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A geografia em ação: as lógicas de colonização do território brasileiro a partir das controvérsias epistemológicas sobre a nova localização da sua capital (1947-1955)

Les logiques de mise en valeur du territoire brésilien à partir des controverses épistémologiques sur la nouvelle localisation de sa capitale (1947-1955)

Geography in Action: The Logic of Colonization of Brazilian territory based on Epistemological Controversies about the New Location of its Capital (1947-1955)

Resumo

Este artigo analisa as reflexões de um grupo de geógrafos sobre a escolha da nova localização de Brasília e as lógicas de planejamento regional. Reúnem-se em 1947 duas comissões de cientistas no seio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Conselho Nacional de Geografia (CNG) para explorar o Planalto Central e discutir a nova localização. A primeira delas é liderada por Francis Ruellan, geomorfólogo francês, e a outra por Leo Waibel, geógrafo da economia, alemão naturalizado norte-americano. Essas duas lideranças acabaram por representar polos das controvérsias técnico-científicas. Com base na metodologia de Bruno Latour, as controvérsias são vistas como a possibilidade de se observarem nítidos projetos políticos e de colonização do Brasil em oposição, assim como observar a própria performatividade da ciência geográfica, ou seja, sua capacidade de construir territórios. A questão que guiou essa pesquisa foi: com qual lógica epistemológica o Brasil foi colonizado?

Palavras-chaves:
Brasília; epistemologia; controvérsias; sítios e situação; colonização

Résumé

Cet article analyse les réflexions d'un groupe de géographes sur le choix du nouvel emplacement de Brasília et les logiques d'aménagement du territoire. Deux commissions de scientifiques se réunissent en 1947 au sein de l'Institut brésilien de géographie et de statistique (IBGE) et du Conseil national de géographie (CNG) pour explorer le plateau central et discuter du nouvel emplacement. La première était dirigée par Francis Ruellan, un géomorphologue français, et l'autre par Leo Waibel, un géographe étasunien d’origine allemande et spécialisé dans les questions économiques. Leurs deux approches ont fini par représenter des pôles de controverses technico-scientifiques. Inspirées par la méthodologie de Bruno Latour, ces controverses sont vues comme la possibilité d'observer des projets clairement opposés de colonisation et de politique au Brésil, ainsi que la performativité même de la science géographique, c'est-à-dire sa capacité à construire des territoires. La question qui a guidé cette recherche est la suivante : avec quelle logique épistémologique le Brésil a-t-il été mise en valeur ?

Mots-clés:
Brasília; épistémologie; controverses; sites et situation; mise en valeur

Abstract

This article analyses the reflections of a group of geographers on the choice of the new location for Brasília and the regional planning logic. Two scientific comissions held meetings in 1947 at the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE) and the National Geography Council (CNG) to explore the Brazilian Central Plateau and discuss the new location. French geomorphologist Francis Ruellan led the first meeting and Leo Waibel, an economic geographer born in Germany and naturalized in the United States led the other. These two leaderships represented different sides of technical-scientific controversies. Inspired by Bruno Latour’s methodology, controversies are seen as a possibility to observe clear colonization and political projects for Brazil in opposition, as well as geography’s performativity, its ability to build territories. The question that guided this research was: by which epistemological logic was Brazil colonized?

Keywords:
Brasília; epistemology; controversies; sites and situation; colonization

No âmbito do debate do planejamento regional, a escolha da localização das cidades planejadas, em geral, e de capitais, em particular, situa-se em uma clássica problemática que envolve controvérsias epistemológicas prévias à concretização material dos projetos imaginados, locacionais, de colonização e de vias de desenvolvimento econômico dos territórios nacionais. A depender da epistemologia geográfica que guia essas escolhas e da própria localização da capital, eventuais políticas de âmbito nacional podem tomar direções diversas de desenvolvimento e de colonização territorial. No que tange à história do planejamento, poder-se-ia construir uma cadeia de sucessivas elaborações que começa com a tomada de posição quanto às questões epistemológicas da parte dos atores, passam pelas controvérsias sobre a questão da localização e desembocam em diferentes projetos políticos. Ao final dessa cadeia, é possível pensar que esses são projetos em disputa.1 1 Como se verá, é provável que esses diferentes projetos acabam por existir concretamente no território, mas essa questão, sobre as supostas materialidades, não será abordada por neste artigo.

A localização geográfica da capital do Brasil é um momento chave de um processo de ascensão do planejamento territorial brasileiro, um importante debate após as fundações do IBGE e do CNG, em 1938, resultante de longos debates científicos internacionais e locais e, sendo no contexto nacional das décadas de 1940 e 1950, uma experiência singular da geografia brasileira bem como interdisciplinar. Epistemologicamente, expressa o confronto entre as heranças naturalistas (ou ecológicas) como paradigma geral da geografia e as emergentes práticas positivistas de aplicação dessa ciência. No que tange às comunidades científicas, reflete um conflito de ordem diplomática e intelectual para expandir as áreas de influência de formas de racionalidade geográficas constituídas, nomeadamente vindas da França e dos Estados Unidos. Insere-se, ainda, em um contexto político de emergência da nacionalidade brasileira, visando solucionar longos problemas, como a questão da concentração fundiária. A pergunta que nos guia neste artigo é: como se formou o tipo de racionalidade geográfica a partir do qual o Brasil deveria ser colonizado?

A escolha do sítio de Brasília2 2 A primeira vez que o nome “Brasília” é sugerido como nome de capital do Brasil foi no congresso nacional de Lisboa, na ocasião da discussão da Independência (Porto Seguro, 1877). envolve uma ampla gama de problemas geográficos e científicos (pedológicos, geomorfológicos, demográficos, econômicos e de comunicação), revelando um escopo interdisciplinar, de formação da nacionalidade e das ciências no Brasil. Até o momento, Brasília foi bastante estudada do ponto de vista do planejamento urbano,3 3 Cf. Tavares, 2014; Jusselma, 2010; Holanda, 2010; Holston, 2010; Leitão, 2009; Paviani, 1989; Bicca, 1985. não tendo a questão do sítio e da situação geográficos sido abordada pela história da geografia e das ciências,4 4 O trabalho seminal de César Simoni enfoca a elaboração e execução do projeto urbano do ponto de vista da produção do espaço (Simoni, 2013). sob a perspectiva de um planejamento territorial de larga escala.5 5 Segundo Hervé Thery, a construção de Brasília representou o tamanho das ambições do Estado e da economia brasileira no processo de integração nacional que se anunciava (Théry, 2004). Pode-se dizer, ainda, que expedições de exploração do Brasil entabuladas pelo IBGE e pelo CNG no período entre 1941 e 1955 fazem parte desse contexto.6 6 Quase uma centena de expedições para todas as regiões do Brasil foram organizadas pelo IBGE e pelo CNG entre 1941 e 1955 (Cf. Abrantes, 2014). Contudo, foram analisadas por ora em uma perspectiva memorialista (Abrantes, 2000ABRANTES, V. Fragmentos de memória das pesquisas geográficas de campo no IBGE (1939-1968): Imagens e representações numa abordagem da história oral. 2000. 158 f. Dissertação (Mestrado em História) - Centro de Ciências Humanas, Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000.).

Temporalmente, a experiência planificadora de 1947 a 1955 é o expoente de uma longa duração global de constituição de técnicas e mentalidades geográficas para pensar e atuar nos territórios. Países como a França e os Estados Unidos emergem como polos internacionais de produção e exportação de teorias geográficas, com envio ao Brasil de missões de ensino e pesquisadores de campo. Uma longa duração de debates, portanto, converge a essa conjuntura de decisões estratégicas. Em 1947, todas as pesquisas de campo realizadas no Brasil até então serão igualmente discutidas no seio de uma Comissão para Estudos para a Localização da Nova Capital, seguida por outras expedições que continuam os trabalhos até a escolha definitiva da localização da capital, em 1955. Essas experiências convergem para a construção de Brasília, inaugurada em 1960.

Em sendo assim, 1947-1955 é um momento chave da concretização da transição de uma mentalidade naturalista e ecológica, tipicamente francesa, ancorada na concepção de uma harmonia do homem com a natureza, para a instalação de uma ótica planejadora no Brasil, mais voltada para a ideia de intervenção da sociedade, tipicamente positivista e americana - não sem resistências e complexas adaptações. Para nos restringirmos aos intelectuais brasileiros autodidatas em geografia, que são anteriores à formação universitária, eles possuíam uma influência sobretudo francesa, graças à antiga ascendência da diplomacia cultural. Porém, quando são recrutados para trabalhar no seio do IBGE e do CNG, passam a estar igualmente sob a tutela americana-alemã, pois, além da influência do francês Francis Ruellan, agregam-se ao contexto as chegadas de Leo Waibele de Preston James ao Brasil, no começo da década de 1940.

Uma geopolítica das ciências, destarte, está em causa. As heranças, ou as “ruínas” (Rignol, 2006RIGNOL, L. Claude Blanckaert. La Nature de lasociété. Organicisme et sciences sociales au XIX e siècle. Histoire des Sciences Humaines, Paris, v. 132, p. 154-156, 2006. , p. 154), dos saberes naturalistas, notadamente franceses, e o novo sopro das correntes americanas pragmáticas são igualmente influenciados pela dimensão geográfica dos conhecimentos situados no Brasil. A experiência desse grupo interdisciplinar com formações potencialmente conflitantes (literárias e técnicas, neokantianas e positivistas, voltaremos a este ponto) está também aberta à adaptação necessária à singularidade do espaço brasileiro. Sendo uma experiência particular no seio da comunidade científica internacional, ressalta-se a importância da abordagem do tema em suas bases epistemológicas.

Ademais, a história da geografia do Brasil foi pouco debatida em termos de conflitos por influência das escolas internacionais que aqui incidiram e das consequentes controvérsias entre seus principais representantes e adeptos. É lugar comum pensar a geografia brasileira como uma tributária inconteste da geografia francesa. Porém, ao focarmos na geopolítica do conhecimento, seria possível imaginar, não apenas uma epistemologia própria que emergiria no Brasil e que seria resultado da especificidade desses conflitos, como também uma solução geográfica teórica associada às soluções políticas, em que diversos projetos de país estão em disputa e são ancorados em perspectivas epistemológicas em contexto de múltiplas determinações. Em suma, é possível criar uma cadeia de relações que começa nas controvérsias das epistemologias geográficas e desemboca nos diferentes projetos políticos para o Brasil. Vislumbra-se o que Bruno Latour chamou de “ciência em ação” (Latour, 1989LATOUR, B. La Science en action: Introduction à la sociologie des sciences. Paris: La Découverte, 1989. ) e que aqui entendemos como a capacidade da geografia de construir territórios.

O artigo está dividido em seis partes: após a presente introdução, o tópico “Abrir a caixa-preta do planejamento” visa apresentar uma discussão metodológica. Este tópico é seguido pela seção “O Brasil e a mudança da localização da capital”, em que se apresenta o contexto, seguido por mais três partes que analisam as fontes primárias7 7 As fontes primárias são os artigos sobre a questão da mudança da capital publicados na Revista Brasileira de Geografia e no Boletim Geográfico no período analisado. (“Controvérsias sobre os critérios epistemológicos de escolha da localização da capital”; “Controvérsias geográficas sobre a localização da capital”; e “Controvérsias políticas sobre os planos de colonização”) em três dimensões de análise: epistemológica, locacional e política. Antes da conclusão, apresentam-se modelizações gráficas que visam sintetizar os projetos de mobilização territorial que estiveram em jogo.

Abrir a caixa-preta do planejamento

Neste artigo a história da geografia será associada com a geografia histórica, como tem se tornado típico dos debates contemporâneos e internacionais (Ozouf-Marignier, 1989OZOUF-MARIGNIER, M.-V. La formation des départements: La représentation du territoire français à la fin du 18ème siècle. Paris: Editions de l'école des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 1989.). Os personagens que são atores (geógrafos, técnicos e políticos) possuem discursos territoriais. Os discursos mobilizados podem ter sido convertidos ou não em geografias materiais, o que caberia posteriormente verificar, colocando em questão a própria “performatividade” do planejamento regional, ou seja, a capacidade de produzir o território segundo planos iniciais, cuja elucidação dessa relação entre o concreto-abstrato é outra tendência contemporânea da história da cartografia (Lois, 2018LOIS, C. ¿Geopolíticas de mundos efímeros? Terra Brasilis (Nova Série) , v. 10, p. 1-45, 2018.).8 8 A “performatividade” é um conceito desenvolvido no âmbito da história da cartografia sobre o poder mobilizador dos mapas nas sociedades modernas e contemporâneas pelo seu alto grau de realismo (cf. Lois, 2018).

A dimensão da história da ciência proposta neste artigo baseia-se na metodologia de análise das controvérsias, originalmente proposta por Bruno Latour, associada a uma perspectiva de compreensão da conformação da territorialidade dos países na longa duração. As controvérsias são entendidas como a possibilidade de se observarem os trabalhos científicos em uma dinâmica aberta, no ato de se fazerem e se constituem em um programa científico atual do estudo das ciências sociais e da história da ciência (Gringras, 2014GRINGRAS, Y. Controverses: Accords et désaccords en sciences humaines et sociales. Paris: Éditions CNRS, 2014.).

As controvérsias técnico-científicas permitem ao pesquisador da ciência, segundo Bruno Latour (1989LATOUR, B. La Science en action: Introduction à la sociologie des sciences. Paris: La Découverte, 1989. ), “abrir a caixa preta”. Essa expressão metafórica ganhou centralidade nos estudos de outros pesquisadores que se detiveram mais especificamente nesses estudos dos conflitos científicos, como é o caso de Pierre Lascoumes (2002LASCOUMES, P. De l’utilité des controverses. Journal International de Bioéthique, v. 2, n. 13, p. 68-79, 2002.). A ideia da abertura da caixa preta é evocada para pensar o ato social em construção, no interior de uma nova concepção de história cuja noção de conflito toma lugar central. Seria também sinônimo de observar as potencialidades da história tanto em seu sentido de conflito e construção, quanto de representação e latência, ou seja, como se as múltiplas representações em conflito pudessem guardar as possibilidades de futuro da história.

Segundo outro estudioso das controvérsias, Tammaso Venturini (2010VENTURINI, T. Diving in magma. Public Understanding of Science, v. 19, n. 3, p. 258-273, 2010.), elas propiciam não apenas um método para uma etnografia das ciências, mas uma concepção global de sociedades e situações que se constroem por conflitos. Nada que é ou que se tornou social existiria sem que tivesse passado por um momento de controvérsia, de forma que “as controvérsias se mantêm como a melhor avaliação de ocasiões em que se observam o social em construção” (Venturini, 2010VENTURINI, T. Diving in magma. Public Understanding of Science, v. 19, n. 3, p. 258-273, 2010., p. 11, tradução da autora). Historicamente, nuanças devem ser consideradas. Segundo Venturini (2010VENTURINI, T. Diving in magma. Public Understanding of Science, v. 19, n. 3, p. 258-273, 2010.), o cosmo social oscilaria entre o caótico e o errático, de um lado, e o ordenado, estável e harmonioso, de outro. Assim, agrega-se que as controvérsias ocorrem, via de regra, em espaços públicos e em situações chaves em que determinada sociedade ou grupo procura dar soluções estratégicas para sua existência social. Julgou-se que a questão da localização da capital do Brasil é um desses momentos estratégicos para a construção da nação.

Em resumo, por um lado, o estudo das controvérsias envolve uma nova maneira de conceber a sociedade. Por outro, envolve também outra concepção de história, sendo que as diferentes posições no interior das controvérsias envolvem rumos provisórios à história em disputa. Nesses conflitos, aparecem as soluções imaginadas, ou, nas palavras do autor, o social, na sua forma magnética, ou seja, polarizado (Venturini, 2010VENTURINI, T. Diving in magma. Public Understanding of Science, v. 19, n. 3, p. 258-273, 2010.). As controvérsias são o social em estado anterior à sua concretização e estabilização. As decisões desses conflitos implicam em um redirecionamento histórico que tende à estabilidade, podendo definir direções duradouras, como é o caso das localizações das capitais. A teoria das controvérsias, segundo defendemos, pode ser associada a uma perspectiva histórica estrutural e de longa duração, sendo que o momento das controvérsias é visto como um momento social estratégico, em que os agentes definem estabilidades que podem ser longas. Em controvérsias científico-político-técnicas do planejamento territorial, regional e urbano das capitais, podem-se jogar os destinos duradouros dos territórios.

O Brasil e a mudança da localização da capital

Uma das primeiras posições sobre a necessidade de mudar a capital do Brasil do litoral, no Rio de Janeiro, para o interior, é de José Bonifácio de Andrade, na ocasião da Independência do Brasil de Portugal, em 1822, e a consequente constituição do Império. Desde então, vários intelectuais engajar-se-iam no debate sobre a necessidade de mudança da capital. Em 1877, por exemplo, o diplomata imperial Visconde de Porto Seguro publica um “Manual Orgânico” para defender a necessidade de mudança da capital segundo argumentos organicistas e ecológicos. “Marítima ou Interior?” leva o título desse trabalho.

A questão da mudança da capital aparecerá em todas as Constituintes pós-Independência do Brasil: 1890, 1934 e 1946, sendo que, em 1890 e 1934, predominou a manutenção de uma lógica marítima e, em 1946, o consenso em torno da mudança para o interior é irreversível - sendo a mudança posta como obrigação na Constituição. Nesse contexto longo, uma primeira leva de expedições é enviada ao Planalto Central entre 1896 e 1898 para a escolha precisa do sítio da capital, capitaneadas por Louis Cruls, geólogo e astrônomo belga. Cruls escolheu o sítio em que se encontra hoje Brasília e que foi denominado à época de Quadrilátero Cruls, tendo o termo ganhado notoriedade.

Anos mais tarde, o debate reaviva-se entre 1941 e 1955 e uma intensa experiência planificadora emerge no âmbito da geografia. Personagens envolvidos nas atividades do IBGE e do CNG participam de uma segunda leva de expedições levadas a cabo entre 1948 e 1950 para aprofundar os estudos e tomar uma decisão definitiva. Esse grupo de expedicionários vive um conflito e disputa de influência entre o geógrafo francês Francis Ruellan e o geógrafo alemão Leo Waibel (Penha, 1993PENHA, E. A. A criação do IBGE no contexto de centralização política do Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1993.). Ruellan é um geógrafo mais ligado aos interesses nacionalistas do Estado discricionário capitaneado pelo presidente do Brasil, Getúlio Vargas (algumas dessas questões abrangem também o governo Dutra), enquanto Leo Waibel é um intelectual alemão naturalizado americano que polemiza em torno da pouca importância atribuída ao mercado e à propriedade privada nos planos de colonização do presidente, que doava terras nas Colônias Agrícolas, ao invés de vendê-las. Além de conflitos epistemológicos da geografia global (e suas áreas de influência) e nacional, a questão da escolha da capital envolveu também posições políticas, desenvolvimentistas ou francamente liberais. Por fim, há os pareceres de geopolíticos militares e de uma comissão parlamentar, que se apoiam em argumentos da geografia política, mais próximos do que fora propugnado por Ruellan.9 9 Para uma lista completa de todos os personagens envolvidos nas controvérsias sobre a mudança da capital (Ribeiro, 2015).

Recém-saído de uma revolução, a Revolução de 1930, o Estado brasileiro preparava o processo de colonização do Oeste do país através da campanha “Marcha para Oeste”. Adotou como missão migrar a capital do país do litoral para o interior e ocupar-se do conjunto do Brasil, equilibrando a distribuição da população, tentando construir uma vocação interna e tornando o poder central equidistante de suas periferias. Contudo, era um Estado fortemente pressionado pelos interesses de uma elite oligárquica liberal, regionalista e comerciante, situada no Leste do país, a ponto de não apenas negociar com ela os planos políticos nacionais, sustentá-la com políticas de subsídios ao café, como em não tocar em interesses constituídos, recusando-se a fazer a Reforma Agrária no Leste (Prado Jr., 1944PRADO Jr., C. Problemas de povoamento e a pequena propriedade. Boletim Geográfico , Rio de Janeiro, v. 1, n. 12, p. 17-31, 1944.).

Esses possíveis vieses distintos de colonização aparecem nos planos de estabelecimento da situação e do sítio da capital no Planalto Central.10 10 A posição de Caio Prado Jr., se tivesse sido desenvolvida no âmbito desse debate, poderia ter se sido considerada como uma terceira alternativa, de viés social. O sítio efetivamente escolhido estava localizado em torno dos 15º e 16º de latitude sul e 47º a 49º de longitude oeste, abrangendo uma área de 14.400 km2 (Vesentini, 1986VESENTINI, J. W. A capital da geopolítica. São Paulo: Ática, 1986.).11 11 Ao estudo seminal de Vesentini (1986) no âmbito da geopolítica, será importante associar a abordagem colonizadora e econômica, de colonização interna. Representava a junção de afluentes das três principais bacias do Brasil: Amazonas, São Francisco e Paraná. Porém, era suficientemente distante do ecúmeno populacional brasileiro, afastando-se das forças e dos interesses constituídos dos grupos comerciantes e centralizando a capital no território. A zona escolhida, apesar do potencial ponto de cruzamento, era, àquela altura, uma zona vazia, um grande sertão. Pelo seu isolamento, critério, aliás, conscientemente considerado, a futura capital precisou colocar-se próxima de zonas férteis (Vesentini, 1986VESENTINI, J. W. A capital da geopolítica. São Paulo: Ática, 1986.). A proximidade das zonas férteis era um forte sinal de que o Estado brasileiro intencionava construir um mercado interno no sertão a partir de uma determinada lógica de colonização agrícola.

Francis Reullan e Leo Waibel eram os personagens estrangeiros a partir dos quais se articulavam os polos das controvérsias. Mas os personagens brasileiros também foram importantes: não eram geógrafos recém-formados, mas intelectuais, militares e políticos já bem instruídos quando as missões universitárias estrangeiras desembarcaram no Brasil. É possível dizer que Everaldo Backheuser, Teixeira de Freitas e o general Poli Coelho, este formado no próprio exército, nuclearam suas posições em torno daquelas lideradas pelas concepções geográficas de Ruellan (mesmo que este ator tenha pouco se expressando em trabalhos autorais, mas, sobretudo, no próprio relatório oficial). Christovam Leite de Castro, Eunário Queirós, este deputado, José Osvaldo de Meira Pena, Preston James e Speridião Faissol articularam-se em torno das posições de Leo Waibel. Este debate representa uma controvérsia anterior à chamada institucionalização da geografia nas universidades, pois é levado a cabo por geógrafos de formação instrucional autodidata ou externa às universidades.

Como já citamos, dividimos a análise das controvérsias sobre a localização da capital do Brasil em três eixos: epistemológico, locacional e político. Assim, este artigo procura construir uma narrativa que estabeleça um vínculo causal entre epistemologia, escolha da localização e geografia política e econômica para o Brasil. Não é frequente na história da geografia se trabalhar com a associação entre escolhas epistemológicas e os interesses práticos e políticos imediatos da nação, preferindo-se associações de tipo ideológicas.12 12 Cf. Smith (1989).

Controvérsias sobre os critérios epistemológicos de escolha da localização da capital

Um dos primeiros questionamentos epistemológicos colocados pelos atores em conflito foi o de conferir prioridade à escolha do sítio ou da situação geográfica no momento de escolher a nova localização da capital do Brasil. Sítio e situação foram vistos como conceitos e visões de mundo da geografia sobre o avanço da globalização. Em meados do século XX, ninguém mais questionava que, na análise geográfica para escolha da localização de Brasília, a definição da situação geográfica, ou seja, a posição relativa do lugar num jogo de relações, deveria ter prioridade em relação à definição do sítio geográfico, visto como a posição absoluta, associado diretamente ao entorno. Em um mundo quase totalmente integrado, o sítio não poderia reinar absoluto, porque nenhuma região poderia ser totalmente isolada. Há um consenso entre geógrafos sobre a ordem em que a análise geográfica deveria se dar: “teremos de selecionar uma ‘posição’ [sinônimo de situação] conveniente aos interesses nacionais; aí demarcar o Distrito Federal e, dentro dessa área, escolher o ‘sítio’ que ofereça condições satisfatórias para o estabelecimento da cidade” (Queirós, 1949QUEIRÓS, E. Mudança da capital do país: Parecer da comissão parlamentar. Boletim Geográfico , n. 76, p. 333-368, 1949., p. 363).

Nesse sentido, a situação importava mais que o sítio. Contudo, apesar desse consenso a montante, houve autores que deram mais valor relativo ao sítio e outros que deram menos valor, mesmo nos quadros de um mundo integrado. Autores que aumentam a importância do sítio normalmente consideram que, ainda que num contexto de integração, a capital estaria sujeita a um isolamento relativo. Para eles, as redes econômicas não seriam capazes de colocar Brasília num espaço brasileiro fluido e a capital teria que lidar com obstáculos físicos importantes para se conectar progressivamente a outras regiões do país. Seria importante dar à capital possibilidades de manter-se de maneira autossuficiente, aproveitando-se das qualidades do sítio e do seu entorno próximo no Planalto Central.

A valorização do sítio era defendida por geógrafos regionais de formação francesa enquanto a valorização da situação, por geógrafos econômicos, de formação americana, de uma geografia colonial positivista. Na França - cujas relações com o Brasil tornaram-se mais diretas através do envio de missões universitárias a partir de 1934 -, a partir do final do século XVIII, já havia surgido uma tensão entre formas de escrita lógicas, planejadas, mais positivistas e formas histórico-descritivas, mais românticas (Lepenies, 1996LEPENIES, W. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996.). No caso da geografia moderna isso moldou uma “epistemologia de método misto”, segundo Marie-Claire Robic (1991ROBIC, M.-C. La stratégie épistémologique du mixte: Le dossier vidalien. Espaces Temps, Paris, v. 47, n. 1, p. 53-66, 1991. , p. 54). A geografia francesa estava situada entre “empirismo” e “construtivismo”, entre “descrição pura” e “explicação” (Robic, 1991ROBIC, M.-C. La stratégie épistémologique du mixte: Le dossier vidalien. Espaces Temps, Paris, v. 47, n. 1, p. 53-66, 1991. ), entre a arte dos literatos e a lógica dos positivistas, enquanto Vincent Berdoulay (1981BERDOULAY, V. La formation de l'École Française de Géographie (1870-1914). Comité des Travaux Historiques et Scientifiques, Mémoires de la Section de Géographie, n. 11. Paris: Bibliothèque Nationale, 1981.) a situava numa abordagem francamente ecológica e neokantiana.

Preston James e Geoggrey J. Martin (1993JAMES, P.; MARTINS, G. J. All possible worlds: A history of geographical ideas. New York; Chichester; Brisbane; Toronto; Singapore: John Wiley & Sons, Inc., 1993.) também identificaram uma tensão epistemológica na geografia americana, onde mais uma vez foi indicada uma predominância de estilo. Neste ambiente, a geografia “prática”, ao contrário do que preconizavam os franceses, teria surgido com mais força. “O período após a Primeira Guerra Mundial testemunhou a erosão gradual dos conceitos de controles físicos a respostas humanas e uma competição vigorosa entre propostas [...].” (James; Martin, 1993JAMES, P.; MARTINS, G. J. All possible worlds: A history of geographical ideas. New York; Chichester; Brisbane; Toronto; Singapore: John Wiley & Sons, Inc., 1993., p. 344, tradução da autora, grifos nossos). Esta geografia prática, segundo esses autores, teria sido a marca das geografias americanas desde o avanço para o oeste, guiada pelo geógrafo Isaiah Bowman, cujos discípulos Leo Waibel e Preston James foram enviados ao Brasil no âmbito de um grande projeto de colonização.

Rebatendo as questões epistemológicas para a localização da capital do Brasil, a comissão para valorização do sítio foi conduzida pelo francês Francis Reullan, enquanto a comissão para o estudo da situação foi liderada pelo geógrafo Leo Waibel. Assim, o direcionamento metodológico das duas comissões que excursionaram pelo Planalto Central com vistas a estudar as situações e os sítios disponíveis demonstra que essa ordem metodológica que parece consensual (primeiro a situação, depois o sítio) acabou por gerar muitas controvérsias epistemológicas. Com efeito, “a comissão nomeada pelo governo para estudar o assunto dividiu-se em duas subcomissões: uma para estudar as condições da região e outra para estudar as condições do sítio” (Castro, 1947 c CASTRO, C. L. de. A mudança da capital do país à luz da ciência geográfica. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. IX, n. 2, p. 123-129, abr./jul. 1947c., p. 284).

Mas, apesar da ordem apresentada por Castro, a ordem em que se deu a implementação das atividades das comissões foi inversa. A primeira, a que se focou sobre o sítio, partiu adiantada e, a que deu foco à situação, partiu em seguida. Isso terminou por causar desarranjos no debate. Em muitas ocasiões os membros dessas comissões estiveram em desacordo e, sabidamente, a polêmica girava em torno da importância relativa dada ao sítio. A valorização da situação foi entendida por Waibel como a adoção de uma geografia econômica mais moderna, livre dos constrangimentos do meio físico, enquanto a prioridade dada ao sítio era vista como a adoção de uma geografia ecológica e entendida como determinista:

No nosso relatório, este conceito antideterminista é expresso claramente. Para se compreender isto, basta somente ler o capítulo sobre 'ocupação humana e tipos de economia ou a explicação dos termos sítio e posição e sua aplicação ao problema da nova capital (Waibel, 1961WAIBEL, L. Determinismo Geográfico e Geopolítica (contribuição ao problema da mudança da capital). Boletim Geográfico , Rio de Janeiro, v. 19, n. 164, p. 612-617, 1961., p. 614).

Assim, será importante agregar que essa polêmica sobre a importância relativa do sítio em relação à situação apareceu também revestida no debate sobre a predominância da geografia física em relação à geografia humana. Via de regra, aspectos do sítio foram mais bem avaliados por geógrafos ligados à geografia física, como Ruellan e seus adeptos, enquanto, inversamente, aspectos da situação foram mais bem avaliados por geógrafos estudiosos da geografia humana. Desse ponto de vista, a predominância da geografia física e a da geografia humana apresentam-se como inseridas em tipos de mentalidades científicas diferentes. Os legados da geografia física eram mais mobilizados por geógrafos de viés ecológico e regional, que se focavam sobre o sítio e que mantinham pouca crença na capacidade da sociedade em transformar seu espaço continental em ritmo acelerado. Já os legados da geografia humana eram mais mobilizados por geógrafos econômico-positivistas, que se focavam no papel da situação e mantinham crença mais arraigada no papel do homem em submeter os constrangimentos físicos a favor dos usos sociais. Essa resiliência da geografia física no modo de se pensar a mudança da capital no Brasil foi criticada por Leo Waibel (1961WAIBEL, L. Determinismo Geográfico e Geopolítica (contribuição ao problema da mudança da capital). Boletim Geográfico , Rio de Janeiro, v. 19, n. 164, p. 612-617, 1961.).

Assim, junto com essa crítica está implícita a do papel do determinismo. Com efeito, como extensão do debate situação-sítio, o debate sobre o determinismo foi um dos mais agudos, que opôs o general Poli Coelho, influenciado pelos franceses, ao geógrafo Leo Waibel. Cada um acusa o outro de ser “determinista”. Na verdade, o significado dado ao mesmo termo varia. O general Polli Coelho usa o termo como forma de desqualificação do adversário, inserindo-o em um contexto político geral que adere a uma forte crítica ao determinismo. Já Leo Waibel rebate, acusando, por sua vez, o próprio general no mesmo sentido, e reativando o termo “determinismo” no seu sentido científico, ou seja, ecológico. De fato, é o general Poli Coelho que utiliza uma lógica ecológica, com possível viés determinista, não Leo Waibel: “ficou provado, mais uma vez, que aquela área possui excelentes qualidades agrológicas [...]” (IBGE, 1948IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. A localização da nova capital da República, parte I e II. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1948., p. 10).

Essa questão revela uma outra divergência, sobre o realismo e o idealismo dos planos elaborados por esses geógrafos. Geógrafos mais ligados às formas de racionar positivistas e modernas, lideradas por Leo Waibel, foram partidários de planos mais arrojados, em que a sociedade poderia transformar a natureza segundo seu desejo social, enquanto geógrafos ligados à lógica regional e ecológica são mais hesitantes, partidários do que se poderia chamar de um certo realismo geográfico. O que se constata é que a oposição dessas lógicas tem importante impacto na maneira de pensar a organização da colonização do território. O geógrafo Everaldo Backheuser defende soluções antigas, de longos debates cujo consenso já havia convergido para afastar a localização da capital das lógicas litorâneas:

[...] haverá dentro dela os que não desejam desprezar a tradição (serão seguramente os mais idosos), e haverá os que, mais jovens e mais ardorosos, queiram cortar todas as amarras do passado bolorento e fazer obra nova, inédita, com o apetitoso sabor do imprevisto (Backheuser, 1947BACKHEUSER, E. O Retângulo Cruls. Boletim Geográfico, Rio de Janeiro, n. 55, p. 745-746, 1947., p. 746).

Inversamente, Leo Waibel é caracterizado por planos mais arrojados, como de propor vender terras aos futuros investidores no interior do sertão.

Controvérsias geográficas sobre a localização da capital

A lógica geográfica mostrou ter forte impacto nas defesas que cada geógrafo ou grupo de geógrafos assumiram em relação às candidaturas de lugares para localizar a nova capital. Com efeito, há geógrafos que ainda flertavam com a manutenção da capital do Brasil no Rio de Janeiro, tais como Preston James e Speridião Faissol, mesmo que a constituição de 1946 impusesse a mudança para o Planalto Central. Eles argumentavam sobre a necessidade de manter o Brasil em um modelo agroexportador, ligado ao porto e às relações internacionais. Assim, forma-se um possível grupo composto por Leo Waibel, Preston James e Speridião Faissol, ao adotarem perspectivas mais modernas, positivistas e calcadas na geografia humana, associavam a esses pressupostos epistemológicos uma defesa de uma economia liberal, que no Brasil da época assumia uma proposta de continuidade do modelo colonial agroexportador. Para esses autores, a chamada (auto)suficiência do Brasil deveria ser procurada no exterior e não internamente: “os que apoiam a ideia de interdependência internacional, de preferência à autossuficiência nacional, optam por manter a acessibilidade do mundo exterior de que desfruta o Rio de Janeiro” (James; Faissol, 1960JAMES, P. E.; FAISSOL, S. O Problema da Capital do Brasil. Boletim Geográfico , Rio de Janeiro, n. 158, p. 771-783, 1960., p. 776, grifos nossos).

Porém, a constituinte de 1946 chancela a mudança da capital do litoral para o interior e esse grupo se vê na necessidade pragmática de defender uma outra possibilidade intermediária, nem tão litorânea, nem tão interiorizada, mas que preservasse seus objetivos epistemológicos, geográficos e políticos. Assim, quando se anuncia a ideia de localizar a capital no Triângulo Mineiro, flerta-se com a mesma lógica da geografia positivista e liberal que era representada pela capital no litoral.

Apesar do anúncio repetido por muitos de que havia um consenso nacional sobre a necessidade de interiorizar a capital, de repente a opção do Triângulo Mineiro se contrapôs à proposta de localização da capital no Quadrilátero Cruls, no interior do Planalto Central. Isso porque essa capital semi-interiorizada foi chamada por alguns autores de “penemarítima”, de forma que essas capitais “parecem constituir, por exemplo, uma solução conciliatória” (Pena, 1955PENA, J. O. de M. A mudança da Capital do Brasil. Revista Brasileira de Geografia , Rio de Janeiro, n. 2, p. 196-209, 1955. , p. 202). Como se vê, o Triângulo Mineiro termina por representar uma lógica marítima: “[...] a opinião da Constituinte cindiu-se entre a solução histórica e uma nova localização no Triângulo Mineiro” (Queirós, 1949QUEIRÓS, E. Mudança da capital do país: Parecer da comissão parlamentar. Boletim Geográfico , n. 76, p. 333-368, 1949., p. 340).

Uma capital marítima ou penemarítima, associada ao porto, ou uma capital interiorizada, relativamente isolada em seu sítio, cumpririam papeis funcionais diferentes no território, daí a importância da localização e dos fatores geográficos que essa localização congrega. Castro faz uma diferenciação entre capitais “colonizadoras” ou “impulsionadoras” (Castro, 1947 a CASTRO, C. L. de A mudança da capital do país. Boletim Geográfico , Rio de Janeiro, n. 47, p. 1435-1437, 1947a. , p. 1435), como se capitais colonizadoras (interiorizadas) “puxassem” as regiões vizinhas, das áreas mais próximas, enquanto as capitais impulsionadoras (ligadas ao porto), fariam a civilização caminhar para frente, sempre num mesmo sentido e progressivamente. A capital no Triângulo Mineiro, além de ser penemarítima, e que, portanto, mantém sua ligação com o porto, também está inserida no interior da franja pioneira (ainda que na vanguarda), agindo então como capital impulsionadora.

No tipo impulsionador a civilização como que caminha progressivamente, avançando-se pelo interior adentro os seus elementos de progresso material e cultural; nesse caso, a nova capital tem de localizar-se na faixa pioneira, verdadeira transição entre a parte civilizada e a não, de maneira que possa recolher de uma parte as energias econômicas, políticas e sociais para projetá-las na outra parte (Castro, 1947 a CASTRO, C. L. de A mudança da capital do país. Boletim Geográfico , Rio de Janeiro, n. 47, p. 1435-1437, 1947a. , p. 1436).

Castro é defensor de uma capital impulsionadora, cujas energias geográficas partissem sempre do litoral. Para ele, a capital não poderia perder o contato com a área civilizada, a chamada franja pioneira, e isolar-se, como pretendem os defensores da interiorização da capital. Talvez o impacto mais importante dessa diferenciação é que, enquanto uma capital no litoral guardaria apenas uma polaridade e uma influência crescente sobre o conjunto do território, uma capital interiorizada constituiria uma polaridade concorrente no território. Enquanto as grandes cidades continuariam no litoral, uma capital localizada no interior estabeleceria uma concorrência territorial e pressionaria uma mudança de estrutura de dentro para fora. Isso teria consequências importantes para a própria configuração do Estado e do território brasileiro.

Uma capital fortemente interiorizada, assim, com relativo isolamento, poderia acumular forças para construir uma nova ordem (política e econômica), por onde observamos o interesse do Estado varguista de acumular forças no coração do território para chancelar no espaço um outro ponto de partida para colonização, sob influência de outra lógica que não a puramente capitalista, mais localizado no sertão com outro ponto de partida para colonização. Isso revelava que uma capital no litoral poderia submeter mais fortemente o Estado às forças econômicas, enquanto uma capital no interior poderia favorecer a construção de um Estado forte e relativamente autônomo em relação a essas forças. Portanto, a localização da capital impactaria no próprio tamanho e autonomia do Estado brasileiro e no modelo de colonização do território. A posição de defesa do Triângulo Mineiro é bastante reivindicada pelos geógrafos humanos, positivistas e liberais, para os quais a interiorização da capital é vista como antidemocrática, favorecendo o Estado forte e autocrático:

Os ideais democráticos vivem e palpitam intensamente no burburinho das grandes artérias e na penumbra das vielas suburbanas. Se nelas proliferam fermentos de lutas sociais que precisam ser, muitas vezes, dominadas, é que em sua superfície que, quase sempre, se erguem barricadas contra a tirania e a prepotência. Numa capital isolada e fechada, longe da atividade criadora e renovadora dos grandes centros urbanos, os governos correrão o risco de perder, comumente, o contacto com a realidade e se transformarem em órgão ausentes, quando deles se esperam decisões prontas e oportunas (Queirós, 1949QUEIRÓS, E. Mudança da capital do país: Parecer da comissão parlamentar. Boletim Geográfico , n. 76, p. 333-368, 1949., p. 354, grifos nossos).

Queirós notou que, na história do Brasil, toda vez que se necessitou recentralizar o poder, frente a forças regionais desagregadoras, fez-se o esforço de saudar a unidade nacional e propor a mudança dos núcleos de povoamento (Queirós, 1949QUEIRÓS, E. Mudança da capital do país: Parecer da comissão parlamentar. Boletim Geográfico , n. 76, p. 333-368, 1949.). Daí advém outra questão estratégica que atravessou a história política do Brasil. Deve-se fortalecer ou enfraquecer o Estado? A questão da localização da capital também está inserida nesse debate.

Assim, essa reorganização do espaço com o deslocamento do poder, colocando a capital no interior, com distanciamento de áreas consolidadas, fez com que os geógrafos defensores da interiorização, além de defensores de um Estado forte menos submetido às forças econômicas, imaginassem que esse novo núcleo de poder acumularia, no médio prazo, forças para concorrer com os núcleos constituídos no Leste. O plano era que, uma vez constituída a capital com seu ponto de força localizado no sertão, no coração do Brasil, ela ganharia impulso para pressionar a zona ocupada no Leste, por um modelo mais distributivo e menos concentrado de propriedade. Com efeito, desde a lógica epistemológica, passando pela lógica propriamente geográfica, desemboca-se numa lógica propriamente política, ou seja, que tipo de colonização o país teria a partir de qual localidade.

Controvérsias políticas sobre os planos de colonização

As questões geográficas debatidas segundo a sequência lógica desembocam em outra controvérsia, baseada na seguinte questão: a colonização vindoura do país dar-se-ia através da intensificação das linhas e dos nódulos das redes existentes ou continuaria a caminhar em extensão pelo território como em uma mancha de óleo? Ou seja, era uma colonização extensiva ou em redes? Afinal, como o país seria colonizado e cujo centro se deslocaria a partir de que lógica de colonização? Localizar a capital implicava que as lógicas epistemológicas desembocassem em diferentes cenários possíveis para o Brasil, com seus tipos de colonização. Ninguém questiona que a capital deveria assumir uma centralidade no país, a questão é que tipo de centralidade é essa, e a partir de que previsão sobre o tipo de colonização vindoura.

Com efeito, os geógrafos regionais, de abordagem ecológica, acreditam que o tipo de colonização vindoura será predominantemente demográfico, ou seja, o principal deslocamento em direção ao sertão do país será de populações. Trata-se de um tipo de colonização extensiva, com enraizamento, pelo território, de populações trabalhadoras e, com elas, um avanço da pequena propriedade. Uma nova centralidade seria produzida a partir do deslocamento das populações, constituindo-se o que eles chamam de centro geográfico.

Na posição contrária, ao apostar na intensificação das redes como modo de colonização, teria pouco sentido projetar a capital para o centro geográfico do território (às vezes referido de maneira pejorativa como centro geométrico), mas a aposta seria no avanço da colonização por intensificação das redes. Assim, avançaria no território a colonização pela difusão das técnicas e intensificação de capital (ferrovias e fazendas com cada vez mais investimento em capital e menos em trabalho), de forma que o centro geográfico ficaria potencialmente vazio, enquanto o centro econômico (que depende da coincidência da mancha econômica com a demográfica) manter-se-ia próximo ao litoral. Na verdade, no fundo dessa controvérsia está a questão sobre qual o tipo de elemento humano, de mão de obra ou de capital, se deslocaria efetivamente pelo território. Preston James arrisca uma previsão:

A única previsão que se poderia fazer conscientemente é a de que jamais a colonização brasileira se espalhará uniformemente por todo o território nacional. A aplicação de métodos agrícolas científicos terá o efeito de aumentar a densidade da população nas cidades, mais do que incrementar a colonização agrícola para além das fronteiras atuais. Se os sertões se transformarem em terras agrícolas, é provável que tal ocorra pelo emprego da maquinaria nas grandes propriedades, com um número relativamente reduzido de trabalhadores. Não parece provável que o centro geométrico do território nacional venha a tornar-se também o centro geográfico da população brasileira (James; Faissol, 1960JAMES, P. E.; FAISSOL, S. O Problema da Capital do Brasil. Boletim Geográfico , Rio de Janeiro, n. 158, p. 771-783, 1960., p. 775-776, grifos nossos).

De fato, na previsão de uma colonização pela intensificação dos nódulos já existentes, o avanço da população não necessariamente seria extensivo. O capitalismo que avança pelas redes é acumulação de capital e de técnica e não de trabalho. A paisagem se transformaria pelo acelerado uso da técnica e do capital e menos do trabalho, que passará por um processo de substituição no longo prazo. O que migraria para o restante do território são “as grandes maquinarias”.

A localização da capital do Brasil era um grande exercício de previsão da colonização vindoura: “trata-se, evidentemente, de localização em nosso extenso território, uma capital para o ‘Brasil do futuro’” (Queirós, 1949QUEIRÓS, E. Mudança da capital do país: Parecer da comissão parlamentar. Boletim Geográfico , n. 76, p. 333-368, 1949., p. 333). Esse exercício de localização para o futuro implicava um cálculo, o cálculo da natureza e do ritmo de transformação do meio ambiente pela sociedade. No limite, a questão a ser decidida era qual seria o centro do país no futuro do próximo, em que ritmo caminharia esse futuro e conduzido por que processo geográfico. Chegamos então à percepção de que uma concepção de transformação da natureza pela técnica, em ritmo lento ou rápido, estava profundamente implicada na escolha da localização de Brasília, bem como um cálculo sobre o ritmo de transformação da natureza pela sociedade.

Em resumo, os geógrafos que defendem a localização da capital mais próxima do litoral fazem uma aposta no poder do capital e da técnica avançada em comandar os destinos da transformação da natureza no Brasil. Já os geógrafos que defendem uma interiorização mais acentuada contabilizam que são as forças humanas que estão em jogo, notavelmente a persistência da transformação da paisagem e do espaço pelo trabalho (as vezes rudimentar) do homem. “Métodos agrícolas modernos podem bem mudar a capacidade produtiva das terras de campo cerrado. Mas a moderna agricultura envolve o uso de maquinaria, mais do que de mão-de-obra [...].” (James; Faissol, 1960JAMES, P. E.; FAISSOL, S. O Problema da Capital do Brasil. Boletim Geográfico , Rio de Janeiro, n. 158, p. 771-783, 1960., p. 782-783).

Essa previsão, ao nosso ver, cria uma noção de cesura na história territorial do país. Em outras palavras, a partir do avanço do capitalismo e da globalização, o território preservará o desequilíbrio em um caminho sem volta em termos demográficos. Os geógrafos regionais parecem não acreditar nessa possibilidade e seguem defendendo uma ideia de equilíbrio territorial possível a ser atingido, em que a população se dispersará mais uniformemente: “diz-se que a permanência do governo no Rio de Janeiro aprofunda o abismo traçado entre a cidade e o campo e que sua ação não representa os anseios da grande maioria dos brasileiros” (Queirós, 1949QUEIRÓS, E. Mudança da capital do país: Parecer da comissão parlamentar. Boletim Geográfico , n. 76, p. 333-368, 1949., p. 362).

A questão de uma cesura no território, no que tange ao processo de colonização, projeta-se sobre uma perspectiva de ocupação do centro-oeste, a partir do momento em que a mundialização econômica já se anunciava. A resposta a esta questão implicava considerar se o Planalto Central não era anti ecumênico, ou seja, impossível de ser ocupado devido às suas características naturais, ou como uma região pré-ecumêmica, ou seja, não atingiu um nível de colonização suficiente que poderia impulsioná-lo a partir do momento em que mundo estivesse globalizado.

[...] as regiões desérticas brasileiras- florestas espessas, baixadas inundadas e savanas agressivas do tipo caatinga- não são regiões intrinsicamente anecumêmicas ou anti-ecumênicas, onde o homem não possa jamais se fixar. São realmente, como costumo eu designar, apenas pré-ecumênicas. [...] O problema da Amazônia e dos chapadões secos das nossas savanas do Planalto, à vista desses exemplos e de outros do Far-West norte-americano, deixa de ser insolúvel para o grau presente do saber humano. Para resolvê-lo, é preciso quase que só, bastante dinheiro e perseverantes propósitos dos nossos governantes. Com essas duas condições (sem dúvida, difíceis de se alcançar no Brasil) ter-se-á entrado no caminho do racional povoamento desse atual deserto (Backheuser, 1948BACKHEUSER, E. Localização da Nova Capital: Ponto Nevrálgico. Boletim Geográfico, Rio de Janeiro, n. 58, p. 1083-1084, 1948., p. 1083-1084).

Essa constatação, do estado despovoado do centro-oeste, seja pela sua face pré-ecumêmica, seja pela sua face anti ecumênica, implica uma outra tomada de posição. Se o mundo ainda será colonizado como uma mancha de óleo, e que o Centro-Oeste seja uma região que será integrada futuramente do ecúmeno, como pensa Backheuser e outros geógrafos regionais, o centro do país se deslocará para essa região. Mas se o Centro-Oeste é pré-ecumênico e a globalização produziu uma cesura no território, como pensam os positivistas, não há por que pensar que o centro do país se deslocará para essa região, visto que a colonização vindoura se dará preferencialmente pela intensificação dos nós das redes e a concentração econômica e de população continuará intacta no litoral: “poderá o campo cerrado alimentar um aumento substancial de colonização, uma verdadeira marcha para oeste?” (James; Faissol, 1960JAMES, P. E.; FAISSOL, S. O Problema da Capital do Brasil. Boletim Geográfico , Rio de Janeiro, n. 158, p. 771-783, 1960., p. 782).

A partir dessa divergência, ressurge uma outra, qual seja, se a capital deverá ter função administrativa ou colonizadora, agora no seu aspecto propriamente político. Isso porque, dada a constatação, para alguns, dessa cesura no território a partir de uma globalização irreversível, então o centro do país não mais se deslocaria, restando relativamente imóvel na região já colonizada, como já afirmado. Desse entendimento decorre que a função da capital era de regular os conflitos entre regiões existentes, notadamente as mais populosas, e não ter a função de levar a colonização adiante. Assim, para aqueles que acreditam que a colonização seria extensiva no território e que teria continuidade, os geógrafos regionais, haveria o deslocamento do centro e a própria capital impulsionaria esse movimento colonizador, enquanto para outros, os geógrafos positivistas, não haveria criação de novas e regiões e, por consequência, não haveria um deslocamento da centralidade.

De um lado, uma capital colonizadora tende a não ser estabilizadora de regiões fortes, mas criadora de regiões, ou seja, ela tende a levar ao desenvolvimento o conjunto do território, tentando promover relativa igualmente entre as regiões. De outro lado, uma capital administrativa tende a garantir o status quo, sem ser produtora de novas regiões e as regiões a serem capturadas seriam exclusivamente provedoras de recursos. Em outras palavras, no interior do debate sobre a localização da capital do Brasil havia implícito, além de tudo que já foi colocado, um debate sobre uma concepção de relacionamento entre centro e periferias. Trata-se de escolher entre um centro que garante o desequilíbrio e explora a periferia, ou um centro que promove o desenvolvimento dessa periferia.

As duas proposições a que chegaram os membros da Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital do Brasil refletiram nitidamente duas tendências, ambas respeitáveis: uma a tendência para o centro geométrico do país, defendida pela maioria, que, ao escolher uma área grande dentro de uma região praticamente despovoada e inexplorada, entendeu que a nova capital deve ter também e principalmente a função colonizadora, devendo a mudança da cidade efetuar-se depois da execução de um largo programa, previamente estabelecido, de povoamento da região, de florestamento, de irrigação, de exploração agrícola, de suprimento de energia, de transportes e de outros problemas econômicos e sociais; outra, a tendência para o centro demográfico do país adotada pela minoria, que, ao preferir uma área pequena na fronteira econômica do país, evidenciou o seu ponto de vista, de que a função principal da capital é proporcionar à sede do governo nacional condições excelentes de instalação (clima, salubridade, abastecimento, acesso, desenvolvimento das imediações), em contacto próximo com a parte povoada do país, de modo à mudança efetuar-se prontamente para que não ocorra um novo retardamento, de consequências imprevisíveis, da interiorização da nossa metrópole, da qual justificadamente se esperam grandes benefícios para a nacionalidade (Castro, 1948CASTRO, C. L. de. A mudança da capital do país. Revista Brasileira de Geografia , Rio de Janeiro, n. 3, p. 449-451, 1948., p. 449-450).

Finalmente, esse processo se projeta ainda mais no futuro do país. Para os geógrafos regionais, após essa acumulação de forças na nova localidade no sertão, projetava-se que a capital pudesse reverter uma estrutura de longa duração do Brasil: do povoamento que caminhava de leste para oeste. Mesmo que essa controvérsia refletisse um debate que não estava imediatamente na ordem do dia, alguns geógrafos contrários à construção de Brasília na região próxima ao Quadrilátero Cruls posicionaram-se contrariamente à essa ideia de que a onda de colonização pudesse se dar de oeste para leste, ou seja, pudesse ser invertida em relação as tendências territoriais do Brasil de longa duração.

O povoamento brasileiro tem de processar-se de leste para oeste, porque a leste dispõe o país de um oceano, como elemento valioso de povoamento, ao passo que a oeste não existe oceano com função análoga, nem se encontram países limítrofes em condições de penetração humana, rumo oriental. Há, portanto, na evolução do povoamento brasileiro, uma única linha de marcha, em consequência das condições de formação de nosso país (Castro, 1947 b CASTRO, C. L. de. Aspectos Históricos da Mudança da Capital do Brasil. Boletim Geográfico , Rio de Janeiro, n. 49, p. 3-4, 1947b., p. 3).

A partir dessa citação, vêem-se duas defesas contundentes sobre os “Brasis” possíveis: a primeira de que a capital do Brasil deveria de alguma maneira dar-se sob a égide de influência de forças marítimas, e a segunda pela necessidade de mudança de direção da marcha de povoamento. Assim, alguns geógrafos tendem a acreditar que, ao se inverter o sentido da zona pioneira, haveria uma pressão interna de transformação do país, de dentro para fora, forçando o latifúndio concentrado no leste a se dividir e, dessa maneira, transformando toda a estrutura fundiária do país, através desse largo processo de transformação da capital. Os geógrafos regionais defendiam essa última posição que, como já foi dito, implicava a construção de uma dupla polaridade sobre o território. Já os geógrafos liberais apostavam que apenas o mercado e a propriedade privada deveriam avançar no território. As Figuras 1 e 2 são modelizações, ou seja, um esforço de síntese do que acredito ter demonstrado ao longo deste debate.

Figura 1.
Projeto de localização de capital com manutenção da capital no Rio de Janeiro.

Figura 2.
Projeto de mudança da localização da capital para o centro do Planalto Central.

Conclusão

A localização escolhida para Brasília foi no Quadrilátero Cruls, no centro do Planalto Central, defendida pelos geógrafos regionais. Com que tipo de racionalidade geográfica o Brasil foi efetivamente colonizado? O território brasileiro foi potencialmente colonizado segundo uma perspectiva francesa, regional, neokantiana e ecológica, resiliente no mundo intelectual desde o século XVIII, mas existiam outras alternativas e outros projetos de países possíveis, notadamente associados às emergentes visões positivistas. Fica demonstrado que, em ciência, a performance de antigas visões sobre a realidade (geográfica) pode ser bastante duradoura.

Ademais, através das controvérsias, julgou-se poder observar o planejamento geográfico em ato e, assim, perceber as implicações estritamente geográficas e políticas que envolviam uma cadeia de decisões. Tentou-se demonstrar através de uma história conflituosa de decisões sobre Brasília como as epistemologias geográficas tinham importantes vinculações políticas. Dessa forma, a epistemologia é então entendida de maneira prática, com profunda atuação na construção dos espaços. Afinal, por mais que o elo seja difícil de traçar, é pressuposto que os geógrafos construam geografias e, como diria Latour, essa é uma maneira de compreender a efetiva ação da ciência.

Ainda assim, a questão quanto à lógica de colonização do Brasil implica outras considerações e um programa de pesquisa, pois a esses debates e controvérsias poderíamos simplesmente qualificar de geografias imaginadas, pelo seu caráter abstrato. Porém, deve-se ainda comparar o plano do imaginado com o próprio processo de colonização territorial que foi encetado em alguns territórios a partir do planejamento das capitais, cotejando essas geografias imaginadas à produção de materialidades e construindo uma reflexão sobre o concreto-abstrato dos territórios. Portanto, as escolhas racionais das localizações das capitais e suas consequências concretas, por mais que sejam conduzidas por uma lógica, podem-se revelar ainda mais complexas. Essa reflexão entre o abstrato e o concreto abriria uma rica discussão sobre a performatividade do planejamento regional, ou seja, sua capacidade efetiva de criar mundos.

Uma hipótese possível sobre a dinâmica abstrato-concreta é que a vitória de determinada lógica seja na verdade incompleta e que uma pluralidade de lógicas esteja, na verdade, atuante no território, conformando uma concorrência territorial. Assim, as controvérsias se constituíram como ferramentas analíticas de construção de distinções que possibilitassem a observação dessa concorrência territorial em traços opostos e nítidos. A história da geografia, através das controvérsias, poderia auxiliar a geografia histórica.

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  • 1
    Como se verá, é provável que esses diferentes projetos acabam por existir concretamente no território, mas essa questão, sobre as supostas materialidades, não será abordada por neste artigo.
  • 2
    A primeira vez que o nome “Brasília” é sugerido como nome de capital do Brasil foi no congresso nacional de Lisboa, na ocasião da discussão da Independência (Porto Seguro, 1877PORTO SEGURO, V. A questão da capital: Marítima ou no interior? Rio de Janeiro: Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados, Centro de Documentação e Informação, 1877. ).
  • 3
    Cf. Tavares, 2014TAVARES, J. Projetos para Brasília, 1927-1957. Brasília: IPHAN, 2014.; Jusselma, 2010JUSSELMA, D. de. De plano piloto a metrópole: A mancha urbana de Brasília. Brasília: Sinduscon, 2010. ; Holanda, 2010HOLANDA, F. de. Brasília: cidade moderna, cidade eterna. Brasília: Universidade de Brasília, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, 2010.; Holston, 2010HOLSTON, J. A cidade modernista: Uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.; Leitão, 2009LEITÃO, F. (org.). Brasília 1960-2010: Passado, presente e futuro. Brasília: Seduma, 2009. ; Paviani, 1989PAVIANI, A. Brasília: A metrópole em crise, ensaios sobre urbanização. Brasília: Editora da UnB, 1989. ; Bicca, 1985BICCA, P. et al. Brasília, ideologia e realidade: espaço urbano em questão. Brasília: CNPQ, 1985. .
  • 4
    O trabalho seminal de César Simoni enfoca a elaboração e execução do projeto urbano do ponto de vista da produção do espaço (Simoni, 2013SIMONI, C. Brasília: Do projeto hegeliano ao espaço da acumulação. São Paulo: FFLCH, 2013.).
  • 5
    Segundo Hervé Thery, a construção de Brasília representou o tamanho das ambições do Estado e da economia brasileira no processo de integração nacional que se anunciava (Théry, 2004THÉRY, H. Brasília: De la capitale à la metrópole? Vingtième siècle, Revue d’histoire, Paris, v. 81, n. 1, p. 93-105, 2004.).
  • 6
    Quase uma centena de expedições para todas as regiões do Brasil foram organizadas pelo IBGE e pelo CNG entre 1941 e 1955 (Cf. Abrantes, 2014ABRANTES, V. Era preciso redescobrir o Brasil. Terra Brasilis (Nova Série), Rio de Janeiro, n. 3, p. 1-27, 2014.).
  • 7
    As fontes primárias são os artigos sobre a questão da mudança da capital publicados na Revista Brasileira de Geografia e no Boletim Geográfico no período analisado.
  • 8
    A “performatividade” é um conceito desenvolvido no âmbito da história da cartografia sobre o poder mobilizador dos mapas nas sociedades modernas e contemporâneas pelo seu alto grau de realismo (cf. Lois, 2018).
  • 9
    Para uma lista completa de todos os personagens envolvidos nas controvérsias sobre a mudança da capital (Ribeiro, 2015RIBEIRO, M. B. P. A mudança da capital em debate nos artigos da Revista Brasileira de Geografia e do Boletim Geográfico (1938-1964) . 2015. 159 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2015.).
  • 10
    A posição de Caio Prado Jr., se tivesse sido desenvolvida no âmbito desse debate, poderia ter se sido considerada como uma terceira alternativa, de viés social.
  • 11
    Ao estudo seminal de Vesentini (1986VESENTINI, J. W. A capital da geopolítica. São Paulo: Ática, 1986.) no âmbito da geopolítica, será importante associar a abordagem colonizadora e econômica, de colonização interna.
  • 12
    Cf. Smith (1989SMITH, N. Geography as Museum: Conservative Idealism in “The Nature of Geography,”. In: ENTRIKIN J. N; BRUNN, S. (ed.). Reflections on Richard Hartshorne’s “The Nature of Geography”. New York: Occasional Paper soft Association of American Geographers, 1989. p. 89-120.).
  • Declaração de financiamento

    Agradeço à FAPESP pelo financiamento à pesquisa cujos resultados permitiram a elaboração deste artigo. Processo nº 2020/05637-0 (bolsa no país), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade da autora e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.

Editado por

Editor do artigo:

Fabio Betioli Contel

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2022
  • Aceito
    18 Fev 2024
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