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Aquém da fronteira, dos direitos e do acolhimento: mobilidade e imobilidade em tempos de pandemia

RESUMO

A pandemia de Covid-19 impactou profundamente as diversas formas de mobilidades aquém e além das fronteiras internacionais. Diante disso, este artigo analisa os reflexos que as medidas de restrição de ingresso no território brasileiro tiveram sobre a mobilidade transfronteiriça durante a pandemia e articula discussão em torno da justificativa epidemiológica utilizada para discriminar e securitizar as migrações e o deslocamento pendular nas fronteiras. Para isso, recorre-se à análise de 42 Portarias publicadas pelo governo brasileiro, entre 2020 e 2022, e aos registros administrativos do Sistema de Tráfego Internacional (STI), da Polícia Federal, a fim de identificar os efeitos das restrições sobre a mobilidade documentada nos postos da fronteira terrestre do Brasil. Esta análise foi combinada com pesquisa de campo em 13 cidades-gêmeas localizadas nos arcos Sul, Central e Norte da fronteira brasileira. Os resultados apontam a utilização da crise sanitária para reforçar e ampliar medidas seletivas e restritivas sobre a migração.

Palavras-chave:
fronteira; migrações internacionais; deslocamento pendular; pandemia

ABSTRACT

The Covid-19 pandemic has had a profound impact on various forms of mobility within and across international borders. This article analyzed the effects that the measures restricting entry into the Brazilian territory had on cross-border mobility during the pandemic and articulates a discussion around the epidemiological justification used to discriminate and securitize migrations and commuting across borders. For this, it analyzes 42 Ordinances published by the Brazilian government, between 2020 and 2022, and the administrative records of the International Traffic System (STI), of the Federal Police, to identify the effects of restrictions on mobility documented at land border checkpoints from the country. This analysis was combined with research in 13 twin cities located in the Southern, Central and Northern arcs of the Brazilian border. The results show the use of the health crisis to reinforce and expand selective and restrictive measures on migration.

Keywords:
border; international migrations; displacement; pandemic

RESUMEN

La pandemia de Covid-19 ha tenido un profundo impacto en las diversas formas de movilidad dentro y fuera de las fronteras internacionales. Frente a eso, este artículo analiza los efectos que las medidas de restricción de ingreso al territorio brasileño tuvieron sobre la movilidad transfronteriza durante la pandemia y articula una discusión en torno a la justificación epidemiológica utilizada para discriminar y securitizar las migraciones y los desplazamientos transfronterizos. Para ello, se utiliza un análisis de 42 Ordenanzas publicadas por el gobierno brasileño, entre 2020 y 2022, y los registros administrativos del Sistema de Tránsito Internacional (STI), de la Policía Federal, con el fin de identificar los efectos de las restricciones a la movilidad documentada en los puestos fronterizos terrestres del país. Este análisis se combinó con investigación de campo en 13 ciudades gemelas ubicadas en los arcos Sur, Centro y Norte de la frontera brasileña. Los resultados apuntan a la utilización de la crisis sanitaria para reforzar y ampliar las medidas selectivas y restrictivas a la migración.

Palabras clave:
Frontera; Migraciones internacionales; Desplazamiento pendular; Pandemia

Introdução

O cenário das migrações internacionais no Brasil nas últimas duas décadas foi marcado pela maior presença de migrantes oriundos do Sul Global, sobretudo daqueles provenientes de países latino-americanos com graves crises políticas e econômicas, a exemplo do Haiti e da Venezuela, e de países africanos e asiáticos com instabilidades e desigualdades que impulsionam deslocamentos cada vez mais longos, como Senegal, Gana e Síria. O Brasil, assim como outros países de desenvolvimento intermediário, se converteu em destino de centenas de milhares de migrantes que reorientaram os seus projetos migratórios para o Sul, frente às restrições cada vez maiores nos destinos do Norte.1 1 De acordo com os dados do Sismigra, entre 2011 e 2020, cerca de 1,1 milhão de migrantes internacionais passaram a residir no Brasil, oriundos das mais diversas partes do planeta e beneficiados por variados amparos legais. Iniciativas como o Acordo de Residência do Mercosul, vigente desde 2009; a concessão de vistos humanitários para nacionais do Haiti e da Síria, implementados respectivamente em 2012 e 2013; a autorização de residência para nacionais de países fronteiriços a partir de 2017 e a autorização de residência para senegaleses, a partir de 2019, contribuíram para a regularização de diferentes grupos de migrantes do Sul global no país (Jesus, 2022, p. 38).

Um dos aspectos característicos dessa mobilidade recente tem sido a intensificação das migrações transfronteiriças, seja dos que partem de países vizinhos ou daqueles que atravessam diversas fronteiras internacionais vindos de países mais distantes, como estratégia de evitar deportações. Essas são mais comuns em entradas aéreas do que nas terrestres, já que, por terra, se acessa rotas alternativas em casos de dificuldade de entrada no território de destino. É exemplar o caso dos haitianos que partem do Brasil em direção aos Estados Unidos, cruzando sucessivas fronteiras terrestres da América do Sul e da América Central.

Assim, as fronteiras brasileiras e sul-americanas demonstram ser espaços de trânsitos intensos e frequentes dos fronteiriços circunvizinhos, como sempre aconteceu, e cada vez mais dos migrantes de longa distância que buscam essa modalidade de deslocamento como estratégia de contornar barreiras erigidas no caminho. Não à toa, nos últimos anos, os pontos menos guarnecidos da fronteira brasileira se transformaram em portas de entrada e de saída de expressivo número de migrantes internacionais, especialmente aqueles em situação documental irregular, frequentemente vítimas de abusos e extorsões.

No Brasil e no mundo, as tendências que marcaram as migrações internacionais nas últimas décadas foram intensamente afetadas pelas restrições impostas pela pandemia de Covid-19. Assim como verificado na ocorrência de outras pandemias na história, a mobilidade das pessoas foi reduzida como medida, nem sempre eficaz, de contenção do vírus. De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (IOM, 2021OIM - International Organization for Migration. Informe sobre las migraciones en el mundo 2022. Genebra: Organización Internacional para las Migraciones, 2021.), o ano de 2020 registrou redução de 60% no número de passageiros em viagens aéreas, o que se refletiu também nas migrações, seja no contingente de migrantes, nos meios utilizados para as viagens, no mercado de trabalho e, consequentemente, no volume das remessas internacionais de dinheiro. Nesse contexto, governos de muitos países aproveitaram as medidas adotadas para reduzir a propagação da doença como justificativa para implementar controles seletivos de migrantes, deportações sumárias e impedimentos de entrada, inclusive de refugiados, violando acordos internacionais e as próprias legislações internas, como foi o caso do Brasil.

A associação entre migrantes e doenças acompanha a história das epidemias e pandemias e mobiliza a justificativa epidemiológica como instrumento para a securitização das migrações e para o aumento da xenofobia e do racismo, como ocorreu com migrantes africanos, durante a epidemia de ebola, e com migrantes asiáticos, durante a gripe aviária. Na pandemia de Covid-19, uma vez mais, a intensificação de medidas restritivas impulsionou muitos migrantes, em diferentes partes do mundo, a buscarem alternativas de migração de maneira indocumentada, em rotas frequentemente mais longas, perigosas e onerosas.

No Brasil, apesar da resistência de parte das autoridades em reconhecer a gravidade da crise sanitária, as primeiras medidas adotadas implicaram no fechamento das fronteiras terrestres, inicialmente com a Venezuela, posteriormente estendida aos demais países vizinhos, contrariando instrumentos normativos internacionais, como a Convenção de Genebra, de 1951, a Declaração de Cartagena, de 1985, e a própria legislação interna, como o Estatuto dos Refugiados, Lei n. 9.474/1997BRASIL. Lei n. 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Brasília, DF, 1997. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm . Accessed at: 10 aug. 2023.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
, e a Lei de Migração, Lei n. 13.445/2017BRASIL. Lei n. 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Brasília, DF, 2017. Available from: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm . Accessed at: 10 aug. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
, especialmente no que diz respeito ao caráter discriminatório aplicado aos venezuelanos, à proibição de reingresso de migrantes residentes no território nacional, à deportação sumária e à inabilitação do pedido de refúgio, como veremos adiante.

Diante disso, este artigo analisa os reflexos que as medidas de restrição de ingresso no território nacional tiveram sobre a mobilidade transfronteiriça durante a pandemia de Covid-19 e discute a justificativa epidemiológica utilizada para discriminar e securitizar as migrações e o deslocamento pendular nas fronteiras brasileiras. Para isso, o autor recorreu à análise de 42 Portarias publicadas pelo governo brasileiro, entre 2020 e 2022, e aos registros administrativos do Sistema de Tráfego Internacional (STI, 2023STI - Sistema de Tráfego Internacional. Sistema de Tráfego Internacional: microdados 2019-2020. STI, 2023. Available from: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/pt/dados/microdados/1733-obmigra/dados/microdados/401206-sti . Accessed at: 10 apr. 2023.
https://portaldeimigracao.mj.gov.br/pt/d...
), da Polícia Federal, no mesmo período, a fim de identificar os efeitos das restrições sobre a mobilidade documentada nos postos da fronteira terrestre do país. Esta análise foi combinada com pesquisa de campo em 13 cidades-gêmeas localizadas nos arcos Sul, Central e Norte da fronteira brasileira, durante o ano de 2022.

Na primeira seção do texto, apresenta-se breves considerações acerca do efeito das epidemias e pandemias sobre o controle da mobilidade migrante, associando-as às vinculações entre controle epidemiológico e securitização. Na segunda seção, são analisados os instrumentos normativos implementados pelo governo brasileiro durante a emergência sanitária e confrontados com os registros administrativos de entrada e saída no território nacional e com as observações de campo. Por fim, são mobilizados os conceitos de contenção territorial e contornamento para refletir sobre as estratégias dos migrantes frente às restrições encontradas.

Impacto da pandemia de Covid-19 nas migrações internacionais

Em diferentes momentos da história, as crises sanitárias impactaram a mobilidade das pessoas e foram justificadas para comprometer os direitos dos migrantes. Isso porque a associação entre doenças e imigração tem o potencial de induzir e justificar violações de direitos e impulsionar a xenofobia e o racismo (Ventura, 2016VENTURA, D. Impacto das crises sanitárias internacionais sobre os direitos dos migrantes. Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 13, n. 23, p. 61-75, 2016.). Com frequência, o primeiro impulso é culpabilizar aqueles que não estão bem integrados a uma comunidade, como os viajantes e os migrantes.

Na década de 1980, nos Estados Unidos, o mito que associava os migrantes e solicitantes de refúgio haitianos ao vírus HIV era difundido como argumento contrário à migração (Stepick, 1992STEPICK, A. The refugees nobody wants: Haitians in Miami. In: GRENIER, G.; STEPICK, A. (org.). Miami Now! Immigration, ethnicity and social change. Gainesville: University Press of Florida, 1992. p. 57-80.). Em 1993, a partir de um episódio em que 219 exilados políticos haitianos portadores do vírus tiveram seus pedidos de entrada negados, o Congresso Americano, com amplo apoio da população, proibiu a imigração de portadores de HIV/Aids, independentemente de sua origem nacional (Farmer, 2006FARMER, P. AIDS and Accusation - Haiti and the Geography of Blame. 2. ed. Berkeley: University of California Press, 2006.; Ventura, 2016VENTURA, D. Impacto das crises sanitárias internacionais sobre os direitos dos migrantes. Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 13, n. 23, p. 61-75, 2016.). Ainda hoje, contrariando princípios fundamentais dos direitos humanos, 48 países e territórios impõem restrições de viagem relacionadas ao HIV, 19 deles proíbem a permanência de curta ou longa duração com base no estado sorológico, realizando, inclusive, deportações (UNAIDS, 2019UNAIDS. UNAIDS e PNUD pedem que 48 países e territórios removam restrições de viagem relacionadas ao HIV. UNAIDS, 2019. Avaialable from: https://unaids.org.br/2019/06/unaids-e-pnud-pedem-que-48-paises-e-territorios-removam-restricoes-de-viagem-relacionadas-ao-hiv/ . Accessed at: 30 jul. 2023.
https://unaids.org.br/2019/06/unaids-e-p...
).

No início da migração haitiana para o Brasil, situações semelhantes ocorreram nas cidades fronteiriças por onde os migrantes entravam. Em Tabatinga, Amazonas, um vereador, médico de formação, lamentou a ausência de controle sanitário para os haitianos, argumentando que o Brasil não poderia oferecer ajuda pois estaria colocando em risco a população local e que a cólera e a AIDS tinham grande incidência no Haiti. Consequentemente, os moradores da cidade ecoaram o discurso e mesmo quando destinavam doações, o faziam por intermédio da igreja católica para evitar o contato direto com os migrantes (Véran; Noal; Fainst, 2014VÉRAN, J.-F.; NOAL, D. da S.; FAINST, T. Nem refugiados, nem migrantes: A chegada dos haitianos à cidade de Tabatinga (Amazonas). DADOS-Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 57, n. 4, p. 1007-1041, oct./dec. 2014. ; Jesus, 2020JESUS, A. D. de. Redes da migração haitiana no Mato Grosso do Sul. 2020. 313 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, 2020. ).

Em agosto de 2014, a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2005WHO - World Health Organization. International health regulations. Genebra: WHO, 2005. Available from: https://apps.who.int/gb/e/e_wha58.html . Accessed at: 29 jul. 2023.
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) declarou a crise de ebola como Emergência Pública de Importância Internacional, quando casos da doença foram identificados nos Estados Unidos e na Europa. Embora a doença tenha vitimado milhares de pessoas desde a década de 1970 em países como Serra Leoa, Guiné Conacri e Libéria, sempre foi considerada endemia, dado seu caráter regional na África Subsaariana. Não tardou para que migrantes de todo o continente africano, e até migrantes negros das Américas, como os haitianos, fossem estigmatizados como ameaças à saúde pública e sofressem restrições de entrada em diversos destinos. Na Europa, companhias aéreas suspenderam voos em direção à região mais atingida e nos Estados Unidos a opinião pública foi contrária ao repatriamento de profissionais de saúde que atuaram na África durante a crise.

Em 2003, a gripe aviária passou a fazer vítimas humanas em diferentes países da Ásia, África e Europa, sendo responsável por elevada taxa de mortalidade entre os infectados. Turistas e imigrantes asiáticos, já historicamente vitimados pela xenofobia ocidental, passaram a presenciar hostilidades cada vez maiores em muitos países. Com a pandemia de Covid-19, o medo ao “perigo amarelo”2 2 Como ficou conhecida, de maneira pejorativa, a migração asiática entre os séculos XIX e XX. foi reeditado e impulsionado pelo mau uso das redes sociais de comunicação. Isso levou à adoção de medidas discriminatórias nas restrições de viagens, vinculando a origem geográfica das pessoas ao vírus (Ventura, 2020VENTURA, D. Pandemia e estigma: Notas sobre as expressões “vírus chinês” e “vírus de Wuhan”. In: BAENINGER, R. et al. (org.). Migrações internacionais e a pandemia de Covid-19. Campinas: Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” - Nepo/Unicamp, 2020. p. 95-103.; Kohatsu; Saito; Andrade, 2021KOHATSU, L.; SAITO, G. K.; ANDRADE, P. F. de. Imigração, mídia e xenofobia: A ameaça imaginária em questão. In: SILVA, P. F. da; BORZUK, C. S.; GONÇALVES JUNIOR, G. Teoria crítica, violência e resistência. São Paulo: Blucher, 2021. p. 125-146.).

Ainda antes de a OMS decretar o novo coronavírus como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, em 30 de janeiro de 2020, diversos países anteciparam restrições de viagens. Os Estados Unidos proibiram a entrada de pessoas provenientes da China, no início de fevereiro, e do Irã, no final do mês. Alguns dias antes de a OMS comunicar que se tratava de uma pandemia, em 20 de março de 2020, pessoas viajantes do Espaço Schengen, do Reino Unido, e da Irlanda já não podiam entrar nos Estados Unidos. A partir daí, países de todo o continente americano passaram a fechar as suas fronteiras de maneira amedrontada e repentina, interrompendo migrações em curso e deslocamentos pendulares transfronteiriços.

Conforme o projeto “(In)Movilidades en las Américas”, implementado por meio de parceria entre pesquisadores de diversas universidades no continente, além dos bloqueios nas fronteiras terrestres e impedimentos de entradas de migrantes e turistas nos portos e aeroportos, diversos países realizaram expulsões, deportações e impediram retornos de seus cidadãos residentes no exterior no conjunto de medidas para conter a disseminação do vírus.3 3 O projeto em questão realizou levantamentos das medidas adotadas pelos países entre 2020 e 2021, que podem ser consultados em: https://www.inmovilidadamericas.org/linea-de-tiempo. Tratou-se de uma iniciativa em rede que contou com 11 equipes vinculadas a diferentes universidades do continente americano. Ao final do primeiro ano de pandemia, mais da metade dos países do mundo mantinham restrições de entradas em seus territórios e, ao passo que o conhecimento científico acerca da doença foi se ampliando, outras medidas sanitárias como testes, quarentenas e vacinação passaram a prevalecer sobre as restrições de viagens (IOM, 2021OIM - International Organization for Migration. Informe sobre las migraciones en el mundo 2022. Genebra: Organización Internacional para las Migraciones, 2021.).

Muitos migrantes e solicitantes de refúgio experimentaram deterioração de suas condições de vida e agravamento das vulnerabilidades com a pandemia, sobretudo aqueles em situação indocumentada, já que geralmente ficaram à margem das testagens, vacinas e atendimentos hospitalares nos casos mais graves. As restrições de entrada resultaram em aglomerações em abrigos, albergues e acampamentos improvisados nas fronteiras, o que contribuiu para a maior exposição ao vírus. Além disso, a falsa associação entre os migrantes e a doença ampliou a estigmatização e, consequentemente, a xenofobia (IOM, 2021OIM - International Organization for Migration. Informe sobre las migraciones en el mundo 2022. Genebra: Organización Internacional para las Migraciones, 2021.).

No entanto, embora as viagens nacionais e internacionais sejam potenciais fatores de disseminação do vírus, a migração não tem se mostrado, por si só, como fator de grande risco, estando este mais ligado às desigualdades a que muitos migrantes estão sujeitos. O grau de exposição ao vírus se mostrou diretamente relacionado com as desigualdades sistêmicas e com as adversidades socioeconômicas impostas aos migrantes, especialmente os menos qualificados, nos países de trânsito e de destino. Trabalhadores migrantes estiveram mais vulneráveis à Covid-19 por estarem desproporcionalmente representados em atividades consideradas essenciais, que não puderam ser interrompidas, frequentemente em atividades insalubres e com vínculos instáveis e precários (Piza, 2020PIZA, D. de T. Mobilidade humana e coronavírus: mobilidade, confinamento e migração na pandemia. São Paulo: Museu da Imigração, 2020. Available from: https://www.museudaimigracao.org.br/blog/migracoes-em-debate/mobilidade-humana-e-coronavirus-mobilidade-confinamento-e-migracao-na-pandemia . Accessed at: 6 aug. 2023.
https://www.museudaimigracao.org.br/blog...
; IOM, 2021OIM - International Organization for Migration. Informe sobre las migraciones en el mundo 2022. Genebra: Organización Internacional para las Migraciones, 2021.). Em situações emergenciais, a contradição entre o caráter essencial dos serviços prestados por esses trabalhadores e as injustas relações de trabalho se evidencia ainda mais.

Em síntese, a pandemia de Covid-19 afetou as migrações em suas diferentes fases, com desdobramentos para as famílias e comunidades de origem dos migrantes. Desde a interrupção dos deslocamentos e de entradas legalizadas nas fronteiras, o que impulsionou a imobilidade forçada e as viagens clandestinas, passando pela contenção de migrantes em determinados pontos fronteiriços, pelo desemprego e diminuição do envio de remessas internacionais, até ao retorno aos países de origem, de maneira voluntária ou compulsória, como nos casos de deportação. No Brasil, por exemplo, o impedimento de entrada ou saída do território nacional provocou aglomerações de dias e até meses em diferentes pontos da fronteira, como venezuelanos em Pacaraima-RR e haitianos em Assis Brasil-AC, o que expôs milhares de migrantes a maiores vulnerabilidades, impossibilitando, inclusive, abrigo e alimentação. Esse processo já tinha sido identificado por Ventura, ao afirmar que

A limitação do ingresso regular nos países de destino favorece a migração em situação irregular, esta sim capaz de favorecer a propagação de doenças pela absoluta ausência de controle de sua presença em determinado território. Ademais, o ambiente de rechaço à presença de pessoas de uma dada origem pode levá-las a não buscar tratamento, por temor a medidas que tenham impacto sobre sua situação migratória (Ventura, 2016VENTURA, D. Impacto das crises sanitárias internacionais sobre os direitos dos migrantes. Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 13, n. 23, p. 61-75, 2016., p. 68).

Silva e Dorfman (2020SILVA, R. C. M. e; DORFMAN, A. Border Control (Brazil, Paraguay, Argentina) and local inventiveness in times of COVID-19. Borders in Globalization Review, v. 2, n. 1, p. 94-99, dec. 2020.) observaram que inclusive o deslocamento pendular em cidades-gêmeas, completamente incorporado e essencial no cotidiano fronteiriço, passou a ser reenquadrado como movimento indesejado e ilegal no contexto pandêmico. A pandemia colocou em cena categoriais pouco usuais no contexto de trânsito facilitado que caracteriza conurbações transnacionais de modo que residentes fronteiriços vizinhos passaram a ser considerados como sujeitos ilegais e transgressores da norma sanitária.

Embora o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), vigente em 196 países, estipule que a prevenção e a resposta à propagação internacional de doenças sejam feitas de maneira proporcional, evitando interferências desnecessárias na circulação de pessoas e mercadorias, é comum que Estados implementem restrições unilaterais e sem a devida fundamentação técnica que as justifiquem. Em seu artigo 42, o próprio RSI recomenda que não sejam adotadas medidas discriminatórias e sem transparência (OMS, 2005WHO - World Health Organization. International health regulations. Genebra: WHO, 2005. Available from: https://apps.who.int/gb/e/e_wha58.html . Accessed at: 29 jul. 2023.
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). O fechamento de fronteiras, por exemplo, além de medida ineficaz no combate à disseminação de doenças, prejudica o fluxo de pessoal da saúde e de medicamentos para áreas atingidas justamente quando eles são necessários. Nas regiões fronteiriças, onde o acesso à saúde comumente se dá transnacionalmente, esse fato é agravado.

Durante a pandemia, o governo brasileiro apressou a interrupção dos fluxos de pessoas pelas fronteiras terrestres antes das restrições das entradas pelos aeroportos, evidenciando, por meio de uma série de Portarias do Ministério da Justiça e interministeriais, o caráter seletivo que a política migratória recente se propôs a eliminar com a Lei de Migração e a Lei do Refúgio. Além da proibição de ingresso de novos migrantes no território nacional, as medidas que impossibilitavam o retorno daqueles que já residiam no país, a deportação imediata e a inabilitação para solicitações de refúgio fizeram o Brasil voltar ao histórico restritivo que vigorou na política migratória durante séculos.

Desde os primeiros atos normativos, ainda no Brasil Império, até às décadas iniciais do século XXI, a política migratória brasileira foi marcada por seu caráter seletivo contrastante com o imaginário popular de livre aceitação de migrantes independente da nacionalidade. Com a nova lei de migração, em vigor desde novembro de 2017, o marco legal da temática incorporou princípios como a não discriminação e a prevenção da xenofobia, sustentados no argumento da promoção dos direitos humanos dos migrantes. Entretanto, a mudança legal não garantiu a eliminação da seletividade, aplicada principalmente sobre os migrantes oriundos de países do Sul Global, especialmente durante a pandemia de Covid-19.

No Brasil, os atos normativos implementados como estratégias de prevenção e controle da Covid-19 incluíram medidas de restrição à mobilidade nas fronteiras terrestres, afetando principalmente os fluxos de migrantes latino-americanos e o deslocamento de residentes fronteiriços. Isso porque, seguindo uma tendência global, tem ocorrido intensificação dos fluxos de migração intrarregional na América Latina em detrimento das migrações transcontinentais que predominaram nos séculos anteriores (Durand, 2010DURAND, J. Balance migratório en America Latina. In: DURAND, J.; SCHIAVON, J. A. (org.). Perspectivas migratorias. Un analisis interdisciplinario de la migracion. CIDE, 2010. p. 25-68.; Baeninger et al, 2018BAENINGER, R. et al. (coord.). Migrações fronteiriças. Campinas: Núcleo de Estudos de População Elza Berquó - Nepo/Unicamp, 2018.). Em grande medida, isso se relaciona ao aumento dos custos e riscos dos deslocamentos em longas distâncias e das restrições de entrada e permanência dos migrantes nos países desenvolvidos.

Com a pandemia, especialmente nos municípios fronteiriços, a estigmatização, o racismo e a xenofobia ganharam amplitude e reforço, muitas vezes amparados nos atos normativos em diferentes escalas. Isso contribuiu para que a antiga e persistente associação entre migrantes e risco sanitário se reforçasse. No entanto, de acordo com Ventura (2016VENTURA, D. Impacto das crises sanitárias internacionais sobre os direitos dos migrantes. Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 13, n. 23, p. 61-75, 2016., p. 64), “é preciso compreender que a doença não é o evento que suscita a representação estigmatizadora do estrangeiro: ao contrário, ela vem a preencher um espaço de desqualificação pré-existente”.

As vinculações entre migrantes e risco sanitário que os instrumentos normativos, os meios de comunicação e a opinião pública frequentemente reforçam, especialmente nos momentos de epidemias e pandemias, podem ser interpretadas no âmbito da estigmatização do outro e do racismo xenofóbico que não raras vezes justificam dispositivos de controle territorial. Ao investigar a história do medo no Ocidente entre os séculos XIV e XVIII, Jean Delumeau (2009DELUMEAU, J. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.) argumenta que, diante das epidemias, o primeiro impulso individual e coletivo é o de nomear os culpados, que geralmente são os estrangeiros, os viajantes, os marginais e todos aqueles que não são bem integrados a uma comunidade.

Nas epidemias e pandemias recentes, como a de Covid-19, as origens nacionais e os componentes étnico-raciais estiveram profundamente vinculados aos estigmas atribuídos aos migrantes, especialmente negros e asiáticos, independentemente de onde se encontravam. A culpabilização daqueles que supostamente vieram “de fora” tem sido uma estratégia frequente de diferenciação e segregação socioespacial. A representação do migrante como ameaça à saúde pública tem se sustentado ao longo do tempo sobre estigmas e fomentado mecanismos de controle biopolítico cada vez mais sofisticados.

Em grande medida sustentado nos estereótipos negativizados, e por isso transformado em estigmas, o controle sobre a mobilidade se difere de acordo com o perfil do viajante, deixando passar uns e bloqueando outros. Em contextos de epidemias e pandemias, os estigmas são reforçados na estratégia coletiva de nomear os culpados, inclusive sobre comunidades já estabelecidas de migrantes nos países de destino. Assim, num exercício de simplificação da realidade, sobre os “asiáticos” e “africanos”, por exemplo, ou “venezuelanos” e “haitianos”, para exemplificar grupos de migrantes com grande presença no Brasil recente, recaem o maior peso da vinculação entre doenças e origem geográfica.

A mobilização do estigma durante uma epidemia é uma estratégia política perversa com efeitos de curto prazo, cujo êxito se deve, porém, a um longo e complexo processo. De imediato, algo percebido pelo público não especializado como “abstrato” e “desconhecido”, como é o caso de um vírus, passa a ser “personificado” graças ao emprego de termos familiares e tangíveis, como uma nacionalidade ou um local de suposta origem (Ventura, 2020VENTURA, D. Pandemia e estigma: Notas sobre as expressões “vírus chinês” e “vírus de Wuhan”. In: BAENINGER, R. et al. (org.). Migrações internacionais e a pandemia de Covid-19. Campinas: Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” - Nepo/Unicamp, 2020. p. 95-103., p. 100).

Como consequência, o fechamento das fronteiras e a limitação da mobilidade costumam afetar de modo desigual os migrantes e residentes fronteiriços a depender do contexto epidemiológico vigente. No entanto, as origens nacionais e étnico-raciais são mobilizadas de maneira eficaz nos processos de estigmatização e contenção territorial, incidindo sobre uns maiores dispositivos de controle do que sobre outros. No Brasil, durante a pandemia de Covid-19, as medidas adotadas para a contenção do vírus se mostraram desigualmente aplicadas a determinados grupos de migrantes, em diferentes partes da fronteira, o que fomentou a recriação de estratégias de contornamento por parte dos migrantes e residentes dos municípios fronteiriços, como veremos adiante.

Mobilidade e imobilidade nas fronteiras brasileiras durante a pandemia de Covid-19

As migrações internacionais ganharam maior impulso com o desenvolvimento da aviação comercial, o que facilitou deslocamentos mais rápidos entre longas distâncias e ampliou o volume de passageiros, dentre eles os migrantes. No entanto, os custos e as exigências legais envolvidos nas viagens aéreas fazem com que parte significativa das migrações ocorra por meio das fronteiras terrestres, envolvendo, às vezes, múltiplas travessias por diferentes territórios nacionais. Com isso, tem se tornado comum a migração por etapas, em que os migrantes permanecem nos países de trânsito enquanto aguardam as oportunidades para acessar os países de destino. Exemplos recentes dessa espera prolongada são os casos dos haitianos e centro-americanos no México e de sírios, iraquianos e afegãos nos países balcânicos (Jesus, 2019JESUS, A. D. de. Fronteiras e atravessamentos: Experiências migratórias de haitianos em Tijuana, México. Formação (Online), v. 26, n. 49, p. 85-105, sep./dec. 2019.; Brunovskis; Surtees, 2019BRUNOVSKIS, A.; SURTEES, R. Identificação de migrantes e refugiados traficados ao longo da rota dos Balcãs. Explorando os limites da exploração, vulnerabilidade e risco. Mudança Social da Lei Criminal, n. 72, p. 73-86, may 2019.).

A intensificação das migrações tem atraído o olhar de diferentes atores institucionais para as fronteiras internacionais, desde as próprias agências estatais de controle até as organizações humanitárias, de onde geralmente vem o atendimento aos migrantes e refugiados em situação de trânsito. Não raras vezes, a atuação de interagências em zonas fronteiriças, sejam elas governamentais ou não, cria extraterritorialidades, com aplicações de normas e procedimentos administrativos distintos dos países onde se encontram (Mezzadra, 2015MEZZADRA, S. Multiplicação das fronteiras e práticas de mobilidade. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília, v. 23, n. 44, p. 11-30, jan./jun. 2015.). Durante a pandemia de Covid-19, o fechamento das fronteiras interrompeu processos migratórios em curso e obrigou migrantes a permanecerem à espera de autorizações de entrada, frequentemente negadas, o que resultou na superlotação dos abrigos e no surgimento de acampamentos improvisados.

No Brasil, assim como nos demais países da América do Sul, a fronteira internacional se configura como um amplo espaço de trânsito cotidiano de residentes fronteiriços e de migrantes de longa distância que buscam os pontos de entrada terrestre para efetivar a migração, especialmente dos países vizinhos. Há pelo menos cinco décadas, bolivianos se deslocam para os Estados de Mato Grosso do Sul e São Paulo, cruzando a fronteira entre Puerto Quijarro (BO) e Corumbá (BR); peruanos e colombianos também o fazem a partir da tríplice fronteira entre Santa Rosa (PE), Letícia (CO) e Tabatinga (BR). Na última década, ganhou destaque a entrada de venezuelanos entre Santa Elena de Uairén (VE) e Paracaima (BR). Esses são alguns exemplos que compõem um diversificado panorama das migrações fronteiriças para o Brasil (Baeninger, 2012BAENINGER, R. (org.). Imigração boliviana no Brasil. Campinas: Núcleo de Estudos de População - Nepo/Unicamp; Fapesp; CNPq; UNFPA, 2012.; Moura, 2014MOURA, M. M. Dinâmicas migratórias na Amazônia contemporânea. 2014. 373 f. Tese (Doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia) - Instituto de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2014.; Santos, 2018SANTOS, A. R. Interação social e estigma na fronteira Brasil/Venezuela: um olhar sociológico sobre a migração de brasileiros e venezuelanos. 2018. 224 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.).

Ao longo dos 16,8 mil quilômetros de extensão da faixa de fronteira do Brasil, vivem 11, 6 milhões de habitantes (IBGE, 2023IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2022: População e domicílios: primeiros resultados. Rio de Janeiro: IBGE, 2023. ) distribuídos em 588 municípios, dos quais 122 estão no limite internacional. Nestes, situam-se 34 cidades-gêmeas, algumas das quais em completa conurbação com as cidades dos países vizinhos. Especialmente nelas ocorrem relações de interdependência e complementaridade de bens e serviços, com deslocamento pendular transfronteiriço indissociável do cotidiano que caracteriza esses espaços. Todavia, as primeiras medidas sanitárias de combate ao coronavírus adotadas no Brasil e em outros países sul-americanos desconsideraram as relações estruturantes que marcam as realidades fronteiriças.

A maioria das medidas que implicaram na interrupção da mobilidade pendular nas fronteiras durante a pandemia foram descontinuadas com o passar dos meses de 2020, em parte porque comprometiam o abastecimento e o funcionamento dos próprios municípios fronteiriços e também porque outras estratégias sanitárias foram implementadas, como as testagens, o distanciamento social e, por fim, as vacinas. No entanto, nos anos de 2021 e 2022, os efeitos das restrições ainda estavam bastante visíveis, como pôde ser comprovado na pesquisa de campo realizada ao longo de 2022 em diferentes pontos da fronteira brasileira, conforme Figura 1.

Figura 1 -
Localização dos municípios da pesquisa de campo.

A história das migrações em diferentes destinos do mundo permite visualizar que as mudanças nas políticas migratórias guardam estreita relação com a conjuntura política e econômica, tanto interna quanto externa, alternando momentos de maior flexibilidade e abertura com maiores rechaços (Durand, 2016DURAND, J. Historia mínima de la migración México-Estados Unidos. Cidade do México: El Colegio de México, 2016.). Como mencionamos, a pandemia de Covid-19 representa um desses episódios de maior restrição às mobilidades, o que impactou as origens, os trânsitos e os destinos dos migrantes. No entanto, em alguns países como Estados Unidos e Brasil, as medidas restritivas implementadas na crise sanitária foram utilizadas como justificativa para conter fluxos em curso daqueles considerados indesejáveis.

No Brasil, a primeira norma publicada pelo governo federal como estratégia para combater a disseminação do vírus da Covid-19 foi a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, conhecida como “Lei da Quarentena”, que dispunha sobre a restrição de entrada no país por rodovias, portos e aeroportos. Porém, com o avanço da pandemia ao longo dos meses seguintes, os principais instrumentos utilizados para regular a mobilidade internacional foram as portarias interministeriais, com grande protagonismo do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Entre 17 de março de 2020 e 12 de setembro de 2022 foram promulgadas 42 portarias interministeriais regulamentando a entrada e a saída de pessoas no território nacional, fossem brasileiros, migrantes internacionais, refugiados e residentes fronteiriços dos países vizinhos. Além das restrições de trânsito, vários instrumentos legais estabeleceram responsabilização civil, administrativa e penal em caso de descumprimento, além de deportação e inabilitação do pedido de refúgio, o que contrariava as leis de migração e de refúgio do Brasil, afetando especialmente os venezuelanos vítimas de crise humanitária, dada a instabilidade política e econômica agravada a partir de meados da década de 2010, inclusive considerada pelas autoridades brasileiras como fundamento para o reconhecimento da condição de refugiados.

A Lei de Migração nº 13.445/2017BRASIL. Lei n. 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Brasília, DF, 2017. Available from: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm . Accessed at: 10 aug. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
, em seus artigos 48 e 50, proíbe deportação sem o devido processo legal, e a Lei do Refúgio nº 9.474/1997BRASIL. Lei n. 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Brasília, DF, 1997. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm . Accessed at: 10 aug. 2023.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
, em seus artigos 8 e 29, impede devolução ou negativa de refúgio sem análise do mérito, especialmente quando se trata dos casos em que o retorno ao país de origem pode comprometer a integridade das pessoas, em acordo com o princípio de “não devolução”, amplamente reconhecido e pactuado nos tratados internacionais. A proibição de entrada no território nacional implicou em imobilidade compulsória de migrantes e residentes fronteiriços e contribuiu para vulnerabilização e flexibilização de direitos humanos fundamentais, como abrigo e segurança.

Contrariando a própria legislação interna, principalmente a base principiológica da Lei de Migração, baseada no repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação (Art. 3º, inciso II), as portarias interministeriais incidiram desproporcionalmente sobre os deslocamentos terrestres em detrimento daqueles feitos pelas vias aéreas. Isso ocorreu sem a fundamentação técnica que justificasse serem os países fronteiriços maiores vetores de disseminação do vírus da Covid-19. Das 42 portarias publicadas, 33 se referiam às restrições de entradas terrestres e 11 às restrições aéreas.4 4 Algumas delas se aplicavam aos vários modais de transporte simultaneamente, inclusive os aquaviários. Com algumas exceções, as entradas terrestres estiveram limitadas de março de 2020 a janeiro de 2022. Já as entradas aéreas estiveram limitadas entre março e agosto de 2020.

A Portaria nº 120BRASIL. Portaria n. 120, de 17 de março de 2020. Dispõe sobre a restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros oriundos da República Bolivariana da Venezuela, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa. Brasília, DF, 2020a. Diário Oficial da União, Seção 1, p. 1-2., de 17 de março de 2020, a primeira delas, “restringe a entrada terrestre de estrangeiros oriundos da Venezuela por 15 dias”, prazo este sucessivamente renovado com as portarias subsequentes. A partir de 29 de abril de 2020, por meio da Portaria nº 240, fica permitida a entrada dos residentes de cidades-gêmeas dos países vizinhos, com exceção da Venezuela, de onde centenas de milhares já haviam partido em direção ao Brasil nos anos anteriores, ingressando no território brasileiro através da cidade de Pacaraima, em Roraima. A exclusão dos venezuelanos da mobilidade transfronteiriça entre cidades-gêmeas se manterá até 23 de junho de 2021, com a promulgação da Portaria nº 655BRASIL. Portaria n. 655, de 23 de junho de 2021. Dispõe sobre a restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros, de qualquer nacionalidade, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa. Brasília, DF, 2021c. Diário Oficial da União, Seção 1, p. 2-3.. No entanto, como é comum acontecer em situações de crises humanitárias, essas restrições não impediram a continuidade do fluxo e sim impulsionaram os migrantes às entradas indocumentadas, à extorsão e à violência.

No limite internacional entre Santa Elena de Uairén e Pacaraima, próximo aos postos de controle fronteiriço do Brasil e da Venezuela, as marcas da migração e da mobilidade pendular indocumentada são visíveis nos caminhos alternativos traçados pelos migrantes e residentes de ambas as cidades, como pode ser observado na Figura 2. Chamadas localmente de “trochas”, essas estradas se configuram como rotas de fuga, como estratégias de contornamento das barreiras físicas e simbólicas que têm como objetivo deixá-los de fora da cidadania nacional, do outro lado do muro invisível que se ergueu. Com o colapso da economia e dos serviços públicos na Venezuela, esses caminhos também foram utilizados como vias de acesso a bens e serviços do lado brasileiro durante o período da pandemia, quando a fronteira ficou fechada e o trânsito regular interrompido.

Figura 2 -
Caminhos alternativos na fronteira Brasil-Venezuela.

Em virtude da maior duração e da discriminação explícita nos atos normativos, a situação da Venezuela é exemplar na sustentação do argumento de que as medidas de completa restrição da mobilidade implementadas durante a pandemia, além de não comprovar eficácia quando o vírus alcançou a transmissão comunitária, vulnerabilizaram migrantes e os impulsionaram para travessias alternativas, frequentemente mais perigosas e mais onerosas. No entanto, nossa pesquisa de campo pôde identificar que situação semelhante ocorreu em diferentes pontos da fronteira brasileira, entre 2020 e 2022.

Em Assis Brasil-AC, a interrupção do tráfego na Ponte da Integração Brasil-Peru, além de provocar a imobilidade de centenas de haitianos que tentavam sair do Brasil e seguir em direção aos Estados Unidos,5 5 A saída dos haitianos por meio da fronteira internacional entre Brasil e Peru foi objeto de portarias específicas do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que autorizou o uso efetivo da Força Nacional para bloquear a entrada e a saída de migrantes por 60 dias, a partir de 18 de fevereiro de 2021. A Portaria n. 62, de 12 de fevereiro de 2021, se refere à entrada e a Portaria n. 86, de 19 de fevereiro de 2021, corrige a anterior, substituindo “entrada” por “saída” (Brasil, 2021a; 2021b). reativou rotas de travessia de barco pelo rio Acre, utilizadas até 2006, quando inexistia a ponte. Em Corumbá-MS, na fronteira com a Bolívia, brasileiros e bolivianos utilizaram intensamente estradas vicinais para entrar e sair em ambos os territórios, mantendo, inclusive, o abastecimento de frutas e verduras bolivianas nas feiras diárias do lado brasileiro. Em Santana do Livramento-RS, na fronteira com o Uruguai, e em Ponta Porã-MS, na fronteira com o Paraguai, as tentativas de fazer cumprir o disposto nas portarias interministeriais dificultaram o cotidiano de estudantes, trabalhadores e comerciantes que têm suas atividades principais baseadas na pendularidade internacional. Na direção inversa, no Oiapoque-AP, o patrulhamento ostensivo da polícia de fronteira da Guiana Francesa não foi capaz de impedir que os catraieiros transportassem brasileiros para estudo e compras do outro lado do rio, em Saint Georges, como observado na Figura 3, realizando desembarques em locais improvisados e cobrando mais caro por isso, uma espécie de adicional pelo risco de multa e de apreensão da embarcação.

Figura 3 -
Embarque de estudantes na fronteira Brasil-Guiana Francesa.

Após a Portaria n. 120BRASIL. Portaria n. 120, de 17 de março de 2020. Dispõe sobre a restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros oriundos da República Bolivariana da Venezuela, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa. Brasília, DF, 2020a. Diário Oficial da União, Seção 1, p. 1-2., específica para a Venezuela, dois dias depois, em 19 de março de 2020, as Portarias n. 125BRASIL. Portaria n. 125, de 19 de março de 2020. Dispõe sobre a restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros oriundos dos países que relaciona, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa. Brasília, DF, 2020b. Diário Oficial da União, Ed. Extra B, Seção 1, p. 1. e 126BRASIL. Portaria n. 126, de 19 de março de 2020. Dispõe sobre a restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros provenientes dos países que relaciona, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa. Brasília, DF, 2020c. Diário Oficial da União, Ed. Extra D, Seção 1, p. 1. ampliaram o conjunto de países com restrições de entrada, incluindo todos os fronteiriços, com exceção do Uruguai,6 6 A restrição de entrada das pessoas oriundas do Uruguai foi regulamentada pela portaria n. 132, de 22 de março de 2020. os membros da União Europeia e outros da Europa e da Ásia, mas aplicaram exceções aos residentes de cidades-gêmeas com limite exclusivamente terrestre, ao transporte rodoviário de cargas e à execução de ações humanitárias transfronteiriças. A exceção dos residentes fronteiriços não foi aplicada aos venezuelanos, como mencionamos, situação que foi mantida nas portarias subsequentes até 23 de junho de 2021.

Gradativamente, novos países foram incorporados ao rol de restrições à medida que a disseminação do vírus se ampliou e vitimizou mais pessoas ao redor do mundo. Também, as entradas pelas vias aquaviárias e aéreas passaram a ser restringidas a partir das Portarias n. 47BRASIL. Portaria n. 47, de 26 de março de 2020. Dispõe sobre a restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros por transporte aquaviário, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa. Brasília, DF, 2020f. Diário Oficial da União, Ed. Extra, Seção 1, p. 1. e 152BRASIL. Portaria n. 152, de 27 de março de 2020. Dispõe sobre a restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa. Brasília, DF, 2020e. Diário Oficial da União, Ed. Extra, Seção 1, p. 1. , respectivamente, no final de março de 2020. Ao passo que uma série de situações específicas surgiram, esses casos passaram a ser discriminados nas portarias, a exemplo do trânsito internacional, sem desembarque e dos migrantes internacionais com filhos, cônjuges e companheiros brasileiros. Por fim, a Portaria n. 340, de 30 de junho de 2020, agrega parte das disposições promulgadas anteriormente e restringe todas as entradas, independentemente de nacionalidade e de meios de transporte.

Todas essas medidas tiveram significativo impacto nas movimentações documentadas nos postos de controle fronteiriço aéreos, marítimos, fluviais e terrestres do Brasil, reduzindo tanto as entradas quanto as saídas no território nacional. Conforme apontamos anteriormente, as restrições de entrada se iniciaram em março de 2020 e se ampliaram com o passar dos meses, alcançando maior impacto em meados de 2021. À medida que a testagem e vacinação avançaram, as exigências de comprovantes de testes negativos e de vacinas gradativamente substituíram os impedimentos de entrada e de saída, conforme demonstra-se no Gráfico 1.

Gráfico 1 -
Número de movimentações nos postos de controle fronteiriço do Brasil (2019 -2022).

Nos postos da fronteira terrestre, onde o impacto das restrições foi proporcionalmente maior, o controle sobre a mobilidade pendular e migrante pôde ser mais bem definido nos locais sem existência de conurbações completas e onde poucas vias de acesso conectam as cidades-gêmeas, a exemplo de pontes. Ainda assim, as medidas de contenção e controle impulsionaram estratégias de contornamento, na maioria das vezes escapando dos registros administrativos do STI utilizados aqui como referência. Os Gráficos 2 e 3 mostram os efeitos das restrições nas entradas e saídas de pessoas nos 10 postos mais movimentados da fronteira terrestre brasileira, no ano anterior e durante os anos de vigência das portarias.

Gráfico 2 -
Número de entradas nos 10 postos mais movimentados da fronteira terrestre do Brasil (2019-2022).

Gráfico 3 -
Número de saídas nos 10 postos mais movimentados da fronteira terrestre do Brasil (2019-2022).

Como pode ser observado, em todos os postos de controle destacados houve redução drástica nos números de entradas e de saídas, tanto de brasileiros quanto de outras nacionalidades, nos anos de 2020 e principalmente em 2021, momento mais agudo da pandemia e de maior restrição da mobilidade a partir das portarias do governo brasileiro. Em 2022, tanto as entradas quanto as saídas voltaram a subir, como reflexo da adoção de outras medidas sanitárias e da liberação gradual da circulação de pessoas.

É necessário ressaltar que, em locais de fronteira seca, onde as cidades-gêmeas formam uma única mancha urbana, a mobilidade transfronteiriça, sobretudo a pendular, frequentemente escapa dos registros administrativos das instituições governamentais. Em alguns casos, as interações transfronteiriças são tão intensas que os deslocamentos cotidianos dos habitantes sequer são pensados como movimentos internacionais. Desse modo, os dados expostos nos Gráficos 2 e 3 apresentam apenas as movimentações documentadas, servindo como termômetro dos fluxos populacionais, mas deixam de fora um grande conjunto de mobilidades, a exemplo das que ocorrem entre Tabatinga e Letícia, na fronteira com a Colômbia; entre Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, na fronteira com o Paraguai; e entre ambas as Aceguás, entre Brasil e Uruguai.

Nessas situações, emergem territorialidades fronteiriças situadas muito mais entre dois territórios do que em um ou outro, de modo que a própria ideia de fronteira internacional é colocada em xeque ou relativizada (Haesbaert, 2014HAESBAERT, R. Viver no Limite: Território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. ). Essa condição fronteiriça mobiliza estratégias de usufruto das vantagens, mas também contém desafios de estar entre Estados nacionais (Dorfman, 2009DORFMAN, A. Contrabandistas na fronteira gaúcha: Escalas geográficas e representações textuais. 2009. 360 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009.). Em tempos de exceção, como os vivenciados pela pandemia de Covid-19, medidas que suspendem ou ameacem a interrupção da circulação cotidiana dos residentes fronteiriços, e também dos migrantes de longa distância, como visto neste texto, impulsionam a criação de meios de contornamento das barreiras, sejam elas físicas ou simbólicas.

A partir das considerações de Haesbaert (2014HAESBAERT, R. Viver no Limite: Território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. ), é possível pensar que tais medidas, vistas como promotoras de imobilidade ou de contenção territorial, estimularam estratégias de contornamento ou rotas de fuga no período emergencial. Migrantes e residentes fronteiriços são exemplos de sujeitos que materializam, de modo radicalmente visível, essa ideia. Nas situações específicas analisadas neste texto, os contornamentos significaram, literalmente, trânsitos entre as fronteiras internacionais e entre a legalidade e ilegalidade da norma instituída. “Contornar, nesse sentido, seria uma das implicações desse ‘viver no limite’, nas próprias fronteiras, como se, na impossibilidade de superá-las, fosse inventada uma condição de liminaridade, de ambivalência.” (Haesbaert, 2014HAESBAERT, R. Viver no Limite: Território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. , p. 292).

Face às restrições de mobilidade impostas pelas medidas de contenção do coronavírus, sobrepesadas nas fronteiras terrestres, migrantes e residentes fronteiriços de ambos os lados da fronteira brasileira elaboraram estratégias de contornamento ou retomaram recursos utilizados anteriormente, a exemplo das travessias feitas em embarcações ou a pé. As normas implementadas, principalmente por meio das portarias interministeriais, impactaram a mobilidade transfronteiriça, como evidenciado pelos dados expostos, mas fez surgir e ressignificar contornamentos especialmente visíveis nas rotas alternativas.

Conclusão

Este artigo analisou os reflexos que as medidas adotadas pelo governo brasileiro para o enfrentamento da pandemia de coronavírus provocaram nas mobilidades de migrantes e residentes fronteiriços na faixa de fronteira terrestre brasileira, no período de 2020 a 2022, especialmente as portarias interministeriais do governo federal. Embora diversas estratégias que envolviam a redução do deslocamento espacial das pessoas tenham sido aliadas no combate ao coronavírus, como o autoisolamento e a suspensão de atividades presenciais, o Brasil, assim como outros países, utilizou a justificativa da prevenção para implementar medidas que contrariaram a própria legislação migratória ao promover contenção territorial, imobilidade compulsória e ampliação das vulnerabilidades.

As medidas que restringiram a mobilidade de migrantes aumentaram as violações de direitos ao promoverem desabrigo, impedimento de entrada de refugiados, inabilitação para a solicitação de refúgio, responsabilização penal, dentre outras contrárias ao ordenamento jurídico nacional e internacional sobre migrações e refúgio. Foram emblemáticos os casos de transporte e emprego irregular de venezuelanos em Roraima e a interdição dos haitianos no Acre. Houve irregularidade nas portarias, especialmente para o caso venezuelano, ante a situação de crise humanitária em que se encontravam. Tornados indocumentados, muitos evitaram contato com as autoridades, o que se refletiu na maior exposição ao vírus que se propunha combater e à exploração e violência.

Além disso, estimulou a migração indocumentada e o contrabando de pessoas, como costuma acontecer nessas situações. Essas medidas se sustentaram na falsa vinculação entre migrantes e doenças, especialmente em períodos de epidemias e pandemias, como demonstrado ao longo da história epidemiológica recente. Em momentos de crise, a percepção popular e política que associa migração à propagação de doenças é reforçada e ampliada. Ao utilizar a nacionalidade ou a situação migratória como fator de risco sanitário, muitos governos projetaram uma falsa sensação de controle.

A combinação da análise das portarias do governo federal utilizadas para regular o ingresso no território nacional como estratégias de combate ao coronavírus, dos registros administrativos do Sistema de Tráfego Internacional e a pesquisa de campo em diversas cidades-gêmeas da fronteira brasileira pôde demonstrar a redução nas movimentações nos postos de controle fronteiriço, por um lado, e a emergência de táticas de contornamento efetivadas por migrantes e residentes fronteiriços, por outro. Além disso, contribuiu para refletir que as vinculações entre medo sanitário e a xenofobia racista são amplificadas nos momentos de crise.

Embora as restrições e rechaços já existissem no mundo inteiro antes da Covid-19, a pandemia foi utilizada para legitimá-las e ampliá-las. O emprego de medidas restritivas ancoradas na seletividade de determinadas origens nacionais e de determinados meios de entrada evidenciou, uma vez mais, o confronto constante entre migrantes desejáveis e indesejáveis, entre quem pode passar além da fronteira e quem deve ficar aquém. Da fronteira, dos direitos e do acolhimento.

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    » https://apps.who.int/gb/e/e_wha58.html
  • 1
    De acordo com os dados do Sismigra, entre 2011 e 2020, cerca de 1,1 milhão de migrantes internacionais passaram a residir no Brasil, oriundos das mais diversas partes do planeta e beneficiados por variados amparos legais. Iniciativas como o Acordo de Residência do Mercosul, vigente desde 2009; a concessão de vistos humanitários para nacionais do Haiti e da Síria, implementados respectivamente em 2012 e 2013; a autorização de residência para nacionais de países fronteiriços a partir de 2017 e a autorização de residência para senegaleses, a partir de 2019, contribuíram para a regularização de diferentes grupos de migrantes do Sul global no país (Jesus, 2022JESUS, A. D. de. Em trânsito e à deriva: novos migrantes do Sul global no Brasil. In: MAMED, D. de O.; SANTOS, I. D. C.; GUTIERREZ, J. P. A proteção da pessoa humana: temas emergentes. Londrina: Thoth, 2022. p. 35-53., p. 38).
  • 2
    Como ficou conhecida, de maneira pejorativa, a migração asiática entre os séculos XIX e XX.
  • 3
    O projeto em questão realizou levantamentos das medidas adotadas pelos países entre 2020 e 2021, que podem ser consultados em: https://www.inmovilidadamericas.org/linea-de-tiempo. Tratou-se de uma iniciativa em rede que contou com 11 equipes vinculadas a diferentes universidades do continente americano.
  • 4
    Algumas delas se aplicavam aos vários modais de transporte simultaneamente, inclusive os aquaviários.
  • 5
    A saída dos haitianos por meio da fronteira internacional entre Brasil e Peru foi objeto de portarias específicas do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que autorizou o uso efetivo da Força Nacional para bloquear a entrada e a saída de migrantes por 60 dias, a partir de 18 de fevereiro de 2021. A Portaria n. 62, de 12 de fevereiro de 2021, se refere à entrada e a Portaria n. 86, de 19 de fevereiro de 2021, corrige a anterior, substituindo “entrada” por “saída” (Brasil, 2021aBRASIL. Portaria MJSP n. 62, de 12 de fevereiro de 2021. Dispõe sobre o emprego da Força Nacional de Segurança Pública em apoio ao Estado do Acre. Brasília, DF, 2021a. Diário Oficial da União, Seção 1, p. 102.; 2021bBRASIL. Portaria MJSP n. 86, de 19 de fevereiro de 2021. Altera a Portaria MJSP nº 62, de 12 de fevereiro de 2021. Brasília, DF, 2021b. Diário Oficial da União, Seção 1, p. 62.).
  • 6
    A restrição de entrada das pessoas oriundas do Uruguai foi regulamentada pela portaria n. 132BRASIL. Portaria n. 132, de 22 de março de 2020. Dispõe sobre a restrição excepcional e temporária de entrada no País, por via terrestre, de estrangeiros provenientes da República Oriental do Uruguai, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa. Brasília, DF, 2020d. Diário Oficial da União, Ed. Extra K, Seção 1, p. 1., de 22 de março de 2020.

Editado por

Editor do artigo:

Adriana Dorfman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2023
  • Aceito
    05 Fev 2024
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