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Pesquisando ecotranssistemas musicais-midiáticos na cidade do Rio de Janeiro1

Researching musical-media ecotranssystems in the city of Rio de Janeiro

Resumo

Tomando como referência não só uma breve revisão da literatura especializada, mas também as pesquisas realizadas nos últimos anos, busca-se contribuir com o debate teórico-conceitual que envolve a noção de ecossistema na contemporaneidade. Ao mesmo tempo, sugerimos neste trabalho o emprego do conceito de Ecotranssistema Musical-Midiático (EMM), aqui cunhado como noção profícua que não apenas possibilitaria se repensar as dinâmicas musicais e comunicacionais de maneira articuladas, mas também sinalizaria aos pesquisadores a relevância fundamental do trabalho de investigação de campo (mesmo este sendo precário e limitado), isto é, a importância de se seguir os rastros e vestígios dos atores humanos e não humanos nas dinâmicas de reagregação social.

Palavras–chave
comunicação; música; cultura; epistemologia; ecossistema

Abstract

Not only taking as a referenc a brief review of specialized literature, but also research carried out in recent years, we seek to contribute to the theoretical-conceptual debate that involves the notion of ecosystem in contemporary times. At the same time, in this work we suggest the use of the concept of Musical-Media Ecotranssystem (MME), conceived here as a fruitful notion that would allow not only the rethinking of musical and communicational dynamics in an articulated way, but also signal to researchers the fundamental relevance of field investigation work (even though it is precarious and limited), that is, the importance of following the tracks and traces of human and non-human actors in the dynamics of social reaggregation.

Keywords
communication; music; culture; epistemology; ecosystem

Introdução

O presente artigo tem como propósito fornecer suporte ao debate conceitual relacionado à noção de ecossistema e a termos correlatos como ecologia, sustentabilidade e resiliência. Busca-se analisar a utilização desse termo como metáfora para se repensar o dinamismo das tramas em diferentes espaços de maneira aberta e fluida. Para tanto, revisitamos aqui as primeiras definições produzidas desde o campo da biologia, construindo um alicerce teórico que possibilite a compreensão das aproximações metafóricas com outros campos do saber2 2 Uma análise das afinidades e possibilidades de integração entre ciências humanas e biológicas (que passa ao largo dos usos de suas terminologias como metáfora) pode ser encontrada no trabalho de Giuliani (1998). Pickett e Cadenasso (2013) também abordam a relação direta de ecologistas com cientistas sociais, geógrafos e planejadores urbanos. . Na segunda parte — tomando como referência não só uma breve revisão da literatura especializada, mas as pesquisas realizadas nos últimos anos — construímos o conceito do que denominamos de Ecotranssistema Musical-Midiático (EMM), inclusive correlacionando esta noção a alguns exemplos de nossas pesquisas em curso.

Tomando como referência não só uma breve revisão da literatura especializada, mas também as pesquisas realizadas nos últimos anos, busca-se contribuir com o debate teórico-conceitual que envolve a noção de ecossistema na contemporaneidade. Ao mesmo tempo, sugerimos neste trabalho o emprego do conceito de Ecotranssistema Musical-Midiático (EMM), aqui cunhado como noção profícua que não apenas possibilitaria se repensar as dinâmicas musicais e comunicacionais de maneira articuladas, mas também sinalizaria aos pesquisadores a relevância fundamental do trabalho de investigação de campo (mesmo este sendo precário e limitado), isto é, a importância de se seguir os rastros e vestígios dos atores humanos e não humanos nas dinâmicas de reagregação social.

Crescente relevância do conceito de Ecossistema

Nosso percurso teórico se inicia com Odum (2004)ODUM, Eugène P. Fundamentos de ecologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004., autor responsável, em grande medida, por tornar paradigmática a ideia de ecossistema, graças ao desenvolvimento, nas décadas de 1960 e 1970, de uma área de pesquisa que a colocava em foco (Pickett e Cadenasso, 2013). No texto Fundamentos de Ecologia, Odum realiza uma breve historicização da noção de ecologia, apontando os discursos (nos séculos XVIII e XIX) que a constroem. Explicando que o termo ecossistema foi proposto em primeira mão pelo ecologista inglês A. G. Tansley em 1935 ― suplantando ao longo dos anos outros conceitos, tais como microcosmo ou geobiocenose ―, Odum argumenta que seu sentido é amplo, “sendo a sua principal função no pensamento ecológico dar realce às relações obrigatórias, à interdependência e às relações causais, isto é, à junção de componentes para formar unidades funcionais” (Odum, 2004ODUM, Eugène P. Fundamentos de ecologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004., p. 13). Odum nota ainda que no mesmo ecossistema estão incluídos não somente organismos vivos, pois estes “e o seu ambiente inerte (abiótico) estão inseparavelmente ligados e interagem entre si” (Odum, 2004ODUM, Eugène P. Fundamentos de ecologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004., p. 11). Ressaltamos esse ponto, em certo sentido, porque por meio da noção de ecossistema buscamos justamente dar relevo aos atores não humanos em diferentes processos cotidianos. É interessante notar que o debate ecológico dialoga e se aproxima de certa maneira de alguns preceitos defendidos pela teoria ator-rede, na medida em que oferece destaque aos agenciamentos não humanos e se propõe a repensar e relativizar o lugar de centralidade dos atores humanos (Latour, 2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social. Salvador: EDUFBA, 2012.).

Nota-se que, ainda que tenhamos algumas críticas à perspectiva moderna e totalizante da definição proposta por Tansley em 1935, reconhecemos evidentemente a sua importância histórica. Segundo esse autor, o ecossistema seria: “uma comunidade ou assembleia biótica e seu ambiente físico, associados em um local específico, sendo os principais componentes do conceito suas [complexas] características abióticas e bióticas e as interações entre elas” (Tansley, 1935TANSLEY Arthur. George. The use and abuse of vegetational concepts and terms. In: ECOLOGY, v. 16. Nova Jersey: Wiley, 1935. p. 284-307., p. 286, tradução nossa).

O trabalho dos ecologistas Pickett e Cadenasso (2002)PICKETT, Steward. T. A; CADENASSO, Mary L. The ecosystem as a multidimensional concept: meaning, model and metaphor. In: Ecosystems, Wisconsin: Springer-Verlag, v. 5, p. 1-10, 2002., por sua vez, explora as formas pelas quais a noção de ecossistema é utilizada na contemporaneidade. Para esses autores, a definição conceitual de ecossistema seria neutra (podendo ter escalas variadas, ser estável ou instável, fugaz ou duradouro) e, assim, modelos seriam importantes para definir os enfoques abordados e tornar a ferramenta teórica útil aos ecologistas. À medida que travaram contato com pesquisas em ciências sociais, os autores explicam, as modelagens acabaram também considerando aspectos sociais em interação com outros seres, animados ou inanimados. Não enfocaremos aqui os usos de modelos como os propostos por Pickett e Cadenasso. Não obstante, nota-se a relevância de considerar, dada a amplitude de possibilidades, possíveis molduras analíticas como as utilizadas por esses modelos (quais as partes e as interações de interesse, por exemplo), demarcando o que será (e, evidentemente, o que não será) abordado nas análises. Pickett e Cadenasso, diga-se, também abordam especificamente as utilizações metafóricas de ecossistema. Segundo eles, diferentes áreas (como economia e comunicação) vêm empregando o termo de variadas maneiras na contemporaneidade, sendo que as múltiplas “camadas de significado e uso têm ligações teóricas específicas, mas muitas vezes não reconhecidas” (Pickett e Cadenasso, 2002PICKETT, Steward. T. A; CADENASSO, Mary L. The ecosystem as a multidimensional concept: meaning, model and metaphor. In: Ecosystems, Wisconsin: Springer-Verlag, v. 5, p. 1-10, 2002., p. 1). Neste ponto indiretamente relevante para as nossas reflexões, eles concluem que o uso como metáfora estimula “a síntese e a integração dentro do domínio da ciência e também pode carregar uma variedade de pressupostos socialmente significativos” (Pickett e Cadenasso, 2002, p. 7).

Nas ciências sociais, o pioneirismo do emprego da noção de ecologia dá-se nos trabalhos desenvolvidos pelos sociólogos da Escola de Chicago. O termo aparece como metáfora para tratar a cidade como ambiente, articulando com conceitos ecológicos vigentes na época, como competição, nichos e sucessão. Embora a ecologia urbana de Park (2018)PARK, Robert Ezra. A sociologia urbana de Robert E. Park. Organização e introdução, Licia do Prado Valladares, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2018., como sugere Frúgoli Jr. (2007)FRÚGOLI JR., Heitor. Sociabilidade urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 2007., tenha sido descartada (sendo confrontada com os próprios resultados dos estudos empíricos), autores como Joseph (2005)JOSEPH, Isaac. A respeito do bom uso da Escola de Chicago. In: VALLADARES, Lícia. (org.). A Escola de Chicago: impactos de uma tradição no Brasil e na França. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Ed. UFMG/IUPERJ, 2005. propõem retomar de certa maneira a noção criada por Park. Joseph recorda que a definição seminal de Park para ecologia é notadamente abrangente, pois envolve: “a descrição de constelações típicas de pessoas e instituições em uma área de habitat humano e das forças que convergem para produzir essas constelações” (Joseph, 2005JOSEPH, Isaac. A respeito do bom uso da Escola de Chicago. In: VALLADARES, Lícia. (org.). A Escola de Chicago: impactos de uma tradição no Brasil e na França. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Ed. UFMG/IUPERJ, 2005., p. 111). A releitura de Park realizada por Joseph nos parece profícua por compreender a cidade para além de um mosaico de territórios, constituindo-se em espaços que põem certas constelações em interações. Para esse autor, as “forças ecológicas” convertem a urbanidade em um fenômeno territorial que age ao mesmo tempo estimulando a movimentação e a concentração dos atores locais. Como veremos mais adiante, ainda que seja uma tarefa complexa, parte-se do pressuposto de que seja possível estudar as várias camadas palimpsescas das cidades, vivenciando a experiência sensível do corpo na trama urbana e dando voz e visibilidade a ecotranssistemas musicais-midiáticos pouco conhecidos.

Não poderíamos deixar de mencionar também a noção de ecologia sonora (ou ecologia acústica) desenvolvida por Schafer (2001)SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo. São Paulo: Ed. Unesp, 2001. — de forma articulada também com a noção de paisagem sonora —, que buscou problematizar de que formas as sonoridades interdependentes vêm se (re)combinando nos processos de geração de ambientes acústicos. Essa abordagem ecológica nos interessa menos pelo seu esquematismo e militância (seu viés de engajamento contra o que o autor considera o fenômeno crescente do muzak e da poluição sonora dos grandes centros urbanos) e mais por enfatizar também a interação entre os elementos sonoros e a influência do ambiente acústico nas experiências comunicativas.

Outro autor que permite compreender esse percurso teórico é Aliel (2017)ALIEL, Luzilei. Ensaios sobre comprovisações em ecologia sonora: Perspectivas Práticas e Teóricas. 2017. Dissertação (Mestrado em Música). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., que constrói uma revisão bibliográfica da noção de ecologia sonora, apresentando os principais debates do campo da ecologia acústica até fins da década de 2010. Nesse estudo, o autor define ecologia sonora ressaltando a subjetividade, complexidade, inter-relação e imprevisibilidade como contingências presentes nos ecossistemas:

Compreendemos a ecologia dos sons como a subjetividade sônica de lugar captada através [da] percepção de cada agente contido neste sistema. Este sistema se torna complexo a cada ciclo onde os agentes percebem os recursos materiais e cognitivos, analisam suas possibilidades de interação e sintetizam ações que alteram o entorno que se adapta regularmente para proporcionar um novo ciclo. Consideramos significante apontar que toda forma de perspectiva ecológica possui primordialmente um contexto caótico e de imprevisibilidade intrínseco que pode vir a causar mudanças significativas no sistema. Neste contexto geral, consideramos que toda forma de imprevisibilidade poderá ser conceituada como uma contingência no sistema, que em nossa condição sonora será determinada pela capacidade de improvisação dos agentes. São as tomadas de ação e retomadas de reação que poderão causar ciclos sonoros castamente divergentes que irão transformar o sistema drasticamente

(Aliel, 2017ALIEL, Luzilei. Ensaios sobre comprovisações em ecologia sonora: Perspectivas Práticas e Teóricas. 2017. Dissertação (Mestrado em Música). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 29).

Como assinala Aliel, apesar de boa parte dos trabalhos nessa área estarem dedicados a tratar das especificidades mais técnicas do som (a oferecer, por exemplo, análises comparativas entre aspectos sonoros dos espaços públicos e privados ou levantamentos quantitativos que buscam correlacionar as sonoridades a contextos diversos), há uma linha de estudos que pesquisa especificamente as relações sociais e as questões acústicas, que claramente dialoga com alguns dos trabalhos que têm sido desenvolvidos no campo da comunicação no Brasil, corrente de estudos sônicos aos quais estamos alinhados (Trotta, 2020TROTTA, Felipe. Annoying Music in Everyday. Londres: Bloomsbury, 2020.; Herschmann e Fernandes, 2014HERSCHMANN, Micael; FERNANDES, Cíntia Sanmartin. Músicas nas ruas do Rio de Janeiro. São Paulo: Ed. Intercom, 2014.; Pereira, 2021PEREIRA, Vinicius Andrade Mercado de ruídos e sons para o bem-estar. Intexto, PPGCOM/UFRGS, Rio Grande do Sul, n. 52, 2021.).

Já no campo da etnomusicologia, especialmente nas últimas décadas — como sugere o trabalho de Souza (2022)SOUZA, Thiago Costa de. Ecossistema musical, resiliência e gerenciamento adaptativo. Anais da Anppom. XXXII Congresso da Anppom. Natal, 2022. ou autores como Titon (2015)TITON, Jeff. Sustainability, Resilience, and Adaptive Management for Applied Ethnomusicology. In: PETTAN, Svanibor; TITON, Jeff (ed). The Oxford handbook of applied ethnomusicology. Nova York: Oxford University Press, 2015. p 157-195. e Schippers (2015)SCHIPPERS, Huib. Applied Ethnomusicology and Intangible Cultural Heritage: Understanding Ecosystems of Music as a Tool for Sustainability. In: PETTAN, Svanibor; TITON, Jeff. (eds.). The Oxford handbook of applied Ethnomusicology. Nova York: Oxford University Press, 2015. p 134-156. —, o termo ecossistema em geral tem sido correlacionado com outras noções importantes, tais como resiliência e sustentabilidade. Nos ateremos a alguns detalhes dessas proposições, ressaltando a riqueza dessa longa discussão conceitual3 3 Segundo Schippers (2015), o campo da etnomusicologia já recorria a noções de ecologia desde a década de 1960. O autor destaca o trabalho de Titon (2015), o qual há mais de trinta anos vem conduzindo um debate teórico rico sobre o uso de termos como ecologia, sustentabilidade e ecossistema. . Afirmando a noção de “ecossistema musical” (a qual não se afasta muito da perspectiva proposta por Tansley), Schippers revisita abordagens comparativas que escapam do viés eurocêntrico para explorar os vínculos “entre sustentabilidade e ecologia da música de uma perspectiva contemporânea, holística e global” (Schippers, 2015SCHIPPERS, Huib. Applied Ethnomusicology and Intangible Cultural Heritage: Understanding Ecosystems of Music as a Tool for Sustainability. In: PETTAN, Svanibor; TITON, Jeff. (eds.). The Oxford handbook of applied Ethnomusicology. Nova York: Oxford University Press, 2015. p 134-156., p. 135, tradução nossa). Esse autor define ecossistema musical como:

O complexo de fatores que definem a gênese, o desenvolvimento e a sustentabilidade da cultura musical circundante no sentido mais amplo, incluindo (mas não limitado a) o papel dos indivíduos, comunidades, valores e atitudes, processos de aprendizagem, contextos para fazer música, infraestrutura e organizações, direitos e regulamentos, diáspora e viagens, mídia e indústria da música

(Schippers, 2015SCHIPPERS, Huib. Applied Ethnomusicology and Intangible Cultural Heritage: Understanding Ecosystems of Music as a Tool for Sustainability. In: PETTAN, Svanibor; TITON, Jeff. (eds.). The Oxford handbook of applied Ethnomusicology. Nova York: Oxford University Press, 2015. p 134-156., p. 137, tradução nossa).

Schippers assinala que todas as forças que impactam a música são “parte do ecossistema, incluindo [por exemplo] tecnologia, comercialização, legislação, globalização e mídia” (Idem, p. 140). Assim, “para entender a influência desses domínios na sustentabilidade, é importante considerar não apenas cada domínio individual, mas o todo como ecossistema. Cada um desses domínios [...] se sobrepõe e se inter-relaciona afetando as culturas musicais” (Idem, p. 144, tradução nossa).

Destacando o ecossistema como resultados de variados processos, Schippers afirma que é preciso “considerar o passado, presente e futuro das práticas musicais como parte de um ecossistema complexo e muitas vezes delicado” (Idem, p. 139, tradução nossa). Nesse sentido, o autor argumenta que o objetivo da sustentabilidade

[...] não é necessariamente a preservação de todas as formas de expressão musical, mas um futuro para aquelas que músicos, comunidades e outras partes interessadas acham que vale a pena preservar e desenvolver e que estão em risco devido a uma série de circunstâncias fora de seu controle

(Schippers, 2015SCHIPPERS, Huib. Applied Ethnomusicology and Intangible Cultural Heritage: Understanding Ecosystems of Music as a Tool for Sustainability. In: PETTAN, Svanibor; TITON, Jeff. (eds.). The Oxford handbook of applied Ethnomusicology. Nova York: Oxford University Press, 2015. p 134-156., p. 138).

Titon, por sua vez, enfatiza (em consonância, em alguma medida, com o que Aliel entende como imprevisibilidades) que o antigo paradigma de “equilíbrio da natureza”, já foi abandonado (embora muitos conservacionistas, culturais ainda acreditem nisso). Nesse sentido, o autor assinala que:

A maioria dos ecologistas contemporâneos não acredita mais que os ecossistemas exibam períodos de estabilidade prolongada, bem como uma tendência geral de se mover em direção a um equilíbrio único e equilibrado, um estado de clímax. Em vez disso, eles aceitam que em sistemas complexos, distúrbios e mudanças são a norma, e que não há equilíbrio natural em um ponto de equilíbrio ótimo, mas sim inúmeros pontos de inflexão que, quando ultrapassados, provocam mudanças de regime para diferentes estados de equilíbrios temporários, alguns mais desejáveis do que outros [...]. As estratégias de resiliência visam alcançar e manter os estados mais desejáveis sempre que possível

(Titon, 2015TITON, Jeff. Sustainability, Resilience, and Adaptive Management for Applied Ethnomusicology. In: PETTAN, Svanibor; TITON, Jeff (ed). The Oxford handbook of applied ethnomusicology. Nova York: Oxford University Press, 2015. p 157-195., p. 180, tradução nossa).

Esse reconhecimento de que há falta de estabilidade nos processos ecossistêmicos de certa maneira liberta a análise de autores como Titon da tarefa de realizar defesas ferrenhas das manifestações culturais, isto é, como algo que deva ser necessariamente conservado. De fato, desde a década de 2000 (Titon, 2015TITON, Jeff. Sustainability, Resilience, and Adaptive Management for Applied Ethnomusicology. In: PETTAN, Svanibor; TITON, Jeff (ed). The Oxford handbook of applied ethnomusicology. Nova York: Oxford University Press, 2015. p 157-195.), o autor criticava as iniciativas de gestão do patrimônio cultural que abordam a preservação de forma estática, de cima para baixo, argumentando que a gestão em parcerias horizontais, com agentes locais e endógenos dos ecossistemas musicais, está mais próxima do que entende como sustentabilidade.

Nesse contexto contemporâneo de maior interesse em torno das questões ecológicas, é possível constatar que no campo da comunicação há também um processo crescente de emprego da noção de ecossistema. Por exemplo, analisando diversos trabalhos publicados nos anais dos principais congressos de comunicação do país (Janotti Jr et al., 2021JANOTTI JR, Jeder. et alii. Deixa a gira girar: as lives de Teresa Cristina em tempos de escuta conexa. Galáxia, PPGCOM da PUC-SP, São Paulo n. 46, 2021.; Marra, 2012MARRA, Pedro Silva. Vou ficar de arquibancada pra sentir mais emoção. Contemporânea, PPGCOM da UFF, Niterói, v. 10, n. 1, 2012.; Trotta, 2020TROTTA, Felipe. Annoying Music in Everyday. Londres: Bloomsbury, 2020.; Pereira, 2021PEREIRA, Vinicius Andrade Mercado de ruídos e sons para o bem-estar. Intexto, PPGCOM/UFRGS, Rio Grande do Sul, n. 52, 2021.), é possível atestar que o termo aparece muitas vezes relacionado a análises dos agenciamentos das mídias sociais. Como sugere Scolari (2010)SCOLARI, Carlos A. Ecología de los medios. Mapa de un nicho teórico. Quaderns del CAC, Consell de l’Audiovisual de Catalunya, Barcelona, v. 13, n. 1:, p. 17-25, 2010., a difusão de uma visão ecológica relacionada à comunicação aconteceu paralelamente à difusão das ideias ecológicas a partir dos anos de 1960. No entanto, segundo ele, essa corrente passou por um período de ostracismo acadêmico até se consolidar no meio acadêmico: “aos poucos os ecologistas da mídia foram ganhando espaço e hoje têm sua própria organização (a Media Ecology Association), uma publicação científica (Explorations in Media Ecology) e um espaço dentro de organizações (International Communication Association)” (Scolari, 2010SCOLARI, Carlos A. Ecología de los medios. Mapa de un nicho teórico. Quaderns del CAC, Consell de l’Audiovisual de Catalunya, Barcelona, v. 13, n. 1:, p. 17-25, 2010., p. 18, tradução nossa). Assim, termos como Ecologia da Mídia (ou Ecologia dos Meios) ganham relevância, principalmente na virada para o século XXI.4 4 Evidentemente, reconhece-se que diversos autores seguiram não empregando a metáfora de ecossistema para tratar do contexto midiático contemporâneo. Frequentemente, esses autores ora enfatizam a ambiência midiática (caso do “bios midiático” proposto Sodré, 2002) e/ou ora a integração entre diversas tecnologias de informação e comunicação (como na ideia de “cultura da convergência” defendida por Jenkins, 2009).

Em um ambiente marcado pela consolidação de redes globais de informação, processos de convergência e explosão de novas mídias e plataformas de comunicação, o surgimento de narrativas transmídia e a irrupção de um paradigma de comunicação muitos-para-muitos que rompe com o modelo tradicional de broadcasting, reflexões sobre a ecologia da mídia se apresentam como uma referência quase indispensável na hora de compreender esses processos

(Scolari, 2010SCOLARI, Carlos A. Ecología de los medios. Mapa de un nicho teórico. Quaderns del CAC, Consell de l’Audiovisual de Catalunya, Barcelona, v. 13, n. 1:, p. 17-25, 2010., p. 24).

Destacamos ainda o importante trabalho de Van Dijck (2013)VAN DIJCK, José. The culture of connectivity: a critical history of social media. Nova York: Oxford University Press, 2013., citada com frequência como uma referência relevante de diversas pesquisas apresentadas no campo de comunicação. A autora dá ênfase em sua obra à interconexão e interdependência dos microcosmos de cada rede social:

Cada microssistema é sensível a mudanças em outras partes do ecossistema: se o Facebook muda suas configurações de interface, o Google reage ajustando sua artilharia de plataformas; se a participação na Wikipedia diminuir, os recursos algorítmicos do Google podem fazer maravilhas. É importante mapear convoluções neste primeiro estágio formativo do crescimento da mídia conectiva porque esse pode nos ensinar sobre a distribuição atual e futura de poderes

(Van Dijck, 2013VAN DIJCK, José. The culture of connectivity: a critical history of social media. Nova York: Oxford University Press, 2013., p. 21, tradução nossa).

Assim, Van Dijck explora as perspectivas técnicas, sociais, econômicas e culturais nas mídias sociais e seus efeitos na nossa experiência de sociabilidade por meio da análise das tensões “no ecossistema em que operam plataformas e grupos cada vez maiores de usuários” (Van Dijck, 2013VAN DIJCK, José. The culture of connectivity: a critical history of social media. Nova York: Oxford University Press, 2013., p. 5). Segundo Van Dijck, com a interconexão de plataformas, “surgiu uma nova infraestrutura: um ecossistema de mídia conectiva com alguns grandes e inúmeros pequenos players” (Van Dijck, 2013VAN DIJCK, José. The culture of connectivity: a critical history of social media. Nova York: Oxford University Press, 2013., p. 4). Portanto, o ecossistema seria para esse autor: “um sistema que nutre e, por sua vez, é nutrido por normas sociais e culturais que evoluem simultaneamente em nosso mundo cotidiano, isto é, um sistema em que cada uma das partes seria sensível as mudanças em outras partes” (Van Dijck, 2013VAN DIJCK, José. The culture of connectivity: a critical history of social media. Nova York: Oxford University Press, 2013., p. 21).

Emprego da noção de Ecotranssistema Musical-Midiático

Ainda que possa parecer um pouco paradoxal, gostaríamos de salientar que em nossas pesquisas empregamos a noção de ecossistema muito mais como uma metáfora do que propriamente correlacionada aos seus aspectos mais palpáveis: isto é, tendo em vista que assumimos as precariedades e limitações das nossas investigações, temos sempre em mente nas nossas análises que essas não visam alcançar a totalidade e se distanciam de uma perspectiva de viés estruturalista. Em razão justamente disso, sugerimos um ajuste, empregando o termo Ecotranssistema articulada à noção proposta. A vantagem de se empregar o conceito trans associado à noção de ecossistema é que, conceitualmente, essa palavra forma de certa maneira uma espécie de oxímoro, indicando sentidos opostos: sugerindo que, se existe efetivamente algum sistema, este provavelmente não apenas é multi ou aberto, mas também se constituiria muito mais em uma ambiência fluida, na qual entidades humanas e não humanas realizam mediações que constroem arranjos e bricolagens que contaminam diferentes situações (Mons, 2023MONS, Alain. L’entendue du Trouble. Quebec: Liber, 2023.).

Portanto, leva-se em conta aqui o alerta feito por Latour em boa parte das suas obras: esse autor sublinha que é preciso resistir a tentações de se tomar “atalhos” oferecidos pela “Sociologia do Social”, que partem de categorias sociológicas panorâmicas e vazias e que apostam que “o social seria um sólido, e que necessariamente está lá”. O autor propõe uma “Sociologia das Associações” (segundo ele, uma “lentociologia”) que só pode ser realizada de maneira precária, pois “os vínculos sociais são fugazes e apenas rastreáveis quando estão em curso, portanto, estes rastros são fluídos e tendem a desaparecer” (Latour, 2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social. Salvador: EDUFBA, 2012., p. 229-230).

Tendo em vista que há algum tempo temos realizado pesquisas de campo nos espaços urbanos, rastreando vestígios dos atores humanos e não humanos, de certa maneira, podemos atestar que muitas interpretações e narrativas abrangentes veiculadas nas grandes mídias desconhecem muitos aspectos da vida sociocultural das urbes, especialmente aqueles relacionados aos ecotranssistemas (in)visíveis presentes nos territórios. Por exemplo, a cultura musical de rua da cidade do Rio de Janeiro, com suas festas e rodas de rua, realizadas de maneira informal e até clandestina: apesar de sua grande popularidade e relevância, muitas vezes está “fora do radar” do poder público e, em geral, do escopo das agendas de pesquisa acadêmica5 5 Para mais informações sobre a o tipo de pesquisa cartográfica que vem sendo realizada — em torno dos ecotranssistemas musicais-midiáticos e das territorialidades sônico-musicais que vêm sendo construídos pelos atores — conferir: Herschmann e Fernandes, 2014 e 2023. . Portanto, parte-se de uma perspectiva pós-estruturalista (Lyotard, 2021LYOTARD, Jean François. A condição pós-moderna. 12. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 2021.) e aposta-se aqui que só com o trabalho árduo de pesquisa de campo (como aquelas rotinas de investigação praticadas pelos pesquisadores-formigas da teoria ator-rede) é que será possível seguir os atores nas suas dinâmicas de reagregação social e compreender as dinâmicas que conformam muitas vezes de forma surpreendentemente ecotranssistemas musicais-midiáticos (in)visíveis nas localidades. Isto é, talvez, só assim se possa efetivamente acessar ― ainda que por breves momentos ― algumas das controvérsias presentes nas territorialidades palimpsescas da vida urbana, repleta de situações transitórias e fugazes.

Além disso, para se construir a ideia de ecotranssistemas musicais-midiáticos, é preciso também salientar que partimos das características ressaltadas pela literatura do campo da comunicação, que em geral sublinha as inter-relações e interconexões presentes nos territórios. Assim, em pesquisas recentes (Herschmann e Fernandes, 2023HERSCHMANN, Micael; FERNANDES, Cíntia Sanmartin. A força movente da música. Porto Alegre: Sulina, 2023.), temos recorrentemente assinalado que a ação de grupos musicais está estreitamente ligada a inúmeros actantes, humanos e não humanos: por conseguinte, as ações de coletivos musicais, produtores do setor, gestores públicos, ou mesmo de ambulantes; as mensagens que circulam nas redes sociotécnicas que veiculam essas iniciativas culturais; os diferentes aspectos relacionados à arquitetura ou mesmo as condições climáticas, entre outros atores que poderiam ser mencionados. Cada vez mais cresce a percepção no meio acadêmico de que a questão da geração da sustentabilidade implicará em um processo urgente e necessário da superação do antropoceno (Haraway, 2019HARAWAY, Donna. Seguir con el problema. Bilbao: Edición Consonni, 2019.), dando-se crescente relevo a outros actantes, especialmente aos animais e, de maneira geral, à natureza.

Em resumo, esses mediadores potencialmente podem afetar os ecotranssistemas e influenciar nos resultados das tramas locais. Ao acompanhar algumas rodas de samba protagonizadas por jovens mulheres negras na área do Centro do Rio (tais como Samba que Elas Querem, Mulheres da Pequena África e Moça Prosa), fica evidente que o sucesso dessas iniciativas está relacionado não só ao fato de esse gênero musical (samba) ser notoriamente muito popular nessa metrópole. Assim, outros actantes também contribuem para o êxito desses eventos realizados de maneira informal e regular: a) o sistemático emprego das redes sociais digitais como principal forma de contato entre os atores (sejam eles artistas, produtores ou consumidores); b) o fato dos agentes de segurança pública serem frequentemente tolerantes nessas áreas, permitindo a realização desses microeventos mesmo quando não têm alvarás e autorizações; c) o Centro Histórico não só é uma área de fácil acesso (inclusive para os pedestres) ― o que facilitam a circulação dos segmentos mais pobres da cidade ―, mas também remete a uma memória das comunidades negras locais; d) a forte identificação dos membros que organizam e participam dessas rodas com o ativismo feminista e o movimento negro (e, de modo geral, com a agenda queer contemporânea); e) e, finalmente, poderia se mencionar ainda o actante climático extremamente favorável, com temperaturas amenas quase o ano todo (que favorecem a realização de eventos nos espaços públicos).

Seguindo com esse debate conceitual, Titon (2020)TITON, Jeff. Music and Sustainability: An Ecological Viewpoint. In: ______. Toward a Sound Ecology: New and Selected Essays. Indiana: Indiana University Press, 2020. p. 152-169. assinala outros aspectos relevantes quando afirma que o fluxo se constituiria em uma norma, e a diversidade seria um dos pilares que ampliam a chance de sobrevivência de cada integrante do ecossistema, bem como do próprio ecossistema em si. Para esse autor, existiriam quatro princípios amplos da ecologia que mereceriam ser ressaltados:

[...] se estivermos dispostos a aceitar a ideia de que as culturas musicais se comportam como ecossistemas, podemos discernir quatro princípios amplos da ecologia. O primeiro seria o valor adaptativo da diversidade. A segunda é que o crescimento em expansão contínua é insustentável. O terceiro princípio é a conexão, com o corolário de que as intervenções em uma parte do ecossistema musical terão resultados em outras partes dele. A quarta é a administração, ou a ideia de que os humanos são zeladores (e não proprietários) desses recursos agenciados

(Titon, 2020TITON, Jeff. Music and Sustainability: An Ecological Viewpoint. In: ______. Toward a Sound Ecology: New and Selected Essays. Indiana: Indiana University Press, 2020. p. 152-169., p. 155, tradução nossa).

Para além da proposta de considerar o “humano como zelador” (que haveria diferentes maneiras de se fazer a gestão dessas sonoridades), esse pesquisador também coloca em destaque os agenciamentos (e mediações) dos actantes não humanos. Como disse Latour, a vida cotidiana “só pode ser precariamente capturada se devolvermos a essa [...] a parte das coisas” (Latour, 1994LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de janeiro: Ed. 34, 1994., p. 134).

Além disso, salientamos que a noção de ecossistemas em geral norteia os pesquisadores em direção a uma compreensão holística, interdisciplinar/transdisciplinar das dinâmicas musicais em diferentes contextos. Para Souza, a compreensão ecológica das manifestações musicais, por meio do conceito de ecossistema, poderá ajudar a projetar ações e políticas públicas mais consistentes voltadas para a sua manutenção” (Souza, 2022SOUZA, Thiago Costa de. Ecossistema musical, resiliência e gerenciamento adaptativo. Anais da Anppom. XXXII Congresso da Anppom. Natal, 2022., p. 4). É preciso deixar claro que nos afastamos das propostas de preservação ou conservação: nesse sentido, estamos de acordo com Titon quando ele afirma que perturbações, distúrbios e fluxo “são características constantes de qualquer ambiente complexo” (Titon, 2015TITON, Jeff. Sustainability, Resilience, and Adaptive Management for Applied Ethnomusicology. In: PETTAN, Svanibor; TITON, Jeff (ed). The Oxford handbook of applied ethnomusicology. Nova York: Oxford University Press, 2015. p 157-195., p. 193, tradução nossa), e que muitas das ações que buscam salvaguardar os bens culturais, os fixam em uma forma ideal e, assim, tendem a condená-los ao paradoxo da necessidade de se construir autenticidades (Freire Filho e Janotti Jr, 2006FREIRE FILHO, João; JANOTTI JR, Jeder. (orgs.). Comunicação e música popular massiva. Salvador: EDUFBA, 2006.)6 6 Cabe ressaltar que, recorrentemente, é possível constatar que inúmeras festas (musicais) populares passam por mudanças que parecem oferecer força, dinamismo e atualidade as mesmas. A título de exemplos poderíamos mencionar: a festa do Boi Bumba do Maranhão que já incorporou os passos das festas de Reggae desde o final do século XX; as batidas do funk que se normalizaram nas performances das baterias das escolas de samba cariocas nos últimos anos; ou mesmo o caso curioso das Festa do Dia dos Mortos em México DF que passou recentemente a contar com cortejos pelas ruas da cidade por conta do enorme sucesso de um filme da série 007 que ficcionalizou e encenou este desfile no enredo deste thriller de espionagem. e tradições (Hobsbawn e Ranger, 1997HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.).

Titon e Souza consideram ainda relevante articular o conceito de ecossistema a noções de sustentabilidade e resiliência. Segundo a trilha da ideia de ecossistema como fluxo, Souza postula existir ― na perspectiva da sustentabilidade musical ― um caráter de projeção futura, que reconhece que “mudanças ambientais, políticas socioculturais e econômicas são inevitáveis, buscando assim, gerenciar essas mudanças para garantir integridade e continuidade das manifestações musicais no futuro” (Souza, 2022SOUZA, Thiago Costa de. Ecossistema musical, resiliência e gerenciamento adaptativo. Anais da Anppom. XXXII Congresso da Anppom. Natal, 2022., p. 2).

Ainda sobre sustentabilidade, Titon sugere que o objetivo “é a permanência alcançada através da utilização de recursos renováveis” (Titon, 2013TITON, Jeff. The Nature of Ecomusicology. Música e Cultura: Revista da Associação Brasileira de Etnomusicologia, v. 8, n. 1, p. 8-18, 2013., p. 9, tradução nossa). Para o autor, nos processos de formação dos ecossistemas musicais (sustentáveis), seria imperativo haver pelo menos algumas dessas características: processo de transmissão, vínculos na comunidade, infraestrutura para a prática musical, mídias de apoio, interação com a indústria musical, entre outras estratégias criativas que possam surgir, sendo patente a integração de aspectos humanos e não humanos. Esse autor conclui que o fundamental seria “identificar o que torna uma cultura musical vulnerável à mudança de regime e o que a torna resiliente, melhorando a primeira e fortalecendo a segunda” (Titon, 2015TITON, Jeff. Sustainability, Resilience, and Adaptive Management for Applied Ethnomusicology. In: PETTAN, Svanibor; TITON, Jeff (ed). The Oxford handbook of applied ethnomusicology. Nova York: Oxford University Press, 2015. p 157-195., p. 193, tradução nossa). Assim, para ele, adaptar-se seria uma forma de resistência: ou melhor, o que temos atestado nas nossas investigações é que os atores praticam táticas e astúcias (De Certeau, 1995DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1995.) urbanas como forma de re-existir (Fernandes et alii, 2022FERNANDES, Cíntia. et alii. Artivismos urbanos. Porto Alegre: Ed. Sulina, 2022.) as dinâmicas neoliberais que precarizam a vida da maioria dos segmentos sociais e que, de modo geral, extenuam perigosamente os recursos do planeta.

Por exemplo, no caso das rodas de samba de rua femininas cariocas, os anos de Governo Bolsonaro — marcado pela implementação de necropolíticas (Mbembe, 2019MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2019.) — exigiram o desenvolvimento de estratégias e táticas de (in)visibilidade e que se adotasse certos cuidados: implicaram em deslocar os seus eventos de rua para espaços mais protegidos ou híbridos (não só em becos e pequenas praças, mas também em espaços controlados pelo poder público ou com vocação pública), tais como fundações, museus e centros culturais. Outro aspecto relevante é que nas rodas, em geral, havia uma atitude corporal e narrativas que buscavam reforçar a construção de um corpo mais coletivo e coeso. Assim, as proxemias e aglomerações corporais das frequentadoras ou a menção a expressões que estão muito em voga ― “mexeu com uma, mexeu com todas” (fazendo referência à violência de gênero), “nenhuma a menos” (referenciando o assassinato diário de mulheres) ou “ninguém larga a mão de ninguém” (sinalizando risco de ataque aos direitos humanos ou dos cidadãos) ― aparecem com frequência entremeando a narrativa cantada ou falada por essas jovens nessa “cartografia das controvérsias” (Lemos, 2013LEMOS, André. A comunicação das coisas. São Paulo: Annablume, 2013.) construída em pesquisas anteriores.

Aliás, o “corpo feminino em performance e festa” (Herschmann e Fernandes, 2023HERSCHMANN, Micael; FERNANDES, Cíntia Sanmartin. A força movente da música. Porto Alegre: Sulina, 2023.) é uma chave importante para compreendermos as relações entre as artistas, os públicos e os espaços nos quais atuam. Esses corpos em ação nos espaços urbanos criam ambiências capazes de subverter as lógicas espaço-sociais-temporais dos lugares. Os gestos, a entonação da voz, a proxemia com o público potencializam interações sensíveis capazes de transmutar os territórios (do corpo e da cidade) por meio do jogo, da ludicidade e da teatralização. Desse modo, considera-se que os conjuntos de gestos, memórias (que se expressam de forma poética e discursivas) e entonações com as quais os corpos performam (cartografando sensivelmente o espaço) ― fundando lugares pautados por iniciativas dissensuais (Rancière, 1996RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. São Paulo: Editora 34, 1996.) que visam promover revoluções moleculares (Guattari, 1977GUATTARI, Felix. Revolução molecular. São Paulo: Brasiliense, 1977.) ― são expressões relevantes capazes não só de alterar os imaginários urbanos, mas também de possibilitar a elaboração de territorialidades (Haesbaert, 2010HAESBAERT, Rogerio. O mito da desterritorialização. São Paulo: Bertrand Brasil, 2010.) potentes. Esses gestos e expressões manifestam e materializam devires (Guattari, 1977GUATTARI, Felix. Revolução molecular. São Paulo: Brasiliense, 1977.) nos corpos dissensuais, os quais poderiam se constituir em momentos relevantes de construção de tramas urbanas mais solidárias e democráticas.

Considerações finais

Buscou-se aqui reavaliar os usos do termo ecossistema, da biologia às ciências humanas, almejando contribuir para o debate teórico-conceitual e propor um conceito que possa ser empregado sem sacrificar a complexidade das dinâmicas presentes. Concretizou-se, assim, uma espécie de remix de uma célebre noção, promovendo-se uma “mistura sem centro nem periferia, [...] repaginando teorias e transformando práticas” (Amado e Rincón, 2015AMADO, Adriana.; RINCÓN, Omar. La reinvención de los discursos o cómo entender a los bárbaros del siglo XXI. In: ______. (Eds.). La comunicación en mutación: remix de discursos. Bogotá: Centro de Competencia en Comunicación para América Latina, 2015. p. 5-11., p. 10, tradução nossa). Em outras palavras, propôs-se aqui uma metáfora que reconhece a filiação do termo ecossistema ao campo da biologia, mas que também é moldada por contribuições outras de diferentes áreas. Especificamente nos estudos voltados aos sons e à música, vale a pena destacar a interação e interdependência entre os elementos sonoros e as relações sociais nas experiências comunicativas: como, inclusive, o campo da comunicação já vem trabalhando recentemente, com ênfase especial nas redes sociotécnicas. Já do campo da etnomusicologia, ressaltamos a utilização das noções de sustentabilidade e resiliência, que nos parecem promover um importante diálogo com diversos debates contemporâneos relevantes.

Se o projeto de metáfora de Park (2018)PARK, Robert Ezra. A sociologia urbana de Robert E. Park. Organização e introdução, Licia do Prado Valladares, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2018., em um primeiro momento, foi descontinuado, talvez seja justamente por fazer a transposição do termo sem adaptações ou críticas. Entendemos também, no mesmo sentido, que é preciso levar em conta os estudos em andamento para adaptar ferramentas conceituais que de fato façam correspondência com o que os trabalhos de campo nos anunciam. Supomos, pois, que é viável analisar as múltiplas territorialidades das cidades, experimentando a sensibilidade do corpo na complexidade das dinâmicas urbanas, destacando especialmente a relevância dos Ecotranssistemas Musicais-Midiáticos (EMM) mais opacos (de pouca visibilidade) ali presentes. Entendemos que o EMM pode ajudar a reavaliar muitas das dinâmicas musicais e comunicacionais contemporâneas, destacando a importância da pesquisa de campo e enfatizando a relevância de seguir os rastros e vestígios de atores humanos e não humanos nas dinâmicas de reagregação social, sugerindo que os sistemas são complexos, sobrepostos e fluidos, portanto, é fundamental transcender as suas definições mais convencionais.

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    Uma análise das afinidades e possibilidades de integração entre ciências humanas e biológicas (que passa ao largo dos usos de suas terminologias como metáfora) pode ser encontrada no trabalho de Giuliani (1998)GIULIANI, Gian Mario. Sociologia e ecologia: um diálogo reconstruído. Dados, Rio de Janeiro, v. 41, p. 147-172, 1998.. Pickett e Cadenasso (2013)PICKETT, Steward. T. A; CADENASSO, Mary L. Three Tides: The Development and State of the Art of Urban Ecological Science. In: PICKETT, S. T. A; CADENASSO, M. L; MCGRATH, B. Resilience in Ecology and Urban Design: Linking Theory and Practice for Sustainable Cities. Dordrecht: Springer, 2013. p. 29-46. também abordam a relação direta de ecologistas com cientistas sociais, geógrafos e planejadores urbanos.
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    Segundo Schippers (2015)SCHIPPERS, Huib. Applied Ethnomusicology and Intangible Cultural Heritage: Understanding Ecosystems of Music as a Tool for Sustainability. In: PETTAN, Svanibor; TITON, Jeff. (eds.). The Oxford handbook of applied Ethnomusicology. Nova York: Oxford University Press, 2015. p 134-156., o campo da etnomusicologia já recorria a noções de ecologia desde a década de 1960. O autor destaca o trabalho de Titon (2015)TITON, Jeff. Sustainability, Resilience, and Adaptive Management for Applied Ethnomusicology. In: PETTAN, Svanibor; TITON, Jeff (ed). The Oxford handbook of applied ethnomusicology. Nova York: Oxford University Press, 2015. p 157-195., o qual há mais de trinta anos vem conduzindo um debate teórico rico sobre o uso de termos como ecologia, sustentabilidade e ecossistema.
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    Evidentemente, reconhece-se que diversos autores seguiram não empregando a metáfora de ecossistema para tratar do contexto midiático contemporâneo. Frequentemente, esses autores ora enfatizam a ambiência midiática (caso do “bios midiático” proposto Sodré, 2002SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho. Petrópolis: Vozes, 2002.) e/ou ora a integração entre diversas tecnologias de informação e comunicação (como na ideia de “cultura da convergência” defendida por Jenkins, 2009JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.).
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    Para mais informações sobre a o tipo de pesquisa cartográfica que vem sendo realizada — em torno dos ecotranssistemas musicais-midiáticos e das territorialidades sônico-musicais que vêm sendo construídos pelos atores — conferir: Herschmann e Fernandes, 2014HERSCHMANN, Micael; FERNANDES, Cíntia Sanmartin. Músicas nas ruas do Rio de Janeiro. São Paulo: Ed. Intercom, 2014. e 2023.
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    Cabe ressaltar que, recorrentemente, é possível constatar que inúmeras festas (musicais) populares passam por mudanças que parecem oferecer força, dinamismo e atualidade as mesmas. A título de exemplos poderíamos mencionar: a festa do Boi Bumba do Maranhão que já incorporou os passos das festas de Reggae desde o final do século XX; as batidas do funk que se normalizaram nas performances das baterias das escolas de samba cariocas nos últimos anos; ou mesmo o caso curioso das Festa do Dia dos Mortos em México DF que passou recentemente a contar com cortejos pelas ruas da cidade por conta do enorme sucesso de um filme da série 007 que ficcionalizou e encenou este desfile no enredo deste thriller de espionagem.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2023
  • Aceito
    07 Dez 2023
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