Weheliye, 2005WEHELIYE, Alexander Ghedi. Phonographies: Grooves in Sonic Afro-Modernity. Durham; London: Duke University Press, 2005., p. 23, tradução nossa).

Hoje percebo que há uma dessimetria entre a narrativa-mestra de organização do sucesso, capitaneada por relações entre as músicas mais tocadas/ouvidas em perspectiva global, universalizada — como se a ideia de mundo fosse operada somente com base nos pressupostos norte-centrados —, e as modulações locais das músicas mais tocadas/ouvidas.

Encontram-se aqui articulações entre práticas comunicacionais — no sentido de pôr em comum — que se espraiam pelo mundo, como produzir, compartilhar e acessar conteúdos musicais por meio das playlists online, acessar plug-ins como like/deslike/curtir, e incorporar os sistemas de recomendação como sugestão de percursos de escuta em diferentes plataformas de acesso aos conteúdos musicais, como Spotify, Amazon Music, Apple Music, Deezer e Tidal, reencenando de modo contemporâneo tessituras que reproduzem a hegemonia de um modelo que foi operado de acordo com o rock e o pop anglófono, ancorado em um sistema de produção/distribuição de discos e narrativas alavancadas pelas grandes gravadoras multinacionais.

De outro lado, uma olhada nas listas das músicas, artistas e playlists mais acessadas no Brasil em 2022 nas plataformas Spotify e Tik Tok (Tik Tok, 2022TIK TOK: veja as dancinhas que mais bombaram em 2022 na plataforma. A Gazeta, HZ, on-line, 16 dez. 2022. Disponível em: https://tinyurl.com/ycksf6za. Acesso em: 20 jun. 2023.
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; Lopes, 2022LOPES, Leo. Spotify Divulga Retrospectiva de 2022: Marília Mendonça é a mais ouvida no Brasil. CNN Brasil, São Paulo, 30 nov. 2022. Disponível em: https://tinyurl.com/c7b22vch. Acesso em: 20 jun. 2023.
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) mostra que, apesar das técnicas de acesso/compartilhamento/utilização de músicas em plataformas globais, as músicas mais acessadas, artistas e playlists são compostas basicamente de gêneros musicais brasileiros, como funk carioca, sertanejo universitário e arrocha, diferenciando-se completamente da hegemonia anglófona das músicas mais acessadas no mundo (exceção feita ao sucesso do rapper porto-riquenho Bad Bunny, que canta seus hits em espanhol).

Este quadro abre a possibilidade de inúmeros questionamentos/desdobramentos, como a de se pensar a centralidade do número de acessos aos conteúdos musicais em países do hemisfério norte e a inobservância das consequências da ideia de localidade em diferentes regiões em um mesmo país. A título de exemplo, lembro que durante a comemoração do aniversário da cidade de Recife, em março de 2023, o Spotify divulgou a lista das músicas mais executadas na plataforma Spotify na região metropolitana do Recife (Celebrando, 2023CELEBRANDO aniversário do Recife, Spotify divulga as músicas mais escutadas na capital em 2022. Folha De Pernambuco, Recife, 8 mar. 2023. Disponível em: https://tinyurl.com/bdfnjdmb. Acesso em: 20 jun. 2023.
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). Apesar de compartilhar várias músicas, artistas e gêneros musicais presentes na lista das mais tocadas no Brasil em 2022 (como sertanejo universitário e funk carioca, com a presença destacada da cantora Marília Mendonça), chama atenção a presença do piseiro e do pagodão baiano na lista de gêneros musicais mais tocados, bem como dos artistas Léo Santana, Kadu Martins e Nattan, que não apareceram nas listagens das músicas mais tocadas no país em 2022.

Antes de mera curiosidade ou modulação local, acredito que as reflexões em torno das fonografias globais e locais, como observado nos entrecruzamentos das listas das músicas mais tocadas no mundo e no Brasil, permitem repensar o modo como fomos agenciados pelas narrativas globalizadas do desenvolvimento musical de acordo com bases norte-centradas. Daí a insistência em repensar as questões dos trânsitos culturais por meio de tecnodiversidades: “localidade não significa necessariamente etnocentrismo, nacionalismo ou fascismo, mas é aquilo que nos força a repensar o processo de modernização e de globalização e nos permite refletir sobre a possibilidade de reposicionar as tecnologias modernas” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 123).

Seguindo essa trajetória, procuro realizar uma crítica autorreflexiva em torno da influência que a narrativa mestra da categorização musical rock disseminada em obras como Performing Rites: on the value of popular music (Frith, 1996FRITH, Simon. Performing rites: on the value of popular music. Cambridge: Harvard University Press, 1996.), acabou por exercer nos estudos das categorizações dos gêneros musicais no Brasil, o que parece reverberar alguns dos problemas observados nas articulações das narrativas das fonografias globais e localizadas também no campo acadêmico.

Rockcentrismo

O crítico e professor britânico Simon Frith é uma das referências nos estudos dos gêneros musicais em todo o mundo. Ele é considerado um dos responsáveis por levar “a música popular massiva à sério dentro da academia”. Boa parte de sua produção aborda as relações entre valor cultural, sociabilidades musicais e indústria fonográfica sob a óptica das categorizações musicais (Laing e Marshall, 2014LAING, Dave; MARSHALL, Lee (ed.). Popular Music Matters: essays in honour of Simon Frith. Farham: Asghate, 2014.).

Boa parte da obra de Simon Frith sustenta que a compreensão da música, em especial o rock, está ligado ao reconhecimento de tensão entre as estratégias econômicas que caracterizam os produtos midiáticos e os processos criativos que distinguem a poética desses produtos. Para Frith discutir autonomia, valor cultural e artístico da música pressupõe equilibrar-se sobre estética, sociologia e economia da comunicação. A tensão entre lógicas de mercado e fruição estética parece ser fruto de sua autorreflexão sobre sua atuação como crítico musical de conhecidas publicações da língua inglesa, como Melody Maker e The Village Voice, aliado ao seu trabalho acadêmico

(Janotti Jr, 2011JANOTTI JR, Jeder. Simon Frith: sobre o valor da música popular midiática. In: GOMES, Itania; JANOTTI JR, Jeder. Comunicação e Estudos Culturais, Salvador: Edufba, 2011., p. 134).

Simon Frith posiciona-se de modo contrário a um certo distanciamento dos julgamentos de valor que parecem atravessar o universo acadêmico quando depara com produtos da cultura pop. De outro lado, esse enfrentamento da universalidade dos julgamentos de valor acaba por invisibilizar as bases constructo-teóricas que servem de baliza para o modelo de análise das categorizações de gêneros musicais.

O sentido da música popular é o resultado de um processo em o que a significação do texto em si, a organização específica dos sons (e por texto eu quero dizer a combinação aural de música e palavras) não é nem estática nem determinante, mas envolve um número de questões contextuais, questões sobre entretenimento e prazer musical

(Frith, 1981FRITH, Simon. Sound Effects: youth, leisure, and the politics of rock and roll. New York: Pantheon Books, 1981., p. 63, tradução nossa)

A influência de Frith nos trabalhos desenvolvidos no Brasil já foi apontada anteriormente (Janotti Jr, 2011JANOTTI JR, Jeder. Simon Frith: sobre o valor da música popular midiática. In: GOMES, Itania; JANOTTI JR, Jeder. Comunicação e Estudos Culturais, Salvador: Edufba, 2011.; Janotti Jr e Pereira de Sá, 2019SÁ, Simone. Pereira de. Cultura digital, videoclipes e a consolidação da rede de música brasileira pop periférica. Revista Fronteiras: estudos midiáticos, v. 21, n. 2, p. 21-32, maio/ago. 2019.). Apesar de ainda não ter seus livros traduzidos para o português, a obra Performing Rites: on the value of popular music, de 1996, é referência basilar em diferentes discussões sobre os gêneros musicais no Brasil (Almeida, 2021ALMEIDA, Laís Barros Falcão. Controvérsias da MPB na rede: propostas teóricas e métodos digitais na internet para pesquisar a sigla no século XXI. Curitiba: Appris, 2021.; Alonso, 2015ALONSO, Gustavo. Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.; Herschmann, 2007HERSCHMANN, Micael. Lapa, cidade da música: desafios e perspectivas para o crescimento do Rio de Janeiro e da indústria da música independente nacional. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.; Janotti Jr, 2003JANOTTI JR, Jeder; SÁ, Simone Pereira de. Revisitando a noção de gênero musical em tempos de cultura musical digital. Galáxia, São Paulo, n. 41, p. 128-139, maio/ago. 2019.; Oliveira, 2018OLIVEIRA, Luciana Xavier de. A cena musical da Black Rio: estilo e mediações dos bailes soul dos anos 1970. Salvador: EDUFBA, 2018.; Napolitano, 2002NAPOLITANO, Marcos. História & Música: história social da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.; Pereira de Sá, 2019SÁ, Simone. Pereira de. Cultura digital, videoclipes e a consolidação da rede de música brasileira pop periférica. Revista Fronteiras: estudos midiáticos, v. 21, n. 2, p. 21-32, maio/ago. 2019., 2021; Soares, 2017SOARES, Thiago. Ninguém é perfeito e a vida é assim: a música brega em Pernambuco. Recife: Outros Críticos, 2017.; Ulhôa, 2002ULHÔA, Martha Tupinambá de. Categorias de avaliação estética da MPB – lidando com a recepção da música brasileira popular. In: Congreso Latinoamericano De La Asociación Internacional Para El Estudio De La Música Popular, 4., 2002, México D. F. Actas… México D. F.: IASPM-AL, 2002.).

Levando em consideração o modelo de análise dos gêneros musicais de Franco Fabbri (1982)FABBRI, Franco. A theory of musical genres: two applications. In: HORN, D.; TAGG, P. (Org.). Popular Music Perspective. Gothenburg; Exeter: IASPM, 1982. p. 52-81., Simon Frith (1986)FRITH, Simon. Sound Effects: youth, leisure, and the politics of rock and roll. New York: Pantheon Books, 1981. divide a abordagem dos gêneros musicais em convenções sonoras (o que se ouve), convenções de performance (o que se vê), convenções de embalagem (como um tipo de música é vendido) e valores encorpados (ideologias da música). Em que pese, sob as lentes atuais, a estranheza de como se apreendem as convenções de performance, reduzidas à visualidade e à mistura entre “valores encorpados” e os aspectos ideológicos da música, Frith parece reproduzir em alguma medida o viés estruturalista de Fabbri, segundo o qual, por mais que se reconheçam as articulações entre os diferentes estratos de análise dos gêneros musicais, tem-se a sensação de que cabe aos eventos musicais, de alguma forma, serem encaixados no modelo analítico

(Janotti Jr, 2022JANOTTI JR, Jeder. Sobre o valor dos gêneros musicais: desvelando as encenações do rockcentrismo na axiologia das categorizações musicais. 45o Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, [s.l.], 2022., p. 10).

Este modelo estrutural marcará uma ênfase nos aspectos materiais da música gravada, realçando uma espécie de ouvinte ideal que julgaria a produção de seus artistas preferidos como produtos mercadológicos, embalados e endereçados com base no enlaçamento de seus aspectos comerciais e estéticos:

Eu não acredito na arte menor versus negócios como algo que atualmente nos ajude a analisar o rock como uma cultura de massa. É precisamente porque música, dinheiro e adulação não podem ser separados — por músicos e pelo público — que o rock é tão importante. Fãs e músicos de rock, de modo similar, também querem que sua música seja poderosa, que funcione como música e como mercadoria. Reduzir a história da música pop a uma disputa entre músicos (ou pequenos empresários) heróis e marionetes das corporações é ignorar um assunto crítico: as estratégias da música de controle de mercado (que certamente têm suas consequências para a música popular massiva) tem sido desenvolvidas, justamente, porque o mercado não pode ser controlado

(Frith, 1981FRITH, Simon. Sound Effects: youth, leisure, and the politics of rock and roll. New York: Pantheon Books, 1981., p. 91, tradução nossa).

Não se trata somente de música em sentido universal, trata-se de uma narrativa-mestra de como a música é embalada, como circula (por onde!), como é distribuída e gravada, por meio da centralidade de certas ambiências comunicacionais.

Para a maioria dos críticos de rock, então (e esta foi certamente minha experiência), ao final, a questão não é tanto o que representa a música para o público (o público para os músicos) como a criação de uma comunidade de saber ― orquestrando um concluio entre músicos selecionados e uma igualmente selecionada parte do público ― selecionada em sua superioridade comum, ao consumidor pop indiscriminado

(Frith, 1996FRITH, Simon. Performing rites: on the value of popular music. Cambridge: Harvard University Press, 1996., p. 67, tradução nossa).

O que busco discutir aqui é a ascendência de um modelo anglófono de produção/circulação musical, de um público seleto e de um dilentantismo de colecionador, sem a preocupação de considerar as modulações, não só da configuração da indústria fonográfica, mas também da crítica, com base na ideia de tecnodiversidades. Essa hegemonia do modelo norte-centrado de se pensar as categorizações e os gêneros musicais será denominada aqui de rockcentrismo, procurando desvelar os aspectos do colecionismo e das éticas oriundas do mundo do rock, que acabaram por operar na análise dos gêneros musicais efetuada por pesquisadores como Simon Frith.

Como é usual no estilo direto e mundano que marca suas publicações, na introdução de Performing Rites, Simon Frith apresenta uma discussão que permeou um jantar entre acadêmicos na cidade de Estocolmo. Na ocasião, Frith teria se sentido ligeiramente menosprezado por uma menção que teria feito ao valor cultural da dupla britânica de música pop eletrônica Pet Shop Boys. O evento se passa nos anos 1990 e, como é relatado no livro, na época, anfitriões tinham prevalência nesses embates culturais, já que a prerrogativa de sonorizar a argumentação ficava a cargo de quem tinha em mãos uma coleção de discos para reafirmar seus argumentos. Assim, somos convidados a partilhar com o pesquisador britânico do assombro diante do modo com que os colegas suecos o catalogaram: “Mas você gosta de disco!, disse Hillevi, em uma despedida dissimulada, quando fui embora” (Frith, 1996FRITH, Simon. Performing rites: on the value of popular music. Cambridge: Harvard University Press, 1996., p. 6, tradução nossa).

Em um primeiro momento, supõe-se que o pesquisador britânico questiona o acionamento do rock como elemento de valoração do que é valor cultural no universo da música pop, mostrando como foi classificado negativamente por “gostar de disco music”.

Deste modo, uma leitura atenta do introito de Performing Rites dá a ver nuanças em que os julgamentos ético-estéticos das valorações musicais continuam a operar com base em valores do rockcentrismo, mesmo quando seu intuito parecia ser afastar-se dessa marcação. Logo após a narração do aludido jantar, Simon Frith apresenta uma série de reflexões sobre o valor musical dos Pet Shop Boys;

Uma das razões para a eficácia da abordagem das canções do Pet como cenas é que o duo percebeu desde o início que os instrumentos computadorizados liberavam os sons de um contexto performático (outros grupos eletrônicos, é claro, chegaram a mesma conclusão ― Kraftwerk e Yello obviamente. Nisso, com seus gostos disco, os Pets são continentalmente europeus; outros duos britânicos de electro, Blackmage, Tears for Fears e mesmo Erasure, nunca se libertaram da sensação de serem garotos nerd em seus quartos)

(Frith, 1996FRITH, Simon. Performing rites: on the value of popular music. Cambridge: Harvard University Press, 1996., p. 6, tradução nossa).

O pesquisador britânico atribui ao Pet Shop Boys um cosmopolitismo, ao contrário do paroquialismo de outros artistas ingleses de electro. Mas, ao afirmar esse percurso crítico, Frith ativa a imagem da música eletrônica como produto de nerds impopulares trancados em seus quartos, replicando um estereótipo oriundo do rock, em que a noção de contexto performático está associada à execução ao vivo de instrumentos tradicionais como guitarra, baixo, bateria, e malabarismos vocais, que não incluem instrumentos computadorizados e música para dançar.

Os exemplos citados acima reforçam a impressão de valor assinalada por Simon Frith ao escrever que: “E assim em seus shows ‘ao vivo’, o Pet Shop Boys tiveram muito trabalho, contratando cineastas e cenógrafos, para realizar eventos musicais que não se assemelham com concertos pop” (Frith, 1996FRITH, Simon. Performing rites: on the value of popular music. Cambridge: Harvard University Press, 1996., p. 7, tradução nossa). Com isso, está-se mais uma vez diante de estratégias de valoração da música segundo uma axiologia oriunda da ideia de performance como um efeito de presença obtido pela suposta autenticidade de uma apresentação ao vivo, que tem como modelo as apresentações ao vivo de rock. Fico a me perguntar em que ponto, a não ser a partir do rockcentrismo, as apresentações do Pet Shop Boys não se assemelham a concertos de música pop? Ou seja, para reconhecer a qualidade musical do duo inglês, Frith retira-os da ambiência das apresentações de música pop para reconhecer seu valor cultural. É surpreendente ver que a contratação de cineastas e coreógrafos, artífices comuns na confecção de turnês de música pop, é vista por Frith como responsável por distanciar as apresentações do Pet Shop Boys dos concertos pop.

Ao continuar a leitura do livro de Frith, é possível notar que o reconhecimento do valor de música de qualidade para o duo Pet Shop Boys continua a ser acionado segundo clichês oriundos do universo do rock clássico, apoiados pela afirmação de que esse quadro axiológico é construído de acordo com elementos heteronormativos, de modo que reconhece na música disco do Pet Shop Boys um intenso apelo intelectual, que os retiraria das sensualidades usualmente associadas à música disco, ou seja, música para dançar:

Sua homossexualidade é menos significativa (aqui pelo menos para um fã heterossexual) do que sua fluência emocional; é como se os espaços ocupados fossem, na verdade, momentos congelados no tempo, os momentos antes e depois da emoção (por isso é uma música disco com intenso apelo intelectual), os momentos que a melhor música pop continuamente definiu (nada mais pode parar o tempo assim

(Frith, 1996FRITH, Simon. Performing rites: on the value of popular music. Cambridge: Harvard University Press, 1996., p. 8, tradução nossa).

Percebe-se o acionamento de um velho clichê que valoriza o intenso apelo intelectual, como forma de não reconhecer a sensualidade, por si só, como traço de qualidade da música do Pet Shop Boys. Ganha destaque o fato de que as considerações sobre o modo como os valores sonoro-musicais do Pet Shop Boys congelam as marcas estético-sensuais de certas emoções que podemos chamar de coreosônicas.

O julgamento pop é um processo duplo: nossa tarefa crítica como fãs é primeiro fazer com que as pessoas ouçam as coisas certas (daí todas essas referências a outras bandas e sons), e só então persuadi-las a gostarem delas. Nossas discussões cotidianas sobre música estão concentradas no primeiro processo: fazer com que as pessoas ouçam da maneira certa

(Frith, 1996FRITH, Simon. Performing rites: on the value of popular music. Cambridge: Harvard University Press, 1996., p. 8, tradução nossa).

A questão, me parece, é que a maneira certa de ouvir música pop, aludida por Simon Frith, parece estar acoplada ao colecionismo e às assertivas valorativas procedentes do imaginário roqueiro, como a imposição de “ouvir as coisas que importam e de maneira acertada”.

Repensando as categorizações dos gêneros musicais

A proposta analítica de Simon Frith dos gêneros musicais parece produzir certo enrijecimento da análise da categorização dos gêneros musicais: “Frith (1996)FRITH, Simon. Performing rites: on the value of popular music. Cambridge: Harvard University Press, 1996. divide a abordagem dos gêneros musicais em convenções sonoras (o que se ouve), convenções de performance (o que se vê), convenções de embalagem (como um tipo de música é vendido) e valores encorpados (ideologias da música)” (Janotti Jr, 2022JANOTTI JR, Jeder. Sobre o valor dos gêneros musicais: desvelando as encenações do rockcentrismo na axiologia das categorizações musicais. 45o Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, [s.l.], 2022., p. 9). Por mais que se articulem as diferentes camadas de análise, fica-se com a impressão de que cabem aos eventos musicais serem alocados na proposta analítica, o que acaba por deixar pouco espaço para que as categorizações dos gêneros musicais possam ser pensadas de forma heurística, observando as mudanças articuladas pela produção/circulação/consumo musical, bem como pelas transformações das modalizações dos gêneros musicais em suas ambientações comunicacionais.

Em artigo de 2003, procurei aplicar o modelo analítico de Simon Frith à análise do disco À Procura da Batida Perfeita, de Marcelo D2. Neste caso, as formatações da forma analítica se tornaram evidentes, como se pode notar abaixo:

Tal como no samba tradicional, o rap também valoriza a citação de sua linhagem. Assim, Vai Levando2 2 Segunda faixa do álbum À Procura da Batida Perfeita, lançado originalmente em CD, em 2003, pela Sony Music. mistura desde nomes tradicionais do samba, “Candeia”, intérpretes contemporâneos, “Seu Jorge”, com personalidades do rap, “De Mos Def a Bambatta”. Reconhecendo os traços comuns que caracterizariam a improvisação e a versificação dos encontros de rappers e de sambistas: “partideiros, repentistas, versadores”. Mas esses encontros permanecem tensivos, tal como apontado na base rítmica e melódica, o refrão, Marcelo D2, aquele que personifica esse encontro, sente-se deslocado: “Eu vim com o pesadelo do pop”, o não-reconhecimento e a desconfiança da cultura hip hop diante de elementos pop como o refrão, Marcelo D2 é contratado de uma mega gravadora, a Sony Music [...] Desse modo, a mistura, o tensivo e a bricolagem acabam sendo reconhecidas como “positividades”, realçando a mistura entre tradição e novidade. “Não tem parada que não pode”

(Janotti Jr, 2003JANOTTI JR, Jeder. À procura da batida perfeita: a importância do gênero musical para a análise da música popular massiva. Revista ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 31-46, 2003., p. 42).

O modelo que partia de uma definição prévia dos gêneros musicais, em vez da percepção das singularidades exemplares, mostrava a falta de modulação e redimensionamentos sociais que a proposta analítica carregava. Na época da escrita do artigo, embebido pelo imaginário que imputei ao papel do rap político capitaneado pelos Racionais MC, não me atentei para as possibilidades abertas pelo pop rap em termos de articulação do rap com o mercado pop mainstream, e por outras poéticas que a música diaspórica apresentava em encontros entre, por exemplo, rap e reggaeton, bem como rap e funk, que permitiriam perceber mudanças significativas que estavam acontecendo nas contaminações ocorridas nos encontros de diferentes gêneros musicais. Ao valorizar o samba e o rap como lugares estanques, acabei reafirmando o entrelugar que marcaria os hibridismos sonoros de Marcelo D2, sem pensar que esses trânsitos poderiam apontar não só para modulações na poética do rap, da ideia do que é rap, quando pensadas segundo designações étnico-geográficas que acionam diferentes concepções de brasilidade, como tem sido demonstrado pelo espraiamento da figura do MC por diferentes gêneros musicais brasileiros, como brega, funk, funk ostentação e tecnobrega.

Levando-se em consideração que gêneros e categorizações musicais projetam e são projetados a partir da criação e consolidação de vínculos comunicacionais, que não se restringem aos aspectos formais propostos por pensadores como Simon Frith, ressalto então que as modulações das questões de gênero, raça, classe e geopolítica não funcionam como adendos sociológicos às pesquisas que trabalham no campo das categorizações musicais, e sim como materialidades que atravessam as discussões sobre gêneros musicais

(Janotti Jr, 2022JANOTTI JR, Jeder. Sobre o valor dos gêneros musicais: desvelando as encenações do rockcentrismo na axiologia das categorizações musicais. 45o Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, [s.l.], 2022., p. 11).

Observando essas reflexões, torna-se importante perceber que expressões sonoras afrodiaspóricas, como o rap e o reggae, possibilitam cotejamentos de questões de gênero, raça e geopolítica que surgem de maneira tímida ou são obliteradas no modelo analítico proposto por Frith. Esses recortes constroem reflexões com base em outras perspectivas em torno das multiplicidades que atravessam as próprias etiquetagens perpassadas pela ideias tradicionais das categorizações musicais:

O momento da Música da Diáspora Africana no Brasil é o reposicionamento da cultura negra em reação aos padrões nacionalistas pré-estabelecidos. A necessidade de posicionamento linguístico por meio de um léxico gramatical africanizado introduz, no discurso poético das letras, expressões africanas e afro-brasileiras. Esta estrutura comunicativa permite notar uma ruptura com o legado híbrido, cuja expressividade orientou, não apenas o destino da música popular no Brasil como também o padrão de valores e de estética nacionais. Aliado a essa estrutura comunicativa, formas desterritorializadas foram interpostas nas produções culturais no campo da música negra. O “movimento” do cotidiano nacional-transnacional só pôde ser evidenciado no momento que foi interpretado, não como fenômeno nacional, mas como movimento diaspórico. Isso abriu um novo olhar intelectual para as proposições criativas da política cultural negra como estruturas de sentimento que criaram culturas afro-atlânticas e romperam as amarras do pertencimento nacional

(Santos e Silveira, 2018SANTOS, José Ricardo Marques dos; SILVEIRA, Dener Santos. O momento da música diaspórica africana. Odeere: Revista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade, Jequié, v. 3, n. 6, jul./dez. 2018., p. 194).

Um passeio atento sobre as pesquisas produzidas no Brasil permite inferir que a abordagem dos gêneros musicais tem-se modificado de acordo com a reencenação das produções musicais que não estão situadas nas narrativas-mestras dos gêneros musicais ditos globalizados. Morena Melo Dias e Daniel Oliveira de Faria, por exemplo, levantam questões sobre os atravessamentos entre gênero e gênero musical em recentes categorizações musicais.

A partir disso, torna-se possível pensar, por exemplo, como as definições Geração Lacre/MPBtrans e MPBixa articulam estrategicamente grupos socialmente situados nos problemas de gênero (Butler, 2017) ou quais as disputas internas que se estabelecem entre as cantoras transgênero Liniker, Linn da Quebrada e As Bahias e a Cozinha Mineira, a partir da construção de musicalidades distintas, centradas em lógicas de performance e elementos sonoros do soul/mpb, rap/funk e mpb, respetivamente

(Dias e Farias, 2020DIAS, Morena Melo; FARIAS, Daniel Oliveira. Música constrói gênero? Uma abordagem discursiva e cultural sobre gênero musical e identidade de gênero. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 29., 2020, Campo Grande. Anais... Brasília: Compós, 2020., p. 16).

Outros trabalhos destacam as mudanças políticas que gêneros musicais ditos brasileiros têm operado nos processos de produção e circulação musical com a acessibilidade às novas tecnologias e a conectividade dinâmica de plataformas digitais, como o YouTube, Spotify e Instagram (Janotti Jr e Pereira de Sá, 2019SÁ, Simone. Pereira de. Cultura digital, videoclipes e a consolidação da rede de música brasileira pop periférica. Revista Fronteiras: estudos midiáticos, v. 21, n. 2, p. 21-32, maio/ago. 2019.; Pereira de Sá, 2021SÁ, Simone. Pereira de. Música pop-periférica brasileira: videoclipes, performances e tretas na cultura digital. Curitiba: Appris, 2021.).

Nesse cenário, a centralidade fractal das plataformas streaming de disponibilização de conteúdos musicais acaba por transformar a antiga rigidez das categorizações musicais, já que canais de YouTube e playlists de plataformas como o Spotify oferecem acessos e contágios entre diferentes categorizações musicais que eram pouco usuais no antigo universo dos colecionismos e das rádios tradicionais do rock clássico.

Características da ambientação digital da música, como responsividade, elasticidade, resiliência e reatividade, acabam por contaminar o encontro de diferentes categorizações musicais. Por exemplo, se antes o acento pop era uma emulação de parâmetros anglófonos encenados a partir das matrizes do Norte Global, hoje o epíteto pop, como no brega pop e funk pop, rearticula as relações colônia/metrópole, através de rotas transnacionais que não seguem, necessariamente, os antigos padrões coloniais do mundo da música

(Janotti Jr, 2022JANOTTI JR, Jeder. Sobre o valor dos gêneros musicais: desvelando as encenações do rockcentrismo na axiologia das categorizações musicais. 45o Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, [s.l.], 2022., p. 13).

De outro lado, a perda da hegemonia da ideia de álbum, lugar solidificado no mundo do rock, em prol do lançamento de faixas individuais, além de afetar a sazonalidade hegemônica associada aos lançamentos dos álbuns, também contribui para que outros modos de valorar a classificação musical ganhem força. Assim, o lançamento de faixas, singles, que articula videoclipes, coreografias para plataformas, como o Tik Tok, marketing nas redes sociais e presença nas playlists das plataformas de streaming, aponta para mudanças significativas nas categorizações musicais em tempos de ambiências digitais.

Conclusões circunstanciais

Como foi possível notar nos apontamentos feitos ao longo do artigo, os atravessamentos das categorizações musicais não hegemônicas colocam em cena outras valorações musicais, como o papel das coreografias e a ideia de autenticidade quando acionadas de acordo com o universo das divas pop, em detrimento da antiga concepção de destreza musical representada pela figura do guitar hero (Soares, 2020SOARES, Thiago. Divas Pop; o corpo-som das cantoras na cultura midiática. In: LINS, Mariana; MANGABEIRA, Alan; SOARES, Thiago (org.). Divas Pop: o corpo-som das cantoras na cultura midiática. Belo Horizonte: Selo PPGCOM/UFMG, 2020. p. 25-42.). Essas oscilações nos jogos políticos materializados nas (re)categorizações musicais produzidas em outras redes possibilitam a revisão das rotas de produção, circulação, consumo e apropriações musical, apontando para a importância de uma virada crítica na abordagem dos gêneros musicais.

O instigante trabalho sobre disputas de gênero, raça e geopolítica com base na importância das danças de bunda no funk (Tenório, 2021TENÓRIO, Winglison Henrique do Nascimento. Senta a bunda: a bunda performática em videoclipes de funk como indicativo de disputas interseccionais e de gêneros musicais. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 44., 2021, Recife. Anais... São Paulo: Intercom, 2021.) faz imaginar como coreografias atravessadas por rebolados como o twerk acabaram por ser materializadas em diferentes gêneros musicais, como brega funk, reggaeton, rap, entre outros. Além de abrir possibilidades de pensar a contaminação entre diferentes categorizações musicais materializadas em encontros e entrelaçamentos de diferentes gêneros musicais, como música de pista, e permitir observar as dimensões coreossônicas das categorizações musicais, também permite pensar o protagonismo de corporalidades femininas, negras e não bináries como tangenciamentos dos gêneros musicais (James, 2019JAMES, Robin. The Sonic Episteme: acoustic resonance, neoliberalism and biopolitics. Durham; London: Duke University Press, 2019.). Assim, é possível incorporar aos processos de categorização musical a conectividade fluida das ambientações digitais e os trânsitos tecnossubjetivos como marcadores das classificações musicais.

As categorizações e nomeações dos gêneros musicais continuam a ser importantes balizadoras dos modos de produção, circulação, apropriação e consumo de música. Não se trata de invisibilizá-las ou negar o complexo jogo cultural que está em cena nesses processos, mas sim notar que as narrativas e categorizações centradas na crítica rock ocupou um papel preponderante no universo do entendimento dos gêneros musicais, emulando, neste caso, as supostas neutralidade e universalidade operadas na construção do conhecimento acadêmico e forjadas no norte global.

Diante disso, ao observar as resiliências, os trânsitos e a emergência de outras categorizações musicais anotadas pelas pesquisas brasileiras, notei que os cortes geopolíticos, etários, de gênero e raça não funcionam só como marcadores sociais, mas também como importantes materialidades para se repensar o colonialismo epistemológico efetuado pelo etnocentrismo e pela heteronormatividade presentes na análise dos gêneros musicais efetuados em visadas oriundas do rockcentrismo.

  • 1
    Este texto foi originalmente apresentado no Grupo de Trabalho (GT) Comunicação, Música e Entretenimento 45º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, e, posteriormente, retrabalhado para essa versão final.
  • 2
    Segunda faixa do álbum À Procura da Batida Perfeita, lançado originalmente em CD, em 2003, pela Sony Music.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2023
  • Aceito
    28 Nov 2023
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