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Acontecimento, alteridade e iminência: percurso e desdobramentos de uma pesquisa sobre a Lei Aldir Blanc1 1 Destinará ao Distrito Federal, a estados e a municípios brasileiros, pelo período de cinco anos, o montante de 3 bilhões de reais que deverá ser empregado em ações de apoio ao setor cultural (Lei nº 14.399/2022).

Event, Alterity and Imminence: The Path and Unfolding of a Research into the Aldir Blanc Law

Resumo

Este artigo discute as principais referências metodológicas, conceituais e estéticas que embasam uma pesquisa que vem investigando, desde 2020, as mobilizações da sociedade civil e as articulações políticas que levaram à Lei Aldir Blanc (Lei nº 14.017/2020), à Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (Lei nº 14.399/2022) e à Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022). São abordadas as noções de iminência (Canclini, 2012), alteridade (Foucault, 2011) e acontecimento (Deleuze e Guattari, 2015). Conclui-se que o entrelaçamento desses conceitos pode contribuir para a compreensão das relações entre a sociedade civil e a construção de políticas públicas, lançando luz sobre seu sentido utópico e sobre os anseios que impulsionam a participação democrática.

Palavras–chave
Lei Aldir Blanc; Lei Paulo Gustavo; mobilizações sociais; cultura; artes

Abstract

This paper discusses the main methodological, conceptual and aesthetic references that support a research that has been investigating, since 2020, the mobilizations of civil society and the political articulations that led to the Aldir Blanc Law (Federal Law nº 14,017/2020), the Aldir Blanc National Policy for the Promotion of Culture (Law 14,399/2022) and the Paulo Gustavo Law (Complementary Law nº 195/2022). The notions of imminence (Canclini, 2012), alterity (Foucault, 2011) and event (Deleuze; Guattari, 2015) are addressed. The conclusion is that the interweaving of these concepts can contribute to the understanding of the relationship between civil society and the construction of public policies, clarifying their utopian sense and the desires that drive democratic participation.

Keywords
Aldir Blanc Law; Paulo Gustavo Law; social movements; culture; arts

Introdução

Onde não há jardim, as flores nascem de um secreto investimento em formas improváveis

(Carlos Drummond de Andrade).

O artigo discute o percurso metodológico e os principais referenciais conceituais e estéticos que fundamentam uma pesquisa de pós-doutorado sobre a mobilização social que levou à Lei Aldir Blanc I (Lei Federal nº 14.017/2020BRASIL. Lei nº 14.017/2020. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, edição 123, p. 1, 29 jun. 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.017-de-29-de-junho-de-2020-264166628. Acesso em: 2 nov. 2021.
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), os fatores que a antecederam e seus desdobramentos. Sancionada em junho de 2020, a lei repassou, às unidades federativas e aos municípios brasileiros, 3 bilhões de reais que foram investidos, de maneira descentralizada, em ações voltadas aos setores culturais e artísticos brasileiros, alguns dos mais atingidos pela crise decorrente da pandemia de covid-19. Embora tenha sido apenas uma medida emergencial, o que certamente não soluciona os problemas das políticas públicas para a cultura e as artes no Brasil, a experiência se desdobrou na Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (Lei Federal nº 14.399/2022BRASIL. Lei Complementar nº 195/2022. Diário Oficial da União: seção 1 – extra B; Brasília, DF, edição 128-B, p. 1. 8 jul. 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-complementar-n-195-de-8-de-julho-de-2022-414060720. Acesso em: 28 jul. 2022.
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, conhecida como Aldir Blanc II)1 1 Destinará ao Distrito Federal, a estados e a municípios brasileiros, pelo período de cinco anos, o montante de 3 bilhões de reais que deverá ser empregado em ações de apoio ao setor cultural (Lei nº 14.399/2022). e na Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022BRASIL. Lei nº 14.399/2022. Diário Oficial da União: seção 1 – extra B; Brasília, DF, edição 128-B, p. 4. 8 jul. 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-n-14.399-de-8-de-julho-de-2022-413971491. Acesso em: 28 jul. 2022.
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)2 2 Prevê o repasse de 3,86 bilhões de reais a estados, municípios e ao Distrito Federal para aplicação em ações emergenciais que visem a mitigar os efeitos da pandemia da covid-19 sobre o setor cultural. , tendo influenciado grande parte das ações do Ministério da Cultura em 2023. Além dessas ramificações, algumas particularidades contribuíram para que a Aldir Blanc I se tornasse um objeto de estudos importante nas áreas de políticas culturais e comunicação: (1) Foi criada com intensa participação da sociedade civil, aprovada quase por unanimidade pelo Congresso Brasileiro e sancionada, devido à pressão popular, por um governo conservador e contrário às políticas públicas; (2) Foi a primeira experiência de execução descentralizada dos recursos do Fundo Nacional de Cultura3 3 Um dos mecanismos do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) tem “o objetivo de captar e destinar recursos para projetos culturais”, sendo administrado pelo Ministério da Cultura (Lei nº 8.313/1991). Os recursos do Fundo nunca foram transferidos regularmente a estados e municípios, tendo se restringido a repasses discricionários. ; (3) A adesão foi de 100% dos estados e de 76% dos municípios (Melo, 2023MELO, Sharine. Pela onda luminosa: a articulação em rede a favor da Lei Aldir Blanc no contexto das políticas culturais brasileiras. In: CANCLINI, Néstor García (coord.). Emergências culturais: instituições, criadores e comunidades no Brasil e no México. São Paulo: Edusp, 2023.), marca só superada pela Lei Paulo Gustavo, com mais de 98% de adesões municipais.

Desde agosto de 2023, a investigação, ainda em andamento, vem sendo financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)4 4 Processo nº 2022/15346-9, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). . Mas, quando começou a ser realizada, em outubro de 2020, era parte de um projeto mais amplo, que reunia quatro pesquisadores, do Brasil e do México, com o intuito de estudar as mudanças institucionais nos setores artísticos e culturais latino-americanos. Conduzida ao longo da pandemia de covid-19, a pesquisa voltou-se, em grande medida, para as dificuldades enfrentadas nesse período por artistas e outros trabalhadores da cultura. Embora não fosse essa sua proposta original, pesquisa e objeto de estudos logo convergiram. Também foi em meio à emergência sanitária — agravada pela crise política, social e econômica — que ocorreram as mobilizações pela Aldir Blanc I. A sociedade civil reuniu-se em centenas de reuniões virtuais, algumas com milhares de participantes. Os encontros ― inspirados em conferências5 5 Um dos componentes do Sistema Nacional de Cultura, são instâncias de debate para proposição e formulação de políticas públicas. organizadas pelo Ministério da Cultura em 2006, 2010 e 2013 — eram replicados em aplicativos como YouTube, WhatsApp e Instagram, os mesmos utilizados massivamente para a propagação de notícias falsas e desinformação. A articulação com deputados federais e senadores também foi notável, assim como a aproximação com os poderes executivos locais, o que foi fundamental para a execução dos recursos, um dos maiores já investidos pelo governo federal em uma ação voltada para a cultura e as artes (Melo, 2021MELO, Sharine. A enérgica e larga melodia do acontecimento: relatos sobre a Lei Aldir Blanc. In: CANCLINI, Néstor García (coord.). Cadernos de Pesquisa n. 2. Emergências culturais latino-americanas: das histórias aos acontecimentos no Brasil. São Paulo: Amavisse/IEA, 2021.).

Contradizendo o conservadorismo predominante na época, a lei descortinou um horizonte improvável: a implementação do Sistema Nacional de Cultura6 6 Acrescentado à Constituição Brasileira em 2012 — Art. nº 216-A (Incluído pela Emenda Constitucional nº 71, de 2012) — (Brasil, 1988), o Sistema Nacional de Cultura (SNC) prevê “um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura”, “pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade”. As leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo são as primeiras experiências descentralizadas nas políticas culturais brasileiras, embora não tenham todos os elementos para serem consideradas exemplos de funcionamento do SNC. . Se esse objetivo permanece distante de ser concretizado, ao menos voltou à pauta nas discussões teóricas e agendas políticas brasileiras. Vários foram os problemas da Lei Aldir Blanc I, entre eles: desorganização das instâncias federais, falta de preparo dos gestores locais e desvio de verba para finalidades alheias às do programa. Mas o volume de recursos financeiros investidos, até mesmo em localidades que não tinham estrutura de políticas públicas para o setor, foi capaz de modular a configuração institucional, a atuação política e a participação da sociedade civil. Na esteira da Lei Aldir Blanc I, as leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc II também foram elaboradas com intensa participação social e, por isso, logo incorporadas à pesquisa. Foi considerada, ainda, a mudança de gestão no governo federal ― de Jair Bolsonaro para Lula da Silva, eleito em 2022 ― e suas implicações para o conjunto das políticas públicas.

O objetivo inicial da investigação era compreender os motivos que levaram milhares de artistas, técnicos de espetáculos, gestores e ativistas a se engajarem na construção coletiva de uma lei. Esses objetivos se expandiram com a publicação dos novos mecanismos, passando a englobar as possibilidades de transformação institucional abertas pela participação democrática. Desde então, a seguinte hipótese vem norteando a pesquisa: “a potência de uma mobilização social se expande em função de sua capacidade de captar ― em um momento de suspensão ou de incertezas ― as possibilidades de mudança que se anseiam e se anunciam em uma sociedade” (Melo, 2022MELO, Sharine. Poetas em tempos de penúria: Investigações sobre a articulação em rede de artistas e profissionais da cultura para a elaboração de políticas públicas para o setor (projeto de pós-doutorado). São Paulo, [s.n.], 2022., p. 7). Neste ponto, é válido abrir um parêntese sobre dois aspectos do trabalho. O primeiro é uma referência a um dos últimos poemas do escritor paulistano Roberto Piva (apud Melo, 2023MELO, Sharine. Pela onda luminosa: a articulação em rede a favor da Lei Aldir Blanc no contexto das políticas culturais brasileiras. In: CANCLINI, Néstor García (coord.). Emergências culturais: instituições, criadores e comunidades no Brasil e no México. São Paulo: Edusp, 2023., p. 63):

E para que ser poeta em tempos de penúria? Exclama Hölderlin adoidado assassinos travestidos em folhagens hordas de psicopatas atirados nas praças enquanto os últimos poetas perambulam na noite acolchoada

(Piva apud Melo, 2023MELO, Sharine. Pela onda luminosa: a articulação em rede a favor da Lei Aldir Blanc no contexto das políticas culturais brasileiras. In: CANCLINI, Néstor García (coord.). Emergências culturais: instituições, criadores e comunidades no Brasil e no México. São Paulo: Edusp, 2023., p. 63).

Em meio aos afetos aguçados pela pandemia, a evocação romântica trazia consigo uma pergunta velada: por que fomentar a cultura e as artes quando um colapso levava a milhares de mortes diárias no Brasil e no mundo? As respostas imediatas não satisfaziam. O envolvimento da sociedade civil na construção da medida emergencial não apontava para algo além do desenvolvimento simbólico, social ou econômico, justificativas tão comuns nos circuitos artísticos e culturais? Assim, chegávamos ao segundo aspecto, menos sombrio: a escolha do termo anseio coletivo para nomear o fenômeno que levou às novas leis. Segundo o dicionário Houaiss (2015)PEQUENO dicionário Houaiss da língua portuguesa; Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia. São Paulo: Moderna: 2015., “ansiar” significa “desejar muito, almejar”, mas também “sentir ansiedade, preocupação”. A definição desse termo não era clara no início dos trabalhos, mas foram precisamente as contradições que ele carrega que, aos poucos, adensaram as perguntas formuladas. O que era intolerável? Que condições tornaram possível o engajamento coletivo? Quais as transformações almejadas? O que permanece após as mobilizações, tantas vezes intensas e velozes, mas efêmeras? (Melo, 2021MELO, Sharine. A enérgica e larga melodia do acontecimento: relatos sobre a Lei Aldir Blanc. In: CANCLINI, Néstor García (coord.). Cadernos de Pesquisa n. 2. Emergências culturais latino-americanas: das histórias aos acontecimentos no Brasil. São Paulo: Amavisse/IEA, 2021.; 2023MELO, Sharine. Pela onda luminosa: a articulação em rede a favor da Lei Aldir Blanc no contexto das políticas culturais brasileiras. In: CANCLINI, Néstor García (coord.). Emergências culturais: instituições, criadores e comunidades no Brasil e no México. São Paulo: Edusp, 2023.).

Procurando dar consistência à abordagem dessas questões, foram incorporados à pesquisa os conceitos de alteridade (Foucault, 2011FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros. São Paulo: Martins Fontes, 2011.), iminência (Canclini, 2012CANCLINI, Néstor García. A sociedade sem relato: antropologia e estética da iminência. São Paulo: Edusp, 2012.) e acontecimento (Deleuze e Guattari, 2015DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Maio de 68 não ocorreu. Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência. v. 8, n. 1, p. 119-121, 2015.), que serão explorados neste artigo. Embora não sejam apresentadas de modo sistematizado nas publicações já realizadas, essas noções permeiam todo o trabalho, articulando as discussões teóricas e a metodologia. Além de apresentar um percurso particular de investigação, propomos perspectivas renovadas que contribuam para os estudos dos processos de institucionalização da cultura, especialmente no que se refere à participação democrática da sociedade civil.

Notas sobre o percurso metodológico

Uma primeira questão se impôs: como estudar um processo em tempo real? A Aldir Blanc I havia sido publicada em junho de 2020, apenas três meses antes do início da pesquisa. Estávamos, portanto, em pleno período de execução da lei. Os artigos já publicados sobre o tema eram voltados a aspectos de ordem técnica, a elementos conceituais ou à análise dos primeiros dados sobre as adesões ao programa, a distribuição e a execução dos recursos financeiros. São tópicos importantes para a avaliação de políticas públicas, mas não eram o foco da pesquisa que se iniciava. Para atingir o objetivo proposto (captar os anseios que levaram à mobilização), lançamos mão de métodos etnográficos, especialmente de entrevistas semiestruturadas. As conversas nos pareceram o modo mais apropriado de nos acercarmos daquele acontecimento porque, como sugere Canclini (2018)CANCLINI, Néstor García. Agradecimientos. In: GREELEY, R. A. Conversaciones con Néstor García Canclini. Barcelona, Espanha: Gedisa Editorial, 2018., “conversar é uma maneira de dialogar com o que os outros viveram”.

Como dito, as primeiras fases da pesquisa foram realizadas durante os períodos mais críticos da pandemia e, portanto, estavam sujeitas a restrições de mobilidade. Esse fato teve uma dupla implicação. A primeira é referente ao objeto de estudo: o uso tático dos recursos digitais revelou-se um dos motivos de êxito da criação da medida emergencial, transformando-se também no principal eixo das análises publicadas até o momento, em que relacionamos a cultura digital — impulsionada pela Política Nacional de Cultura Viva7 7 Política pública “voltada para o reconhecimento e apoio a atividades e processos culturais já desenvolvidos, estimulando a participação social, a colaboração e a gestão compartilhada de políticas públicas no campo da cultura” (Cultura Viva, s.d.). Foi transformada em lei em 2014 (Lei nº 13.018/2014). e pelos Pontos de Cultura8 8 Principal instrumento da Política Nacional de Cultura Viva, são entidades jurídicas, grupos ou coletivos que “desenvolvem e articulam atividades culturais em suas comunidades” (Lei nº 13.018/2014). Seus integrantes foram os principais responsáveis pela articulação política e pela difusão da proposta da Lei Aldir Blanc. ― às habilidades de comunicação dos articuladores da Aldir Blanc I (Melo, 2021MELO, Sharine. A enérgica e larga melodia do acontecimento: relatos sobre a Lei Aldir Blanc. In: CANCLINI, Néstor García (coord.). Cadernos de Pesquisa n. 2. Emergências culturais latino-americanas: das histórias aos acontecimentos no Brasil. São Paulo: Amavisse/IEA, 2021.; 2023). A segunda implicação é metodológica: se a mobilização pelas leis se apropriou justamente das redes, ficou claro que mapeá-las seria uma das etapas fundamentais da pesquisa (Melo, 2021MELO, Sharine. A enérgica e larga melodia do acontecimento: relatos sobre a Lei Aldir Blanc. In: CANCLINI, Néstor García (coord.). Cadernos de Pesquisa n. 2. Emergências culturais latino-americanas: das histórias aos acontecimentos no Brasil. São Paulo: Amavisse/IEA, 2021.).

Um contato inicial foi feito com uma das primeiras pessoas da sociedade civil a se envolver com a proposta da Aldir Blanc I e a difundi-la em movimentos populares, especialmente aos integrantes dos Pontos de Cultura. A partir de então, identificamos outros atores que se destacavam na rede, não por sua liderança (já que era um processo horizontal), mas por sua capacidade de articulação social e política (Melo, 2021MELO, Sharine. A enérgica e larga melodia do acontecimento: relatos sobre a Lei Aldir Blanc. In: CANCLINI, Néstor García (coord.). Cadernos de Pesquisa n. 2. Emergências culturais latino-americanas: das histórias aos acontecimentos no Brasil. São Paulo: Amavisse/IEA, 2021.). Entrevistamos, em um primeiro momento: cinco ativistas; uma assessora parlamentar; uma conselheira de cultura; três membros dos governos locais; uma produtora; seis artistas; dois moradores de comunidades quilombolas; um morador de aldeia indígena; e três técnicos de espetáculos. Como essas pessoas eram provenientes de oito estados brasileiros, obtivemos certa dimensão territorial, apesar de as entrevistas terem sido realizadas virtualmente.

Embora já estivessem esboçados no projeto, foi somente a partir da análise dessas conversas iniciais que os referenciais teóricos foram definidos. A pertinência da noção de acontecimento foi reforçada com os relatos que deixavam transparecer o espanto diante da potência de mobilização social e de articulação política a que chegaram os setores artísticos e culturais. A percepção de alteridade também era uma constante nas falas dos entrevistados, seja em suas narrativas sobre a diversidade de modos de vida com que se deparavam, seja pela vontade de transformar as instituições culturais e as políticas públicas. Com a publicação das leis Aldir Blanc II e Paulo Gustavo, um novo conjunto de entrevistas foi planejado, envolvendo membros do governo federal; artistas e pesquisadores voltados aos estudos em políticas culturais no Brasil e na América Latina. Já sem as restrições de mobilidade, esses encontros vêm sendo realizados presencialmente sempre que possível. Esperamos chegar a um total de 30 a 35 pessoas entrevistadas, de modo a formar um panorama de percepções sobre os rumos institucionais da cultura e das artes no país.

As conversas iniciais giravam em torno dos seguintes temas: (1) Motivações da mobilização pela Lei Aldir Blanc; (2) Participantes do processo; (3) Construção da medida emergencial por parlamentares e pela sociedade civil; (4) Relação entre a Aldir Blanc e o Sistema Nacional de Cultura; (5) Facilidades e dificuldades de implementação da lei. Com a ampliação da pesquisa, as entrevistas passaram a abordar também: (1) Mudanças no Ministério da Cultura influenciadas pela troca de gestão e pelas novas leis; (2) Motivos da aprovação das leis pelo Congresso; (3) Atuação dos gestores estaduais e municipais; (4) Modos como as políticas culturais podem atenuar a precariedade do trabalho no setor; (5) Relação das políticas culturais com o público e seus processos de mediação. Também foi incluída a seguinte pergunta, que busca abrir espaço para a utopia ou a fabulação: “Como você imagina que devam ser as políticas para a cultura e as artes no Brasil?”.

A riqueza de temas abordados nessas conversas (que já ultrapassam 25 horas de gravações em áudio) trouxe à tona os mais diversos pontos de vista sobre a construção das leis Aldir Blanc I, Aldir Blanc II e Paulo Gustavo. Essa diversidade reforçou o caráter coletivo — e sempre parcial — da própria pesquisa. Os textos foram transcritos e revisados com a colaboração dos participantes (cujos nomes, em comum acordo, não foram mantidos em sigilo nas publicações já realizadas) e extensas citações das conversas foram dispostas de modo a reconstituir fragmentos dos complexos processos de elaboração e execução de políticas públicas. Ficaram evidentes também as discordâncias e lacunas da construção democrática de uma ação de Estado para a cultura e as artes, em um país continental. Para abarcar essas questões, os referenciais teóricos foram expandidos para além dos estudos em políticas culturais, tangenciando a filosofia, a estética, a literatura e as artes.

O acontecimento

Se você já teve por acaso na vida um acontecimento forte, imprevisto (já teve, naturalmente) recorde-se do tumulto desordenado das muitas ideias que nesse momento lhe tumultuaram no cérebro. Essas ideias, reduzidas ao mínimo telegráfico da palavra, não se continuavam, porque não faziam parte de frase alguma, não tinham resposta, solução, continuidade, ressoavam, amontoavam-se, sobrepunham-se. Sem ligação, sem concordância aparente — embora nascidas do mesmo acontecimento — formavam, pela sucessão rapidíssima, verdadeiras simultaneidades, verdadeiras harmonias acompanhando a melodia enérgica e larga do acontecimento

(Andrade, 1987ANDRADE, Mario de. Poesias completas. Belo Horizonte; Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1987., p. 70-71).

O trecho acima, retirado do Prefácio Interessantíssimo à obra Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade (1987)ANDRADE, Mario de. Poesias completas. Belo Horizonte; Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1987., vem sendo uma das fontes de inspiração para a pesquisa. Afinal, uma espécie de vertigem acometeu aqueles que acompanhavam os setores artísticos e culturais em 2020, provocada não somente pelo “tumulto desordenado das muitas ideias”, mas principalmente pela “sucessão rapidíssima” dos acontecimentos que emergiam. De fato, o primeiro aspecto que chamou a atenção sobre a Lei Aldir Blanc I foi a construção coletiva, em curtíssimo período, de uma medida emergencial voltada a um setor há muitos anos negligenciado pelas políticas públicas. O montante destinado à função cultura do orçamento federal havia caído de pouco mais de 3 bilhões de reais, em 2014, para menos de 2 bilhões, em 2020 (em valores nominais). Esse cenário era comum a outros países. Segundo relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CepalCEPAL; OEI. A contribuição da cultura para o desenvolvimento econômico na Ibero-América. Madri, Espanha: Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), 2021.) e da Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) publicado em 2021, o auge dos investimentos em políticas públicas na região ocorreu em 2009, quando a média dos gastos dos países atingiu 0,31% do Produto Interno Bruto (PIB). Desde então, uma série de quedas fez com que a porcentagem chegasse, em 2019, ao seu patamar mais baixo: 0,23%. No Brasil, entre 2013 e 2019, a parcela do PIB investida em cultura foi, em média, de apenas 0,02%.

Entre 2019 e 2022, apesar do orçamento reduzido, a cultura muitas vezes ocupou o centro das atenções do governo federal brasileiro, mais como embate político do que como objeto de ações institucionais. As decisões tornaram-se mais centralizadas, apostando nas linguagens tradicionais e diluindo instâncias de participação. Em ações coordenadas e simbólicas, o Ministério da Cultura foi extinto e o termo guerra cultural passou a repercutir nos meios conservadores. Mesmo circunscrita a uma parcela da sociedade naturalmente interessada no fomento à cultura e às artes, a emergência das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo dificilmente poderia ser prevista observando-se esse contexto e a concatenação dos eventos no Brasil e no mundo. O conceito de acontecimento, definido por Deleuze (2009)DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2009., pareceu então adequado para traduzir as impressões contraditórias que nos acometiam: um efeito de ações e de paixões que irrompe inteiramente no presente, mas que sempre escapa a esse tempo, dividindo-se infinitamente entre o passado e o futuro.

O próprio filósofo, em parceria com Guattari, baseou-se nessa noção para referir-se a outro fato histórico: Maio de 1968 (Deleuze e Guattari, 2015DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Maio de 68 não ocorreu. Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência. v. 8, n. 1, p. 119-121, 2015.). Pelo menos três crises eclodiram simultaneamente na França naquela época ― estudantil, política e operária ―, e muitas de suas reivindicações ainda soam atuais: liberdade de expressão, equidade de gênero e sociorracial. Antonio Rubim (2022)RUBIM, Antonio. Políticas culturais: diálogos possíveis. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2022. lembra que, ao questionar padrões de comportamento e hierarquias, os ativistas da década de 1960 também criticavam o modelo de políticas públicas então vigente: centralizador e pautado na preservação e difusão de obras de arte consideradas canônicas. Nos anos 1970 (marcados por movimentos migratórios, mudanças tecnológicas e transformações econômicas), novos paradigmas foram consolidados sob o termo democracia cultural, que, idealmente, compreende a descentralização administrativa e o reconhecimento da diversidade de formatos expressivos. São esses os princípios que ainda hoje animam os entusiastas das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo.

Mas Deleuze e Guattari (2015)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Maio de 68 não ocorreu. Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência. v. 8, n. 1, p. 119-121, 2015. estavam pouco interessados nas mudanças institucionais decorrentes dos acontecimentos de 1968. O que eles destacam, no artigo escrito quase vinte anos depois, é uma espécie de “fenômeno de vidência”, como se a sociedade tivesse percebido o que nela havia de intolerável e vislumbrado uma possibilidade de transformação. Ocorre que, para os filósofos, a França foi incapaz de lidar com a subjetividade que emergia no final dos anos 1960: “tudo o que era novo foi marginalizado ou caricaturado”, lamentam. O assombro, naquela época, vinha de uma aparente falta de propósito para as manifestações e, na visão dos autores, as reformas políticas pouco atenderam aos anseios difusos. Como transpor essa referência teórica para um espanto às avessas? Se a institucionalidade era questionada em 1968, a participação da sociedade civil nas mobilizações pela Lei Aldir Blanc visava exatamente ao contrário: apropriar-se dos meios institucionais. Um dos caminhos encontrados foi uma espécie de apoderamento dos meandros legislativos das políticas públicas. Segundo um dos entrevistados:

Sempre estive nos fronts de luta, reivindicando políticas públicas para a cultura. Felizmente, a gente teve mais vitórias do que derrotas. [...] Descobrimos o caminho do legislativo, a atuação no legislativo, mais do que no executivo diretamente. [...] Percebemos que a atuação teria que ser ali para construirmos as políticas públicas de forma mais consistente por meio de leis

(Entrevista concedida à autora).

Outra entrevistada completa:

Hoje temos um setor cultural e movimentos culturais com mais cabeças pensantes, que se aprofundaram e entendem coisas muito técnicas, que lá atrás não entendíamos. Fomos estudar. O povo foi fazer mestrado, doutorado, pós-doutorado sobre o Sistema [Nacional de Cultura]

(Entrevista concedida à autora).

Esse acúmulo de experiências de que falam os entrevistados não reduziu o efeito do acontecimento que produziu as leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo, mas funcionou como uma combustão para que ele irrompesse. É válido retornar, rapidamente, ao declínio dos regimes ditatoriais latino-americanos, no final do século XX, para ressaltar alguns aspectos desse processo. Evelina Dagnino (1998)DAGNINO, Evelina. Culture, Citizenship, and Democracy: Changing Discourses and Practices of the Latin American Left. In: Cultures of politics, politics of culture. Re-viosioning Latin American social movements. Colorado, Estados Unidos: Westview Press, 1998. lembra que, na época, a desconfiança em relação ao Estado convivia com o reconhecimento da multiplicidade de sujeitos envolvidos na construção de um projeto democrático. Com isso, uma crescente expectativa era depositada sobre a sociedade civil. Há diversas definições para esse termo, mas, em geral, elas englobam movimentos sociais organizados por setores profissionais, temáticas sociorraciais, de gênero, entre outras. O próprio Ministério da Cultura brasileiro foi criado, em 1985, em diálogo com a classe artística e com intelectuais. Contudo, os anos 1980 e 1990 também foram marcados pelo avanço do neoliberalismo e pela predominância dos interesses privados, especialmente no fomento à cultura e às artes, provocando reivindicações por políticas de Estado mais abrangentes para o setor. Um exemplo reconhecido é o movimento Arte Contra a Barbárie que, no início dos anos 2000, levou, entre outras ações, à criação do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo.

Segundo Frederico Machado (2020)MACHADO, Frederico Viana. Participacionismo e diferencialismo identitário nas relações entre Estado e movimentos sociais no Brasil (2003-2010). Psicologia & Sociedade, v. 32, 2020., a partir da primeira eleição de Lula da Silva para a Presidência da República, em 2002, instâncias de participação social, como os conselhos e as conferências, foram ainda mais ativadas, tornando mais permeáveis as fronteiras entre o governo federal e a sociedade civil. A iniciativa também fortaleceu associações identitárias e temáticas, que reivindicam direitos e políticas públicas. No campo da cultura, foram realizadas, durante os primeiros governos petistas, três conferências nacionais cuja experiência seria fundamental, anos mais tarde, para a mobilização pelas medidas emergenciais. De acordo com uma das entrevistadas para a pesquisa, nas conferências de 2006 e 2010, já havia “classes organizadas: teatro, dança, música”. Em 2013, “outras identidades” passaram a reivindicar o acesso às políticas públicas, envolvendo “uma série de novos atores culturais”, como “os periféricos e os negros”, grupos que, segundo ela, “historicamente não ocupavam esses espaços”. “Quando surgiu a Lei Aldir Blanc, os movimentos se colaram em uma mobilização geral”, completa.

Mas o processo não foi linear. Tratou-se, antes, de uma centelha que acionou uma série de anseios represados e culminou em uma intensa dinâmica colaborativa. É natural que planos e desejos se dispersem na busca por um horizonte de institucionalidade: “você sabe que, quando o assunto é cultura, para discutir, cada um tem uma ideia”, reforça um entrevistado. No entanto, ele completa: “na dificuldade, aprendemos que precisamos trabalhar com pautas únicas para juntar todo mundo”. Se o desfecho institucional das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo não nos permite traçar relações diretas com as principais referências históricas de Deleuze e Guattari (2015)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Maio de 68 não ocorreu. Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência. v. 8, n. 1, p. 119-121, 2015., ao menos podemos apreender da noção de acontecimento sua dimensão irredutível às séries causais, os desvios ou rupturas que representa. Não foi justamente a súbita interrupção de uma ordem estabelecida, acompanhada por uma confluência de fatores aparentemente distintos que — tanto na França de 1968 quanto no Brasil de 2020 — aguçou os sentimentos de euforia, perplexidade e estranhamento? Segundo um dos envolvidos na articulação pela primeira edição da medida emergencial:

Eu costumava dizer, na época, que estávamos com o Espírito do Tempo ao nosso lado, porque não havia dificuldades para mobilizar. [...] Não havia disputa, como havia antes, entre os movimentos [...]. Houve um momento em que se fez uma coalizão nacional, entre entidades municipalistas, fóruns gestores, parlamentares, movimentos sociais da cultura, que foi vitória atrás de vitória. As webconferências deram uma abrangência de construção popular. [...] Foi um fenômeno! Espírito do Tempo!

(Entrevista concedida à autora).

Além da experiência de mobilização social acumulada pelas conferências, duas outras políticas públicas ― mesmo com suas falhas e descontinuidades — contribuíram para essa integração: o Sistema Nacional de Cultura — por sua proposta de federalismo e pela lógica descentralizada ― e o Programa Cultura Viva ― por sua atuação territorial, pela formação de redes e pelo treinamento no uso tático de equipamentos digitais (Melo, 2023MELO, Sharine. Pela onda luminosa: a articulação em rede a favor da Lei Aldir Blanc no contexto das políticas culturais brasileiras. In: CANCLINI, Néstor García (coord.). Emergências culturais: instituições, criadores e comunidades no Brasil e no México. São Paulo: Edusp, 2023.). A propósito, a certificação dos Pontos de Cultura no início dos anos 2000 foi fortemente influenciada pelo otimismo digital da virada do milênio. Para Eliane Costa (2011)COSTA, Eliane. Jangada digital: Gilberto Gil e as políticas públicas para a cultura das redes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011., esses espaços tinham como principal ação estruturante a relação entre “cultura, comunicação e mídia livre” e, nos primórdios do programa, recebiam recursos para edição de áudio e imagem, além de computadores conectados à internet. Com isso, muitos de seus membros desenvolveram habilidades de comunicação digital hoje fundamentais para a participação política.

De fato, uma busca no Google por vídeos com o tema emergência cultural, postados entre março de 2020 e dezembro de 2021, retorna mais de 40 mil resultados. São mais de 6 mil postagens de material audiovisual com o termo Lei Aldir Blanc realizadas no mesmo período9 9 Busca realizada pela autora em 24 de junho de 2023, no site www.google.com, utilizando termos “emergência cultural” e “Lei Aldir Blanc”, com filtro temporal de 1º de março de 2020 a 31 de dezembro de 2021. . Vale lembrar que, no dia da votação pelo Congresso, em 26 de maio de 2020, a hashtag #AprovaEmergenciaCultural alcançou a segunda posição no ranking nacional do Twitter (Melo, 2021MELO, Sharine. A enérgica e larga melodia do acontecimento: relatos sobre a Lei Aldir Blanc. In: CANCLINI, Néstor García (coord.). Cadernos de Pesquisa n. 2. Emergências culturais latino-americanas: das histórias aos acontecimentos no Brasil. São Paulo: Amavisse/IEA, 2021.). Essa energia foi, em parte, mantida até a aprovação das leis Aldir Blanc II e Paulo Gustavo, dando mostras de continuar (com menos intensidade) nos processos de implementação e execução dos novos mecanismos. Mas, longe de ser homogênea, a mobilização vem aglutinando diversos movimentos e chamando cada vez mais a atenção de políticos de diferentes orientações partidárias. A multiplicidade de atores envolvidos também reforça disputas por protagonismo. Uma assessora parlamentar ouvida durante a pesquisa demonstra curiosidade em seu relato: “quatorze partidos assinaram a Lei Aldir Blanc I para chamá-la de sua”. As diferenças políticas têm sido, ainda, evidentes no momento da execução das leis. Outra entrevistada opina:

[...] a inserção da bandeira política fez toda a diferença no resultado de cada município. A cidade de Eldorado [São Paulo] perdeu recursos [da Lei Aldir Blanc I], nem se inscreveu. Alguns municípios não mexeram um dedo. Alguns municípios disseram: ”me dá esse recurso aqui, vou fortalecer a cultura que já legitimamos”

(Entrevista concedida à autora).

Narrativas como essas apontam mais uma vez para elementos da filosofia de Deleuze e Guattari (2015)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Maio de 68 não ocorreu. Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência. v. 8, n. 1, p. 119-121, 2015.. Afinal, é por sua dimensão de acontecimento que alguns eventos históricos são tão difíceis de serem assimilados, prática ou teoricamente. Seus sentidos são múltiplos e escapam às relações lineares de causa e efeito. Os antropólogos Arturo Escobar e Michal Osterweil (2009, p. 125)ESCOBAR, Arturo; OSTERWEIL, Michal. Movimientos sociales y la política de lo virtual. Estrategias deleuzianas. Tabula Rasa. Bogotá - Colômbia, n. 10, p. 123-161, jan. 2009. ressaltam que o interesse de tantos intelectuais e ativistas pela obra dos filósofos franceses se dá justamente porque ela “abriu o campo do virtual a projetos teóricos e políticos” e encontrou uma grande “ressonância nos sonhos e desejos de muitos atores sociais”. No entanto, falar em desejos e sonhos, embora amplie as perspectivas teóricas, não isenta as mobilizações sociais de sua concretude: devemos lembrar que as leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo emergiram da precariedade que há anos atinge o setor artístico e cultural brasileiro e que foi severamente agravada pela pandemia.

Além disso, um acontecimento não suspende as diferenças e desigualdades, mas as acentua. Na introdução ao livro Cultures of politics, politics of cultures, Alvarez, Dagnino e Escobar (1998, p. 7)ALVAREZ, Sônia; DAGNINO, Evelina; ESCOBAR, Arturo. (org.). Cultures of politics, politics of culture. Re-viosioning latin american social movements. Colorado, Estados Unidos: Westview Press, 1998. definem as políticas culturais como “o processo gerado quando conjuntos de atores sociais moldados por e incorporando diferentes sentidos e práticas culturais entram em conflito”. Segundo os autores, a cultura é sempre política porque seus sentidos são constitutivos de processos que, implícita ou explicitamente, buscam redefinir os poderes em uma sociedade. Nivón Bolán (2006)NIVÓN BOLÁN, Eduardo. La política cultural. Temas, problemas y oportunidades. In: México: CONACULTA – Fondo Regional para la Cultura y las Artes de la Zona Centro (Ed.). 2006. Disponível em: http://sic.gob.mx/ficha.php?table=fondo_editorial&table_id=4744. Acesso em: 18 set. 2023.
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também reafirma as relações entre cultura e política, embora ressalte a relativa autonomia entre os termos. Para o autor mexicano, a novidade de nosso tempo reside no fato de as políticas culturais serem entendidas como “algo mais que a soma das políticas setoriais”, uma vez que supõem um “esforço de articulação” de diversos agentes: dos “grupos majoritários” às “comunidades pequenas e marginalizadas”.

Ainda de acordo com Nivón Bolán (2006)NIVÓN BOLÁN, Eduardo. La política cultural. Temas, problemas y oportunidades. In: México: CONACULTA – Fondo Regional para la Cultura y las Artes de la Zona Centro (Ed.). 2006. Disponível em: http://sic.gob.mx/ficha.php?table=fondo_editorial&table_id=4744. Acesso em: 18 set. 2023.
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, a relevância da cultura e das artes para a governamentalidade e o poder deve-se à dificuldade que as sociedades enfrentam para controlar as contradições sociais exclusivamente por medidas econômicas ou políticas. Por essa lente, não parece coincidência que uma das maiores mobilizações da sociedade civil brasileira, em 2020, tenha eclodido no campo da cultura e das artes. Talvez a grande novidade tenha sido a súbita clareza do potencial de articulação desses setores quando seus múltiplos interesses são integrados. Uma última referência pode adensar essa questão. Deleuze e Guattari (2015DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Maio de 68 não ocorreu. Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência. v. 8, n. 1, p. 119-121, 2015., p. 119; apud Melo, 2023MELO, Sharine. Pela onda luminosa: a articulação em rede a favor da Lei Aldir Blanc no contexto das políticas culturais brasileiras. In: CANCLINI, Néstor García (coord.). Emergências culturais: instituições, criadores e comunidades no Brasil e no México. São Paulo: Edusp, 2023., p. 113) afirmam que um acontecimento “passa para dentro dos indivíduos tanto quanto para dentro da espessura de uma sociedade”. Um dos representantes do Ministério da Cultura, já na gestão de 2023, responde da seguinte maneira à indagação sobre os rumos das políticas culturais no Brasil:

Não posso dizer que isso vá ficar para sempre. Mas uma coisa é certa: a diferença é que nós, que somos da área da cultura [...], não deixamos barato. [...] No momento mais difícil, nós nos apropriamos das ferramentas que havia, de forma remota, buscando apoio de parlamentares, de servidores, de gestores, tudo para fazer aprovar aquela lei. [...] Nós lutamos. Derrubamos o veto presidencial, lutamos pela sanção, para que a lei saísse [...]. Tudo por conta da mobilização. Isso é irreversível: a postura que a sociedade civil assume depois que você expande sua consciência e sabe que é necessário lutar para conseguir algo

(Entrevista concedida à autora).

Alteridade e iminência

Trabalhar com a noção de acontecimento implica em reconhecer que uma irrupção dessa ordem só pode afetar parcelas maiores da sociedade, a ponto de promover transformações institucionais, se houver certa abertura para a alteridade. Nas palavras de Deleuze e Guattari (2015, p. 119-120)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Maio de 68 não ocorreu. Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência. v. 8, n. 1, p. 119-121, 2015.: “é preciso que sociedade seja capaz de formar agenciamentos coletivos que correspondam à nova subjetividade, de tal maneira que queira a mutação”. Por isso, o ponto de partida para compreender o que levou tantas pessoas a se engajarem no processo coletivo de construção das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo foi a ideia de invenção de si e do mundo apresentada por Foucault (2011)FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros. São Paulo: Martins Fontes, 2011. em suas últimas aulas. Em A coragem da verdade, o filósofo vê no impulso de transgressão das artes modernas uma espécie de propagação do cinismo. Mas de que forma uma doutrina filosófica que, na Grécia Antiga, pregava “uma vida despida de retóricas e padrões de comportamento” estaria hoje presente em teatros, galerias e museus? Para o filósofo, o interesse pela vida dos artistas — como uma vida singular ― e a constante recusa diante dos cânones da cultura ocidental seriam algumas das maneiras de atualizar essa corrente que buscava a transformação de si como recurso para transformar o mundo (apud Melo, 2023MELO, Sharine. Pela onda luminosa: a articulação em rede a favor da Lei Aldir Blanc no contexto das políticas culturais brasileiras. In: CANCLINI, Néstor García (coord.). Emergências culturais: instituições, criadores e comunidades no Brasil e no México. São Paulo: Edusp, 2023., p. 63-64, 111).

Durante a pandemia de covid-19, os padecimentos e a solidariedade contribuíram, em algum grau, para aguçar a percepção de alteridade, não somente como convivência com o outro, mas principalmente como certo desejo de mudança, mesmo que, na prática, tenhamos retornado, pouco a pouco, às condições que nos levaram ao colapso. Em uma pesquisa encomendada pelo Serviço Social do Comércio de São Paulo (Sesc-SP), os pesquisadores Ricardo Teixeira, Rogério da Costa e Sabrina Ferigato perguntaram sobre os sonhos para um mundo pós-pandêmico, e algumas das respostas deixam claro o potencial de invenção humano de que falava Foucault: “[desejo] um mundo onde o amor e a arte sejam o fio condutor de nossa existência”, afirma um dos participantes. Por meio de depoimentos como esse, os autores foram levados a um conceito amplo de cultura, entendida como recurso fundamental para a produção da vida em comum, compartilhada (Sesc, 2022SESC. Serviço Social do Comércio. A reinvenção da vida e da saúde em tempos de pandemia: o lugar da cultura. São Paulo: Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo; Universidade de São Paulo, 2022.).

Mas, ao mesmo tempo que trouxe à tona sua potência, a pandemia expôs a precariedade inerente aos setores artísticos e culturais. Esse lapso entre o desejo de mudança e as limitadas possibilidades de ação nos levou às reflexões de Canclini (2012, p. 28)CANCLINI, Néstor García. A sociedade sem relato: antropologia e estética da iminência. São Paulo: Edusp, 2012. sobre o poder transformador que muitas vezes é atribuído de maneira exagerada às artes ― discussão que, ao longo da pesquisa, foi expandida para a cultura, em geral, e as mobilizações sociais. Em seu livro A sociedade sem relato, o antropólogo afirma que os artistas contemporâneos “mal conseguem agir”, comparando-os “com os prejudicados que tentam se organizar, na iminência do que pode acontecer ou nos restos pouco explicáveis do que foi desvencilhado pela globalização”. Nesse sentido, um dos relatos ouvidos durante as entrevistas é contundente: “Nós somos artistas, mas estamos morrendo, e estamos morrendo muito mais porque estamos em um setor profissional que nos trata de forma absolutamente desumana. Não tem aposentadoria, não tem estrutura [...]. Não há política para cultura”.

Canclini (2012, p. 26-28)CANCLINI, Néstor García. A sociedade sem relato: antropologia e estética da iminência. São Paulo: Edusp, 2012. também argumenta que já não é possível pensar em uma história com uma “orientação única”, tampouco é viável “organizar a diversidade” em um mundo marcado pelo multiculturalismo e pelos conflitos. Se, nesse ambiente de incertezas, a arte trabalha “nos rastros do ingovernável”, qual o seu papel? Para responder a essa pergunta, o autor revisa algumas teorias das ciências sociais, contestando especialmente a ideia de autonomia que foi atribuída ao campo artístico. Para ele, hipóteses como as de Bourdieu são importantes ao mostrar que, “nas sociedades modernas, as atividades humanas organizam-se segundo uma dinâmica própria”, “mais do que por obediência a prescrições religiosas ou ordens políticas”. No entanto, são insuficientes em sua tentativa de “ordenar a arte em um campo autônomo”. “De um lado, muitos movimentos artísticos deixaram de se interessar pela autonomia ou interagiram com outras áreas da vida social — o design, a moda, a mídia, as batalhas políticas imediatas”, afirma o antropólogo. “De outro, caducaram os paradigmas que continham as peripécias socioeconômicas, e as promessas de revolução ou bem-estar ficaram sem chão”, completa. Mas a solução proposta pela antropologia tampouco satisfaz o autor, que pergunta se não haveria outro caminho a não ser “nos resignarmos ao relativismo.” Para ele, aquilo que diferencia a arte de outras atividades é justamente a ideia contida no conceito de iminência (Canclini, 2012CANCLINI, Néstor García. A sociedade sem relato: antropologia e estética da iminência. São Paulo: Edusp, 2012., p. 29, 56, 59-62).

Canclini (2012)CANCLINI, Néstor García. A sociedade sem relato: antropologia e estética da iminência. São Paulo: Edusp, 2012. destaca esse termo de um trecho do conto A muralha e os livros. Nele, Jorge Luís Borges (2007, p. 9-12)BORGES, Jorge Luis. A muralha e os livros. In: BORGES, J. L. Outras inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. reflete sobre os motivos que levaram Che Huang-Ti a ordenar a construção da muralha chinesa e a queimar todos os livros anteriores a seu império. O autor enumera as razões de sua inquietação: “cercar um pomar ou um jardim é comum; cercar um império, não”. “Também não é banal pretender que a mais tradicional das raças renuncie à memória de seu passado, mítico ou verdadeiro”, completa. Entre os motivos elencados para o acontecimento, um se destaca: teria sido uma tentativa de deter a morte? Mas outras interpretações logo vêm à tona: “talvez Che Huang-Ti tenha condenado os que adoravam o passado a uma obra tão vasta como o passado, tão tosca e tão inútil quanto ele”; talvez o imperador “tenha amuralhado o império porque sabia que este era perecível, e destruído os livros por entender que eram livros sagrados, ou seja, livros que ensinam o que ensina o universo inteiro ou a consciência de cada homem”. Mas, para além das conjecturas, o escritor afirma que é “verossímil” que a “ideia nos toque por si mesma”: “Todas as formas têm sua virtude em si mesma, e não num conteúdo conjectural”, generaliza. Borges encerra, então, o seu conto com o trecho a que alude o antropólogo:

A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem nos dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão a ponto de dizer algo; essa iminência de uma revelação que não se produz é, quem sabe, o fato estético

(Borges, 2007BORGES, Jorge Luis. A muralha e os livros. In: BORGES, J. L. Outras inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 12).

Inspirando-se nesse texto de Borges, Canclini (2012, p. 20) sugere que, na arte — espaço por excelência do predomínio da forma sobre a função —, os fatos são tratados “como acontecimentos que estão a ponto de ser”. A noção de iminência remete, portanto, a um “momento prévio” ou a um tempo em que “o real é possível”, em que “ainda não se desfez”. Canclini também se refere à expressão “estar à altura do que chega”, atribuída a Deleuze pela filósofa francesa Christine Buci-Glucksmann (2008, p. 28)BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Une femme philosophe. Dialogue avec François Soulages. Paris: Klincksieck, 2008.. Segundo a autora, “o que chega” é justamente “o acontecimento, o desconhecido, o efêmero, qualquer coisa que se pode captar ou deixar fugir”. Não se trata de um sentimento melancólico, mas afirmativo, que entende a “impermanência como condição da vida”. Ocorre que, para Canclini (2012, p. 246)CANCLINI, Néstor García. A sociedade sem relato: antropologia e estética da iminência. São Paulo: Edusp, 2012., a potência de se abrir ao novo emerge sempre em condições desiguais, como a precariedade que os artistas compartilham com tantos outros profissionais contemporâneos. Sem pender ao otimismo ou a uma visão fatalista, o antropólogo conclui A sociedade sem relato ressaltando que a disposição estética nos liberta do “prefixado”, embora não suprima, magicamente, hábitos e convenções. E ― enfatizando o conceito de iminência ― sugere que, apesar das incertezas, os artistas, assim como os curadores, os críticos e o público, podem integrar “comunidades ou redes que desfrutam o que se anuncia”.

Canclini fala da estética, mas não será também a habilidade de assimilar algo que está em suspenso que dá força a mobilizações sociais, como as que levaram às leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo? Atuar no limiar entre o que existe e o que é possível não seria a potência dos momentos de elaboração de um projeto coletivo? Não haveria, nos acontecimentos dessa natureza, algo que nos toca por sua forma, para além de seu conteúdo ou do caráter institucional de seus desdobramentos? O desafio talvez resida em institucionalizar uma potência dessa ordem sem perder a utopia.

Considerações finais

Como o entrelaçamento dos conceitos de acontecimento, alteridade e iminência pode contribuir para estudos sobre a participação da sociedade civil na construção de políticas públicas? Esta pesquisa sugere que a potência do acontecimento que levou às leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo reside no desejo de alteridade ou na captura de algo suspenso entre o intolerável nas sociedades contemporâneas e os futuros imaginados. O fato de lidarem com a iminência talvez tenha contribuído para que os articuladores das leis lançassem mão do que Buci-Glucksmann (2008)BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Une femme philosophe. Dialogue avec François Soulages. Paris: Klincksieck, 2008. chamou de “ética do momento oportuno”. Afinal, a mobilização, amplificada pelas redes digitais, emergiu de uma confluência de fatores que encontraram no setor artístico e cultural um ambiente fértil para que se aguçasse o desejo de mudança: precariedade do trabalho; quedas nos investimentos em políticas públicas; predominância de interesses comerciais; relevância econômica e social da cultura e das artes, em contradição com a tendência austera e conservadora da última década (Melo, 2023MELO, Sharine. Pela onda luminosa: a articulação em rede a favor da Lei Aldir Blanc no contexto das políticas culturais brasileiras. In: CANCLINI, Néstor García (coord.). Emergências culturais: instituições, criadores e comunidades no Brasil e no México. São Paulo: Edusp, 2023.).

Por um lado, uma mobilização da sociedade civil só ganha força em condições precisas. Sem a experiência prévia das Conferências do Sistema Nacional de Cultura e da Política Nacional de Cultura Viva — com suas falhas e contradições ―, as mobilizações pelas leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo não alcançariam o mesmo patamar (Melo, 2022MELO, Sharine. Poetas em tempos de penúria: Investigações sobre a articulação em rede de artistas e profissionais da cultura para a elaboração de políticas públicas para o setor (projeto de pós-doutorado). São Paulo, [s.n.], 2022.). Por outro lado, pensar em acontecimento, alteridade e iminência também nos leva a refletir sobre a contingência que atravessa a vida, os eventos históricos e, consequentemente, as ações governamentais. Tanto quanto de planos e metas, as transformações institucionais dependem da articulação política, da idiossincrasia dos gestores, da confluência de interesses partidários ou corporativos e, principalmente, do envolvimento da sociedade civil. Como lembram Escobar e Osterweil (2009)ESCOBAR, Arturo; OSTERWEIL, Michal. Movimientos sociales y la política de lo virtual. Estrategias deleuzianas. Tabula Rasa. Bogotá - Colômbia, n. 10, p. 123-161, jan. 2009., nesses agenciamentos, o resultado é sempre maior que a soma de suas partes. Ocorre que, em tempos de algoritmos, a espontaneidade e a imprevisibilidade de certos movimentos têm o poder de desestabilizar projetos reacionários. No início dos anos 2000 ― antes mesmo que a cidadania fosse modulada por aplicativos digitais —, Nivón Bolán (2006)NIVÓN BOLÁN, Eduardo. La política cultural. Temas, problemas y oportunidades. In: México: CONACULTA – Fondo Regional para la Cultura y las Artes de la Zona Centro (Ed.). 2006. Disponível em: http://sic.gob.mx/ficha.php?table=fondo_editorial&table_id=4744. Acesso em: 18 set. 2023.
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já nos incitava a desconfiar de planejamentos e resultados quantificáveis. O autor não esperava que “interesses subjetivos” definissem as políticas culturais, mas que elas fossem pensadas para além “da cega maquinaria da modernização”. Segundo ele, quando reduzidas à dimensão administrativa, as políticas se empobrecem e são privadas de seu sentido utópico: “o compromisso com um modelo de sociedade compartilhado pelos mais diversos agentes sociais”.

Enquanto este artigo é escrito, apenas projeções e dúvidas podem ser lançadas sobre os novos mecanismos de fomento à cultura e às artes no Brasil. Gestores devem enfrentar, nos próximos anos, a persistente falta de recursos humanos, a resistência das parcelas mais conservadoras da sociedade, o acirramento de um neoliberalismo perverso e os riscos sempre presentes de retrocessos políticos. Também devem revisar, com cuidado, o modelo de política pública construído quando os mecanismos de fomento são baseados principalmente em bolsas de produtividade ou na premiação de projetos de curto prazo — fontes de incentivo, mas também de precarização do trabalho. Contudo, quaisquer que sejam seus resultados, as leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo certamente já tiveram o mérito de reativar, em um momento improvável, o sentido utópico das políticas culturais brasileiras. Apreendê-las como acontecimento e iminência, considerando sua abertura para a alteridade, pode lançar luz sobre os caminhos possíveis da participação democrática. Resta saber que potências podem permitir ― não somente ao setor artístico e cultural — “estar à altura” das transformações institucionais que se vislumbram no país.

  • 1
    Destinará ao Distrito Federal, a estados e a municípios brasileiros, pelo período de cinco anos, o montante de 3 bilhões de reais que deverá ser empregado em ações de apoio ao setor cultural (Lei nº 14.399/2022BRASIL. Lei nº 14.399/2022. Diário Oficial da União: seção 1 – extra B; Brasília, DF, edição 128-B, p. 4. 8 jul. 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-n-14.399-de-8-de-julho-de-2022-413971491. Acesso em: 28 jul. 2022.
    https://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-n-14...
    ).
  • 2
    Prevê o repasse de 3,86 bilhões de reais a estados, municípios e ao Distrito Federal para aplicação em ações emergenciais que visem a mitigar os efeitos da pandemia da covid-19 sobre o setor cultural.
  • 3
    Um dos mecanismos do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) tem “o objetivo de captar e destinar recursos para projetos culturais”, sendo administrado pelo Ministério da Cultura (Lei nº 8.313/1991). Os recursos do Fundo nunca foram transferidos regularmente a estados e municípios, tendo se restringido a repasses discricionários.
  • 4
    Processo nº 2022/15346-9, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
  • 5
    Um dos componentes do Sistema Nacional de Cultura, são instâncias de debate para proposição e formulação de políticas públicas.
  • 6
    Acrescentado à Constituição Brasileira em 2012 — Art. nº 216-A (Incluído pela Emenda Constitucional nº 71, de 2012) — (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. nº 216-A – Incluído pela Emenda Constitucional nº 71, de 2012. Brasília, DF. 5 out. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 18 set. 2023.
    https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
    ), o Sistema Nacional de Cultura (SNC) prevê “um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura”, “pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade”. As leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo são as primeiras experiências descentralizadas nas políticas culturais brasileiras, embora não tenham todos os elementos para serem consideradas exemplos de funcionamento do SNC.
  • 7
    Política pública “voltada para o reconhecimento e apoio a atividades e processos culturais já desenvolvidos, estimulando a participação social, a colaboração e a gestão compartilhada de políticas públicas no campo da cultura” (Cultura Viva, s.dBRASIL. Ministério da Cultura. Painel de dados da Lei Paulo Gustavo. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/cultura/pt-br/assuntos/lei-paulo-gustavo/central-de-conteudo/painel-de-dados. Acesso em: 1º jul. 2023.
    https://www.gov.br/cultura/pt-br/assunto...
    .). Foi transformada em lei em 2014 (Lei nº 13.018/2014).
  • 8
    Principal instrumento da Política Nacional de Cultura Viva, são entidades jurídicas, grupos ou coletivos que “desenvolvem e articulam atividades culturais em suas comunidades” (Lei nº 13.018/2014). Seus integrantes foram os principais responsáveis pela articulação política e pela difusão da proposta da Lei Aldir Blanc.
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    Busca realizada pela autora em 24 de junho de 2023, no site www.google.com, utilizando termos “emergência cultural” e “Lei Aldir Blanc”, com filtro temporal de 1º de março de 2020 a 31 de dezembro de 2021.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2023
  • Aceito
    14 Nov 2023
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