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Por geografias do coabitar: costurando lugares mais-que-humanos

Vers géographies du cohabiter: tisser lieux plus-que-humains

Resumo

O espaço geográfico decorre das virtualidades existenciais de múltiplas relações terrestres e das formas pelas quais elas se correlacionam com o habitar de entidades humanas e não-humanas. Desse modo, o presente ensaio almeja problematizar as potencialidades analíticas do coabitar mais-que-humano no nexo dos lugares. Para tanto, parte-se de um contato dialógico entre os estudos da Geografia Cultural e Humanista com a filosofia ecofenomenológica. Nessa intersecção, vislumbra-se os modos como os lugares são coabitados por confluências de senciências terrestres. Os mundos mais-que-humanos que costuram a realidade geográfica revelam que a experiência de ser-na-e-da-Terra é pautada em dinâmicas de coabitação que enovelam intersubjetividades e intercorporeidades. Conclui-se que coabitar os lugares envolve a emergência de convivialidades entre ciclos e ritmos telúricos de reversibilidades.

Palavras-chave:
Terra; Habitar; Mundos mais-que-humanos; Lar

Resumé

L'espace géographique provient des potentialités existentielles de multiples relations terrestres et des formes par lesquelles elles se corrélèrent avec l'habitation des entités humaines et non-humaines. De cette façon, cet essai vise à problématiser les potentialités analytiques de la cohabitation plus-que-humaine dans les lieux et ses sens. Pour cela, on part d'un contact dialogique entre les études de la géographie culturelle et humaniste avec la philosophie éco-phénoménologique. Dans cette intersection, on entrevoit les façons dont les lieux sont cohabités par des confluences de sentiences telluriques. Les mondes plus-que-humaines qui cousent la réalité géographique révèlent que l'expérience d'être-au-et-dans-la-Terre est basée sur des dynamiques de cohabitation qui enlacent les intersubjectivités et les intercorporéités. On conclut que cohabiter les lieux implique l'émergence de convivialités entre les cycles et les rythmes telluriques de réversibilités.

Mots-clés:
Terre; Habiter; Mondes plus-que-humaines; Chez-soi

Abstract

Geographical space arises from the existential affordances of multiple terrestrial relations and the forms through which they are correlated to the dwelling of human and non-human entities. Thus, the present study aims to problematize the analytical potentialities of more-than-human co-dwelling in places. To achieve this, it follows a dialogical contact between cultural and humanistic geographies and ecophenomenological philosophy. This intersection discloses the ways in which places are co-dwelled by flows of multiple forms of terrestrial sentience. The more-than-human worlds that weave together geographical reality reveal that the experience of being-in-and-of-the-Earth is based upon co-dwelling dynamics that intertwine intersubjectivities and intercorporealities. It is concluded that co-dwelling in places involves the emergence of conviviality amongst telluric cycles and rhythms of reversibility.

Keywords:
Earth; Dwelling; More-than-human worlds; Home

Preparando as costuras

O habitar é uma condição e situação basilar da experiência terrestre. Ele é o baluarte para a conformação de espacialidades dotadas de significação. Nesse sentido, o espaço geográfico, como pondera Dardel (2011)DARDEL, E. O Homem e a Terra. São Paulo: Perspectiva, 2011., pode ser compreendido como um todo vivente que efervesce das potencialidades existenciais das relações com a Terra em toda sua multiplicidade. Dado a pluralidade de entidades que coabitam esse planeta, as geografias construídas nos lugares se situam em teias de significados dinâmicos.

Ao habitar um lugar, as relações que nele são arquitetadas enovelam corpos, subjetividades e experiências que se tornam indissociável daquele contexto em que estão inseridas. Desse modo, para além das características sociais e culturais, há também um inúmero conjunto de significações que são constituídas pela dinamogenia da Terra vivente que constitui a base desse processo. Os cantos dos pássaros, o som da chuva, o cheiro do orvalho durante a manhã, por exemplo, são elementos que fazem parte da lugaridade e que precisam ter suas agências consideradas nas interpretações da realidade geográfica.

De acordo com proposição de Abram (1996)ABRAM, D. The spell of the sensuous: perception and language in a more-than-human world. New York: Vintage Books, 1996., uma das trilhas para analisar esses arranjos relacionais é superar a dualidade natureza-cultura, de forma a as reunir rumo à concepção de um mundo mais-que-humano. A ideia desse conceito que embasa a ecofenomenologia é salientar como o mundo envolve e excede as experiências humanas ao enovelar os horizontes intersubjetivos e intercorporais das outras entidades que coabitam a Terra, como os animais não-humanos, as plantas, a atmosfera, as rochas e todas as outras presenças intrínsecas ao dinamismo telúrico. Reconhecer as intencionalidades e senciências dessas entidades heterogêneas articuladas pela gravitação terrestre colabora para entender que cada lugar é uma tessitura multi-espécie.

O mundo humano é apenas um dentre os múltiplos outros mundos que confluem pelas geografias cerzidas entre práticas de trocas, tensões e convivialidades mais-que-humanas (Abram; Milstein; Castro-Sotomayor, 2020ABRAM, D.; MILSTEIN, T.; CASTRO-SOTOMAYOR, J. Interbreathing ecocultural identity in the Humilocene. In: MILSTEIN, T.; CASTRO-SOTOMAYOR, J. (org.). Routledge handbook of ecocultural identity. Abingdon: Routledge, 2020. p. 5-25. DOI: http://doi.org/10.4324/9781351068840-1.
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). Destarte, creio ser meritoso bordar maneiras de pensar que superem o antropocentrismo hegemônico e explicitem costuras plurais de modos de ser-no-mundo em articulações de intencionalidades humanas e não-humanas.

Essa empreitada tem sido costurada por geógrafos culturais, especialmente os inseridos na conjuntura anglófona, que buscam elaborar geografias mais-que-humanas (more-than-human geographies) para estudar processos de associações de entidades que superam os limites cartesianos entre humano-natureza e sujeito-objeto (Lorimer, 2010LORIMER, H. Forces of nature, forms of life: calibrating ethology and phenomenology. In: ANDERSON, B.; HARRISON, P. (org.). Taking-place: non-representational theories and geography. Ashgate: Surrey, 2010. p. 55-78.). Como resume Greenhough (2014)GREENHOUGH, B. More-than-human geographies. In: LEE, R. et al. (org.). The sage handbook of human geography. Sage: London, 2014. p. 94-119. http://doi.org/10.4135/9781446247617.n6.
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, tratam-se de abordagens não antropocêntricas que analisam como os afetos, as práticas e as agências de animais não-humanos, plantas, fungos, objetos e outras entidades estão imbricadas à relacionalidade do espaço geográfico.

Em confluência à posição desses geógrafos, objetivo realizar uma reflexão geográfico-filosófica acerca das potencialidades analíticas do coabitar mais-que-humano para problematizar sobre as dinâmicas coabitacionais do(s) lugar(es). Para tanto, parto dos pressupostos da geografia cultural acerca das espacialidades habitacionais em dialogia com as filosofias ecofenomenológicas de Abram (1996ABRAM, D. The spell of the sensuous: perception and language in a more-than-human world. New York: Vintage Books, 1996., 2007ABRAM, D. Earth in eclipse. In: CATALDI, S. L.; HAMRICK, W. S. (org.). Merleau-Ponty and environmental philosophy: dwelling on the landscapes of though. New York: State University of New York Press, 2007. p. 149-176. DOI: http://doi.org/10.1515/9780791480243-010.
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, 2010ABRAM, D. Becoming Animal: an earthly cosmology. New York: Vintage Books, 2010.) e Ingold (2000INGOLD, T. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. Routledge: London, 2000., 2014INGOLD, T. Being alive to a world without objects. In: HARVEY, G. (org.). The handbook of contemporary animism. London: Routledge, 2014. p. 213-225.), assim como de outros teóricos e comentadores. Esta interface recíproca me possibilita expandir as conceituações geográficas do lugar para horizontes experienciais terrestres que transcendem o especismo humano em articulação às geografias mais-que-humanas.

Na condição de um ensaio de proposição epistemológica, a trajetória da reflexão foi bordada em três momentos. No primeiro segmento, realizo uma revisão do sentido fenomenológico de lugar em articulação ao habitar e ao lar. Em seguida, explicito as dimensões coabitacionais em reverberação aos mundos mais-que-humanos explicitados pela ecofenomenologia e as geografias mais-que-humanas. Na última, discuto as questões teóricas emergentes das geografias do coabitar para decifrar a experiência contemporânea de ser-na-e-da-Terra.

Tramas para situar os lugares

Em termos geográficos, o lugar é resultante da constituição de espacialidades existencialmente significantes. Conforme delineia Tuan (2013)TUAN, Y. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Londrina: EdUel, 2013., aquilo que começa como uma espécie de espaço indiferenciado é tornado um lugar conforme adquire definição e significado por meio das experiências. Construir um lugar é dotar de sentido um dado espaço, de forma a nele consubstanciar um conjunto de relações, vivências, imaginações, práticas, percepções e interações que fazem com que ele seja mais que um local genérico ou um substrato.

Em confluência a essa forma de compor as significações espaço-sensoriais, Dardel (2011, pDARDEL, E. O Homem e a Terra. São Paulo: Perspectiva, 2011.. 41) posiciona que “nos é necessária uma base para assentar o Ser e realizar nossas possibilidades, um aqui de onde se descobre o mundo, um para onde nós iremos”. Com base na proposição fenomenológica, o lugar responde a essa necessidade basilar da composição conjunta de direções e sentidos para a existência. Nesse sentido, lugares são emergências do aqui-e-agora significativo em que a espacialidade é adensada pela experiência relacional de descoberta e interação com o(s) mundo(s).

O conceito de lugar explicita o princípio bachelardiano de que “o espaço habitado transcende o espaço geométrico” (Bachelard, 2008, p. 62). Como o filósofo salienta, a condição de ser-no-mundo implica em esforços intencionais para significar o onde habitado. Em decorrência desse processo, a relacionalidade do habitar tem por cerne a associação de múltiplas experiências que confluem rumo a construção de espacialidades permeadas por sentidos advindos da geograficidade dos fenômenos.

É em razão desse processo que fenomenologicamente os “lugares funcionam como campos espaciais que reúnem, ativam, sustentam, identificam e interconectam coisas, seres humanos, experiências, significações e eventos” (Seamon, 2018a, pSEAMON, D. Life takes place: phenomenology, lifeworlds and place making. New York: Routledge, 2018a. DOI: http://doi.org/10.4324/9781351212519.
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.2, trad.). Como loci significativos de arranjos existenciais, os lugares são emersões da realidade geográfica que reúnem modos de vir-a-ser que incorrem de partilhas corpo-sensoriais. Cada lugar é uma espacialidade relacional que converge as dinamogenias habitacionais das virtualidades e condições de ser-no-mundo.

Em razão desse caráter fenomênico, os lugares são indissociáveis dos seus habitantes. Cada lugar é conformado por tecidos inexoráveis de encontros que borram as fronteiras entre o espaço habitado (re)significado e os seres que os habitam. As dinâmicas lugarizadas são experiencialmente multivalentes, como reafirma Seamon (2018b)SEAMON, D. Merleau-Ponty, lived body, and place: toward a phenomenology of human situatedness. In: HÜNEFELDT, T.; SCHILITTE, A. (org.). Situatedness and place: multidisciplinary perspectives on the spatio-temporal contingency of human life. Cham: Springer, 2018b, p. 41-66. DOI: http://doi.org/10.1007/978-3-319-92937-8_4.
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, porquanto expressam o amplo espectro das emoções e significações de todos que estão imersos em seus arranjos relacionais. Seja topofílico, topofóbico ou os universos de intermediários entre esses dois, os sentidos dos lugares são permeados por teias afetivas multivalentes.

É isso que um lar, especialmente na forma de uma casa, demonstra de modo primacial. A residência construída concentra e foca a psiquê lugarizada daqueles que nela vivem (Tuan, 1982TUAN, Y. Segmented Worlds and Self: Group life and individual consciousness. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1982.). Na condição de exemplo arquetípico do lugar, os lares situam as maneiras pelas quais o espaço habitado ganha dimensões que superam a extensão, a qualidade e a quantidade entremeio aos modos pelos quais as projeções existenciais os infundem de significações intersubjetivas.

Em transcendência a uma simples construção, Schmidt (2020, pSCHMIDT, S. W. Body and place as the noetic-noematic structure of geographical experience. Research in Phenomenology, Abingdon, v. 50, n. 2, p. 261-281, 2020. DOI: http://doi.org/10.1163/15691640-12341450.
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. 273, trad., grifos no original) expressa que fenomenologicamente o “lar é o sentimento de fazer parte de um todo topográfico”. A figura experiencial do lar propicia uma significação primeira por meio da qual o lugar ganha concretude. Essa concepção ressalta o caráter do aqui de descoberta do mundo indicado por Dardel (2011)DARDEL, E. O Homem e a Terra. São Paulo: Perspectiva, 2011., de forma a ser o ponto primeiro para o contato com um . A topologia desse espaço doméstico concebido como lugar desdobra da experiência geográfica de habitar e ser habitado.

Como arquétipo do lugar, o lar situa afetos referentes ao (de)morar na Terra. Casas são construções que situam o estabelecimento em uma dada situação geográfica, criando nexos corpo-sensoriais que geram vínculos referentes à potencial estabilidade dela advinda face às múltiplas ameaças que seus muros visam apartar (Tuan, 2012TUAN, Y. Humanist geography: an individual’s search for meaning. Staunton: George F. Thompson Publishing, 2012.).

Nesse sentido, o lar transcende a casa que é habitada, pois não se resume à construção material do espaço doméstico. Conforme Relph (1976, pRELPH, E. Place and placelessness. London: Pion Limited, 1976.. 39, trad.) elucida, “ele não é algo que pode estar em qualquer local, que pode ser trocado, mas um centro de significância insubstituível”. Trata-se de um fenômeno corpo-sensorial que enovela o contato basilar com a realidade geográfica de ser-do-mundo. O significado originário do lar é a potestade de entrelaçar o ponto inicial da relacionalidade do/no espaço habitado.

O lar é resultado das associações mais próximas que possuímos com uma espacialidade, a expressão da geografia íntima que construímos no dia a dia ao compor rotinas corpo-espaciais (Seamon, 1979SEAMON, D. A Geography of the lifeworld: movement, rest and encounter. London: Croom Helm, 1979.). David (2015, pDAVID, P. Habiter la terre : L’écologie peut-elle échapper au règne de la technique? Éditions Manucius: Paris, 2015.. 82, trad.) resume essa condição ao descrever que “habitar uma casa é estar nela como se você não estivesse lá e ao não estar lá é como se você estivesse nela”. Esse princípio relacional expressa que há uma conexão intrínseca entre aquele que habita e o lugar habitado.

O elo com o lar desdobra do que Seamon (1979, pSEAMON, D. A Geography of the lifeworld: movement, rest and encounter. London: Croom Helm, 1979.. 78, trad., grifos no original) denomina de “at-homeness 1 1 O termo em inglês remete à sensação de estar em casa. Uma tradução aproximada em português seria em-laridade ou estar-no-lar. – a situação dada como certa de ser confortável e familiar com o mundo em que se vive em seu cotidiano”. Na reciprocidade habitado-habitante, a experiência de estar no lar desvela a porosidade pela qual um atravessa o outro em uma associação de afetos que se dinamizam no devir habitacional. Como lugar primacial e arquetípico, o lar é sentido antes de ser cognitivamente pensado, planejado ou construído.

Como argumenta Marratto (2012)MARRATTO, S. L. The intercorporeal self: Merleau-Ponty on subjectivity. Albany: State University of New York Press, 2012., ser-no-lar é uma experiência em devir. Concerne um contato contínuo que nunca é completamente finalizado, pois está em processo conjuntamente aos distintos afetos em fluxo que se transmutam em função das relações estabelecidas entre aqueles que o habitam. Cada lar é um lugar fluído e perpetuamente incompleto que se reconstitui sucessivamente por meio das experiências de todos que nele habitam.

Lares são loci demarcados por vínculos em que rotinas e comportamentos socioculturais se entrelaçam ao devir daquele lugar (Tuan, 1998TUAN, Y. Escapism. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1998. http://doi.org/10.56021/9780801859267.
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). A associação fornece um sentido primacial emergente da experiência hodierna que borra as fronteiras entre seus diferentes habitantes. Esse processo entrelaça convivialidades intersubjetivas decorrentes das múltiplas formas como cada lar é vivenciado entre modos de ser-no-mundo permeados por experiências geográficas – o que pode permitir aflorar o apreço e a estabilidade dos lares.

Contudo, na condição de lugar, a expressividade habitacional do lar também implica que ele pode ser (re)definido e (re)significado pela agressividade, a perseguição, a angústia e o medo. Para aqueles que vivem em situações de violência doméstica, por exemplo, os lares podem vir a ser desdobramentos de experiências instáveis. O flagelamento, a brutalidade e o terror que podem ser definidores de lugares não escapam o bastião das casas, como demonstram as situações vividas por muitas mulheres, pessoas LGBTQIA+ ou animais domésticos maltratados que são vítimas de tensões nessas espacialidades.

Nos lugares-lares os vínculos são constituídos de forma visceral e próxima. Na concepção de Marandola Junior (2021MARANDOLA JUNIOR, E. Fenomenologia do ser-situado: crônicas de um verão tropical urbano. São Paulo: Editora da UNESP, 2021., p. 53), “é em casa que nos sentimos mais protegidos e por isso também é onde nos permitimos estar mais vulneráveis”. É no lar que as pessoas estão dispostas às múltiplas condições que as afligem intensamente, muitas vezes de forma mais violenta em função das dificuldades de conseguir escapar. Isso implica que as desestabilizações causadas pelos encontros violentos dos/nos lares repercutem em açoitamentos amplificados.

Como experiência existencialmente significante que se situa nesse complexo espectro topofobia-topofilia, a at-homeness pode ser tanto um desdobrar de ciclos virtuosos quanto de espirais viciosas da relacionalidade dos lugares. Em suma, na condição de lugar, um lar não pode ser reduzido a um local extensivamente definido ou a um ponto no mapa tanto quanto não deve ser concebido como algo positivo a ser celebrado.

Na concepção fenomenológica, os lares são conexões corporificadas construídas na conexão com o mundo (Trigg, 2018TRIGG, D. Situated anxiety: a phenomenology of agoraphobia. In: HÜNEFELDT, T.; SCHILITTE, A. (org.). Situatedness and place: multidisciplinary perspectives on the Spatio-temporal Contingency of Human Life. Cham: Springer, 2018. p. 187-201. DOI: http://doi.org/10.1007/978-3-319-92937-8_11.
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). O princípio topológico do lugar-lar desvela tramas relacionais de interações corporificadas por meio das quais a significação espaço-sensorial arquiteta casas e construções que representam um ideal de estabilidade. Contudo, essa representação idealizada é transcendida pelas práticas transformativas que complexificam a lugaridade.

Em acordo ao proposto por Lang (1985)LANG, R. The dwelling door: towards a phenomenology of transition. In: SEAMON, D.; MUGERAUER, R. (org.). Dwelling, place and environment: towards a phenomenology of person and world. Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, 1985. p. 201-214. DOI: http://doi.org/10.1007/978-94-010-9251-7_12.
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, habitar co-constituí a situação primal de ser-no-mundo por meio de corpos vividos. Vir-a-habitar é um desdobrar da intencionalidade corporificada que se constitui em reversibilidade à realidade geográfica. Cada lugar, seja ele doméstico ou não, topofílico e/ou topofóbico, está disposto aos (des)encontros que neles acontecem porquanto morar na Terra implica em estar reciprocamente vulnerável a ela.

Ao habitar um lugar, não só me torno uma parte dele, mas ele também se torna parte de quem eu sou. Cada entidade carrega consigo o(s) seu(s) lar(es) por meio do seu corpo vivido que possui as cicatrizes, as marcas e as lembranças das experiências habitacionais. Os diferentes lugares semeados entre as fissuras da realidade geográfica por onde habitamos são permeados por complexidades afetivas que envolvem ambiguidades, misturas e entrelaçamentos. É por essa razão que raramente as ideias de topofilia e topofobia se encaixam perfeitamente aos lugares em que constituímos nossas existências, o que também se aplica ao lar.

Lares salientam que existe uma certa ambivalência em experienciar os lugares porquanto eles conformam afetos contraditórios que não podem ser separados do onde habitado. Pode-se evidenciar uma reversibilidade habitante-habitado que conflui como desdobramento do ser-no-mundo como condição permeada por vínculos complexos que ultrapassam a simplificação na forma da dualidade entre positivo e negativo ou “filia” e “fobia”.

Como os fenomenólogos salientam, fazer-lugar é um fenômeno que envolve ambiguidades experienciais. São experiências intensivas que juntam modos de vir-a-ser entre geografias de afetos intersubjetivos que vão desde o sofrimento até as paixões, usualmente enovelando emoções contraditórias e dotadas de variadas nuances. Logo, o sentido do habitar é uma costura de fluxos experienciais e corporais dos lugares, o que implica que eles são tão complexos quanto são as significações que por eles perpassam.

Tessituras do coabitar mais-que-humano

Conforme exposto na seção precedente, os sentidos de lar e de habitar permeiam o conceito geográfico-fenomenológico de lugar. Essa noção pode ser aberta a uma pluralidade de entidades que envolvem e superam os seres humanos. Ao abranger múltiplas intencionalidades, vivências, experiências, há um universo de possiblidades que permite vislumbrar uma ampliação do campo analítico da compreensão geográfica sobre as significações habitacionais que compõem a realidade geográfica.

Segundo Lussault (2005, pLUSSAULT, M. Vers une éthique de l’espace habité. In: PINEAU, G. et al. (org.). Habiter la terre: ecoformation terrestre pour une conscience planétaire. Paris : L’Harmattan, 2005. p. 11-20.. 19, trad.) “o habitar coloca o espaço, em todas suas dimensões biofísicas e sociais, e seus atores em um igual nível ontológico”. Em acordo ao que argumenta o geógrafo, isso torna possível situar outras formas de vir-a-ser em um plano de legitimidade epistemológica partilhada na qual as formas de consciência não-humanas são reconhecidas como detentoras de intencionalidades autônomas. Tal qual os seres humanos, as outras emergências terrestres também desdobram tramas de fazer-lugar por meio das suas dinâmicas habitacionais.

Os esforços nesse sentido podem ser vislumbrados no escopo dos estudos das geografias mais-que-humanas destacadas por Greenhough (2014)GREENHOUGH, B. More-than-human geographies. In: LEE, R. et al. (org.). The sage handbook of human geography. Sage: London, 2014. p. 94-119. http://doi.org/10.4135/9781446247617.n6.
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. Esse campo de crescente importância entre os geógrafos culturais anglófonos visa salientar a coprodução de lugares por meio dos afetos de entidades humanas e não-humanas que se associam nas experiências geográficas de variados contextos.

Há um número significativo de exemplos advindos das pesquisas em geografias mais-que-humanas que podem ser arrolados. É o caso das investigações de Alam, McGregor e Houston (2020)ALAM, A.; MCGREGOR, A.; HOUSTON, D. Neither sensibly homed nor homeless: re-imagining migrant homes through more-than-human relations. Social & Cultural Geography, Abingdon, v. 21, n. 8, p. 1-24, 2020. DOI: http://doi.org/10.1080/14649365.2018.1541245.
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que discutem a relação entre corpos humanos e não-humanos na construção de sentidos de lugar para refugiados climáticos em Bangladesh. Similarmente, Barua e Sinha (2017)BARUA, M.; SINHA, A. Animating the urban: an ethological and geographical conversation. Social & Cultural Geography, Abingdon, v. 20, n. 8, p. 1-21, 2017. fazem um diálogo etológico e geográfico para abordar as micropolíticas e práticas culturais sobre os animais urbanos em que o fio condutor da análise são as interações tensas e controversas de macacos-rhesus no cotidiano dos lugares nas cidades indianas.

Esta também é a situação da análise das múltiplas representações sócio-espaciais da ema-australiana na tensão entre a identidade territorial e os saberes dos povos originários realizada por Raven, Robinson e Hunter (2021)RAVEN, M.; ROBINSON, D.; HUNTER, J. The emu: more-than-human and more-than-animal geographies. Antipode: A Radical Journal of Geography, New Jersey, v. 53, n. 5, p. 1526-1545, 2021.. Outro caso da Oceania pode ser situado pela pesquisa-intervenção de Berger (2023)BERGER, B. N. The River Flowing through My Kitchen – a practice led inquiry into the aesthetic materiality binding body and world. The Australian Geographer, Australia, v. 54, n. 1, p. 89-105, 2023. DOI: http://doi.org/10.1080/00049182.2022.2140864.
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sobre como os rios articulam afetos nos lares na Nova Zelândia, em que a geógrafa construiu uma instalação de arte utilizando o encanamento doméstico para demonstrar a dinâmica mais-que-humana muitas vezes invisibilizada nos lares. No Reino Unido, Pitt (2017)PITT, H. An apprenticeship in plant thinking. In: BASTIAN, M. et al. (org.). Participatory research in more-than-human worlds. London: Routledge, 2017. p. 92-106. contribui ao avaliar agência das plantas como seres ativas na relacionalidade dos lugares, especialmente no caso de jardins e dos esforços de arborização urbana, assim como das pessoas envolvidas nesses processos.

Os exemplos supracitados evidenciam que, os geógrafos culturais têm promovido a progressiva mudança da noção do “lugar apenas como o resultado de significados humanos direcionados ao espaço na criação de ‘lugares’ rumo a um foco nas afetividades da experiência de lugar” (Robertson, 2018, pROBERTSON, S. A. Rethinking relational ideas of place in more-than-human cities. Geography Compass, Hoboken, v. 12, n. 4, p. 1-12, 2018.. 7, trad.). Ao bordar tramas de senciência que entrelaçam existências que superam os seres humanos, faz-se possível reconhecer a polifonia de geografias decorrentes que demonstram como os mundos mais-que-humanos são essenciais para a compreensão das experiências geográficas do habitar.

Ingold (2014, pINGOLD, T. Being alive to a world without objects. In: HARVEY, G. (org.). The handbook of contemporary animism. London: Routledge, 2014. p. 213-225.. 216, trad.) coaduna a essa questão ao destacar que uma moradia nunca está finalizada porque ela “convoca pelo incessante esforço de apoio face ao ir e vir de seus habitantes humanos e não-humanos”. Como propõem aqueles que se enveredam nesse campo de estudos, é central compreender que mesmo a forma humana de construir lares e lugares não está alheia e cindida das múltiplas agências outras-que-humanas que nela intervém. A realidade geográfica está permeada pelas reciprocidades e tensões entre essas variadas entidades terrestres que co-constituem as lugaridades.

Os princípios das análises de entidades mais-que-humanas suscitam que a condição de habitar o lugar é um contínuo enredar em tessituras afetos que transcendem a dualidade cultura-natureza. De fato, os processos habitacionais de fazer-lugar envolvem tempos e espaços em misturas dinâmicas. As afetividades das experiências de lugar reverberam ambiguidades experienciais onde se embaraçam múltiplas entidades humanas e não-humanas. Essa problemática converge ao que Ingold (2000, pINGOLD, T. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. Routledge: London, 2000.. 348, trad.) aponta ao descrever que:

Enquanto o fazer (como construir) chega a um fim quando a obra é concluída em sua forma final, o costurar (como habitar) continua porquanto a vida segue – pontuada, mas não encerrada, pela aparência dos pedaços que sucessivamente faz nascer. Habitar o mundo, em suma, é equivalente ao contínuo entrelaçar temporal de nossas vidas uns com os outros e com os múltiplos constituintes de nosso ambiente.

Tomando por base a reflexão ingoldiana, pode-se considerar que fazer-lugar é costurar relações em emergências de habitações costuradas que embaraçam existências nos e dos lugares. Os horizontes habitacionais enovelam fluxos de distintos seres que compõem modos de ser-no-mundo em articulações tecidas pela/na sucessão de interações afetivas que se articulam sucessivamente. Nessa condição de porosidade e abertura, o fazer-lugar é uma sinfonia de vozes, práticas, significações e emergências do/no mundo que afloram como processos contínuos de entrelaçamentos geográficos.

A abertura habitacional contribui para a constituição dos lugares em associações recíprocas com seus habitantes, os quais não se restringem aos seres humanos. Outros desdobramentos de ser-do-mundo, como plantas, fungos, pássaros ou rochas, podem ser compreendidos na condição de protagonistas do fazer-lugar, multiplicando os sentidos relacionais que fazem nascer lugaridades. Isso implica que essas entidades também constituem lares que permeiam a Terra, costurando significações e experiências definidoras de lugares.

Distintamente a uma maneira de cerzir espaços habitados em semeaduras individuais, as lugaridades são esforços partilhados entre ecologias de práticas em que as intencionalidades se somam na polifonia de múltiplas espécies e reinos viventes. Em razão disso, faço eco à provocação de Despret (2019, pDESPRET, V. Habiter en oiseau. Arles: Actes Sud, 2019.. 41, trad.) de que “eu deveria dizer coabitar, pois não há maneira de habitar que não seja antes de tudo um ‘coabitar’.”. Essa virada compõe um caminho para pluralizar as entidades abarcadas e demonstrar como não se habita em isolamento, pois trata-se de uma condição relacional que enovela múltiplos entes.

Para além do habitar, o coabitar expressa as multiplicidades de arranjos heterogêneos decorrentes das infinitas variações de seres-da-Terra. Ao pluralizar e salientar as convivialidades entre entidades enoveladas em teias intercorporais e intersubjetivas, a coabitação implica que os lugares são povoados por presenças inexoravelmente enredadas. Visíveis ou invisíveis, as polinizações associativas de mundos mais-que-humanos conclamam que fazer-lugar é uma expressão existencial inerentemente coabitacional.

Há entrançamentos que convergem os organismos terrestres: são conexões dos solos, dos oceanos, das geleiras, da troposfera e dos seres vivos que se conectam de modos viscerais, como exemplifica a respiração ao fazer a atmosfera percorrer todas as entidades citadas (Abram; Milstein; Castro-Sotomayor, 2020ABRAM, D.; MILSTEIN, T.; CASTRO-SOTOMAYOR, J. Interbreathing ecocultural identity in the Humilocene. In: MILSTEIN, T.; CASTRO-SOTOMAYOR, J. (org.). Routledge handbook of ecocultural identity. Abingdon: Routledge, 2020. p. 5-25. DOI: http://doi.org/10.4324/9781351068840-1.
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). Trata-se de uma intercorporeidade de amálgamas imperceptíveis em que cada ser é (co)constituído em enlace com outras infinidades de seres e intencionalidades mais-que-humanas.

Cada qual em sua potencialidade corporal, as diferentes entidades que coabitam a realidade geográfica irradiam significações advindas das possibilidades de ser-no-lar. Sejam fungos, plantas ou animais, os viventes conclamam dimensões polifônicas da experiência geográfica que semeiam lares que se sobrepõem uns aos outros. Seus lugares influem teias de significados que se retroalimentam em articulações de intencionalidades cruzadas.

Essa estruturação plurívoca evoca que o elo estabelecido com o lar raramente pode ser compreendido como uma “relação entre um sujeito puro e um objeto puro – entre uma inteligência ou mente ativa e um pedaço de matéria puramente passivo” (Abram, 2010, pABRAM, D. Becoming Animal: an earthly cosmology. New York: Vintage Books, 2010.. 32, trad., grifos no original). Na perspectiva da ecofenomenologia, mais que apenas uma construção erigida sob o solo terrestre, os lares são loci de encontros multi-espécie em que horizontes de mundos heterogêneos se encontram. Há uma intersubjetividade latente ao lugar que reflete a reunião de formas ambíguas de devir-juntos na realidade geográfica (com)partilhada.

Se, como escreve Ingold (2014, pINGOLD, T. Being alive to a world without objects. In: HARVEY, G. (org.). The handbook of contemporary animism. London: Routledge, 2014. p. 213-225.. 216, trad.), “habitar [uma casa] é vir a se juntar a sua reunião”, esse tornar-se-com em convivialidade é um emergir de coabitação mais-que-humana. Na condição de desdobrar de ser-da-Terra e de ser-na-Terra, ser-no-lar perfaz-se como epifenômeno das geografias traçadas nos alinhavares metamórficos entre as variantes corporais humanas e não-humanas, viventes e não-viventes, dinâmicas e inertes. São os arranjos pluritópicos de formas de parcerias, de sentir-com outros que dão coro ao anima mundi telúrico por onde os lugares são inscritos em coabitações.

Imergir em e imaginar lares, impelem Alam, McGregor e Houston (2020, pALAM, A.; MCGREGOR, A.; HOUSTON, D. Neither sensibly homed nor homeless: re-imagining migrant homes through more-than-human relations. Social & Cultural Geography, Abingdon, v. 21, n. 8, p. 1-24, 2020. DOI: http://doi.org/10.1080/14649365.2018.1541245.
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. 17, trad.), “envolve interações com um escopo de corpos folhados, peludos, vivos e não-vivos de não-humanos coabitando ecologias marginais”. Entrelaces de junções entre multiplicidades mais-que-humanas permeiam as emergências do co-morar e do (de)morar que irrompe entre as fissuras de dialogias que ultrapassam as barreiras especistas. Como o estudo de Pitt (2017)PITT, H. An apprenticeship in plant thinking. In: BASTIAN, M. et al. (org.). Participatory research in more-than-human worlds. London: Routledge, 2017. p. 92-106. exemplifica, não é possível pensar nas casas dos seres humanos sem considerar a coabitação com hortas, jardins e variadas outras reciprocidades plantas-humanidade. Similarmente, como provoca Van Patter (2023)VAN PATTER, L. E. Toward a more-than-human everyday urbanism: rhythms and sensoria in the multispecies city. Annals of the American Association of Geographers, Washington, v. 113, n. 4, p. 913-932, 2023. DOI: http://doi.org/10.1080/24694452.2022.2134838.
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, não podemos considerar o urbanismo ignorando os ritmos e corporeidades das várias outras espécies de animais não-humanos que coabitam as cidades.

Superar o especismo da concepção de lugar envolve reposicionar o olhar rumo a essas formas de coabitação que envolvem e superam os lares humanos. Dado que o habitar é um sentido experiencial em um nível fundante da situacionalidade fenomênica, como afirma Marratto (2012), oMARRATTO, S. L. The intercorporeal self: Merleau-Ponty on subjectivity. Albany: State University of New York Press, 2012. coabitar é sua extensão radicalizada à indistinção entre singular e plural experienciada no âmago dos lugares. A decorrência geográfica da experiência dos entrecruzamentos intersubjetivos advindos do entrelace de mundos mais-que-humanos aflora em tramas de variações corporais envoltas em teias de afetos (com)partilhados no âmago dos lugares.

Isso ocorre porquanto a intercorporeidade é nexo basilar do morar, seja na forma imaginativa ou material dos lugares-lares. As ecologias afetivas envoltas nessa dinâmica sedimentam significações por meio dos encontros e fluxos entre corpos humanos e não-humanos (Alam; McGregor; Houston, 2020ALAM, A.; MCGREGOR, A.; HOUSTON, D. Neither sensibly homed nor homeless: re-imagining migrant homes through more-than-human relations. Social & Cultural Geography, Abingdon, v. 21, n. 8, p. 1-24, 2020. DOI: http://doi.org/10.1080/14649365.2018.1541245.
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). Os lugares coabitados se misturam em formas intercorporais de coabitações que arranjam sinfonias de ser-no-mundo em que as mais diversas entidades são postas em interações.

Salientar o coabitar é uma forma de colocar em evidência os enovelamentos habitacionais que demonstram os pontos de contato das consciências partilhadas entre os esquemas corporais de variadas entidades. Como desvela Toadvine (2013)TOADVINE, T. Merleau-Ponty’s philosophy of nature. Evanston: Northwestern University Press, 2013., compreendida pela vertente ecofenomenológica, a própria intencionalidade é uma expressão do corpo (humano ou não) e da Natureza em sua coesão existencial mais abrangente e transcendente ao mecanicismo hegemônico das ciências modernas.

É nesse sentido que pondero ser fundante reiterar que, em simetria ao entrelace físico-químico da vida, “também o homem deve ser tomado no Ineinander [um no outro] com a animalidade e a Natureza”, como situa Merleau-Ponty (2000, pMERLEAU-PONTY, M. A natureza: curso do Collège de France. São Paulo: Martins Fontes, 2000.. 335). Isso significa que é basilar ir para além da excepcionalidade humana e considerar suas reciprocidades, semelhanças e convergências aos mundos não-humanos com os quais interage.

Dessa maneira, há uma identidade de diferenciação concomitante a uma diferença de identificação que enovela os coabitantes dos lugares em arranjos heterogêneos. Nesse um no outro coabitacional, a animalidade dos seres humanos – isso é, a condição primal de Natureza intercorporificada e intersubjetiva – situa os mundos vividos em horizontalidades relacionais de experiências outras-que-humanas das entidades que partilham os lugares em elos de reciprocidades afetivas. Face ao cartesianismo antropocêntrico, esse princípio animal situa a realidade dos seres humanos como apenas uma dentre outras infinitas variações possíveis e efetivas de emergências sencientes de ser-da-Terra.

Pautada pelas incitações merleau-pontianas, Dufourcq (2014, pDUFOURCQ, A. Is a world without animals possible? Environmental Philosophy , Denton, v. 11, n. 1, p. 71-91, 2014.. 73, trad.) explica que a “animalidade, ou, melhor ainda, os animais, têm um papel central nas estruturas fundamentais do mundo, de qualquer mundo e de todo o pensamento”. Em outros termos, os ecos da reversibilidade da animalidade são intrínsecos a condição de ser-do-mundo e não há como a potestade de um logos solipsista desencarnar essa relação primal. Como decorrência da indissociabilidade da dimensão mais-que-humana presente nos próprios humanos, as reversibilidades animais se situam nos lugares, os posicionando na condição expressões intercorporais e intersubjetivas da Terra coabitada.

Merleau-Ponty (2000, pMERLEAU-PONTY, M. A natureza: curso do Collège de France. São Paulo: Martins Fontes, 2000.. 308) explica que “o que existe não são animais separados mas uma interanimalidade” que inclui e excede as nossas dinâmicas socioculturais. Conforme elucida a interpretação ecofenomenológica dessa concepção merleau-pontiana, animais não-humanos são integrados e possuem conexões com os lugares em que habitam (James, 2009JAMES, S. P. The presence of nature: a study in phenomenology and environmental philosophy. London: Palgrave Macmillan, 2009. DOI: http://doi.org/10.1057/9780230248526.
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). De fato, eles recorrentemente estão mais familiarizados com o meio do que os seres humanos. Os elos desses animais não-humanos não devem ser reduzidos a uma ação instintiva ou biológica, pois também envolvem intencionalidades e associações afetivas decorrentes de suas senciências, como problematiza Abram (1996)ABRAM, D. The spell of the sensuous: perception and language in a more-than-human world. New York: Vintage Books, 1996.. Mais que um habitat ou ambiente, essa conexão reverbera a emergência de lugares infundidos por definições, significados e afetos decorrentes do plasmar habitacional desses seres corporificados.

Insurgências mais-que-humanas são partícipes dos arranjos de significações permeadas pela reversibilidade primal dos mundos-de-vida heterogêneos dos lugares. Isso pode ser evidenciado pelo modo em que mesmo a imaginação humana tende a ser “primeiro provocada e infundida pelo lugar terrestre em que habitamos ou pelo terreno mais amplo em que circulamos” (Abram, 2010, pABRAM, D. Becoming Animal: an earthly cosmology. New York: Vintage Books, 2010..268, trad., grifo no original). Mais que uma inspiração, as coabitações mais-que-humanas fluem entre os imaginários socioculturais como formas de evocar a interanimalidade a elas inerentes.

Por esse princípio ecofenomenológico, o desdobrar do fazer-lugar, como abertura coabitacional, é uma prática multi-espécie e partilhada pelas infinitas combinações de variações terrestres. As reversibilidades, especialmente aquelas convergentes à interanimalidade, compõem os lares semeados pela/na realidade geográfica. Essas articulações costuram o entrelaçamento de (in)visibilidades em que as convivialidades de coabitações mais-que-humanas afetam os lugares, dependem dos lugares e emergem nos lugares. Vislumbrar as costuras dos mundos mais-que-humanos envolve reconhecer a impossibilidade discernir extensivamente qual seria o onde primacial dos seres-na-e-da-Terra e dos lugares por eles compostos.

Costurar geografias de intencionalidades mais-que-humanas do coabitar possibilita entender que, em acordo à provocação ecofenomenológica de Abram (2010, pABRAM, D. Becoming Animal: an earthly cosmology. New York: Vintage Books, 2010.. 132, trad.), “cada lugar possui seus ritmos de mudanças e metamorfoses, seus estilos específicos de expandir e contrair em resposta às viradas das estações e isso também molda – e é moldado – pela senciência daquela terra”. As irradiações de significados da fenomenalidade indômita dos lugares são ressonâncias decorrentes de sentir-com afetos mais-que-humanos.

Ao costurar formas de devir-juntos, os lugares coabitados expressam teias de interdependências (in)visíveis em que a realidade geográfica é experienciada. No âmago indômito da situação lugarizada, o (de)morar no lugar implica em estar em contato com as temporalidades mais-que-humanas dos ciclos circadianos, dos ritmos das marés, das fases da lua e da translação do planeta, dentre vários outros, os quais dinamizam linguagens intercorporais que influem diretamente nas emergências dos fenômenos de fazer-lugar.

Ao secundarizar esses vínculos como “irracionais”, “crenças” ou “senso comum’, o mecanicismo ocidental individualizou o habitar e transformou a Terra em um todo morto e congelado passível de ser segmentado para ser apropriado. Esse processo criou cisões no tecido sensível das geografias mais-que-humanas que conformam as direções e os destinos de ser-na-e-da-Terra: as intercorporeidades e as intersubjetividades que costuram nossas condições de devir-juntos.

Cingir geografias de coabitações terrestres

No fluxo do coabitar terrestre e da construção de modos de co-morar que enfrentem o antropocentrismo hegemônico imposto pelas civilizações ocidentais, faz-se fundante estar disposto a (re)aprender a coabitar os lugares. É fundamental ouvir o chamado da filosofia ameríndia de Krenak (2022, pKRENAK, A. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.. 101) ao convocar que “nossa sociabilidade tem que ser repensada para além dos seres humanos, tem que incluir abelhas, tatus, baleias, golfinhos. Meus grandes mestres da vida são uma constelação de seres – humanos e não humanos”.

Estar aberto aos entrecruzamentos dos lugares coabitados pelos mundos mais-que-humanos em composições que confluam por suas porosidades perpassa por reconhecer suas intencionalidades e, mais do que isso, seus direitos à existência e a terem suas subjetividades consideradas. Em transcendência a antropomorfizar as variações de devir-juntos como seres-da-e-na-Terra, é basilar horizontalizar as coexistências, as reversibilidades e as intensividades das experiências geográficas em todos os seus escopos indômitos de intersubjetividades, intercorporeidades e interanimalidades.

Garantir a voz e a escuta das relações em fluxo entre humanos e não-humanos, explicita Lorimer (2010)LORIMER, H. Forces of nature, forms of life: calibrating ethology and phenomenology. In: ANDERSON, B.; HARRISON, P. (org.). Taking-place: non-representational theories and geography. Ashgate: Surrey, 2010. p. 55-78., suscita recalibrar as interações na busca por novos níveis de intimidade, aceitação e conectividade com as forças da natureza em que estamos imersos. Geografias de coabitações podem cerzir trilhas plurivalentes de compreensões partilhadas das significações existenciais em que a realidade geográfica dos lugares emerge com todas as suas potências mais-que-humanas.

Coabitar um lugar é entrelaçar geografias em fluxo que se costuram pelas teias de presenças e temporalidades que reúnem as intersubjetividades de múltiplas formas de vir-a-ser. Vegetais, rochas, animais, fungos, bactérias, fenômenos atmosféricos e muitas outras emergências intercorporificadas se fundem como forças que ressignificam e compõem experiências geográficas partilhadas.

Essa situação pode ser exemplificada nos estudos de Silva e Vargas (2023)SILVA, F. S.; VARGAS, M. A. M. Pelos caminhos do cuidado: práticas socioculturais de agricultores guardiões de sementes crioulas em Alagoas. Geografar, Goiânia, v. 18, n. 1, 110-128, 2023. que desvelaram o sentido de lugar e cuidado mais-que-humano dos agricultores guardiões de sementes crioulas no semiárido alagoano. Ela também pode ser evidenciada nas relações multi-espécie entre os vinicultores tradicionais franceses e as “sinfonias das leveduras” interpretadas por Chartier (2021)CHARTIER, D. The Deplantationocene: Listening to yeasts and rejecting the plantation worldview. In: BRIVES, C.; REST, M.; SARIOLA, S. (org.). With microbes. Manchester: Mattering Press, 2021, p. 43-63.. Em ambos exemplos, os autores destacam relações coabitacionais multi-espécie em que fungos, plantas, fenômenos atmosféricos e vegetais são partes integrais das lugaridades mais-que-humanas analisadas.

Como os estudos citados incitam, costurar trilhas rumo a geografias de coabitações envolve reconhecer que os lares não se resumem aos espaços domésticos, pois suas fronteiras e escalas se polinizam em direção ao arco originário da Terra. É por meio das interações com esse espaço telúrico originário que as relações de cuidado, troca e negociações com entidades outras-que-humanas convergem em lugares tomados por nexos coabitacionais.

Solo e habitação primordial, a Terra é o onde primal por onde as grafias da existência são costuradas entremeio à ontogênese da concretude dos mundos que dela emergem. Ser-com no mundo sensorial terrestre é, “uma condição de possibilidade para habitar qualquer região, lugar, seja daquela terra ou mundo” (Casey, 2005, pCASEY, E. Earth-mapping: artists reshaping landscape. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2005.. xxi, trad.). Cada fenômeno incorre dos veios dessa realidade geográfica coabitada em senciências partilhadas, demonstrando que os mundos mais-que-humanos são expressões dessas relações fundamentais com o espaço telúrico.

Dardel (2011, pDARDEL, E. O Homem e a Terra. São Paulo: Perspectiva, 2011.. 43) realça essa dimensão fundacional ao salientar que “é a Terra que, podemos dizer, estabiliza a existência”. As grafias terrestres que compõem o âmago da geograficidade são decorrências do devir-juntos advindos da partilha do solo basilar que funda e enterra os fenômenos. Conforme expressa Cavalcante (2021)CAVALCANTE, T. V. Geografia, insurgência e pesquisa de um ponto de vista humanista cultural. Geograficidade, Florianópolis, v. 11, n. 1, p. 98-105, 2021., as experiências do lugar podem emergir em expressões sensíveis de insurgências geográficas. As existências humanas e não humanas gravitam pela atração ao espaço telúrico indômito que permite que elas emerjam em tramas de ser-com, de trocas, compartilhamentos e tensões intrínsecas à coabitação terrestre.

Segundo Dufourcq (2012, pDUFOURCQ, A. Merleau-Ponty: une ontologie de l’imaginaire. New York: Springer, 2012. DOI: http://doi.org/10.1007/978-94-007-1975-0.
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. 292, trad.), ao entender a Terra como arco ontológico da experiência, vislumbra-se “um jogo de metamorfoses abertas ao infinito que antecipadamente englobam todas as coisas sem as deixar absolutamente previsíveis e transparentes”. A ontogênese telúrica implica na resistência e na deiscência que fazem de todo habitar um coabitar de (in)visibilidades, (in)tangibilidades e (in)dizibilidades de intencionalidades em fluxo nas quais uma certa ambiguidade originária impossibilita a distinção de como cada emergência senciente se distingue uma da outra.

Em sua dimensão primacial, o anima mundi da Terra desdobra a virtualidade fundante do sentido de vir-a-habitar. Como Echeverri e Muños (2014, pECHEVERRI, A. P. N.; MUÑOS, J. A. P. Cuerpo-tierra: epojé, disolución humano-naturaleza y nuevas geografías-sur. Geograficidade, Florianópolis, v. 4, n. 1, p. 20-29, 2014. DOI: http://doi.org/10.22409/geograficidade2014.41.a12885.
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. 22, trad.) elucidam “é o enraizamento da terra, na terra e sobre a terra que permite o habitar poético”. Realizar geografias coabitacionais envolve explicitar os caminhos por onde florescem as potencialidades dos lugares partilhados nos mundos mais-que-humanos.

Ao expandir o ser-no-lar para a Terra como um afloramento particular da condição geográfica de ser-na-e-da-Terra, conflui-se que coabitar e ser coabitado pelo anima mundi terrestre é ser tomado pelas polifonias pluritópicas de seus enredamentos. A gravitação terrestre atrai as entidades em costuras de senciências entrelaçadas na convivialidade. É por meio dessa base experiencial que se torna possível vislumbrar tramas de (com)partilhamento que permitam aflorar dinâmicas recíprocas de ser-com em mundos mais-que-humanos.

No âmago do lugar telúrico, não há exterioridade ou interioridade separadas, mas entrecruzamentos existenciais sinfônicos que emergem no fenômeno partilhado de ser-no-lar terrestre. Galvani (2005, pGALVANI, P. Retrouver la terre intérieure une démarche d’écoformation en dialogue avec les cultures amérindiennes. In: PINEAU, G. et al. (org.). Habiter la terre: ecoformation terrestre pour ne conscience planétaire. Paris : L’Harmattan, 2005. p. 65-78.. 69, trad.) impele que “sonhar a terra como um lar é recuperar seu interior naquilo que era anteriormente percebido como um exterior”, de modo a borrar as fronteiras entre o dentro e o fora. Mais que interior ou exterior, o sentido de coabitação torna explícito o caráter inescapável das condições multi-espécies dos mundos mais-que-humanos.

Isso pode ser evidenciado na epistemologia dos povos Yanomami que consideram que, nas palavras de Kopenawa (2021, pKOPENAWA, D. Hutukara: grito da terra. Caderno de Leituras, Florianópolis, n. 130, p. 1-14, 2021.. 11), “Sonhar a terra... quando sonha, você está pensando bem. Quando a gente está com o pensamento bom, com o pensamento limpo, o sonho vem”. Ser-no-lar terrestre é se permitir sonhar em coabitação de modo a explicitar a partilha como lócus fundacional da lugaridade. Costurar geografias que salientam as dinâmicas coabitacionais dos lugares é uma forma de explicitar como os lares convergem esses sentidos advindos do solo terrestre.

Como lar e lugar fundante da ontogênese do coabitar, a Terra entrança ressonâncias de afetos humanos e não-humanos. As intencionalidades cruzadas pelo solo nativo Terrestre evocam a pluralidade dos compartilhamentos experienciais que “nos provoca a encontrar novas formas de sentir, pensar e falar sobre o parentesco [kinship] entre moradores terrestres de todos os tipos em transcendência às muralhas do antropocentrismo e do especismo” (Murata-Soraci, 2018, pMURATA-SORACI, K. “Song of the Earth”: an eco-phenomenology. In: SMITH, W. S.; SMITH, W. S.; VERDUCCI, D. (org.). Eco-phenomenology: life, human life, post-human life in the harmony of the cosmos. Gewerbstrausse: Springer, 2018. p. 235-243. DOI: http://doi.org/10.1007/978-3-319-77516-6_18.
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. 236, trad.). Arquitetar reciprocidades empáticas com modos de ser-no-lar com nossos vizinhos telúricos expande a situacionalidade dos lugares rumo aos embaralhamentos intersubjetivos das linguagens indiretas e (in)tangíveis do coabitar.

Pode-se exemplificar essa condição ao averiguar o que evidencia Lima-Payayá (2023)LIMA-PAYAYÁ, J. S. Yby: Sentido radical de casa. Kalagatos: Revista de Filosofia, São Carlos, v. 20, n. 2, p. 1-13, 2023. ao explicitar as maneiras em que as geografias dos indígenas Payayá concebem a Caatinga como uma grande casa partilhada. Conforme ela argumenta, eles a concebem como Yby, terra e chão, pautada em uma alteridade radical de parentesco coletivo que acolhe as várias entidades não-humanas, como os rios, as árvores, os peixes, o sol, a lua, as chuvas de verão como elementos fundantes do lugar.

Pensar em geografias do coabitar é dialogar com as provocações de Lima-Payayá (2023)LIMA-PAYAYÁ, J. S. Yby: Sentido radical de casa. Kalagatos: Revista de Filosofia, São Carlos, v. 20, n. 2, p. 1-13, 2023., Krenak (2022)KRENAK, A. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. e Kopenawa (2021)KOPENAWA, D. Hutukara: grito da terra. Caderno de Leituras, Florianópolis, n. 130, p. 1-14, 2021. de forma a salientar as capacidades afetivas das diferentes corporeidades, sejam elas dotadas de galhadas ou garras, asas ou patas, expressam a heterogenia de afloramentos de ser-da-Terra. Como exemplifica Abram (2010)ABRAM, D. Becoming Animal: an earthly cosmology. New York: Vintage Books, 2010., por mais que a existência de uma rocha possa parecer impérvia aos fenômenos troposféricos, sua configuração decorre dos fluxos criativos do vento, da atmosfera e das montanhas que dialogam por linguagens implícitas de ciclos e resistências.

Como propõe Krenak (2022, pKRENAK, A. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.. 103), “para além de onde cada um de nós nasce – um sítio, uma aldeia, uma comunidade, uma cidade –, estamos todos instalados num organismo maior que é a Terra”. Reconhecer a polifonia de ser-na-Terra é estar disposto aos (des)encontros intersubjetivos com entidades não-humanas que nos possibilitam suturar a ferida cartesiana que separa os seres humanos da relação com a Natureza que nos nutre.

As terras que nos incluem como uma de suas articulações possuem seus próprios ritmos, lógicas e contornos que devem ser devidamente respeitados para que seja possível que os lugares aflorem em toda sua potência (Abram, 1996ABRAM, D. The spell of the sensuous: perception and language in a more-than-human world. New York: Vintage Books, 1996.). Nesse sentido, Echeverri e Muñoz (2014, p. 24, trad.) nos impelem a vislumbrar “cada pedra, cada planta, cada animal, cada palavra, cada pensamento, seu corpo feito de terra, pela a terra, sobre a terra e abaixo da terra”. Lugares brotam entre as fissuras da resistência do arco original terrestre, criando grafias plurais da Terra continuamente reconstituídas pelas coabitações mais-que-humanas.

Embora cada entidade encontre apenas uma parte da infinitude da realidade geográfica terrestre, trata-se de um mesmo anima mundi que desfaz o nó górdio da fratura ecológica. É essa Terra vivente com que cada ser “engaja com suas asas cobertas de penas ou dedos, com suas antenas enroladas ou com suas raízes espalhadas” (Abram, 2010, pABRAM, D. Becoming Animal: an earthly cosmology. New York: Vintage Books, 2010.. 126, trad.) que torna possível a vulnerabilidade que une suas corporeidades em dinâmicas coabitacionais de alteridades que transcendem o especismo humano.

Isso perpassa por evidenciar como os ciclos da Terra ressoam por corpos humanos e não-humanos, ecoando coabitações mais-que-humanas que entrecruzam emergências coexistenciais. Em acordo ao que situa Ingold (2000)INGOLD, T. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. Routledge: London, 2000., essas ressonâncias são (inter)corporificadas na medida em que expressam os atravessamentos de formas de vir-a-ser-com em que as dimensões biológica, química e física dos corpos não são imunes à gravitação terrestre e a finitude da matéria, à vulnerabilidade basilar do existir.

Tuan (2012, pTUAN, Y. Humanist geography: an individual’s search for meaning. Staunton: George F. Thompson Publishing, 2012.. 146, trad.) reafirma essa questão ao escrever que “na Terra, estamos expostos às forças brutais da natureza e da sociedade”. Ou seja, não há como reduzir os sentidos das lugaridades coabitacionais a uma “filia” ou “fobia”, mas pode-se considerar suas ambiguidades e entrecruzamentos. Essas associações permeiam tensões, (des)encontros, (com)partilhamentos, violências, cuidados e muitas outras expressões das heterogeneidades dinâmicas de ser-com os arranjos multi-espécies da realidade geográfica.

Embora as ferramentas cognitivas ocidentais fundem uma pretensa distinção humano-natureza, nós continuamos sendo carne desse mesmo mundo circundante e dinâmico, entidades vulneráveis porquanto seres-da-Terra. Nossos lares e vidas são continuamente ameaçados por forças que ultrapassam nossas capacidades corporais e condições de controle sobre as experiências geográficas da coabitação.

As porosidades dos lugares mais-que-humanos decorrem de que coabitamos em teias de entidades que estão postas em múltiplas relações que nos posicionam em vulnerabilidade. Da mesma forma que essa partilha de vulnerabilidade é inerente aos riscos da finitude, do deixar-de-ser, é também ela que permite que sejamos abertos a coabitar e seremos coabitados pelos lugares semeados nas tessituras terrestres.

É nessa camada de solidariedade intercorporificada que temos a habilidade de sentir aquilo que outros, humanos e não-humanos, sentem (Abram, 2007ABRAM, D. Earth in eclipse. In: CATALDI, S. L.; HAMRICK, W. S. (org.). Merleau-Ponty and environmental philosophy: dwelling on the landscapes of though. New York: State University of New York Press, 2007. p. 149-176. DOI: http://doi.org/10.1515/9780791480243-010.
http://doi.org/10.1515/9780791480243-010...
). Lugares confluem fenômenos por onde o coabitar plasma elos associativos entre entidades, fenomenalidades e experiências que partilham linguagens empáticas de dialogias implícitas em intercorporeidade, interanimalidade e intersubjetividades mais-que-humanas. Colocar o coabitar no cerne do lugar é, portanto, um caminho para salientar essa multiplicidade de afetos que enovelam geograficidades que incluem e excedem os seres humanos.

Enlace e arremate

O lugar é uma decorrência do habitar terrestre em toda sua amplitude fenomênica. Compreendidos por meio das porosidades das teias de afetos mais-que-humanos, os lugares são costuras de maneiras de ser-na-e-da-Terra. Transcender uma geografia do habitar rumo a geografias do coabitar implica em dar voz à pluralidade de entidades que influem nas emergências da Terra e nela compõem lugares de forma a suturar a ferida/cisão cartesiana.

As senciências partilhadas dos lugares mais-que-humanos demonstram as pluralidades de caminhos para devir-juntos entre arranjos de polifonias telúricas. Ao articular tessituras de coabitação, do co-morar e da convivialidade de entidades com variações corporais radicalmente distintas, evidenciam-se os ritmos e ciclos de fazer-lugares como efervescências em fluxo das experiências geográficas.

Nesse direcionamento ecofenomenológico, os lugares são janelas corpo-sensoriais por meio das quais a Terra apresenta tramas que cerzem horizontes espaço-temporais permeados por intencionalidades. As aberturas habitacionais afloram campos de semeaduras mistas de expressões heterogêneas de arranjos de ser-do-mundo. Em confluência à virtualidade do lugar, a reciprocidade dos corpos que conclamam os espaços coabitados entrança sentidos que ultrapassam as intencionalidades humanas, de forma a abarcar mundos mais-que-humanos.

Vulnerabilidades e reciprocidades terrestres cerzem tramas de horizontes existenciais compostos por horizontes do anima mundi telúrico em que emerge o espaço habitado. Expandir o ser-no-lar para variações intercorporais heterogêneas constitui bordados de sensibilidades e afetos entre animais humanos e não-humanos, plantas, fungos, bactérias, rochas, atmosferas e todas as outras (in)visíveis presenças que coabitam a Terra.

Face às cisões hegemônicas entre cultura e natureza, expandir o conceito de lugar rumo às experiências dos mundos mais-que-humanos pode possibilitar descentrar o antropocentrismo hegemônico. É urgente reconhecer as múltiplas outras intencionalidades que coabitam a Terra e suas maneiras articuladas de fazer-lugar para que possamos bordar geografias que façam emergir as reciprocidades de ser-no-e-do-mundo em intercorporeidades, intersubjetividades e interanimalidades.

  • 1
    O termo em inglês remete à sensação de estar em casa. Uma tradução aproximada em português seria em-laridade ou estar-no-lar.
  • Como citar este artigo:

    SOUZA JÚNIOR, C. B. Por geografias do coabitar: costurando lugares mais-que-humanos Geousp, v. 28, n. 2, e217863. 2024. https://doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2024.217863pt

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Editado por

Editor do artigo

Rodrigo Ramos Hospodar Felippe Valverde

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Jan 2024
  • Aceito
    11 Maio 2024
Creative Common - by 4.0
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