Acessibilidade / Reportar erro

A contribuição do pensamento de Pierre Bourdieu para perspectiva socioespacial em geografia: espaço, práticas espaciais e capital espacial

La contribución del pensamiento de Pierre Bourdieu a la perspectiva socioespacial en geografía: espacio, prácticas espaciales y capital espacial

Resumo

O que se propõe neste trabalho é uma abordagem que vai além da visão limitada que considera as práticas espaciais apenas como ações formais e visíveis. Destaca a importância de uma compreensão mais abrangente, que não se limite aos aspectos econômicos e busca transcender a dicotomia entre agência e estrutura. Inspirado nas ideias de Pierre Bourdieu, o estudo analisa os campos sociais e os diferentes tipos de capital, como o social e o espacial, que são determinantes das práticas espaciais. Além disso, enfatiza a importância de não reduzir o espaço a um simples reflexo da sociedade, reconhecendo sua complexidade e seu papel ativo nas interações sociais. A abordagem bourdieuna oferece uma perspectiva abrangente e profunda sobre os aspectos gerativos das práticas espaciais.

Palavras-chave:
Geografia; Espaço social; Práticas espaciais; Capital espacial; Bourdieu; Agência e estrutura

Resumen

El enfoque propuesto en este estudio va más allá de la visión limitada que considera las prácticas espaciales simplemente como acciones formales y visibles. Destaca la importancia de una comprensión más amplia que no se limite a los aspectos económicos y busca trascender la dicotomía entre agencia y estructura. Inspirado en las ideas de Pierre Bourdieu, el estudio analiza los campos sociales y los diferentes tipos de capital, como el capital social y espacial, que son determinantes de las prácticas espaciales. Además, enfatiza la importancia de no reducir el espacio a un simple reflejo de la sociedad, reconociendo su complejidad y su papel activo en las interacciones sociales. El enfoque bourdieusiano ofrece una perspectiva amplia y profunda sobre los aspectos generativos de las prácticas espaciales.

Palabras clave:
Geografía; Espacio social; Prácticas espaciales; Capital espacial; Bourdieu; Agencia y estructura

Abstract

The approach proposed in this study goes beyond the limited view that considers spatial practices merely as formal and visible actions. It emphasizes the importance of a broader understanding that does not confine itself to economic aspects and seeks to transcend the dichotomy between agency and structure. Inspired by Pierre Bourdieu's ideas, the study analyzes social fields and different types of capital, such as social and spatial capital, which are determinants of spatial practices. Furthermore, it underscores the importance of not reducing space to a simple reflection of society, acknowledging its complexity and active role in social interactions. The bourdieusian approach offers a comprehensive and profound perspective on the generative aspects of spatial practices.

Keywords:
Geography; Social space; Spatial practices; Spatial capital; Bourdieu; Agency and structure

Introdução

A proposta deste trabalho se assenta na necessidade de uma discussão articulada entre pressupostos teóricos e aplicação empírica da noção de prática espacial e outros termos analíticos igualmente centrais que derivam de sua compreensão, como a variedade de capitais e contextos de atuação dos agentes. Em muitos trabalhos relacionados à perspectiva socioespacial em geografia, a noção de prática espacial tem surgido com frequência. Todavia, esse uso não costuma abarcar uma amplitude que poderia sugerir um ganho heurístico na abordagem dos diferentes tipos e estratégias que os agentes sociais logram nas formas de produção espacial na sociedade.

Em geral, os estudos se limitam a um uso unidirecional em torno da centralidade dos agentes1 1 Vale mencionar o trabalho de Vasconcelos (2012) no levantamento de várias concepções em torno deste conceito. enquanto meros reprodutores de certa ordem econômica ou cujos recursos apenas giram em torno de variações do capital econômico (capital fundiário, financeiro, comercial). Ou seja, as práticas espaciais são vistas apenas pelo lado econômico, servindo apenas para confirmar alguma lógica superior que se impõe sobre a produção social do espaço.

Embora a dimensão econômica desempenhe um papel importante na análise socioespacial, não deve ser a única considerada. Os agentes sociais desenvolvem uma variedade de estratégias espaciais, utilizando diferentes recursos, coalizões e contextos específicos. No entanto, há uma tendência nas análises espaciais de não considerar essa multiplicidade de agenciamentos que ocorrem em várias esferas da vida social, bem como os diversos mecanismos que sustentam suas práticas espaciais.

Em outras palavras, é crucial reconhecer que as práticas espaciais não são apenas impulsionadas por fatores econômicos, mas também são influenciadas por fatores sociais, políticos e culturais. Além disso, não se deve ignorar é que os agentes constroem e/ou reproduzem suas práticas espaciais em uma sociedade com diversas estruturas preexistentes, não apenas a econômica, mas que englobam diversas estruturas que ampliam ou restringem suas decisões, além de interesses diversos e difusos no âmbito das suas esferas de atuação.

Contudo, também se torna limitada a concepção de que as escolhas, decisões e negociações dos agentes decorram simplesmente de um senso prático espontâneo ou puramente racional, impulsionado apenas por finalidades ou fatores individuais, como motivações, egoísmo, crenças e valores. Se as práticas espaciais forem consideradas nesse sentido, limitamo-nos a descrever suas morfologias, restringindo nosso entendimento à identificação dos agentes e seus motivos pragmáticos, sem levar em conta os demais fatores ou determinantes que influenciam o surgimento de seus agenciamentos e constituem uma certa reprodução e estrutura social.

Eis então a questão: como considerar as práticas espaciais entre esses dois polos? Um que ressalta a influência das estruturas sobre os agentes e outro que destaca a independência dos agentes em relação às estruturas preexistentes ou a lógicas transfactuais?

Anelado a essa questão está o próprio papel do espaço nos agenciamentos. Isso significa que, além de considerar a prática espacial no contexto da dualidade entre agência e estrutura, surge a questão de saber se o espaço é apenas um mero reflexo das ações individuais ou coletivas, ou se desempenha um papel constitutivo nas relações entre os agentes e suas espacialidades.

Por isso, é central a discussão da operacionalização empírica das práticas espaciais no sentido de superar essas conflações espaciais, a fim de contribuir para uma análise espacial mais robusta, que abranja os aspectos visíveis e invisíveis (subjacentes) que determinam os agenciamentos no e pelo espaço, sem se restringir a interpretações unidirecionais ou reducionistas, indo além de uma simples ação no espaço, seja ela espontânea ou condicionada

É nesse contexto que este trabalho se volta para as contribuições de Pierre Bourdieu, que investigou detalhadamente em sua espaciologia e praxiologia como as práticas se originam de um espaço relacional, povoado por classes, frações de classe e posições sociais cujas distâncias são determinadas pelo sentido prático dos agentes na articulação de interesses e capitais. Assim, as práticas em Bourdieu não se limitam a identificar ações individuais ou coletivas; é por meio delas e de seus mecanismos gerativos que os agentes disputam posições. Além disso, é por meio dessas práticas que a sociedade pode ser compreendida como uma estrutura em constante mudança.

Tal abordagem não deve ser vista como uma transgressão disciplinar, pois Bourdieu não ignorou o espaço, e suas contribuições permitem que as análises espaciais articulem tanto os aspectos visíveis quanto os invisíveis (subjacentes) da produção do espaço, além de desdobrarem o que Lefebvre (2013)LEFEBVRE, H. La producción del espacio. Madrid: Capitain Swing, [1974] 2013. (Coleção Entrelíneas). também observou como as teias de relações sociais, interesses e contradições que constituem o espaço produzido.

Contudo, é inviável abordar toda a amplitude do pensamento crítico de Bourdieu em um único artigo. Diante dessa limitação, focalizaremos alguns pontos cruciais de seus estudos e suas implicações para as pesquisas socioespaciais. Iniciaremos com o dualismo entre agente e estrutura e a análise das conflações espaciais. Em seguida, investigaremos o conceito de espaço em Bourdieu e como sua espaciologia contribui para a análise socioespacial em geografia. Por fim, exploraremos a constituição das práticas, destacando conceitos específicos como campo, capitais e habitus, bem como o papel do capital espacial na formação das práticas dos agentes sociais

O problema da agência e estrutura e das conflações espaciais

O modo como se têm refletido e operacionalizado o conceito de práticas espaciais em geografia denotam a ligação com o contumaz desafio ontoepistêmico enfrentado nas demais ciências sociais que é a dualidade agência e estrutura. Entidades que constituem qualquer modelo de ação ou reprodução social (Archer, 1995ARCHER, M. Realist social theory: the morphogenetic approach. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.)2 2 A despeito dos clássicos, como Marx, Weber, Durkheim e Lévi-Strauss, que tocam centralmente a dimensão social das práticas e estruturas, há no período mais contemporâneo um grande arco de autores que ampliaram a discussão, como Pierre Bourdieu, Anthony Giddens, Jürgen Habermas, Alan Warde e Löic Wacquant. .

Apesar das diversas definições e teorias que as sustentam, pode-se entender, em termos gerais, uma estrutura como um conjunto de regras, regularidades e normas que constituem os fundamentos da reprodução de uma sociedade em termos supraindividuais, como papéis classes e status sociais, que também estão associados a uma estrutura simbólica de crenças, representações e expressões (Arboleya, 2013ARBOLEYA, A. Agência e estrutura em Bourdieu e Giddens pela superação da antinomia “Objetivismo-Subjetivismo”. Sociologias Plurais, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 6-27, 2013. DOI: http://doi.org/10.5380/sclplr.v1i1.64705.
https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.5...
). Por sua vez, a agência diz respeito às ações dos indivíduos e seus interesses, mesmo quando desempenham papéis sociais ou integram entidades coletivas. Essas ações são atribuídas gerativamente aos indivíduos.

No entanto, essas duas abordagens são frequentemente percebidas como irreconciliáveis para entender a realidade social. Muitos proponentes das teorias da ação ou da agência contestam a noção de que as estruturas sociais possuem um papel causal na sociedade; no máximo, elas são vistas como imposições que restringem as liberdades ou autonomias dos indivíduos. Consequentemente, para esses que apoiam as teorias da ação, a totalidade da sociedade é sempre reduzida às ações e escolhas individuais, concebendo a sociedade como uma simples soma de partes.

Por outro lado, há defensores da ideia de que o mercado, o capitalismo, o totemismo, o território-pátria e outras entidades exercem determinações causais significativas. O argumento central é que essas instituições, sistemas e símbolos se incorporam tão profundamente nas disposições individuais por meio de processos de socialização, educação e hábitos, que acabam constituindo uma estrutura que molda suas ações e relações sociais. No entanto, essas conflações podem ser problemáticas no âmbito da sociologia, já que uma tende a excluir a outra na compreensão e explicação dos fenômenos sociais.

Em geografia, a dualidade entre agência e estrutura está às vezes implícita e outras vezes explícita em diversas pesquisas e teorias geográficas. No entanto, essas abordagens também consideram o papel do espaço como resultado tanto das ações individuais quanto de uma estrutura ou sistema que predefine o espaço.

Por exemplo, quando Werlen (1993)WERLEN, B. Society, action, and space: an alternative human geography. Trad. G. Walls. London: Routledge, 1993. afirma que as ações sociais definem o espaço, ou quando Santos (2006)SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. considera o espaço como um sistema de ações e objetos, essas afirmações não apenas implicam um fundamento ontológico do espaço, ou seja, a natureza da sua realidade, mas também refletem o sentido epistêmico da pesquisa em relação à dualidade entre agência e estrutura. Isso pode levar a uma preferência por um dos lados ou à busca por um meio termo.

Por exemplo, a linha de pesquisa da time-geography tende a enfatizar uma visão mais individualista e objetiva, enquanto as teorias fenomenológicas ou representacionistas geralmente destacam os agentes de forma mais subjetiva. Por outro lado, as correntes teóricas marxistas e econômicas na geografia tendem a enfatizar o papel causal das entidades totalizadoras. E a teoria miltoniana - como até os últimos trabalhos de David Harvey - parecem tentar um meio termo entre aceitar o poder causal de um sistema econômico transfactual e dos sujeitos que em suas relações de lugar (vizinhança e solidariedade) criam outras alternativas às hegemonias.

Embora, como destaca Archer (1995)ARCHER, M. Realist social theory: the morphogenetic approach. Cambridge: Cambridge University Press, 1995., qualquer estatuto ontológico adotado altere o compromisso epistêmico e metodológico com a coisa estudada, não vamos neste trabalho colocar em causa a discussão se o espaço é resultado de ações ou se o espaço é antes de tudo uma estrutura ou sistema que predefine algum tipo de ação. No entanto, sem perder essas referências, o foco central deste trabalho reside na análise dos usos analíticos das práticas espaciais em geografia e como sua compreensão pode tanto limitar quanto ampliar nosso entendimento da realidade social.

É essencial não ignorar essa questão, uma vez que as pesquisas empíricas em geografia estão cada vez mais incorporando conceitos como práticas, estratégias e processos espaciais. Além de descrever e analisar as morfologias dessas práticas, torna-se necessário questionar quais entidades causais e mecanismos sociais/econômicos estão sendo considerados na análise dessas práticas.

E no campo teórico da sociologia a questão da dualidade entre agência e estrutura também tem sido discutida com incorporação do espaço. Merece destaque a teoria da estruturação de Giddens (1984)GIDDENS, A. The constitution of society: outline of the theory of structuration. Berkeley: University of California Press, 1984. em que o espaço não é tratado como uma entidade física ou geográfica isolada, mas sim como uma dimensão fundamental das práticas sociais em diversos contextos. Giddens enfatiza a interconexão entre a estrutura social e as ações individuais, argumentando que as práticas sociais ocorrem sob contextos espaciais específicos que são ao mesmo tempo moldados e moldadores das interações humanas. Neste sentido, o espaço e o tempo são parte desse jogo no qual os agentes desenvolvem suas coordenadas de ação ou práticas espaciais (Souza, 2013SOUZA, M. L. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.).

Contudo, merecem destaque as críticas por parte de geógrafos como Edward Soja (1989)SOJA, E. Postmodern geographies: the reassertion of space in critical social theory. London and New York: Verso, 1989, que reconheceu a importância do espaço na teoria da estruturação de Giddens, no entanto, Soja também apontou as limitações dessa abordagem, destacando sua tendência a ignorar a complexidade do espaço, muitas vezes reduzindo-o a uma mera instância situacional e subjugando-o ao primado do tempo e da história como em muitos outros trabalhos sociológicos e filosóficos.

Por sua vez, Benno Werlen (2004)WERLEN, B. Human geographies without space? A view from the perspective of action theory. Travaux de l'Institut de Géographie de Reims, Reims, v. 30, n. 119, p. 9-22, 2004. DOI: http://doi.org/10.3406/tigr.2004.1477.
https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.3...
também partindo da teoria da estruturação de Giddens destaca a relevância contextual do espaço no âmbito das escolhas dos agentes. Contudo, ele argumenta que o espaço deve ser compreendido como um meio de orientação para as ações e relações individuais, em vez de ser visto como uma entidade reificada, ou seja, um poder em si mesmo. Nessa perspectiva, são as ações dos indivíduos que ganham centralidade na análise espacial (Strohmayer, 2014STROHMAYER, U. Social spatiality: some rudimentary thoughts on the epistemology of Benno Werlen. Geographica Helvetica, Göttingen, v. 69, p. 139-143, 2014. DOI: http://doi.org/10.5194/gh-69-139-2014.
https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.5...
).

Embora não seja possível adentrar detalhadamente às razões apresentadas pelos autores acima neste momento, é crucial ressaltar a estreita relação entre a discussão sobre o espaço e a dualidade entre agência e estrutura. No entanto, assim como na sociologia, quando um dos elementos dessa dualidade exclui o outro, ocorrem conflações espaciais, levando a uma situação em que um dos aspectos se torna indistinguível ou desaparece. Isso fica evidente nos argumentos daqueles que afirmam que as características espaciais são exclusivamente resultantes das ações individuais, enquanto outros defendem que o espaço é uma entidade ou componente essencial das ações sociais.

Contudo, além dessas conflações espaciais, há outra conflação que reduz o espaço a um mero reflexo da sociedade. Nessa perspectiva, o espaço não é visto nem como uma entidade causal, como uma estrutura espacial coercitiva, nem como uma instância que adquire sentido através das ações dos indivíduos, como proposto por Benno Werlen. Em vez disso, o espaço é considerado como o reflexo material tanto das intenções e representações individuais quanto de entidades transindividuais. Em outras palavras, as morfologias e estruturas espaciais são percebidas como espelhos legiformes dessas instâncias de nível superior. Com efeito, o espaço é entendido como um tipo de epifenômeno, ou seja, algo que ocorre apenas como uma consequência.

O resultado metodológico do espaço como reflexo social é que, a partir dos arranjos e da organização espacial, seria possível identificar as causas sociais e econômicas, ao contrário do sociólogo, que parte das relações sociais para compreender o espaço. No entanto, surge a questão de como as diversas estruturas transindividuais (invisíveis) ou as subjetividades inerentes às relações sociais encontram seu reflexo no espaço, considerando tantas variações de significados e propósitos atribuídos às características espaciais pela própria sociedade (Werlen, 2004WERLEN, B. Human geographies without space? A view from the perspective of action theory. Travaux de l'Institut de Géographie de Reims, Reims, v. 30, n. 119, p. 9-22, 2004. DOI: http://doi.org/10.3406/tigr.2004.1477.
https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.3...
). Acresce a esse problema, o fato de que o espaço nem sempre espelha um tipo de sistema mononuclear, mas costuma se constituir de lugares onde se dão os encontros, os emaranhamentos de vidas, projetos, trocas e modos de vida que se justapõem, se friccionam ou mesmo divergem (Massey, 2017MASSEY, D. A mente geográfica. Geographia, Niterói, v. 19, n. 40, p. 36-40, 2017. DOI: http://doi.org/10.22409/GEOgraphia2017.v19i40.a13798.
https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.2...
).

E é no quadro da dualidade entre agência e estrutura, assim como na concepção do espaço como reflexo, que se situa o problema das práticas espaciais. Afinal, elas emergem de um sentido racional ou espontâneo no nível individual e intersubjetivo, ou são resultado de um processo construtivista e transindividual (coletivo)? Ou talvez sejam determinadas de forma superveniente por entidades como um movimento dialético sócio-histórico que transcende os agentes, tornando o espaço um reflexo da história? Além disso, o que define essas práticas como espaciais e não outro tipo de prática? E qual método nos permite entender como essas práticas são articuladas em termos objetivos, incluindo suas operações, estratégias e relações?

Diante dessas questões, este estudo busca oferecer uma abordagem alternativa para compreender as práticas espaciais e seus desafios. Inspirada nos estudos sociológicos de Bourdieu, essa perspectiva não apenas evita conflacionar o agente e a estrutura, mas também incorpora outros elementos de análise das práticas que ampliam o espectro dos fatores objetivos e subjetivos relacionados a elas.

A abrangência dos trabalhos de Pierre Bourdieu

Antes de explorarmos as contribuições de Pierre Bourdieu no contexto do espaço, é fundamental compreender que seu principal objetivo era elucidar os mecanismos que perpetuam as desigualdades de poder e status nas relações sociais. Para isso, Bourdieu avançou tanto na teoria das classes sociais quanto nos estruturalismos que enrijeciam os indivíduos em papéis sociais predefinidos. Ele também questionou concepções atomísticas da sociedade, como o individualismo metodológico, que prioriza os agentes individuais como como se estivessem isolados do contexto social.

Embora seja reconhecido principalmente por seu trabalho na sociologia, a obra de Bourdieu dialoga com uma ampla gama de disciplinas e campos do conhecimento. A obra bourdieusiana incorpora elementos da filosofia da ciência, explorando questões epistemológicas e metodológicas. Nas artes, Bourdieu analisa como as práticas culturais refletem e reproduzem as estruturas de poder e desigualdade na sociedade. Além disso, sua obra abrange a educação, examinando como as instituições educacionais moldam e reproduzem as hierarquias sociais. Na economia, Bourdieu investigou as relações de poder e capital em termos de práticas econômicas e suas desigualdades. Pode-se dizer que sua obra transcende os limites da sociologia e se estende a uma variedade de áreas do conhecimento, oferecendo insights valiosos sobre as complexidades da vida social e cultural.

No caso da geografia, as considerações em torno da espaciologia e praxiologia bourdieuna encontram muitas convergências, como veremos adiante.Atualmente, podemos observar estudos pós-bourdieusianos, nos quais muitos dos seus conceitos e contribuições estão sendo aperfeiçoados e criticados, como nos trabalhos de Lahire (2002)LAHIRE, B. Homem plural: os determinante da ação. Trad. Jaime Clasen. Petrópolis: Vozes, 2002. e Wacquant (2006)WACQUANT, L. A estigmatização territorial na idade da marginalidade avançada. Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, v. 16, p. 25-39, 2006., este último inclusive destacando o espaço no âmbito do conceito de estigmatização territorial. Essa situação demonstra a necessidade de não ignorarmos essas contribuições, uma vez que, à medida que os geógrafos avançam cada vez mais na compreensão multifacetada do espaço, mais nos imergimos na teoria social.

Espaço em Bourdieu

Ao investigar os processos que geram disparidades e distinções sociais, Pierre Bourdieu (2007a)BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007a. teve que considerar a relação entre os agentes sociais e a posição que ocupam na estrutura social. Para isso, desenvolveu uma maneira de visualizar essa distribuição de recursos e as relações de poder que dela decorrem, a partir de uma concepção de espaço.

A concepção espacial bourdieuana parte do princípio de que a sociedade não é simplesmente a soma de suas partes, mas sim partes em constante relação assimétrica umas com as outras. Como o centro de sua análise são as relações, ele precisou conceber uma instância a partir da qual elas pudessem ser analisadas, e é aqui que surge sua espaciologia, que se distancia de abordagens espaciais substancializadas.

Mais do que apenas um local onde as relações e agentes estão situados, para Bourdieu, o espaço transcende essa concepção simplista, sendo percebido como um campo complexo de relações e distinções, moldado por suas distâncias e pela distribuição assimétrica de bens e capitais. Assim, o espaço é uma entidade relacional que se molda sob a dinâmica dessas relações e não é uma entidade em si mesma, cujas formas apenas alcançam uma análise funcional e descritiva.

Desse modo, o primeiro ponto a considerar é que, para Bourdieu, o espaço se define pelas relações entre as coisas, suas distâncias e posições, de maneira semelhante à perspectiva de Leibniz. O segundo ponto é que ele utiliza um método que denomina de “homologia”, o qual guarda semelhanças com o princípio de analogia frequentemente empregado pelos geógrafos. Em terceiro lugar, Bourdieu faz uma distinção entre os espaços, iniciando sua análise sociológica pelo espaço social e abordando por sua homologia com o espaço físico, onde os agentes e bens ocupam lugar e posição.

Começando pelo espaço social (Figura 1), que é, por assim dizer, a matriz de onde partem suas análises, Bourdieu considera esse espaço como inobservável e relacional. Nele, são estabelecidas hipóteses sobre as classes sociais, frações de classe e profissões, as quais, apesar de coexistirem, se posicionam em relação umas às outras sob distâncias e exclusões mútuas. Essas distâncias sociais são determinadas por três fatores:

Figura 1
Espaço social em Bourdieu.
  1. O volume total dos capitais dos agentes (econômico, social, cultural, etc.) que distancia, por exemplo, ricos e pobres;

  2. A estrutura dos capitais, que diferencia as diferentes frações de classe em termos de capital cultural e econômico, por exemplo, separando na mesma classe social professores de pequenos empresários;

  3. A evolução temporal dessa estrutura, ou seja, como ao longo do tempo essas distâncias e posições vão se alterando no espaço social (Jourdain; Naulin, 2017JOURDAIN, A., NAULIN, S. A teoria de Pierre Bourdieu e seus usos sociológicos. Petrópolis: Vozes, 2017.). Abaixo, o esquema das coordenadas do espaço social em Bourdieu onde se encontram as posições dos agentes e classes sociais:

Na perspectiva de Bourdieu, o espaço social é dinâmico e teoricamente virtual. As classes e as frações de classe só se tornam reais quando os agentes as mobilizam de maneira prática, utilizando seus capitais e estratégias nos diversos campos de luta da sociedade. Assim, as classes e as posições sociais são objetivadas em várias formas, como grupos sociais, famílias, associações, partidos, sindicatos, instituições e disputas políticas (Jourdain; Naulin, 2017JOURDAIN, A., NAULIN, S. A teoria de Pierre Bourdieu e seus usos sociológicos. Petrópolis: Vozes, 2017.).

Por sua vez, Bourdieu concebe o espaço físico de forma análoga ao espaço social, como uma externalidade composta por posições e localizações. Para Bourdieu (2013)BOURDIEU, P. O senso prático. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. o espaço físico acaba reificando o espaço social. Entre ambos existe afinidades e similaridades, tanto que o espaço social se utiliza de metáforas com base na realidade empírica do espaço físico, como nos termos derivados de lugar e localização (em cima, em baixo, acima, alto etc.).

Em realidade Bourdieu trata o espaço social e físico como dois mundos interconectados através do que ele chama de homologia, que pode ser entendida como uma similaridade ou correspondência entre eles. Ele afirma que “[…] o lugar e o espaço ocupados por um agente no espaço físico são excelentes indicadores de sua posição no espaço social” ou seja, há uma conexão entre a posição social com o espaço físico. Bourdieu utiliza essa relação para explicar como o espaço habitado pode expressar hierarquias sociais, embora de forma distorcida ou sutil, em relação ao espaço social (Bourdieu, 2013, pBOURDIEU, P. O senso prático. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.. 134).

Um aspecto crucial do espaço físico é sua capacidade de reificar as hierarquias e distâncias sociais. Segundo Bourdieu, o espaço físico não é neutro; ao contrário, é moldado e utilizado pelas estruturas sociais para fortalecer desigualdades e relações de poder. Ele ressalta como características espaciais, como edificações, fronteiras e toponímias, frequentemente acabam por legitimar e perpetuar hierarquias sociais, reforçando distinções entre grupos sociais e até mesmo promovendo violências simbólicas.

A reificação das desigualdades no espaço também está intrinsecamente ligada ao conceito de naturalização. Conforme definido por Bourdieu (2001)BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001., esse processo faz com que os elementos do espaço físico sejam percebidos como legítimos e normais, sem que se reconheça que tais espacializações são projetadas para reafirmar dominações, distinções e até mesmo coerções ideológicas. Frequentemente, isso resulta na imposição de separações ou exclusões com base em gênero, classe social, idade, entre outros, como evidenciado nas divisões de residências, escolas e espaços privados.

Outro aspecto da homologia bourdieuana diz respeito à capacidade dos espaços físicos de mediar e alterar as relações de apropriação e uso dos lugares. Por exemplo, estruturas como pódios, tribunas, camarotes e palcos destacam hierarquias, evidenciam corpos e distinções sociais. Da mesma forma, a monumentalidade em contextos religiosos, estatais ou corporativos, assim como certos tipos de arquitetura que diminuem os corpos ou os mantêm abaixo para induzir respeito, obediência ou submissão. Todas essas práticas evidenciam como os espaços físicos são mediadores de relações de poder, o que muitas vezes resulta em violências sutis, imperceptíveis, mas eficazes. É interessante que essas homologias em Bourdieu sejam observadas em diversas escalas espaciais.

A homologia entre o espaço geográfico e espaço social de Bourdieuno

A homologia entre o espaço físico e o espaço social em Bourdieu levanta uma questão fundamental: podemos legitimamente afirmar que o espaço físico, referido por Bourdieu até como “geografia física” (Bourdieu, 2013, pBOURDIEU, P. O senso prático. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.. 136), abrange toda a dimensão ontológica e epistêmica do espaço geográfico? Embora Bourdieu tenha criticado a abordagem dos geógrafos que se limitavam ao visível e perceptível, argumentando que isso não capturava completamente as complexidades do espaço social (Bourdieu, 2001, pBOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.. 108), é plausível sugerir que ele pode não ter acompanhado totalmente os avanços na compreensão do espaço geográfico que estavam ocorrendo em sua época.

Como a geografia crítica cujas abordagens buscam compreender não apenas os aspectos físicos do espaço, mas também os aspectos econômicos, políticos e sociais que são subjacentes a produção socioespacial. Além disso, outras vertentes da geografia, como a análise de sistemas e os modelos espaciais, que expandiram o escopo de estudo para considerar aspectos que vão além do que é diretamente observável. Além disso, ele talvez não estivesse totalmente familiarizado com os próprios princípios de análise geográfica tradicionais, que ainda permanecem empiricamente válidos e guardam grande similaridade com sua teoria, tais como os princípios de analogia, distribuição, conexão e ordem.

De qualquer forma, ao superar a simplificação do espaço físico meramente em termos de localização, podemos extrair contribuições significativas de Bourdieu, tanto de sua espaciologia quanto de sua praxiologia. A começar com suas reflexões sobre a homologia em relação à naturalização e mediação do espaço, conforme mencionado anteriormente, que podem ser exploradas em diversas escalas geográficas. No entanto, o maior ganho heurístico de sua teoria reside nos aspectos que abordam as questões das conflações espaciais e o caráter gerativo e causal das práticas.

Como vimos, Bourdieu não ignora a materialidade do espaço físico, mas é uma materialidade relacional, que se inscreve num espaço de coexistências. Por isso, faz todo o sentido seu espaço social dotado de relações entre posições e distâncias sociais. Que aliás são posições e relações que não são determinadas unicamente pela dimensão econômica, mas também estão presentes as dimensões do cultural, social e educacional na estruturação do espaço social.

Dessa forma, segundo Bourdieu (1996a), oBOURDIEU, P. Physical space, social space and habitus. Oslo: Vilhelm Aubert Memorial Lecture, University of Oslo, 1996a. p. 13. Available from: https://bityli.com/ztokP. Access in: 18 Jan 2024.
https://bityli.com/ztokP...
espaço social consiste em um conjunto de relações simbólicas ou inobserváveis, mas como essa topologia se manifesta no espaço geográfico, tendo em vista espacialidades que vão além da localização das coisas e agentes tal como estão presentes na sua noção de espaço físico?

O primeiro ponto a destacar aqui é que Bourdieu procura se afastar da concepção da conflação espacial reflexiva, ou seja, a ideia de que interpretar as morfologias espaciais equivale a compreender e sintetizar as relações sociais e simbólicas associadas. Embora tenha reconhecido que a materialização do espaço possa refletir de maneira mais ou menos direta essas relações, a pedra de toque de sua abordagem reside na ideia de homologia, que identifica similaridades ou analogias entre o espaço social e geográfico. O salto aqui é que não precisamos encontrar coincidências fixas ou espelhamentos, mas sim conexões causais e/ou conversibilidade entre ambos.

Um exemplo prático disso pode ser encontrado na pesquisa sobre a geografia da vida noturna conduzida por geógrafos. Embora seja comum encontrar jovens de diferentes classes frequentando lugares em oposição na cidade ou até no mesmo ambiente, mas sob distinções, como em âmbito microterritorial ao se observar que a maioria dos camarotes ou mesas mais caras é predominantemente ocupada pelos jovens das classes sociais mais altas. Contudo, produzem de maneiras distintas suas próprias práticas espaciais. Os jovens pobres não estão segregados de forma absoluta nos espaços, mas estão produzindo escalas e circuitos de lazer. Não raro, estando presentes em locais frequentados pelos jovens das classes mais afluentes e se tornando visíveis a partir da mobilidade motorizada ou uso de outros recursos no e pelo espaço (Turra Neto, 2021TURRA NETO, N. Diversão noturna e fragmentação socioespacial: o caso de Ribeirão Preto (SP). In: TURRA NETO, N. Geografias da noite: exemplos de pesquisas no Brasil. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2021. p. 317-358. DOI: http://doi.org/10.7476/9786557140550.0007.
https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.7...
; Ramos, 2024RAMOS, E. C. M. O empoderamento espacial dos jovens da periferia ao direito do lazer na cidade: capital espacial, escalas, territorialidades e visibilidades na noite. Contribuciones a Las Ciencias Sociales, Málaga, v. 17, n. 1, p. 8211-8233, 2024. DOI: http://doi.org/10.55905/revconv.17n.1-496.
https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.5...
).

Portanto, ainda que haja uma homologia em relação às distâncias entre as classes que pode ser observada em termos reflexivos e de localização, o que existe frequentemente é uma transitividade ou interconexão entre o espaço no sentido das distinções de classe e grupos e a geografia dos espaços em sentido relacional. Isso enfraquece a ideia de uma simples reflexão espacial de classes e destaca a importância de considerar a geografia dos espaços de forma relacional e dinâmica em termos de variedades de práticas espaciais e coexistências.

Outro aspecto da espaciologia de Bourdieu que contribui para as pesquisas geográficas é que seu espaço relacional não se encaixa em estruturalismos que pré-determinam as práticas, nem em agentes que atuam independentemente delas. Como já discutimos, para Bourdieu, as posições e as classes sociais não são consideradas como entidades reais e objetivas. Em vez disso, elas se tornam tangíveis empiricamente a partir dos agentes e seus contextos de competição e luta. São nesses contextos que as posições e classes sociais se definem na topologia social (Bourdieu, 1996bBOURDIEU, P. Espaço social e espaço simbólico. In: BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996b.; Jourdain; Naulin, 2017JOURDAIN, A., NAULIN, S. A teoria de Pierre Bourdieu e seus usos sociológicos. Petrópolis: Vozes, 2017.).

A principal implicação para o espaço geográfico é que sua materialidade não é uma simples reificação direta de classes sociais ou entidades transhistóricas e transculturais. Isso se deve ao fato de que o espaço geográfico não pode ser um reflexo de entidades virtuais ou teóricas. Essas entidades não têm o poder de pré-determinar o espaço, pois são as relações mútuas e assimétricas dos agentes sociais por meio de suas práticas que o moldam e o definem objetivamente. As espacialidades fazem parte das disputas sociais, das relações de troca, da conversão de capitais, da constituição de patrimônios, da projeção de poder e da afirmação de distinções e hierarquias sociais. Desse modo, o espaço geográfico adquire um sentido relacional, transitivo e constitutivo dos agenciamentos e estruturações da sociedade.

Um exemplo de como o espaço participa da estruturação social sendo parte de sua mudança no sentido prático decorre do próprio trabalho de Bourdieu que ao estudar a sociedade Cabília na Argélia identificou que as mudanças geográficas, como as grandes distâncias entre povoados, estavam influenciando as práticas sociais tradicionais, como os costumes prescritivos de matrimônios entre primos pela descendência paterna. Essas mudanças no espaço levaram ao surgimento de acordos mais flexíveis para os casamentos, adaptando-se às novas circunstâncias. Esse exemplo ilustra como o espaço participa de forma constitutiva da estruturação social e como mudanças nas condições geográficas podem levar à modificação das práticas sociais (Bourdieu, 1979BOURDIEU, P. Desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais. São Paulo: Perspectiva, 1979.).

Outra implicação disso é que o conceito de espaço não precisa ficar limitado a um contexto, como acontece em Giddens, ou ainda, apenas determinado pelo seu conteúdo e sentido funcional. Ao contrário, o espaço adquire uma centralidade nas análises socioespaciais, uma vez que se reproduz enquanto sociedade e não apenas como uma externalidade física. Elementos como proximidade geográfica, formas de acessibilidade, frequências em cinemas, localização das escolas constituem a sociedade espacializada, fazendo parte das relações de mediação, troca e distinção social.

Praxiologia bourdieuana

No tópico anterior, foi ressaltado o potencial enriquecedor da combinação entre a espaciologia de Bourdieu e as análises geográficas. No entanto, é crucial realizar uma compreensão mais detalhada e analítica sobre como essas práticas espaciais se concretizam e podem ser investigadas.

De partida, em Bourdieu, as práticas não são simplesmente esquemas ou ações que surgem apenas no presente ou derivadas exclusivamente do cálculo racional. Na praxiologia de Bourdieu, as práticas constituem o modo como as estruturas sociais são perpetuadas e também se transformam. Tanto como formas e conteúdos, elas emergem pelos agentes sociais estando inscritas em suas socializações pretéritas. Mas elas não são apenas orientadas pelo passado, os agentes também lidam com o presente, competições, lutas, constituindo suas existências e objetivos de forma projetiva. De modo que as práticas guardam as disposições e intencionalidades dos agentes e também são as instâncias gerativas que fazem a sociedade ser uma estrutura em estruturação.

O mecanismo que explica esse caráter gerativo das práticas são os habitus, que são as formas como são internalizadas todas as experiências passadas, aprendizados, vivências, condicionamentos e outras interações que moldam as disposições mentais e corporais dos indivíduos, influenciando suas percepções, valores, comportamentos e escolhas. O habitus tanto se inscreve na subjetividade, como também se externaliza individual e coletivamente, ou seja, contribui para a reprodução e a transformação das práticas sociais em nível mais amplo, influenciando padrões culturais, normas sociais e estruturas institucionais.

Por exemplo, aprendermos a nos locomover e nos orientar em um ambiente urbano já estabelecido com suas próprias normas, porém não nos limitamos apenas a reproduzir essas normas existentes. Em vez disso, modificamos nossa interação com o espaço urbano, desenvolvendo nossas próprias rotinas espaciais e até mesmo criando novas formas de organização espacial. Embora essas práticas sejam influenciadas pelas estruturas sociais e espaciais preexistentes, elas também refletem nossa capacidade de reinterpretar e transformar essas estruturas conforme interagimos com elas.

Nesse sentido, é válido afirmar que as estruturas sociais e espaciais não são entidades estáticas, mas estão em constante processo de reestruturação através das práticas dos sujeitos sociais. Disso decorre que o espaço e o tempo não são apenas contextos inertes onde essas práticas ocorrem, mas guardam em si e em suas elaborações as disposições e intencionalidades que os constituem. Nesse sentido, as pesquisas empíricas desempenham um papel crucial na compreensão dos mecanismos que geram essas reestruturações sociais. Portanto, o estudo das práticas não se limita a confirmar padrões existentes, mas busca entender como ocorre a reprodução e transformação social, bem como os jogos de poder entre os agentes, seus recursos e seus objetivos (Thiry-Cherques, 2006THIRY-CHERQUES, H. R. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 40, n. 1, p. 27-53, 2006. DOI: http://doi.org/10.1590/S0034-76122006000100003.
https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.1...
).

É nos campos sociais que o habitus dos agentes se torna um efetivo recurso ou capital em sentido prático. A princípio, às vezes a noção de campo social em Bourdieu pode se confundir com o conceito de espaço social. Porém, enquanto o espaço social destaca a distribuição potencial das posições sociais relativas dos agentes, classes e grupos inscritos teoricamente num sistema de coordenadas (ver Figura 1), o campo social possui uma natureza mais objetiva, relacionada aos tipos específicos de conflitos e disputas sociais, ou seja, é onde os agentes, suas ações e habitus adquirem tangibilidade concreta.

E a vida social esta coalhada de campos em disputas (educação, saúde, defesa de direitos, política ambiental etc.) em várias escalas espaciais, portanto, é nos campos que se encontram o cotidiano das lutas individuais e coletivas, que ora conservam ou alteram as estruturas sociais (Peters, 2013PETERS, G. Habitus, reflexividade e o problema do neo-objetivismo na teoria da prática de Pierre Bourdieu. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 28, n. 83, p. 47-71, 2013. DOI: http://doi.org/10.1590/S0102-69092013000300004.
https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.1...
).

Nos campos sociais, os agentes formam coalizões ou dissimulam-se para alcançar seus objetivos, levando em consideração a composição geral de seus capitais, que podem abranger diferentes dimensões (econômica, social, cultural, espacial, simbólica). É nesses campos que as práticas adquirem objetividade e fornecem uma base analítica sólida, pois não são apenas dotadas de objetivos e estratégias, mas derivam da conversão de capitais e disposições para diversos fins, como lucro, poder, domínio, influência, mudança, espacialização, entre outros.

Portanto, é a partir dos campos sociais que torna-se possível compreender como as práticas dos agentes se legitimam ou adquirem eficácia. Isso significa que as práticas têm propósitos e significados variados, dependendo dos diferentes espaços-tempos em que ocorrem, cada um com suas próprias regras e regulações. Outro aspecto importante é que as práticas se redefinem com base em ajustes dos agentes, mudanças de estratégias e a própria composição do campo social que vai sendo alterada, o que contribui para a constante transformação e reconfiguração das relações sociais e das práticas que nelas ocorrem.

Daí uma dialética entre o aspecto objetivo e subjetivo das práticas em Bourdieu, como destacado por Peters (2013)PETERS, G. Habitus, reflexividade e o problema do neo-objetivismo na teoria da prática de Pierre Bourdieu. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 28, n. 83, p. 47-71, 2013. DOI: http://doi.org/10.1590/S0102-69092013000300004.
https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.1...
, pois permite compreender não apenas as mudanças nas práticas em si, mas também as transformações nos próprios agentes sociais que as realizam. À medida que as práticas se modificam e se adaptam, por exemplo, em relação a uma disputa em torno de uma espacialização, elas também influenciam a percepção, intenção e disposição dos agentes, levando a uma redefinição contínua das relações entre indivíduos, espaço social e geográfico. Essa interação dinâmica entre os elementos objetivos e subjetivos contribui para a enriquecer a analise social e espacial.

Prática espacial e capital espacial

Uma questão que emerge é o que define uma prática espacial de outras práticas. Souza (2013)SOUZA, M. L. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013. com base na teoria da estruturação de Giddens havia destacado que a prática espacial é, por definição, uma prática social, porém “densa de espacialidade”. Isso faz sentido, mas há o perigo de substancializar as ações ou espacializações, ou tornar indefinido o que é a coisa e o que é o predicado. Para superar isso, é importante entender que as práticas espaciais adquirem sentido em termos relacionais, ao menos por dois fatores: pela articulação com outras práticas (jurídicas, econômicas, militares, corporativas, familiares, etc.) e com o espaço geográfico. Em outras palavras, a prática espacial é também social considerando a homologia entre espaço social e espaço geográfico como duas instâncias em relação mútua. Contudo, o que faz as práticas espaciais terem propriedades especificas em relação a outras práticas sociais é que são agenciamentos que só podem adquirir forma e significado espacial em relação ao espaço geográfico.

Dessa forma, as escalas geográficas, territorialidades, escolhas locacionais e segregações socioespaciais, entre outros conceitos e tipologias, possuem propriedades e significados espaciais na relação direta e nos efeitos no e pelo espaço geográfico. Um agente que estabelece uma territorialidade o faz em relação a locais específicos no espaço, nos quais imprime sua apropriação material e/ou simbólica.

Da mesma forma, a segregação é um tipo de prática espacial, pois se materializa a partir da homologia entre o espaço social (diferenças e oposições entre classes sociais) e o espaço geográfico. Isso ocorre não apenas porque é identificada no espaço geográfico, mas também porque é nesse espaço que ela adquire forma e efeitos sociais concretos.

Dentro do contexto da homologia entre espaço social e geográfico, é importante ressaltar o trabalho de Bourdieu (2007b)BOURDIEU, P. Amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (Edusp); Porto Alegre: Zouk, 2007b. sobre os museus e a forma como são apropriados e visitados na Europa. Ele destaca como a prática cultural se entrelaça com a prática espacial. Embora Bourdieu não aborde explicitamente a prática espacial, podemos considerá-la, dada a amplitude de seu estudo, que destaca aspectos disposicionais e as presunções de acessibilidade ou barreiras para visitar os museus. Nesse sentido, seja em visitas regulares, durante as férias ou por meio de agenciamentos turísticos, Bourdieu observa como as predisposições culturais, ou a “educação do olhar”, provenientes da família, classe social e nível de escolaridade, impactam não apenas o acesso e a frequência aos museus, mas também o consumo e a apreciação de seu conteúdo em termos artísticos e estéticos.

Assim, para além da visível geografia que abrange densidade, distribuição e localização dos museus em relação aos países e políticas culturais, há elementos invisíveis que enriquecem a análise espacial. Isso inclui os comportamentos e disposições de diferentes grupos e classes sociais ao frequentar esses espaços, reafirmando seus habitus e referências típicas de seus meios sociais de origem. Isso também desafia a ideia de que as atitudes e experiências estéticas nesses locais se restringem à esfera puramente subjetiva e espontânea.

Outro aspecto essencial da praxiologia de Bourdieu é o conceito de “capitais” que são as diferentes formas de recursos que os indivíduos/agentes possuem e que podem ser utilizados para obter vantagens em diferentes campos sociais. Esses capitais incluem não apenas recursos materiais, como dinheiro e propriedade, mas também recursos sociais, culturais e simbólicos, como redes de contatos, habilidades educacionais, conhecimento cultural e prestígio. O habitus é parte integrante desse processo, pois as disposições internalizadas pelos indivíduos moldam tanto as práticas como influenciam a forma como utilizam esses capitais em diferentes contextos

Além de representarem recursos tangíveis, na teoria de Bourdieu os capitais desempenham um papel determinante na posição dos indivíduos no espaço social, bem como nas relações de diferença e distância entre classes, grupos sociais e profissões, tal como vimos em seu conceito de espaço social. Isso porque, os capitais são valorizados e são legitimados nos campos como a fonte de trocas, aquisições, mudanças de status social, poder. Cada campo social exige suas próprias formas e negociação de capitais. Portanto, os capitais desempenham um papel central na análise das dinâmicas de poder e desigualdade na sociedade, uma vez que determinam não apenas a posição relativa dos agentes no espaço social como suas capacidades de ação e de sucesso.

A partir do quadro conceitual definido por Bourdieu, que abrange a importância dos capitais, destaca-se em relação ao espaço geográfico aquilo que poderia ser entendido como capital espacial.

Em um sentido estrito, o capital espacial pode ser compreendido como uma habilidade, recurso ou bem que capacita os agentes a desenvolverem práticas espaciais. Essa capacidade de capitalizar recursos e competências para as práticas no espaço geográfico pode se dar de várias maneiras, como o desenvolvimento de habilidades de orientação geográfica, ou ainda, a obtenção da carteira de habilitação, que não apenas proporciona oportunidades de trabalho, mas também amplia com autonomia as escalas e a circulação no espaço.

A localização também pode ser vista como um capital espacial, por exemplo, viver em áreas favoráveis do espaço urbano, faz dessa localização fonte para ampliar outros capitais ou mesmo obter vantagens, como na redução de custos de transporte ou na ampliação da acessibilidade a bens culturais e educacionais.

Um exemplo concreto disso é o caso das práticas espaciais dos jovens das periferias em relação ao lazer. Apesar de se encontrarem em regiões afastadas das áreas de maior concentração de lazer e consumo, esses jovens conseguem superar essas limitações e estabelecer suas próprias territorialidades. Eles fazem isso articulando diversos tipos de capitais - espaciais, sociais e econômicos. O capital espacial, nesse contexto, refere-se ao conhecimento do espaço urbano, incluindo seus atalhos e meios de mobilidade motorizada que os capacita a contornar as barreiras que surgem em suas práticas espaciais e de lazer (Ramos, 2018RAMOS, E. M. A construção do capital espacial e da visibilidade social pela microcultura juvenil do Low na cidade de Marília/SP. GEOgraphia, Niterói, v. 20, n. 44, p. 84-97, 2018. DOI: http://doi.org/10.22409/GEOgraphia2018.v1i44.a14392.
https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.2...
).

De forma análoga, a ideia de capital e prática espacial guarda semelhança com a geometria de poder de Doreen Massey (2000)MASSEY, D. Um sentido global de lugar. In: ARANTES, A. (ed.). O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000. p. 177-186., que também enfatiza como elementos como a localização, tecnologias que proporcionam rapidez no espaço ou mesmo conhecimentos do espaço são usados de modo diferente por grupos e como isso é responsável pelas assimetrias no espaço, afetando economias, acessibilidades, bem como restringindo ou ampliando os acessos dos agentes sociais em termos de oportunidades sociais e culturais.

Um exemplo dessa geometria e uso prático dos capitais está relacionado aos agentes econômicos, como as empresas, que podem utilizar não apenas seu capital econômico, mas também seu capital espacial. Isso inclui o conhecimento privilegiado de áreas desocupadas e de projetos futuros de benfeitorias públicas, para tomarem decisões estratégicas sobre investimentos imobiliários ou expansão de negócios. Essa combinação de capitais econômico e espacial pode proporcionar ao empresário uma vantagem competitiva significativa no mercado em relação a outros competidores e agentes sociais.

A partir da compreensão das práticas e capitais, podemos inferir que a análise espacial se torna mais refinada quando buscamos entender não apenas as ações em si, mas também os agentes por trás delas e como eles adquirem ou geram seus recursos em um determinado contexto. São esses mecanismos que nos permitem compreender o conteúdo das tipologias e espacialidades construídas no cotidiano, sem perder de vista a possibilidade de identificar regularidades ou entidades socioespaciais.

Campo social multipolar e as estratégias de capitalização

Como se pode deduzir da teoria dos capitais de Bourdieu, os agentes não apenas possuem diferentes formas de capital, mas também frequentemente os combinam e aplicam de forma sinérgica para obter vantagens em diferentes campos sociais. Dessa forma, a capitalização espacial pode estar relacionada a outros tipos de capitais. Contudo, não apenas podem combinar diferentes capitais como é possível considerar, na perspectiva de Bourdieu, que os agentes não atuam de forma isolada, mas estão inseridos em uma rede complexa de relações sociais e contextos sob diversas posições e distâncias sociais. Embora Bourdieu destaque a autonomia relativa dos diferentes campos sociais, ele também considerava a interconexão e interdependência entre eles.

O que pressupõe uma compreensão mais ampla dos contextos nos quais os agentes operam, reconhecendo que suas práticas e estratégias são moldadas não apenas pelas características internas de um determinado campo, mas também pelas relações e interações com outros campos adjacentes ou distantes. Portanto, é fundamental considerar não apenas o campo específico no qual os agentes estão inseridos, mas também as conexões e inter-relações com outros campos e quadros socioespaciais mais amplos. Isso proporciona uma compreensão mais completa das práticas e dos processos de reprodução e transformação social.

Desse modo, os agentes podem estar em diversos campos e potencialmente terem capitais para atuar em várias disputas ou competições. O que define suas posições nessas disputas é a composição e o alcance global e específico de seus capitais. Não é o campo que circunscreve os agentes, mas os capitais que os limitam ou não em suas ações em um ou mais campos.

Na perspectiva socioespacial, um movimento social centrado na luta pela terra no contexto agrário ou na busca por moradia urbana, precisa considerar que seu campo social envolve agentes sociais e econômicos em oposição. Em geral, isso implica não apenas contar com os recursos de sua militância, mas também articular capital político, muitas vezes com partidos, instituições ou outros movimentos sociais que, embora estejam em diferentes lugares e campos sociais, se conectam pelos interesses e objetivos comuns. Portanto, o movimento social está em relação com outros campos e, ao mesmo tempo, fortalecendo seus agenciamentos no território. Dessa análise, deduz-se que os agentes e seus agenciamentos são múltiplos e podem se articular para uma determinada luta ou busca por melhores posições sociais ao agregarem mais capitais para sua causa ou agenciamentos (Rodríguez, 2018RODRÍGUEZ, M. C. Compreender a Bourdieu: las estrategias sociales de capitalización. Revista Colombiana de Sociologia, Bogotá D.C., v. 41, n. 2, p. 219-237, 2018.).

Outro caso são as empresas do setor imobiliário que, para concretizar seus projetos, buscam manipular os poderes Executivo e Legislativo ou se consorciar com eles para que liberem terras urbanas para loteamentos altamente rentáveis. Nesse tipo de empreendimento há muitas práticas sociais e espaciais entrelaçadas, como a necessidade do desmembramento de glebas, a criação de vias de acesso e infraestrutura antes da consolidação dos loteamentos vendáveis.

Essas práticas, por sua vez, envolvem diversos agentes corporativos, institucionais e sociais, pois não dependem apenas de um único agente, mesmo que atuem de forma conjunta. É necessário colaborar com outros agentes ou fazer lobby para coordenar as ações. Nesse contexto, destacam-se empreiteiras e empresas terceirizadas, que podem obter lucros com os loteamentos e construções subsequentes, além de entidades de classe e profissionais que apoiam a expansão urbana e imobiliária da cidade para garantir seus interesses.

Na prática, tudo isso configura um campo social multipolar, pois os efeitos das práticas afetam diversos agentes interessados no controle ou uso das terras urbanas, inclusive grupos potencialmente mais vulneráveis. Isso inclui assentamentos irregulares que ocupam essas terras e, de forma mais ativa, resistências e alianças que, por meio de seus capitais e práticas, resistem às pressões do setor imobiliário e da governança pública.

A proposta desenvolvida neste trabalho, sob a perspectiva bourdieusiana, não se afasta das tendências cada vez mais presentes nas análises geográficas, que adentram tanto a esfera das subjetividades dos agentes quanto a interpretação das mudanças do espaço, levando em consideração os diversos fatores e recursos que, em sua preexistência material e simbólica, são moldados e redirecionados de forma específica e efetiva pelos agentes nos mais diversos contextos da vida, constituindo novas reestruturações da sociedade espacializada.

Considerações finais

Pierre Bourdieu rejeitou a concepção de espaço como uma entidade estática e substancializada, preferindo vê-lo como um campo dinâmico de relações e posições sociais. Outro aspecto do espaço em Bourdieu é seu dinamismo, que, ao contrário de reificações, destaca como as classes e frações de classe se tornam reais através da mobilização de capitais e estratégias nos campos de luta da sociedade.

A partir da espaciologia de Bourdieu pode-se compreender a interconexão entre espaço social e físico, argumentando que a posição física encontra homologia com a posição social, muitas vezes naturalizando desigualdades e relações de poder no espaço físico. Embora Bourdieu se limite a pensar no espaço físico em termos de localização apenas, suas reflexões ainda assim fazem avançar a análise espacial geográfica em termos da sua homologia e na superação da dualidade entre agências e estruturas, assim como no enfraquecimento das conflações espaciais.

Já em relação com sua praxiologia, pode-se conceber que as práticas espaciais são moldadas pela interação entre agentes em seus campos sociais e o espaço geográfico. Essas práticas são reconhecidas em suas formas e intenções, sempre em relação aos seus efeitos concretos no e pelo espaço geográfico. Por sua vez, os capitais espaciais denotam bens, localizações ou habilidades que capacitam os agentes a realizarem suas práticas espaciais, levando em consideração os contextos de vida e os campos onde os agentes estão posicionados.

Por fim, destacou-se a importância de considerar os agentes e seus capitais dentro de um campo social multipolar. As práticas e estratégias dos agentes são moldadas não apenas pelas características internas de um campo específico, mas também pelas interações com outros campos adjacentes ou distantes. Isso ressalta a necessidade de compreender não só o campo específico em que os agentes atuam, mas também suas conexões com outros contextos mais amplos, proporcionando uma visão mais abrangente das práticas e processos socioespaciais.

  • 1
    Vale mencionar o trabalho de Vasconcelos (2012)VASCONCELOS, P. A. A utilização dos agentes sociais nos estudos de geografia urbana: avanço ou recuo? In: CARLOS, A. F. et al. (ed.). A produção do espaço urbano: agentes e processos, escalas e desafios. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2012. p. 41-53. no levantamento de várias concepções em torno deste conceito.
  • 2
    A despeito dos clássicos, como Marx, Weber, Durkheim e Lévi-Strauss, que tocam centralmente a dimensão social das práticas e estruturas, há no período mais contemporâneo um grande arco de autores que ampliaram a discussão, como Pierre Bourdieu, Anthony Giddens, Jürgen Habermas, Alan Warde e Löic Wacquant.
  • Como citar este artigo: RAMOS, E. A contribuição do pensamento de Pierre Bourdieu para perspectiva socioespacial em geografia: espaço, práticas espaciais e capital espacial. Geousp, v. 28, n. 2, e213809. 2024. https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2024.213809pt

Referências

  • ARBOLEYA, A. Agência e estrutura em Bourdieu e Giddens pela superação da antinomia “Objetivismo-Subjetivismo”. Sociologias Plurais, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 6-27, 2013. DOI: http://doi.org/10.5380/sclplr.v1i1.64705.
    » https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.5380/sclplr.v1i1.64705
  • ARCHER, M. Realist social theory: the morphogenetic approach. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
  • BOURDIEU, P. Desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais. São Paulo: Perspectiva, 1979.
  • BOURDIEU, P. Espace social et espace symbolique. In: BOURDIEU, P. Raisons pratiques: sur la théorie de l’action. Paris: Seuil, 1994. p. 13-29.
  • BOURDIEU, P. Physical space, social space and habitus Oslo: Vilhelm Aubert Memorial Lecture, University of Oslo, 1996a. p. 13. Available from: https://bityli.com/ztokP Access in: 18 Jan 2024.
    » https://bityli.com/ztokP
  • BOURDIEU, P. Espaço social e espaço simbólico. In: BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996b.
  • BOURDIEU, P. O poder simbólico Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
  • BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007a.
  • BOURDIEU, P. Amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo (Edusp); Porto Alegre: Zouk, 2007b.
  • BOURDIEU, P. O senso prático 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
  • GIDDENS, A. The constitution of society: outline of the theory of structuration. Berkeley: University of California Press, 1984.
  • JOURDAIN, A., NAULIN, S. A teoria de Pierre Bourdieu e seus usos sociológicos Petrópolis: Vozes, 2017.
  • LAHIRE, B. Homem plural: os determinante da ação. Trad. Jaime Clasen. Petrópolis: Vozes, 2002.
  • LEFEBVRE, H. La producción del espacio Madrid: Capitain Swing, [1974] 2013. (Coleção Entrelíneas).
  • MASSEY, D. Um sentido global de lugar. In: ARANTES, A. (ed.). O espaço da diferença Campinas: Papirus, 2000. p. 177-186.
  • MASSEY, D. A mente geográfica. Geographia, Niterói, v. 19, n. 40, p. 36-40, 2017. DOI: http://doi.org/10.22409/GEOgraphia2017.v19i40.a13798.
    » https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.22409/GEOgraphia2017.v19i40.a13798
  • PETERS, G. Habitus, reflexividade e o problema do neo-objetivismo na teoria da prática de Pierre Bourdieu. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 28, n. 83, p. 47-71, 2013. DOI: http://doi.org/10.1590/S0102-69092013000300004.
    » https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.1590/S0102-69092013000300004
  • RAMOS, E. M. A construção do capital espacial e da visibilidade social pela microcultura juvenil do Low na cidade de Marília/SP. GEOgraphia, Niterói, v. 20, n. 44, p. 84-97, 2018. DOI: http://doi.org/10.22409/GEOgraphia2018.v1i44.a14392.
    » https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.22409/GEOgraphia2018.v1i44.a14392
  • RAMOS, E. C. M. O empoderamento espacial dos jovens da periferia ao direito do lazer na cidade: capital espacial, escalas, territorialidades e visibilidades na noite. Contribuciones a Las Ciencias Sociales, Málaga, v. 17, n. 1, p. 8211-8233, 2024. DOI: http://doi.org/10.55905/revconv.17n.1-496.
    » https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.55905/revconv.17n.1-496
  • RODRÍGUEZ, M. C. Compreender a Bourdieu: las estrategias sociales de capitalización. Revista Colombiana de Sociologia, Bogotá D.C., v. 41, n. 2, p. 219-237, 2018.
  • SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
  • SOJA, E. Postmodern geographies: the reassertion of space in critical social theory. London and New York: Verso, 1989
  • SOUZA, M. L. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.
  • STROHMAYER, U. Social spatiality: some rudimentary thoughts on the epistemology of Benno Werlen. Geographica Helvetica, Göttingen, v. 69, p. 139-143, 2014. DOI: http://doi.org/10.5194/gh-69-139-2014.
    » https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.5194/gh-69-139-2014
  • THIRY-CHERQUES, H. R. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 40, n. 1, p. 27-53, 2006. DOI: http://doi.org/10.1590/S0034-76122006000100003.
    » https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.1590/S0034-76122006000100003
  • TURRA NETO, N. Diversão noturna e fragmentação socioespacial: o caso de Ribeirão Preto (SP). In: TURRA NETO, N. Geografias da noite: exemplos de pesquisas no Brasil. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2021. p. 317-358. DOI: http://doi.org/10.7476/9786557140550.0007.
    » https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.7476/9786557140550.0007
  • VANDENBERGHE, F. “Pierre Bourdieu”, por Frédéric Vandenberghe [s.l.]: Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social, 2017. (Série Verbetes). Available from: https://blogdolabemus.com/2017/05/29/verbete-pierre-bourdieu-por-frederic-vandenberghe/ Access in: 18 Jan 2024.
    » https://blogdolabemus.com/2017/05/29/verbete-pierre-bourdieu-por-frederic-vandenberghe/
  • VASCONCELOS, P. A. A utilização dos agentes sociais nos estudos de geografia urbana: avanço ou recuo? In: CARLOS, A. F. et al. (ed.). A produção do espaço urbano: agentes e processos, escalas e desafios. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2012. p. 41-53.
  • WERLEN, B. Society, action, and space: an alternative human geography. Trad. G. Walls. London: Routledge, 1993.
  • WERLEN, B. Human geographies without space? A view from the perspective of action theory. Travaux de l'Institut de Géographie de Reims, Reims, v. 30, n. 119, p. 9-22, 2004. DOI: http://doi.org/10.3406/tigr.2004.1477.
    » https://doi.org/DOI: http://doi.org/10.3406/tigr.2004.1477
  • WACQUANT, L. A estigmatização territorial na idade da marginalidade avançada. Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, v. 16, p. 25-39, 2006.

Editado por

Editor do artigo

Rodrigo Ramos Hospodar Felippe Valverde

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2024
  • Aceito
    22 Abr 2024
Creative Common - by 4.0
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/), que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Universidade de São Paulo Av. Prof. Lineu Prestes, 338 - Cidade Universitária, São Paulo , SP - Brasil. Cep: 05339-970, Tels: 3091-3769 / 3091-0297 / 3091-0296 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistageousp@usp.br