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A mundialização do Estado de Exceção como ciclo imaginário dos filmes futuristas

The globalization of the State of Exception as an imaginary cycle of futurist movies

Resumo

A imagem do futuro nos filmes de ficção científica é feita com base em contextos imaginários de cada época. Esses contextos elaboram ciclos temáticos que se apresentam ao longo do tempo. Este artigo visa discutir o surgimento da cultura de vigilância dos cidadãos presente em nosso tempo. Essa cultura é presença constante em filmes de ficção científica, especialmente em obras que se passam em futuros distópicos. Nos interessa suas implicações nos arranjos sociais, tendo como objeto de discussão os filmes THX 1138, Brazil – o filme e Minority Report. Tais filmes mostram possibilidades de vigilância e controle particularmente distintas entre si, porém, eles têm em comum sociedades em constante estado de emergência, cuja guerra, em última instância, é travada contra os próprios cidadãos. São filmes futuristas, mas espelhos de um presente em que os governos classificam seus cidadãos em diferentes condições de proteção política.

Palavras–chave
ciclos imaginários; estados de exceção; ficção científica; filmes futuristas

Abstract

The image of the future in sci-fi movies is made from the imaginary contexts of each era. These contexts elaborate thematic cycles that appear over time. This paper aims to discuss the emergence of the culture of citizen surveillance, which is present in our time. This culture is constantly present in sci-fi movies, especially in films movies that take place in dystopian futures. We are interested in its implications in social arrangements, and we chose as the object of discussion the films THX 1138, Brazil and Minority Report. These films movies show possibilities of surveillance and control that are particularly different from each other, but they have in common share societies in a constant state of emergency, which war, ultimately, is waged against its own citizens. They are futuristic films, but also mirrors of a present in which governments classify their citizens in different conditions of political protection.

Keywords
imaginary cycles; states of exception; sci-fi; futuristic movies

Introdução

A ficção científica se estabeleceu como gênero literário no século XIX, florescendo especialmente no século XX, graças a autores como Mary Shelley, Edward Bellamy, Julio Verne, Jack London, H.G. Wells, Aldous Huxley, Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Philip K. Dick, William Gibson, entre outros. Ela emergiu dos exercícios especulativos de autores mobilizados pelo zeitgeist1 1 Espírito da época. progressista da época, gestada por uma longa tradição de tentar prever o futuro que acompanha a humanidade desde o início dos tempos. Um dos momentos mais importantes da futurologia nas artes foi o manifesto futurista de 1909, escrito pelo poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti, “que transforma em valores estéticos e políticos [...] a máquina, a velocidade, a violência e a guerra” (Berardi, 2019BERARDI, Franco. Depois do futuro. São Paulo: Ubu Editora, 2019., p. 13). O manifesto é uma tradução precisa das transformações que ocorreram no paradigma da utopia, no qual autores se debruçaram, particularmente, desde o século XIX.

Antes um sonho, “revelam uma insatisfação com o presente, e têm em mira um estado de coisas supostamente ideal, que se apresenta como a antítese da situação atual” (Lamartine apud Minois, 2015MINOIS, Georges. A história do futuro – dos profetas à prospetiva. São Paulo: Editora Unesp, 2015., p. 483). A utopia torna-se pesadelo a partir do momento em que as soluções passam a representar uma possibilidade pior que a realidade e se converte então em contra-utopia ou distopia. Essas reflexões transcendem as predições folclóricas e os exercícios das ciências econômicas pós revoluções industriais e permeiam todas as revoluções sociais, técnicas e econômicas, até chegar na criação e no desenvolvimento do cinema.

As catástrofes que se seguiram ao longo do século XX ditaram a tônica e os humores que impregnariam o futuro ficcional: as duas grandes guerras, os genocídios consequentes, a grande depressão econômica mundial, regimes totalitários, bombas atômicas, guerras civis no continente africano, empobrecimento crônico do Terceiro Mundo, Aids, explosão demográfica, terrorismo, corrupção, destruição do meio ambiente. Eis os motes de boa parte da produção cinematográfica futurista pós década de 1950. Ou seja, os acontecimentos do mundo criam ciclos temáticos que trazem seus medos, suas alegrias, expectativas espelhadas de uma forma de sentir o mundo de cada época.

Este artigo reflete sobre os acontecimentos históricos que fundam ciclos temáticos para os filmes de ficção científica, observando com especial atenção os acontecimentos contemporâneos que criaram o que chamamos de mundialização do estado de exceção, como ciclo imaginário para os filmes futuristas.

Distopias e o cinema de ficção científica

Esses ciclos são compostos de formas de páthos sociais relacionados ao período de seu surgimento, pois “cada sistema de ficção é, em si, um produto determinado histórica e socialmente” (Morin, 2005MORIN, Edgar. The Cinema, or The Imaginary Man. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2005., p. 168). Na década de 1950, por exemplo, o tema das invasões alienígenas era recorrente. Curiosamente, esse é o mesmo período do início da Guerra Fria e do temor ocidental de uma possível invasão soviética: “diferentes ciclos utilizaram suas imagens horríveis para expressar certas angústias relacionadas com as dificuldades de seus períodos” (Carroll, 1990CARROLL, Noel. The Philosophy of Horror. Nova York: Routledge, 1990., p. 208).

Em outras palavras, os ciclos são reflexos da psique coletiva de uma determinada época, pois “o que, para cada sociedade constitui um problema em geral é inseparável de sua maneira de ser em geral, do sentido precisamente problemático com que ela investe o mundo e seu lugar nele” (Castoriadis, 2000CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000. , p. 162). Ou ainda, dentro do contexto da cultura de massa, as imagens desses filmes aludem ao “corpo de símbolos, mitos e imagens concernentes à vida prática e à vida imaginária, um sistema de projeções e de identificações específicas” (Morin, 2002MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX – o espírito do tempo i: neuroses. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002., p. 15).

Portanto, ciclos aparecem e reaparecem, assim como algumas inquietações sociais específicas acompanham crises que reincidem. Os ciclos podem retomar sua relevância e pertinência. Por exemplo, ainda que não tenha a premência de outrora, a questão da bomba atômica nunca deixou de habitar o imaginário coletivo; paralelamente, filmes de monstros gigantes ou desastres nucleares nunca deixaram absolutamente de ser produzidos. Dessa forma, acreditamos que formas de distopias, tão importantes desde a origem da ficção científica, como mostramos na introdução, dão o pontapé inicial para o ciclo contemporâneo, como veremos a seguir.

As distopias sempre estiveram presentes no cinema sci-fi. O filme Metrópolis (1927), de Fritz Lang, é provavelmente o seu primeiro grande exemplo. Mas é a partir da década de 1970, especialmente a partir de 2001 — Uma odisseia no espaço (1968), que essas obras parecem ter se tornado a principal interface por meio da qual refletimos no que consistiria a humanidade do futuro. Como diz Berardi:

De fato, até pelo menos 1968, o futuro era imaginado de forma eufórica. Apesar das tragédias, das guerras e dos inúmeros massacres, o sentimento que imperava no Novecento era de fé na realização final da razão. Tomando muitas formas — justiça social, afirmação nacional, democracia liberal, perfeição tecnológica —, o horizonte parecia brilhante, mesmo que o caminho até o futuro fosse pavimentado com sofrimento, miséria, dificuldades e luto inimagináveis

(Berardi, 2019BERARDI, Franco. Depois do futuro. São Paulo: Ubu Editora, 2019., p. 7).

Depois da obra de Kubrick, os filmes de ficção científica passaram a sugerir ainda mais um inexorável estado de alienação que permeia as sociedades do futuro. O ethos relativamente otimista iniciado no pós-guerra, que perdurou nas décadas de 1950 e 1960 dá lugar, durante a década de 1970, a um clima de incertezas, seguido por um pessimismo generalizado que impregnou parte das emoções coletivas do Ocidente. O fim da onda expansionista pós Segunda Guerra, as revelações dos Gulags soviéticos, o horror do Camboja, a então Revolução Iraniana e o início da reação neoliberal podem ter influenciado em boa parte as produções do período. Podemos observar essa tendência em obras como No mundo de 2020 (Richard Fleischer, 1973), Fuga no século 23 (Michael Anderson, 1976), Stalker (Andrei Tarkovski, 1979), Fuga de Nova York (John Carpenter, 1982).

O cinema, e não apenas de ficção científica, dedicou-se com afinco a explorar “a relação demasiadamente problemática que temos com o nosso próprio mundo” (Telotte, 2004TELOTTE, J. P. Science Fiction Film. Cambridge: Cambridge University Press, 2004., p. 141). O final da década de 1970 e os anos 1980 viram surgir não apenas as grandes franquias2 2 Star Wars, em 1977; Alien e Mad Max, 1979; Exterminador do futuro, 1984; De volta para o futuro, 1985; Predador e Robocop, 1987, entre outros. de sci-fi, impulsionadas pelos avanços tecnológicos da área dos efeitos especiais, como também bilheterias expressivas numa agenda democrática/capitalista livre a se propagar como nunca pelo mundo.

Enquanto a ex-União Soviética agonizava, as duas principais doutrinas político-sócio-econômicas do Ocidente na época, a reaganomics e o thatcherismo, influenciaram o páthos dos futuros imaginados nos filmes sci-fi:

[...] o ethos dos anos Reagan/Thatcher então conferiu um realismo específico para as distopias imaginadas por escritores cyberpunk, cineastas e teóricos culturais, para os quais as piores tendências dos sistemas econômicos vigentes não davam sinais de que se abrandariam, mas podiam apenas serem extrapoladas a algo muito pior ― um mundo de pesadelo onde questões sentimentais a respeito da identidade humana não seriam mais relevantes na batalha para simplesmente sobreviver

(Short, 2005SHORT, Sue. Cyborg Cinema and Contemporary Subjectivity. Londres: Palgrave Macmillan, 2005., p. 164).

É neste mundo que Blade Runner (1982) imprime um visual sombrio e melancólico, e Neuromancer (1984) inventa o cowboy do recém-criado ciberespaço, por meio de sua versão paradigmática do que viria a ser conhecido como o cyberpunk. Desde então, o cinema é contaminado por esses temas do capitalismo tardio ou da exceção:

Colapso do futuro no presente. Pós-humanidade. Obsolescência do humano. Globalização. Megalópoles decadentes e sombrias. Pervasividade tecnológica cotidiana. Orientalização do Ocidente. Domínio ostensivo das megacorporações. Espetáculo e consumo. Vigilância eletrônica. Próteses e extensões. Território informacional. Roupas de couro e vinil preto. Fusão do sintético com o orgânico. Faça você mesmo [DIY]. Biotecnologias. Subculturas juvenis. Hackers. Matrix. Linguagem e gírias das ruas. Eu poderia continuar essa lista e ainda assim não encerraria a discussão sobre os efeitos teórico-conceituais, sociológicos, antropológicos e filosóficos que Neuromancer catalisou e constituiu a partir de seu lançamento na década de 1980

(Amaral, 2016AMARAL, Adriana. A potência do imaginário de Neuromancer nas origens da cibercultura. In: GIBSON, William. Neuromancer. São Paulo: Editora Aleph, 2016., p. 316).

Veremos a seguir como personagens como os replicantes, do mundo de Blade Runner, e os cyberpunks, criados em Neuromancer, são reflexos diretos de um tempo em que o Estado marginaliza seu próprio cidadão.

Ruptura entre regra e exceção: o Estado e o homem sacro.

O estado-nação, cuja autoridade fora outrora fundada sob a díade soberano e religião, a partir do século XVIII, passa a sustentar-se graças à aliança entre o poder soberano e o mercado. A sublevação da burguesia, que detinha os meios de produção de então, torna-a o estrato detentor da primazia na elaboração da agenda nacional. Gradativamente, a partir de fins do século XIX, os Estados democráticos passam a converter aquilo que era da ordem da exceção, isto é, os instrumentos jurídicos que permitiam o pleno funcionamento do Estado em meio às crises, em regra no modo de fazer valer o poder constituído, solidificando práticas centralizadoras de poder e uma gestão biopolítica cada vez mais acentuada.

Devido a um enfraquecimento generalizado do poder soberano, com a queda dos grandes impérios (como o Austro-húngaro, abolido em 1918, e o Otomano, findado em 1922) e com o fluxo do poder das monarquias migrando para a burguesia, no Ocidente, a norma jurídica é “progressivamente substituída por uma generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo” (Agamben, 2015AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim – notas sobre política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., pg. 27-28). Isto é, o Estado Democrático de Direito passa a se utilizar do seu próprio mecanismo para garantir e instituir traços totalitários que permitam ao próprio Executivo ter toda a concentração das decisões estatais, similar ao que se via no Absolutismo. Seja nas ditaduras latino-americanas, seja nos Estados Unidos pós 11 de setembro de 2001, ou na Europa durante as grandes guerras, os últimos 120 anos testemunharam um recrudescimento da gestão social em detrimento do respeito dos direitos humanos em prol da governabilidade, em crises reais ou inventadas, como nos casos da América do Sul e suas ditaduras instauradas para combater uma suposta ameaça comunista no continente.

Por viés legalista, o estado de exceção opera de forma a facilitar a execução do poder e de sua agenda. Mecanismo elaborado para garantir a permanência do estado de direito durante períodos de crise, o estado de exceção ou de emergência atua em favor do Poder Executivo. Ele lhe dá recursos mais amplos para a execução de suas diretrizes, enquanto expõe seus cidadãos à “vida nua, experiência de desproteção e ao estado de ilegalidade de quem é acuado em um terreno vago, submetido a viver em estado de exceção” (ibidem, p. 19). Em suma, a suspensão do Estado Democrático de Direito, por meio deste mecanismo, admite legalmente que a Constituição de um país tenha sua legalidade suspensa temporariamente. Este aumento do poder do Estado, ainda que por tempo determinado, tende a diminuir a potência da cidadania, pois direitos individuais são restritos ou suspensos, e as garantias individuais sofrem prejuízos em detrimento da proteção do Estado, que é livre para exercer sua soberania sobre a vida e a morte de forma mais veemente.

O homem sacro é a expressão última dessa vida entregue à mercê do Estado, representando aquele que é posto para fora da jurisdição humana, que pode ser assassinado por qualquer cidadão sem que se configure homicídio. Na ficção científica, vemos emergir os replicantes de Blade Runner, constantemente caçados pelo Estado, e vemos também os cyberpunks, de Neuromancer, que resultam de fusões de engendros químicos e cibernéticos e estão completamente à margem da sociedade. Mas na nossa história temos o judeu nos campos de concentração durante a Segunda Guerra:

O hebreu sob o nazismo é o referente negativo privilegiado da nova soberania biopolítica e, como tal, um caso flagrante de homo sacer, no sentido de vida matável e insacrificável. O seu assassinato não constitui, portanto, nem uma execução capital, nem um sacrifício, mas apenas a realização de uma mera “matabilidade” que é inerente à condição de hebreu como tal. Quem entrava no campo de concentração se movia numa zona de indistinção entre exterior e interior, exceção e regra, lícito e ilícito, na qual faltava toda proteção jurídica; além disso, se era um judeu, ele já havia sido privado, pelas leis de Nuremberg, de seus direitos de cidadão e, sucessivamente, no momento da “solução final”, já havia sido completamente desnacionalizado. Como seus habitantes foram despidos de todo estatuto político e reduzidos integralmente a vida nua, o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico que já existiu, no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida biológica sem nenhuma mediação

(Agamben, 2007AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007., p. 121).

A partir dessa indistinção entre vida biológica, natural (zoé) e vida política (bios), proveniente do estado de exceção, surge o campo, “lugar inaugural da modernidade, o primeiro espaço no qual acontecimentos públicos e privados, vida política e vida biológica tornam-se rigorosamente indistinguíveis” (Agamben, 2015AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim – notas sobre política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., p. 80). Expressão máxima da vida nua/sacra, o campo (de internamento, de concentração, de extermínio) é a territorialidade em que se destinam as vidas que cessam de ser politicamente relevantes. No entanto,

[...] certas periferias das grandes cidades pós-industriais e as gated communities estadunidenses começam, hoje, a assemelhar-se, nesse sentido, aos campos, nos quais vida nua e vida política entram, ao menos em determinados momentos, numa zona de absoluta indeterminação

(Agamben, 2015AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim – notas sobre política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., p. 32).

Esta exceção perene se deve, essencialmente, a aspectos da relação entre Estado e capital, poder soberano e mercado, essenciais para a subsistência do poder num contexto em que o próprio paradigma de estado-nação se vê enfraquecido. Como diz Braudel “o capitalismo só tem êxito quando começa a ser identificado com o Estado, quando é ele o próprio Estado” (Braudel, 1987BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987., p. 21). Tais aspectos da relação entre capital e Estado podem levar a intervenções imperialistas que desestabilizam politicamente países e geram conflitos e guerras. O que, consequentemente, faz prisioneiros, refugiados e apátridas, ou seja, os homo sacers contemporâneos por excelência.

De fato, não por acaso, o poder econômico, quando unido ao poder político, tende a demonstrar um especial apreço pela exceção. Os governos democraticamente eleitos subvertem sua missão de gerir a vida econômica e social visando ao interesse público, em benefício do capital financeiro: “o capitalismo decidiu desvencilhar-se da mediação estatal, quando as técnicas de recombinação e a velocidade absoluta da eletrônica lhe permitiram interiorizar o controle” (Berardi, 2019BERARDI, Franco. Depois do futuro. São Paulo: Ubu Editora, 2019., p. 82). Por isso e para isso, é possível constatar que crises estão sempre em curso. Há sempre uma narrativa de que recursos são escassos, de que a produção não é capaz de prover a demanda, seja lá do que for. Confunde-se satisfação com sobrevivência, e esse consumo é algo que nunca para de crescer, pois “a privação nunca deve ser contida” (Debord, 2003DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. São Paulo: eBooksBrasil.com, 2003., p. 34). Em verdade, nossa realidade é a de um culto do excesso (de recursos, mas também de poder, o excesso constitutivo da representação sobre os representados, inclusive quanto à gestão desses recursos); excesso não racionalizável, “um enorme desperdício potencial, ou um mau rendimento na utilização dos recursos produtivos, decorrente de múltiplos fatores ligados à natureza do sistema” (Castoriadis, 2000CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000. , p. 104). Esse mau rendimento de que fala Castoriadis não é por acaso. Nas palavras de Agamben:

[...] ela [a crise] é o motor interno do capitalismo em sua fase atual, assim como o estado de exceção é hoje a estrutura normal do poder político. E assim como o estado de exceção requer que haja porções sempre mais numerosas de residentes desprovidos de direitos políticos e que, no limite, todos os cidadãos sejam reduzidos à vida nua, do mesmo modo, a crise, tornada permanente, exige não apenas que os povos do Terceiro Mundo sejam sempre mais pobres, mas também que um percentual crescente de cidadãos das sociedades industriais seja marginalizado e sem trabalho. E não há Estado dito democrático que não esteja atualmente comprometido até o pescoço com essa fabricação maciça de miséria humana

(Agamben, 2015AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim – notas sobre política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015., p. 86-87).

O poder e, posteriormente, o capital, utilizam para tal o discurso do desejo e da crise (Baudrillard, 1991BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991., p. 32), que gera a demanda pelo excesso das necessidades inventadas (Castoriadis, 2000CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000. ) e força a existência da desigualdade. Para tanto, é preciso definir que cidadãos, países e povos são mais importantes, que relações são mais necessárias e que culturas são mais valiosas (e essa escala artificial de importâncias perpetua a exceção).

Hoje vive-se um perpétuo estado de exceção tornado regra em vários lugares do mundo, como nas favelas brasileiras, nas gated communities norte-americanas ou nos campos de refugiados na Europa, em que cada vez mais pessoas habitam um limbo jurídico. Em junho de 2018, um censo da Organização das Nações Unidas (ONU) constatou que estão espalhados pelo mundo cerca de 69 milhões de refugiados e deslocados, obrigados a deixar suas casas ou seus países de origem em consequência de guerras ou como vítimas de perseguições político-religiosas3 3 Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2018-06/numero-de-refugiados-bate-novo-recorde-e-atinge-685-milhoes. Acesso em: 03 ago. 2023. . Para efeitos comparativos, em 2015, eram 65,3 milhões4 4 Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/06/numero-de-deslocados-em-todo-o-mundo-passa-de-65-milhoes-diz-onu.html. Acesso em: 03 ago. 2023. .

A exceção tornada regra e os novos arranjos em torno da garantia de direitos de minorias afetam profundamente nosso imaginário de futuro, descolando-o do conceito de progresso quase completamente (Berardi, 2019BERARDI, Franco. Depois do futuro. São Paulo: Ubu Editora, 2019., p. 19). Desde Hegel, o fim da história indicava um suposto (e equivocado) paroxismo do desenvolvimento humano, um desligamento dos motores da evolução. Agora, esse fim tem outra conotação, “que carrega ressonâncias ameaçadoras numa época em que temos o poder de acabar com tudo, de expelir explosivamente o gênero humano da existência. O apocalipse sempre foi uma visão possível, mas ele raramente pareceu tão próximo da realidade como é hoje” (Danto, 1997DANTO, Arthur. C. After the end of art: contemporary art and the pale of history. Princeton: Princeton University Press, 1997., p. 149). E, desde a Segunda Guerra Mundial, quando a humanidade constatou o nível da destruição de que era capaz, e de que poderia fazê-lo de forma rápida e espetacular, pensamentos e imagens apocalípticas proliferam cada vez mais. Além disso, há o presentismo, o presente onipresente, “O presente único: o da tirania do instante e da estagnação de um presente perpétuo” (Hartog, 2013HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. São Paulo: Autêntica, 2013., p. 11), fruto da aceleração e da dilatação do horizonte de expectativa, que nos encerra num presente interminável. Esse estado de espírito em torno do presente (e do futuro) elicita a sensação de que a exceção tornada regra é algo insuperável, ao menos no atual estado das coisas.

Quando os direitos sociais plenos são sugados para exclusividade de um grupo cada vez mais restrito, nossa percepção imaginária do futuro como prolongamento do presente é impregnada por esse status, que vez ou outra emerge por meio de cenários cinematográficos que hiperbolizam essa circunstância sociopolítica. Esse contexto de exceções em alastramento planetário nos permite perceber a emergência de um novo ciclo imaginário nas imagens do futuro nos filmes de ficção científica. Em seguida, vamos apresentar três exemplos da emergência desse novo ciclo imaginário.

Os filmes: THX 1138, Brazil – o filme, Minority Report

Em cenários em que se confunde modernidade com militarização, capital com Estado, autoritarismo com democracia, futuro com passado e presente, não importa se são ciborgues, replicantes, operários, viajantes temporais, loucos, mulheres, latinos, negros ou judeus, as minorias e os habitantes dos campos se fazem presentes no simulacro do porvir.

A exceção então seria a biosfera do homem sacro, vida consagrada ao Deus Estado-Mercado, que no cinema, por exemplo, se manifesta na figura dos habitantes do labirinto eletrônico de THX 1138, de George Lucas (1971), dos civis em Brazil – o filme, de Terry Gilliam (1985), e dos precogs e dos futuros criminosos em Minority Report, de Steven Spielberg (2002), filmes que serão discutidos nesta seção.

Em THX 1138, a humanidade do futuro vive em grandes cidades subterrâneas e o livre arbítrio é ilegal. A população é controlada por meio de diversos mecanismos, como medicação obrigatória supressora de emoções, uma força policial androide, ou uma forma de religião cuja liturgia se resume a difundir a propaganda estatal. Trata-se do total controle biopolítico do indivíduo, em que tanto sua subjetividade quanto seu corpo são dominados por um estado onipresente e despersonalizado, e a insatisfação e o tédio são considerados subversivos.

Figura 1
O labirinto estéril.

Ao Estado, representado no filme por telas de dispositivos, vozes mecânicas e policiais androides, cabe ouvir e aconselhar os cidadãos quanto às suas angústias. Todo o lazer televisivo (bem como os fármacos designados para cada indivíduo) é elaborado para suscitar uma apatia dócil. Nesse contexto, os personagens THX 1138, um homem, e LUH 3417, uma mulher, param de tomar os remédios que suprimem suas emoções e passam a questionar o estado das coisas, encontrando conforto no afeto desenvolvido entre eles. A sedação como política de estado não apenas atende a um propósito de controle social, como também aumenta a produtividade dos trabalhadores, que parecem existir apenas para manter essa superestrutura funcionando.

Figura 2
Aconselhamento e vigilância estatal.

Como a relação amorosa é ilegal, eles entram em confronto com o Estado. LUH 3417 é capturada por estar grávida, e o Estado apropria-se dos seus órgãos e do seu feto, num processo não revelado em detalhes pelo filme, o que torna ainda mais opaco o destino da protagonista. THX 1138 é submetido à intervenção do Estado e levado para a detenção, onde passa por uma reprogramação químico-comportamental para que possa ser reintroduzido à sociedade.

Figura 3
Detenção e recondicionamento comportamental.

Entretanto, THX 1138 foge e consegue escapar do labirinto eletrônico que constitui a sociedade retratada na obra. A cidade parece ser uma espécie de bolha subterrânea, sustentada de fora por uma estrutura labiríntica de corredores, escadas, fios e tubulações. THX 1138 percorre por um longo tempo essa estrutura até conseguir chegar à superfície e expor-se pela primeira vez na vida ao ambiente externo do planeta Terra.

Figura 4
O mundo exterior.

Em Brazil – o filme, o personagem Sam Lowry é um burocrata, funcionário de um dos vários departamentos de um Estado totalitário futurista em que nada parece funcionar apropriadamente.

Figura 5
Aparelhos televisores informam e docilizam a população.

Para maior eficiência administrativa, tudo nessa sociedade é registrado, quantificável e debitável, ao ponto de o departamento de resgate de informações ocupar uma posição central na máquina governamental. Em meio a uma guerra civil e às tentativas da mãe de Sam para que seja promovido, ou que ao menos seja transferido para um departamento mais importante, como o temível Órgão de Resgate de Informações, ele acaba se apaixonando por Jill Layton, uma suposta terrorista.

Figura 6
Lowry em seu trabalho.

Sam Lowry tem uma vida enfadonha que se resume a lidar com a burocracia que consome a todos no universo ficcional de Brazil - o filme, enquanto tenta resolver os problemas de refrigeração de seu apartamento ou socorrer seu chefe inepto. Em meio ao tédio, Sam imagina ser uma espécie de Ícaro para voar e socorrer sua amada, Layton. Os sonhos de Sam entrecortam a narrativa; neles, enfrenta monstros e percorre cenários fantásticos, contrastando com a realidade monótona e cinzenta de uma metrópole decadente que parece existir apenas para justificar o aparelho estatal. Durante a trama, o sempre desinteressado Sam comete deslizes burocráticos ao não lidar com um formulário de veículo perdido durante uma diligência e negligenciar seus afazeres após uma promoção. Por esse motivo, é preso por traição burocrática, apesar de suas boas relações na administração pública. Seu desfecho faz jus à truculência que o Estado demonstra em todo o filme, ao tratar os cidadãos como peças que precisam funcionar de acordo com as necessidades do governo. Os acusados são taxados pelo serviço de detenção antes mesmo de serem julgados, e todas as despesas do Estado com os criminosos são custeadas pelos próprios acusados da contravenção. Sam, porém, escapa da máquina pública ao enlouquecer durante seu interrogatório, perdendo-se definitivamente nos devaneios que obsidiam sua mente enfadada desde o início do filme.

Minority Report se passa no ano de 2054, em Washington, capital do Estados Unidos, onde um sistema experimental impede que assassinatos sejam cometidos por meio das previsões de três mutantes pré-cognitivos, sob a custódia do departamento Pré-Crime. Ou seja, os mutantes são espécies de oráculos (até mesmo o espaço onde residem, dopados para que realizem suas predições, é chamado de templo) que preveem o futuro e trabalham para um sistema fundado e dirigido por Lamar Burgess e seu segundo em comando, o capitão John Anderton. O motor principal de todo o filme é acionado quando o capitão Anderton é apontado pelos próprios oráculos como autor de um crime que vai cometer nas próximas 36 horas. Inicia-se então uma corrida contra o tempo para provar que o sistema é falho.

Figura 7
Efetuação de prisão por crimes antes de serem cometidos.

Anderton passa a ser perseguido, pois a eficiência do sistema está acima de qualquer suspeita. Em fuga, ele submete-se a procedimentos cirúrgicos nos olhos para se manter incógnito, pois a identificação dos cidadãos se dá por meio de scanners de leitura das retinas dos indivíduos. Enfim, ele descobre, graças à criadora dos pregogs, que a visão dos mutantes pode discordar entre si, configurando o que o filme chama de relatório minoritário, visão de uma realidade alternativa não necessariamente correspondente ao futuro, tornando qualquer precisão propensa a falhas. Isso derruba o discurso oficial de que o sistema Pré-Crime é infalível e incorruptível, uma vez que Burgess, a mente por trás da incriminação de Anderton, se aproveitou da falha no sistema para cometer um assassinato com o intuito de preservar a viabilidade de seu experimento.

Figura 8
Anderton tendo sua retina escaneada ao desembarcar do metrô.

Anderton então constata que tanto as previsões quanto os acontecimentos foram manipulados de dentro do departamento para que política de pré-vigilância tivesse sua eficiência comprovada e pudesse ser efetivada nacionalmente. O que acabava por justificar a necessidade de uma sociedade profundamente obcecada pela segurança pública por meio da vigilância e do apagamento da privacidade na relação entre o Estado e seus cidadãos.

Escolhemos esses três filmes por serem exemplos emblemáticos desse novo ciclo imaginário contemporâneo de produções de imagens sobre o futuro, mas por também trazerem pontos coincidentes, aspectos que insistem em se repetir nas maneiras como esses futuros são concebidos. A insistência na repetição desses aspectos aponta uma tendência de reforço nesse tipo de imagem.

Um primeiro elemento comum é a onipresença de olhos biológicos e/ou mecânicos nessas sociedades futuristas, em que todos são vigiados por todos a todo momento. No caso de THX 1138, telas de equipamento de vigilância intercalam imagens de LUH 3417 e THX 1138. Em diversos momentos, imagens de monitoramento fazem as vezes do olhar subjetivo de funcionários do Estado. Uma câmera surge dentro de um banheiro e saúda THX 1138 sempre que ele abre seu depósito de medicamentos. Uma voz lhe pergunta o que há de errado e gera um recibo para quem o monitora. Câmeras surgem também em “confessionários” dispostos em pontos da cidade subterrânea. Neles, os cidadãos revelam suas angústias e são confortados por mensagens propagandísticas, em que são assegurados de que estão bem ajustados aos papéis que lhes cabem na sociedade.

Em THX 1138, o filme todo é apresentado por meio de imagens pixeladas, mediadas por telas diegéticas observadas por personagens nem sempre vistos. O mundo de THX 1138 atua como um panóptico em que todos os aspectos da vida de seus cidadãos são observados, decompostos e analisados, “a máquina óptica universal das concentrações humanas” (Miller, 2000MILLER, Jacques-Alain. A máquina panóptica de Jeremy Bentham. In: O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000., p. 171).

Em Brazil - o filme, não é muito diferente: telas obsidiam os habitantes da distopia imaginada por Gilliam, bem como a visão do espectador. Todo quadro parece conter alguma tela exibindo propaganda governamental.

Figura 9
A ubiquidade das telas em Brazil - o filme.

A diferença aparece na eficiência dos mecanismos de vigilância. No futuro de Brazil - o filme, os dispositivos existem, mas não funcionam; os despachos governamentais, muitos dos quais afetam profundamente a vida dos cidadãos, são confeccionados e postos em vigor, mas nem sempre cumpridos corretamente. A privacidade aqui é quebrada pela interdisciplinaridade dos departamentos que, ainda que não ajam em conjunto ou em sincronicidade (pois para isso precisariam ser eficientes), complementam-se em suas finalidades. Por exemplo, os funcionários da companhia de refrigeração também atuam como polícia extraoficial e utilizam seu acesso para procurar ilicitudes e irregularidades nas residências de seus clientes.

Em Minority Report, o principal aspecto da vigilância está no mote do enredo: a possível intencionalidade futura dos cidadãos já é atribuição de culpa, pelas previsões dos precogs da divisão Pré-Crime. A vigilância se justifica na lógica de segurança baseada na eliminação preventiva de indivíduos perigosos. Uma medida claramente influenciada pelo impacto do Patriot Act, promulgado em outubro de 2001, nos Estados Unidos.

[...] o USA Patriot Act, promulgado pelo Senado no dia 26 de outubro de 2001, permite ao Attorney general “manter preso” o estrangeiro (alien) suspeito de atividades que ponham em perigo “a segurança nacional dos Estados Unidos”; mas, no prazo de sete dias, o estrangeiro deve ser expulso ou acusado de violação da lei sobre a imigração ou de algum outro delito

(Agamben, 2003AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003., p. 14).

Mercado e Estado compartilham a prerrogativa da vigilância por meio de anúncios interativos que, tais quais as farmácias dos banheiros de THX 1138, identificam e cumprimentam indivíduos em vias públicas. A polícia utiliza drones aracnídeos que invadem o domicílio de diversas famílias para encontrar Anderton, que convalesce de um transplante ocular. Aqui, temos uma paradigmática representação da sociedade de controle, em que os dispositivos de vigilância e controle são interiorizados, aceitos, e a submissão dos sujeitos é irrefletida, voluntária. Os mesmos scanners que efetuam a identificação automática dos cidadãos promovem produtos e serviços personalizados de acordo com o perfil do indivíduo. Espalhados por toda a cidade futurista, servindo para controlar o tráfego de eventuais contraventores e coibir a prática de crimes, tamanha a ostensividade com que esses dispositivos aparecem no cotidiano dos cidadãos, os leitores de retina aludem às redes sociais, a quem fornecemos passiva e voluntariamente dados de consumo, comportamento, histórico de saúde, informações bancárias e contatos sociais.

De fato, as redes sociais são ferramentas tão eficientes e sofisticadas, no que diz respeito à intervenção sobre o comportamento individual e coletivo, que o capitalismo de vigilância (Zuboff, 2015ZUBOFF, Shoshana. Big Other: Surveillance capitalism and the prospects of an information civilization. In: Journal of Information Technology, Londres, v. 30, p. 75-89, março, 2015.) — a venda de dados fornecidos voluntariamente por usuários a serviços gratuitos, como contas de e-mail ou redes sociais, para empresas de análise de dados e de propaganda, que então direcionam serviços e produtos para potenciais clientes, — já é formalmente utilizado como instrumento de vigilância persistente, conjunto de métodos destinados a investigar preventivamente para o estado “indivíduos de grande valor” (Dodson, 2006DODSON, John. R. Man-hunting, Nexus Topography, Dark Networks and Small Worlds. Iosphere, p. 7-10, dez./fev., 2006., p. 8), inclusive via redes sociais, e que consiste em “seguir vários indivíduos através de diferentes redes sociais a fim de estabelecer um padrão ou um ‘esquema de vida’ [pattern of life], em conformidade com o paradigma da ‘informação baseada na atividade’ que constitui hoje o núcleo da doutrina da contrainsurgência” (Gregory, 2011GREGORY, Derek. Lines of Descent. In: Open Democracy, nov. 2011. Disponível em: http://www.opendemocracy.net/derek. Acesso em: 9 nov. 2023.
http://www.opendemocracy.net/derek...
, p. 43).

Um segundo elemento em comum que essas narrativas trazem é a questão da vida nua apresentada anteriormente. Os cidadãos de THX 1138 são tratados como máquinas reguladas quimicamente. Eles são denominados como placas de automóveis, interditados como hardwares defeituosos e reaproveitados quando considerados obsoletos. Em Brazil - o filme, as pessoas são presas, interrogadas e descartadas sem cerimônia pelo governo, desde que os formulários governamentais corretos tenham sido devidamente preenchidos. Em Minority Report, o destino do protagonista ilustra perfeitamente o homem sacro de Agamben na ficção científica futurista: assim como Sam Lowry em Brazil - o filme, Anderton, profissional exemplar e bem relacionado, é acusado de futuramente cometer o assassinato de um homem que sequer conhece.

Uma vez enquadrados na delinquência, os direitos dos protagonistas são suspensos e o que os aguarda é o cárcere numa forma de panóptico. A prisão de THX 1138 é um aposento sem paredes e sem horizonte, perpetuamente iluminado, eliminando perspectivas e sem cantos ou espaços escuros. A vigilância confisca o olhar à sua fruição, apropria-se do poder de ver e a ele submete o recluso (Miller, 2000MILLER, Jacques-Alain. A máquina panóptica de Jeremy Bentham. In: O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000., p. 172).

Figura 10 e 11
THX1138 encontra-se desorientado na imensidão vazia da detenção, enquanto técnicos observam e discutem as medidas ressocializantes a serem tomadas.

Em Brazil - o filme, a prisão se assemelha a salas acolchoadas de sanatórios arcaicos, onde os prisioneiros são mantidos dentro de sacos com aberturas apenas para os olhos, mais uma vez obstruindo a visão, e posteriormente são interrogados em enormes salas circulares.

Figura 12
A sala de interrogatório de Brazil.

Mas é em Minority Report que a referência ao panóptico é mais explícita, uma vez que a prisão tem literalmente a mesma configuração do dispositivo de Bentham:

O edifício é circular. Os apartamentos dos prisioneiros ocupam a circunferência. [...] Essas celas são separadas entre si e os prisioneiros, dessa forma, impedidos de qualquer comunicação entre eles, por partições, na forma de raios que saem da circunferência em direção ao centro, estendendo-se por tantos pés quantos forem necessários para se obter uma cela maior. O apartamento do inspetor ocupa o centro [...]. Será conveniente, na maioria dos casos, se não em todos, ter-se uma área ou um espaço vazio em toda volta, entre esse centro e essa circunferência

(Bentham, 2000BENTHAM, Jeremy. O panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000., p. 20).
Figura 13
O panóptico de Minority Report.

A prisão da divisão Pré-Crime em Minority Report é vigiada por um único carcereiro que, de seu posto de vigília situado ao centro do enorme aposento que abriga os detentos, pode observar e acessar qualquer um dos prisioneiros.

Como terceiro elemento em comum percebemos que tanto em THX 11838 quanto em Brazil - o filme, delações são estimuladas propagandisticamente, e o Estado imputa aos contraventores o ônus causado por sua delinquência. THX 1138 tem sua apreensão cancelada após o custeio da perseguição tornar-se mais caro do que os créditos disponíveis na conta do próprio perseguido. Em Brazil - o filme, o governo defende que o departamento de recuperação de informações custe 7% do produto interno bruto (PIB) e, quando da sua prisão, Lowry recebe do Estado propostas de financiamento de sua própria custódia e interrogatório, para não sair do processo arruinado financeiramente. De fato, a proteção do crédito individual é um dos argumentos de dissuasão mais recorrentes durante os interrogatórios sofridos por Lowry.

Na abertura de Minority Report, apresenta-se como a atividade profética foi transformada em ciência e aperfeiçoada em seus mínimos detalhes para que a taxa de homicídios chegasse a quase zero, restando apenas os crimes passionais como eventuais ocorrências.

Figura 14
Propaganda institucional sobre a divisão Pré-Crime.

O aspecto financeiro é sempre relevante nesses filmes, isso se revela ora pela defesa do custeio das operações de apreensão dos delinquentes, ora pelo estímulo ao consumo que em THX 1138 é propagandeado pelos confessionários. A vigilância em tal proporção é possível devido aos processos de desumanização a que todos os indivíduos são submetidos no cotidiano. Em THX 1138, como o próprio título do filme remete, a identidade de cada pessoa é nomeada como a placa de um automóvel. Todos os aspectos de suas vidas são ostensivamente observados, as paixões eliminadas (biológica e culturalmente) e nem mesmo seus corpos, ainda em vida, estão fora dos limites do poder constituído. Os funcionários do Estado podem acessar corpos de cidadãos para os interditar e, uma vez que o indivíduo não tenha mais valor, seus órgãos são consumidos e reutilizados.

Em Brazil - o filme, o Estado apenas responde a si mesmo e, devido ao inchaço na máquina, seus órgãos parecem agir de forma semi-independente, por vezes contradizendo e anulando ações uns dos outros. Em Minority Report, o Estado, apesar de forte gestor social, respeita um conjunto de regras estabelecido, inclusive pela sociedade civil, por isso, a divisão Pré-Crime é supervisionada pelo departamento de Justiça quando às vésperas de sua expansão.

Conclusão: exceção e dessensibilização

Nos tempos vividos no último século, a distopia emergiu como o paradigma de futuro para as artes. Eventos extremos ocorridos, como genocídios, o holocausto, a escravidão, parecem ter feito parte de uma agenda midiática que visava estriar o imaginário, alargar os canais empáticos coletivos, nos preparando para a imanência de práticas desumanas e desumanizadoras agora incontestavelmente presentes em nosso imaginário de forma planetária. Essas imagens parecem não nos chocar nem agredir mais.

A presença maciça de cenários futuristas de exceção no cinema de ficção científica poderia ratificar a tese de Agamben e tantos outros autores de que vivemos em um estado de exceção democrático. Os direitos humanos (tais quais vistos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e na Declaração Universal de 1948) tornam-se cada vez mais letra-morta, e as agendas dos poderes soberanos paulatinamente atendem aos interesses de menos pessoas. Restou ao governo público o expediente de encontrar novas formas de controle/disrupção, criando situações fictícias de ofensa à soberania para justificar o tolhimento de direitos e garantias constitucionais individuais.

Logo, o cinema de ficção científica nos oferece um importante registro simbólico de como processamos nosso presente, mediado por nossas fantasias de futuro e, como diria Baudrillard (1991)BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991., afirmando o real pelo imaginário, por meio do paradigma da distopia da exceção. O que esse exercício ficcional pode nos dizer sobre o mundo em que vivemos? “Toda sociedade existe instituindo o mundo como seu mundo, ou seu mundo como o mundo, e instituindo-se como parte deste mundo” (Castoriadis, 2000CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000. , p. 222). E é esse futuro imaginário, da reificação marxista evocada por um cinema saturado de “condições despersonalizadoras da vida urbana moderna” (Sontag, 2013SONTAG, Susan. The Imagination of Disaster. In: Against Interpretation and other Essays. Nova York: Picador, 2013., p. 156), fruto da projeção mágica e subjetivada de nossa sociedade, duplo cinematográfico de nosso presente e de nossa sociedade, que encontramos nos filmes acima discutidos.

O cinema nos permite voltar sobre o futuro quando ele é passado. Pela primeira vez na história da evolução humana, graças ao cinema, é possível atuar novamente como presente uma ação que ocorreu no passado, revisitar as condições nas quais pensamos aquele futuro que agora é passado

(Berardi, 2019BERARDI, Franco. Depois do futuro. São Paulo: Ubu Editora, 2019., p. 55).

Pois nosso macrocosmo social/político/econômico, por sua vez composto por abstrações como a Exceção, assim como o Estado, a Religião, o Capital, o Crime, a Alienação, entre outras, é substanciado por uma criação imaginária que a sociedade faz de/por si mesma (e em todas as formas de expressão). Cada elemento desse complexo tecido simbólico-racional, que Castoriadis chama de magma de significações imaginárias, é correspondido por uma significação social imaginária, incluindo aí os problemas de determinada coletividade (Castoriadis, 2000CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000. ).

Esse imaginário não implica em algo fictício, mas numa elaboração simbólico-racional, “posição de novas formas, e posição não determinada, mas determinante; posição imotivada, da qual não pode dar conta uma explicação causal, funcional ou mesmo racional” (Castoriadis apud Vasconcellos, 2016VASCONCELLOS, João. Imaginário social, literatura e suas representações na gestão brasileira. In: Revista Interdisciplinar de Gestão Social, v. 5, n. 2. Salvador: UFBA, 2016, p. 19). O caráter profético daquilo que se presta a enxergar possibilidades de futuro “não nos esclarece sobre o futuro, mas reflete o presente. Nesse sentido, revela a mentalidade, a cultura de uma sociedade e de uma civilização” (Minois, 2015MINOIS, Georges. A história do futuro – dos profetas à prospetiva. São Paulo: Editora Unesp, 2015., p. 18). A exceção, portanto, habita esse panteão de representações da coletividade impessoal e anônima, e a representação cinematográfica é uma expressão do saber por vezes inconsciente que temos acerca de nossa realidade. E é justamente pelo caráter autorreferente das criações cinematográficas, isto é, uma vez que as representações artísticas constituem, de forma geral, uma reflexão de uma sociedade sobre essa sociedade, que a exceção ficcional pode nos proporcionar um valioso conhecimento a respeito de como a exceção funciona como elemento estruturador de práticas sociais, particularmente durante o século XX. Nos últimos cem anos do século passado, o enfraquecimento dos estados-nação como portadores máximos do poder soberano e das relações do poder soberano com o indivíduo, faz parte de um processo que culmina na passagem da modernidade disciplinar à pós-modernidade do controle. Porém, a biopolítica permanece o eixo que une umbilicalmente essas duas lógicas, posto que, “para a sociedade capitalista, a biopolítica é o que mais importa, o biológico, o somático, o físico” (Foucault, 1994FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir – nascimento da prisão. Lisboa: Edições 70, 1994., p. 210):

Sociedade disciplinar é aquela na qual o comando social é construído mediante uma rede difusa de dispositivos ou aparelhos que produzem e regulam os costumes, os hábitos e as práticas produtivas. Consegue-se pôr para funcionar essa sociedade, e assegurar obediência a suas regras e mecanismos de inclusão e/ou exclusão, por meio de instituições disciplinares (a prisão, a fábrica, o asilo, o hospital, a universidade, a escola e assim por diante) que estruturam o terreno social e fornecem explicações lógicas adequadas para a “razão” da disciplina. O poder disciplinar se manifesta, com efeito, na estruturação de parâmetros e limites do pensamento e da prática, sancionando e prescrevendo comportamentos normais e/ou desviados. [...] devemos entender a sociedade de controle, em contraste, como aquela (que se desenvolve nos limites da modernidade e se abre para a pós-modernidade) na qual mecanismos de comando se tornam cada vez mais “democráticos”, cada vez mais imanentes ao campo social, distribuídos por corpos e cérebros dos cidadãos

(Hardt e Negri, 2001HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001., p. 42).

O novo milênio foi responsável tanto pela renovação de novas esperanças quanto do reaquecimento de angústias familiares, mas os ataques de 11 de setembro de 2001 chocaram o mundo, dando início às guerras da globalização, intermináveis e pulverizadas. A modernidade disciplinar do século XX dá então lugar de vez à pós-modernidade do controle, da biopolítica interiorizada, do panóptico transferido para dentro do sujeito como parte do sujeito. Desde então, a vigilância, a autoridade da violência e as guerras da globalização permeiam nosso repertório distópico, nos oferecendo pouca (se alguma) alternativa de como construir diferentes futuros.

É importante ressaltar que filmes sci-fi, ainda que nos permitam visualizar determinados aspectos de nossa sociedade e problematizá-los, não constituem per se um chamado às armas, pois não oferecem, necessariamente, soluções aos problemas evocados em suas narrativas. Tampouco é sua intenção fazê-lo. Longe de compor um meio sempre progressivo, talvez possa se afirmar, inclusive, que, por vezes, esses filmes atuam como modelos de perpetuação do status quo, como diversos blockbusters das décadas de 1980 e 1990 (como Mad Max 2: a caçada continua (1987), O sobrevivente (1988), Tropas estelares (1998), entre outros.

Nesses filmes, a espetacularização excessiva torna permanente a representação da exceção e de quaisquer questões sociais presentes no enredo como um exercício imaginativo inócuo, nos quais se apresentam “distopias acríticas como meros sintomas das condições prevalecentes, e não como um desafio ou resposta a esses cenários” (Penley, 1990PENLEY, Constance. Time Travel, Primal Scene and the Critical Dystopia. In: KHUN, Annette (org.). Alien Zone: Cultural Theory and Contemporary Science Fiction Cinema. London: Verso, 1990., p. 32). Contudo, é justamente por intermédio da indústria do entretenimento, que tanto se acusa de anestesiar as massas, que cremos ser possível que esses filmes possam contribuir para tornar a sociedade consciente de sua capacidade de autocriação (Castoriadis, 2000CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000. , p. 252).

Enfim, por meio dessas mesmas obras, temos um espelho do que somos agora, um reflexo dos medos, dos horrores que já vivemos. Isso sempre deixa um espaço no despertar da consciência para a necessidade urgente de superar os diversos obstáculos engendrados por um sistema desigual e embrutecedor, sem prender-se em fronteiras artificiais erigidas para a manutenção desse sistema. O imaginário, ao constituir fonte criativa da imaginação, aciona o esforço do ser para levantar uma esperança viva frente e contra o mundo objetivo da morte.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2023
  • Aceito
    22 Nov 2023
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