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Louis-Xavier de Ricard e o parnasianismo no Brasil

Louis-Xavier de Ricard and the Parnassianism in Brazil

RESUMO

Este trabalho pretende discutir as possíveis influências do poeta francês Louis-Xavier de Ricard, um dos organizadores do primeiro número do Parnasse contemporain, na produção poética dos parnasianos brasileiros, tentando fazer uma análise tanto na perspectiva da história literária, quanto na da história das ideias.

Palavras-chave:
Parnasianismo; Literatura brasileira; Literatura francesa; Louis-Xavier de Ricard

ABSTRACT

This work intends to discuss the possible influences of the French poet Louis-Xavier de Ricard, one of the organizers of the first issue of Parnasse contemporain, on the poetic production of Brazilian parnassians, trying to make an analysis both from the perspective of literary history and the history of ideas.

Keywords:
Parnassianism; Brazilian literature; French Literature; Louis-Xavier de Ricard

No que é provavelmente o estudo mais profundo e completo sobre o Parnasianismo francês das últimas décadas, Yann Mortelette, em sua Histoire du Parnasse (2005MORTELETTE, Yann. Histoire du Parnasse. Paris: Fayard, 2005.), afirma que:

… Heredia est leur modèle favori, mais non le seul : Gautier, Leconte de Lisle, Coppée et Sully Prudhomme les influencent aussi. Ricard a achevé son périple en Amérique du Sud à Rio, où il a fondé le journal Le Sud-Américain vers 1885 : il a contribué à la diffusion des Parnassiens au Brésil. En collaboration avec d'autres Français, il traduit les Cantos do Equador (1881) de Mello Moraes dans la Revue Commerciale, financière et maritime en 1884. Ce recueil s’inspire des poèmes exotiques et animaliers de Leconte de Lisle. L’influence du Parnasse se marie dans la poésie brésilienne à celle du Symbolisme.1 1 ... Heredia é seu modelo favorito, mas não o único: Gautier, Leconte de Lisle, Coppée e Sully Prudhomme também os influenciam. Ricard completou seu périplo pela América do Sul, no Rio de Janeiro, onde fundou o jornal Le Sud-Américain por volta de 1885. Ele aí contribuiu para a divulgação dos parnasianos no Brasil. Em colaboração com outros franceses, traduziu Cantos do Equador (1881) de Mello Moraes, na Revue Commerciale, Financière et Maritime em 1884. Essa coletânea foi inspirada nos poemas exóticos e animalistas de Leconte de Lisle. A influência do Parnaso se associa, na poesia brasileira, à do Simbolismo. Todas as traduções são da autoria do(a) autor(a) deste artigo. (MORTELETTE, 2005MORTELETTE, Yann. Histoire du Parnasse. Paris: Fayard, 2005., p. 460).

Nessa mesma passagem, o autor informa que Louis-Xavier de Ricard, em sua passagem pelo Rio de Janeiro, “contribuiu para a divulgação dos parnasianos no Brasil”. Para isso, aqui, ele fundou um jornal e teria traduzido para o Francês, em colaboração com outros, um livro de poemas de Mello Moraes Filho, os Cantos do Equador.

Contudo, outros estudos de literatura comparada e de história literária não abordam essa influência originária de Ricard em nossos parnasianos. Há que se dar destaque, inicialmente, às influências que para cá trouxe Artur de Oliveira. Este, de acordo com suas próprias palavras (SOUTO, 1935SOUTO, Luiz Felipe Vieira. Artur de Oliveira. Ensaio biográfico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935., p. 63-81), conviveu, em Paris, com Leconte de Lisle, com Victor Hugo, com Théophile Gautier, com Catulle Mendès, com Villiers de L’Isle-Adam, com Auguste Vacquerie, mas não há nenhuma menção a Xavier de Ricard. De outro lado, há estudos da influência de Heredia sobre nossos parnasianos, como afirma Antonio Candido (2006CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 5. ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006., p. 64), especificamente com respeito a Bilac. O mesmo Heredia tem suas influências rastreadas em Francisca Júlia, por Vera Lúcia Figueiredo Costa Rocha (1995ROCHA, Vera Lúcia Figueiredo Costa. Muse (im)passible. Revista de Letras, Fortaleza, v. 17, n. 1/2, p. 64-68, 1995.). O artigo de Georges Le Gentil (1931), "L’influence parnassienne au Brésil"2 2 "A influência parnasiana no Brasil”. , também traz informações interessantes. Nesse trabalho, o historiador e crítico literário francês faz uma só menção a Ricard, como possível tradutor dos Cantos do Equador, de Mello Moraes Filho. Contudo, dá destaque, sobretudo, às influências de Gautier, mas também às de Baudelaire, de Leconte de Lisle, de Coppée, de Sully Prudhomme, de Louise Ackermann, de Banville, de Catulle Mendès, de Armand Silvestre, de Victor de Laprade, de Edmond Haraucourt, de Heredia. Em suma, não há, nesse artigo de Le Gentil, nenhuma menção a possíveis influências do poeta Xavier de Ricard sobre os nossos parnasianos. Ele aparece apenas como tradutor de versos de um poeta brasileiro.

Mas quem foi Ricard na história da literatura francesa? Nascido em 1843 e falecido em 1911, teve uma atuação bastante diversificada: poeta, romancista, tradutor, jornalista, editor, político, revolucionário, francófono defensor do Occitano... O Dictionnaire de la littérature française et francophone, da Larousse, traz um verbete dedicado especificamente a ele (DEMOUGIN, 1988DEMOUGIN, Jacques. Dictionnaire de la littérature française et francophone. Paris: Larousse, 1988., p. 1206-1207), em que essa pluralidade fica ainda mais patente: filho de um general bonapartista, tornou-se republicano; nascido na região parisiense, veio a ser defensor da língua e da literatura occitana; revolucionário na Comuna de Paris, converteu-se ao albigensianismo (religião que vem dos albigenses ou cátaros). Foi organizador do primeiro Parnasse contemporain, em 1866, e deixou pelo menos duas antologias de versos: Les chants de l'aube (1862) e Ciel, rue et foyer (1866), sem contar os muitos poemas publicados em jornais e revistas, tanto em Francês, quanto em Occitano. Vale chamar a atenção para o fato de que o oitavo volume desse primeiro Parnasse contemporain publicou exclusivamente poemas seus. Através das revistas que editou, foi destacado participante da vida intelectual, literária e política francesa na segunda metade do século XIX até início do XX. Entre outras, podemos citar Revue du Progrès (1863GALLICA. Revue du Progrès, 1983. Disponível em: Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k96578900?rk=21459;2 . Acesso em: 11 nov. 2022.
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9...
), L’Art (1865GALLICA. L’Art, 1985. Disponível em: Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1265495q?rk=21459;2 . Acesso em: 11 nov. 2022.
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1...
), La Lauseta (1876), Le Fédéralisme (1878). Na própria Histoire du Parnasse de Yann Mortelette, são inúmeras as menções a seu nome, não apenas como editor de revistas, mas como pensador (poderíamos dizer “teórico”) sobre a poesia e, evidentemente, também como poeta. O que ressalta das análises e dos comentários de Mortelette é que houve várias fricções entre Ricard e os parnasianos mais ortodoxos, nomeadamente os que gravitavam em torno de Leconte de Lisle. Enquanto estes propunham uma poesia dentro do ideal da “arte pela arte”, inclusive no que se refere à (não-)atuação social e política, Ricard nunca abandonou sua intenção de uma poesia comprometida com as pessoas, com a sociedade e, em consequência, com o ativismo político.

Como aparece o Brasil na obra desse escritor francês? Nosso país está ausente, quando procuramos nas publicações mais importantes e conhecidas. Na Revue du ProgrèsGALLICA. Revue du Progrès, 1983. Disponível em: Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k96578900?rk=21459;2 . Acesso em: 11 nov. 2022.
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9...
3 3 Disponível em https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k96578900?rk=21459;2. Acesso em 11/10/2022. , temos apenas três menções ao Brasil, no tomo 2, todas fazendo referências a uma revista teatral, La perle du BrésilGALLICA. La perle du Brésil. Disponível em: Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9657709z/f354.image.r=bresil . Acesso em: 11 nov. 2022.
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9...
4 4 Disponível em https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9657709z/f354.image.r=bresil. Acesso em 11/10/2022. . Praticamente o mesmo ocorre em outro periódico por ele dirigido, L’Art5 5 Disponível em https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1265495q?rk=21459;2. Acesso em 11/10/2022. , em que “Brésil” é apenas o sobrenome de um autor teatral. Em seus dois principais livros de versos, Ciel, rue et foyer e Les chants de l’aube, nada consta. Nosso país é assunto e, aí sim, assunto importante, nos escritos que Ricard dedicou, não à literatura, mas à escravidão. Nas páginas de Le Sud-Américain, jornal publicado por ele no Rio de Janeiro, entre 1885 e 1886, há vários artigos em que critica abertamente o uso do regime servil pelo Estado brasileiro. De volta à França, publica, no Journal des Voyages, de Paris, em 22 e 29 de agosto de 1886, um artigo com o título de ʺLes esclaves au Brésil"6 6 “Os escravos no Brasil”. , que dá motivo a uma série de ataques contra ele na imprensa brasileira.

À exceção desse embate político, Ricard não é dos mais conhecidos intelectuais franceses por parte dos escritores brasileiros seus contemporâneos. Parece haver, de fato, um desconhecimento mútuo entre ambos. Com exceção do que se publicou nesse breve período que o poeta francês passou por aqui, quando atuou na imprensa do Rio de Janeiro, há muito poucas menções a ele, e as citações diretas são muito raras. Uma busca em catálogos de livreiros, editores e bibliotecas brasileiras, na Biblioteca Digital de Literatura de Países Lusófonos, revelou apenas duas obras de autoria de Ricard7 7 A busca, em https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/, por “catálogo” e por “livros”, nos deu, como resultado, 136 dessas coletâneas de referências bibliográficas; foi dentro delas que encontramos as duas obras de Xavier de Ricard. . Uma primeira aparece no Catálogo geral da biblioteca do Gabinete Português de leitura em Pernambuco, de 1882, mas é, em verdade, uma tradução: Les nationalités. Essai de philosophie positive, que Ricard traduziu do Espanhol e fez publicar em 1879, em Paris. Uma segunda aparece bem mais tarde, no Catálogo da Coleção Martins Júnior, de 1927: Le Fédéralisme, que Ricard publicou, em Paris, em 1877. Não há nada de ou sobre poesia.

Já uma pesquisa na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro8 8 Disponível em http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/. Acesso em 05/09/2022. , por envolver a vida jornalística de Ricard, traz uma quantidade razoável de resultados, quase limitados, contudo, ao período em viveu no Rio de Janeiro, entre 1885 e 1886. Sistematizados e ordenados, eles ficam assim:

TABELA 1

No total, são 34 matérias que se referem a Ricard, a imensa maioria dizendo respeito a questões políticas ou sociais (sobretudo às polêmicas sobre a escravidão) ou ao jornalismo, quando se fazem menções a periódicos de que participa o intelectual francês. Em apenas cinco ocasiões, o assunto é a literatura, sendo que três delas são já tardias (1913, 1917 e 1918). O Rio de Janeiro é o local predominante em que aparecem essas publicações. Apenas cinco são de outros estados: duas vêm de Pernambuco, uma do Maranhão, uma da Bahia e, enfim, uma do Espírito Santo. Dessas cinco, muito provavelmente, como era comum na época, algumas podem ser reproduções de notícias dadas anteriormente na imprensa da capital do País. Em consequência, nada há aqui que confirme a hipótese de Mortelette de que teria havido influência literária de Ricard nos parnasianos brasileiros. Pela atenção quase exclusiva dada a seus escritos políticos, se houve repercussão (não propriamente influência, note-se), foi nesse domínio. Ademais, ela se restringiu praticamente ao Rio de Janeiro, não atingindo cidades como Recife e Porto Alegre em que também algum ativismo político (no mais das vezes associado ao Positivismo) é contemporâneo do Parnasianismo. Ora, nesse caso, vale a pena uma observação. Quando examinamos a vida literária, intelectual e política de nossos parnasianos, vemos neles, nos principais ao menos, uma atuação política explícita que se contrapõe ao cultivo da arte pela arte. Como exemplos se podem citar Bilac e Guimarães Passos. Ambos se envolveram diretamente na Proclamação da República e, depois, contrapondo-se decepcionados ao governo Floriano, foram obrigados a um período de exílio. Bilac em Ouro Preto e Guimarães Passos em Buenos Aires. Assim, em boa parte, nossos parnasianos são, por assim dizer, partidários do ativismo político de Ricard, sem deixarem de ser discípulos de Leconte de Lisle no que se refere ao purismo formal da poesia. Contudo, se a influência deste é reconhecida e reconhecível, o mesmo não se pode dizer da influência daquele primeiro.

Voltando à Hemeroteca Digital, no período de 1850 a 1879, não há nada com respeito a nosso poeta. Tampouco de 1880 a 1889, mas, nesse caso, cabe lembrar que seu jornal, Le Sud-Américain, publicado precisamente nesse decênio, não foi ainda digitalizado pela Biblioteca Nacional9 9 Sua duração foi de pouco mais de sete meses, de 5 de julho de 1885 a 28 de fevereiro de 1886, num total de 35 números. . Em consequência, não poderiam aparecer aí as inúmeras referências ao nome de Ricard nesse periódico. Trazendo como administrador-gerente Georges Lardy e, como redator-chefe, o próprio Ricard, Le Sud-Américain apresentava-se como “organe des intérêts français dans l’Amérique du Sud"10 10 Órgão dos interesses franceses na América do Sul. . Uma pesquisa nos microfilmes do periódico11 11 À Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro devemos agradecer a gentileza e o trabalho de nos enviar o arquivo digitalizado das imagens microfilmadas. nos dá os resultados apresentados abaixo, no que se refere às matérias literárias. Se nelas houvesse menções ao Parnasianismo francês ou à obra do poeta, seria possível aceitar, ainda que parcialmente, a tese de Mortelette de que Xavier de Ricard teria exercido alguma eventual influência sobre os nossos poetas... mas não é o caso, como vamos ver.

No que toca à literatura francesa, publicaram-se alguns poemas em Le Sud-Américain. No número de 14 de julho de 1885, comemorativo da Revolução Francesa, podemos ver o “Hymne pour la fête de la Fédération du 14 juillet 1792”12 12 “Hino para a festa da Federação de 14 de julho de 1792”. O nome do autor está ilegível. e “En plantant le chêne des États-Unis d’Europe dans le jardin de Hauteville-House, le 14 juillet 1870”13 13 “Plantando o carvalho dos Estados Unidos da Europa no jardim de Hauteville-House”. de Victor Hugo. Também apareceram duas estrofes anônimas sobre a mesma Revolução pintadas num muro de Paris e um conto do neo-romântico Jean Rameu. Quanto aos escritores, vários deles são mencionados, dos quais apenas um é parnasiano: Victor Hugo, o historiador Victor Duruy, o naturalista Georges Ohnet, o neo-romântico Jacques Richard, o dramaturgo neoclássico Jules Barbier, o dramaturgo e poeta (próximo dos parnasianos) Eugène Morand, o parnasiano (esse sim) Théodore de Banville, o dramaturgo e romancista Victorien Sardou, os realistas Ekermann-Chatrian (que escreviam a quatro mãos), o tradutor Emile Allain, Zola, além dos muito conhecidos Balzac e Molière. Cabe dizer que o mais frequente, de longe, é Hugo: aparecem sete referências a ele, o que se explica não apenas por sua importância, mas também por conta de seu falecimento ocorrido justamente em 1885. A literatura do sul da França, especificamente do Languedoc, é referida em duas matérias. Há trinta e três capítulos do romance-folhetim Le sang-bleu de Hector Malot, publicado em volume em 1885 e, possivelmente antes, em folhetins na imprensa francesa. Várias revistas francesas são citadas: Étoile du Sud (ex-Revue Commerciale, Financière et Maritime, do Rio de Janeiro), La Nouvelle Revue, Revue Française de l’Étranger et des Colonies, Revue Socialiste, Bulletin de la Société de Géographie Commerciale, Le Monde Latin, Le Salon de la Mode, Expansion Coloniale, Revue Illustrée de Bretagne et d’Anjou, Tunis Journal. Aparecem também livreiros e editores: Librarie Lachaud, Librairie Laurent, Librairie de la Presse, Armand Collin.

São publicados apenas três escritos de autoria de brasileiros: o poema "À França. 14 de julho”, de Otaviano Hudson, com epígrafe de Victor Hugo, publicado na edição de 14 de julho de 1885, em que o tema é matéria histórica e política, no caso, a Revolução Francesa; a tradução de um trecho d’Os ciganos no Brasil, de Mello Moraes Filho14 14 Não está explicitado, mas sabemos que a tradução foi feita por Ricard. ; um poema em francês, por um brasileiro anônimo, em homenagem a Louis Couty, médico e fisiologista francês radicado no Rio de Janeiro. São citados vários de nossos escritores: Mello Moraes Filho, Valentim Magalhães, Couto de Magalhães, Carolina von Koseritz, J. Campo Cosso15 15 Que não conseguimos identificar. , Taunay, João Severiano da Fonseca, Anfriso Fialho, Inácio Joaquim da Fonseca, Otaviano Hudson, Luiz Leopoldo Fernandes Pinheiro Jr., Luiz de Andrade, Felisberto Rodrigues Pereira de Carvalho, Gonçalves de Magalhães. Também periódicos brasileiros são mencionados, seja em nota sobre sua publicação, seja agradecendo seu envio à redação do Sud-Américain: A Semana, O Século XX, A Revista, A Estação, A imigração, Revista Ilustrada, A Democracia, A Época, Jornal do Agricultor, O Fanal, Almanak Administrativo, O Relâmpago, Biblioteca Seleta Ilustrada. Quanto às literaturas de outros países, temos apenas referências (oito) à publicação da História de Gil Blas de Santillana, em tradução de Júlio César Machado.

Ora, assim referidas, as matérias literárias parecem numerosas, mas nem se comparam à quantidade e à importância das que se referem à política, à administração pública, às finanças. O Sud-Américain, isso é bem claro, não é um jornal literário, mas, como já dito acima, um órgão em defesa dos interesses dos franceses (mais do que da França) no Brasil. Em consequência, no que diz respeito às hipotéticas influências de Xavier de Ricard sobre a literatura brasileira (já nem digamos sobre o nosso Parnasianismo), se houvesse algum intuito pedagógico por parte do escritor francês, haveria certamente referências a uma plêiade de poetas franceses do Parnasse contemporain. O único mencionado, Banville, aparece como autor de uma peça teatral, a comédia Socrate et sa Femme. Escrita em alexandrinos, é citada numa curta nota apenas dando conta de que estava sendo encenada em Paris “neste inverno”16 16 Sendo essa edição do Sud-Américain de 6 de dezembro, verão no Brasil, a referência geográfica aí só pode ser a França. . Nada se fala de versos ou de poesia. Muito menos sobre técnicas de versificação ou sobre poética.

Seguindo adiante na Hemeroteca Digital, no período de 1890 a 1909, nada consta sobre Xavier de Ricard. Depois disso, há bem poucas referências, a maioria delas em tom genérico, dando o escritor francês como fundador do Parnasianismo na França. Por vezes, ele é apresentado como parnasiano ortodoxo (o que não é verdade), ao lado de Leconte e de Mendès, como aparece no artigo (já bastante tardio) de Cid Marcus, “Vicente de Carvalho, um poeta por si mesmo”, publicado n’A Tribuna (Santos, SP), de 5/4/1966MARCUS, Cid. “Vicente de Carvalho, um poeta por si mesmo”. A Tribuna, Santos, 5 abr. 1966, p. 7., na página 7: “Outro aspecto que merece ser considerado é o que diz respeito ao Parnasianismo do poeta [Vicente de Carvalho]. Muitos o veem como tal, procurando a toda força encaixá-lo no espartilho que da França nos remeteram Catulle Mendès e Xavier de Ricard.”17 17 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=153931_01&hf=memoria.bn.br&pagfis=58642. Acesso em 05/10/2022. .

Quanto às referências diretas ao poeta francês ou mesmo citações de seus escritos, em obras de escritores brasileiros, aqui e ali encontram-se algumas. O romance A carteira de um neurastênico, do maranhense Antônio Lobo, publicado em 1903LOBO, Antônio. A carteira de um neurastênico: Romance. São Luís: Edições d'A Revista do Norte, 1903. Disponível em Disponível em https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=211967 . Acesso em: 01 nov. 2022.
https://www.literaturabrasileira.ufsc.br...
, traz uma epígrafe do escritor francês:

Dans un roman - qui ne propose pas d'être un banal récit d'aventures - la fable est peu de chose ; ce qui impose, c'est l'évocation sincère de la vie ambiante e des caractères. X. DE RICARD. - Critique des livres dans La Renaissance Latine18 18 “Em um romance — que não se propõe a ser uma banal narrativa de aventuras — o enredo é de somenos importância; o que se impõe é a evocação sincera da vida exterior e dos personagens”. (tradução nossa)

Osvaldo Cruz, em discurso na Academia Brasileira de Letras, em 1913, menciona Xavier de Ricard ao fazer um resumo da história do Parnasianismo na França: “O livreiro Lemerre, que se fizera editor de um jornal de Louis Xavier Ricard, intitulado L’Art...” (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2005Academia Brasileira de Letras. Discursos acadêmicos. Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira de Letras, 2005., p. 573). Luiz Guimarães Júnior, em discurso na ABL, no mesmo ano, faz rápida menção ao poeta: “... em torno do Parnaso Contemporâneo fundado por Xavier de Ricard e Catulle Mendès”19 19 Ibid., p. 798. . Já o livro Corimbos, do mesmo Luiz Guimarães Jr.GUIMARÃES JR., Luís. Corimbos. São Paulo, 1868. Disponível em Disponível em https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=159764 . Acesso em : 01 nov. 2022.
https://www.literaturabrasileira.ufsc.br...
, traz uma epígrafe do poeta francês, no poema “A garça”, de 1868:

………………………………………je regarde toujours Cher astre, tes yeux clairs à travers la mer sombre...20 20 .................................. eu vejo sempre, Astro, teu olhar claro através do mar negro... - Xavier de Ricard.

Em um trabalho publicado há pouco (LUIZ DOS SANTOS; WILLRICH, 2022LUIZ DOS SANTOS, Alckmar; WILLRICH, Roberto. Epígrafes em obras poéticas publicadas Entre 1855 e 1927. In: BORGES, Isabela Melim; PERGHER, Paulo Henrique (org.). Literatura e seus híbridos III. Florianópolis: UFSC, 2022. p. 16-45.), fizemos uma pesquisa em noventa e seis obras poéticas de escritores brasileiros, publicadas entre 1855 e 1927, recenseando as citações a outros escritores. De Ricard, aparecem apenas as duas epígrafes acima. Os demais poetas, aproximadamente contemporâneos de nosso Parnasianismo, têm a seguinte quantidade de referências diretas ou indiretas (que podem incluir epígrafes, dedicatórias, títulos de poemas, indicações de tradução etc.):

  • Victor Hugo - 74 (44%)

  • Baudelaire - 19 (11%)

  • Gautier - 15 (9%)

  • Leconte - 9 (5%)

  • Richepin - 8 (5%)

  • Catulle Mendès - 6 (4%)

  • François Coppé - 4 (2%)

  • Armand Silvestre - 4 (2%)

  • Sully Prudhomme - 3 (2%)

  • Alfred Berthezène - 2 (1%)

  • Heredia - 2 (1%)

  • Édouard Pailleron - 2 (1%)

  • Jean Rameau - 2 (1%)

  • Louise-Victorine Ackermann - 2 (1%)

  • Paul Bourget - 2 (1%)

  • Joséphin Soulary - 2 (1%)

  • Edmond Rostand - 2 (1%)

  • Banville - 1 (1%)

  • Villiers de l’Isle-Adam - 1 (1%)

  • Maurice Rollinat - 1 (1%)

  • Joseph Autran - 1 (1%)

  • Auguste Vacquerie - 1 (1%)

  • Edmond Haraucourt - 1 (1%)

  • François Fabié - 1 (1%)

  • Henri Cazalis - 1 (1%)

  • Eugène Le Mouël - 1 (1%)

  • Charles Foley - 1 (1%)

  • Paul Pierson (teoria, Métrique naturelle du langage) - 1 (1%)

Esses números não são difíceis de explicar: a importância de Hugo para a poesia ocidental, o começo do baudelairianismo em nosso país... E, ainda, eles confirmam apenas parcialmente o que afirma Mortelette da influência francesa na poesia parnasiana produzida na América Latina: “Heredia est leur modèle favori, mais non le seul: Gautier, Leconte de Lisle, Coppée et Sully Prudhomme les influencent aussi […]”21 21 Ver nota 2 acima. Nesse levantamento, não há evidência alguma de que Heredia seja esse modelo favorito. Assim como Sully Prudhomme e François Coppée não têm o destaque dado por Yann Mortelette. Já o papel relevante de Gautier e Leconte de Lisle parece mais do que comprovado. Todavia, não é esse aqui nosso intuito, o que queremos é verificar a afirmação de Mortelette de que teria havido influência de Xavier de Ricard em nossos parnasianos. Isso não é referendado, de modo algum, por esses números.

Uma última tentativa para desvendar possíveis relações entre Ricard e nossos escritores se poderia dar tomando o caminho oposto, investigando o papel do escritor francês na divulgação de nossa literatura, na língua francesa. Aí entraria, por exemplo, sua atuação como tradutor de obras brasileiras. No estudo que abre a edição de 1900 dos Cantos do Equador, de Mello Moraes Filho, Xavier Marques fala do poeta francês como um dos renomados tradutores do autor do livro, o que poderia confirmar o juízo de Yann Mortelette na citação que está no início deste trabalho, sobre Ricard ter traduzido versos do brasileiro22 22 Idem nota anterior. . Diz Xavier Marques:

Desde 1881 começou a publicar livros, que são conhecidos até na Europa, que têm merecido críticas das mais honrosas e têm tido tradutores como Charles Morel, Xavier de Ricard, Emilio Deleau e Desleal. Allain.23 23 Disponível em https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=118072. Acesso em 05/10/2022.

Nesse caso, merecem exame mais detido essas traduções de obras de Mello Moraes, realizadas por Ricard. Em verdade, trata-se de uma apenas, Os ciganos no Brasil24 24 Disponível em https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=118353. Acesso em 05/10/2022. , publicação em prosa, de cunho antropológico, de que um trecho aparece no Le Sud-Américain25 25 Na edição de 26 de julho 1885, à página 3. . De outro lado, poemas de Mello Moraes Filho, em boa parte oriundos dos Cantos do Equador, sob o título de Poèmes de l’esclavage et legendes des indiens26 26 Disponível em https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=118898. Acesso em 05/10/2022. , foram parcialmente traduzidos por Émile Deleau, Charles Morel e Émile Allain, mas não por Ricard, segundo as palavras do próprio Moraes, em Os ciganos no Brasil27 27 Op. cit., pp. 199-200. Na edição em livro dos Poèmes de l’esclavage et legendes des indiens, em 1884, pela Garnier, afirma-se que a tradução foi realizada pela redação da Revue Commerciale, Financière et Maritime. . Georges Le Gentil, no artigo já citado, comete o mesmo equívoco28 28 “Les Chants de l’équateur ont du reste été traduits, dès leur apparition, par Charles Morel, Xavier de Ricard, Émile Deleau et Allain.” — LE GENTIL, 1931, p. 27 (“Os Cantos do Equador, de resto, foram traduzidos, logo após sua publicação, por Charles Morel, Xavier de Ricard, Émile Deleau e Allain.”). . Ricard, ele mesmo, em carta a Auguste Fourès, deixa resolvida essa questão: “[…] M. Mello Moraes, dont je vous ai déjà parlé et dont je vous envoie un volume - à son nom - par le prochain courrier. Les Poèmes de l’Esclavage. Cela est traduit stupidement, en dépit du bon sens par un nommé Morel…”29 29 Cf. ANATOLE, 1979, p. 42 — “... Sr. Mello Moraes (sic), de quem já vos falei e de quem vos envio um volume — em seu nome — pelo próximo correio. Os Poemas da Escravidão. Está traduzido de modo estúpido, a despeito do bom senso, por alguém chamado Morel...”

Ao que parece, o poeta parnasiano Ricard, atuando como tradutor, deu mais atenção à prosa do que à poesia brasileira, o que deixa patente o equívoco de Yann Mortelette. Esse juízo se confirma pela tradução que o poeta francês realizou d’O guarani de Alencar, sob o título de Le fils du soleil (les aventuriers ou le guarani), publicado em 1902ALENCAR, José de. Le Fils du soleil (les Aventuriers, ou le Guarani). Traduzido do Português por L. Xavier de Ricard. Paris: J. Tallandier, [1902]. 30 30 ALENCAR, José de. Le Fils du soleil (les Aventuriers, ou le Guarani). Traduzido do Português por L. Xavier de Ricard. Paris: J. Tallandier, [1902]. . Nesse mesmo volume se anuncia a tradução francesa d’O Tronco do Ipê que estava sendo preparada sob o título de Le tronc de l’ipé, mœurs brésiliennes, mas que nunca foi concluída por Ricard31 31 Há registro de uma tradução com esse mesmo título, mas realizada por Albert Savine. Vide BEZERRA, 2019. . Em outras palavras, se houve relação do poeta francês com os poetas brasileiros, parnasianos ou não, ela não se deu através das traduções, pois preferiu ele traduzir prosa romântica (ressalte-se, romântica!), em vez de versos.

Em suma, as poucas relações intelectuais de Louis-Xavier de Ricard com seus pares brasileiros parecem se ter concentrado sobretudo nas questões políticas e sociais. Nesse sentido, um interessante estudo é feito por Josette Anatole (1979ANATOLE, Josette. Echos brésiliens dans quelques lettres de Louis-Xavier de Ricard. Littératures, numéro spécial 1, p. 35-45, 1979.), intitulado “Ecos brasileiros em algumas cartas de Louis-Xavier de Ricard”. Em linhas gerais, o que aí aparece são as múltiplas faces de Xavier de Ricard, num leque que vai de produtor de cana-de-açúcar no Paraguai a diretor de jornal no Rio de janeiro, passando pelo intelectual que, partindo de Assunção para o Rio de Janeiro, pensa em se dedicar um pouco à literatura na capital do país: “Rio est une ville lettrée, beaucoup plus que Buenos-Ayres. C’est-à-dire que j'y pourrai faire un peu de littérature […]"32 32 ”O Rio é uma cidade intelectualizada, bem mais do que Buenos Aires. Isso quer dizer que, ali, poderei me dedicar um pouco à literatura [...]” — ANATOLE, 1979, p. 37. Trata-se, como também nas citações seguintes, de trecho de cartas enviadas ao poeta Auguste Fourès. Paira nos comentários de Ricard um evidente entusiasmo com a importância da literatura francesa para a brasileira:

Mais à Rio c'est autre chose. Il y a un public très nombreux et très passionné pour tout ce qui vient de France. On ne lit et on ne vend que des livres français et j'en suis certain, plus qu'en beaucoup de villes de France (je parle des plus fortes). (…) On ne parle dans les journaux que des livres français : on ne joue que des pièces françaises. - Le Brésilien a de très grandes aptitudes littéraires et il est engoué de la France.33 33 ”Mas o Rio é outra coisa. Há ali um público muito numeroso e muito apaixonado por tudo que vem da França. Só se leem e só se vendem livros franceses e estou certo de que mais do que em muitas cidades francesas (eu me refiro às maiores). (...) Nos jornais, só se fala de livros franceses, só se representam peças francesas. O brasileiro possui grandes habilidades literárias e é fanático pela França.” —ANATOLE, 1979, p. 38.

Esse entusiasmo parece ter ressurgido (inconscientemente, claro) no comentário de Yann Mortelette acerca da influência de Ricard sobre os parnasianos brasileiros. É certo que o afrancesamento da elite intelectual brasileira foi enorme nessas últimas décadas do século XIX, mas vai alguma dose de exagero, nesses comentários. Ao se referir à literatura brasileira, o faz de modo genérico, sem citar nomes: “La littérature brésilienne ne manque pas d'intérêt: elle n'est pas du tout méprisable, avec de grands défauts de novice. Mais le Brésilien est certainement le peuple le plus littéraire de l'Amérique du Sud […]”34 34 “A literatura brasileira não deixa de ser interessante: ela não é, de modo algum, negligenciável, com seus evidentes defeitos da imaturidade. Mas o brasileiro é certamente o povo mais literário da América do Sul [...]” — ANATOLE, 1979, p. 40. . A única exceção é Mello Moraes Filho: “J'ai reçu en même temps vos quatre exemplaires de la Lauseta : j’en ai donné un immédiatement à un des littérateurs les plus distingués du Brésil, Mello Moraës fils35 35 “Recebi ao mesmo tempo vossos quatro exemplares de La Lauseta: imediatamente dei um deles a um dos literatos mais distintos do Brasil, Mello Moraes Filho [...]” — ANATOLE, 1979, p. 41. . O mesmo Mello Moraes Filho de quem traduzirá trechos d’Os ciganos no Brasil e que terá despertado nele, Ricard, o propósito de apresentar a seus compatriotas franceses a literatura feita neste País naquele momento. Contudo, nos meses em que viveu no Rio de Janeiro, assombrado pela ameaça da febre amarela36 36 Ver ANATOLE, 1979, p. 40: ”Nous sommes dans la saison de la fièvre jaune. Elle commence bien : de trente à cinquante cas par jour. Si le temps reste le même on nous prédit pour le mois de février et celui de mars, une belle épidémie. Espérons que nous y échapperons.” — ”Estamos na estação da febre amarela. Ela começa bem: de trinta a cinquenta casos por dia. Se o tempo continua assim, nos preveem, em fevereiro e março, uma bela epidemia. Esperemos que possamos escapar a ela.” , seus contatos com literatos brasileiros parecem não ter passado de raros encontros com Mello Moraes Filho37 37 Curiosamente, aparece no Le Sud-Américain uma faceta muito pouco conhecida desse escritor: vários anúncios de seu gabinete de medicina (Mello Moraes Filho foi também médico). Terá Ricard utilizado os préstimos profissionais do escritor brasileiro? . Ora, mesmo não tendo sido contaminado por essa doença, Ricard, em pouco tempo, foi atingido em cheio por outra, o etnocentrismo. Em consequência, o entusiasmo de antes se torna crítica áspera. Poucos meses após sua chegada, já se prepara para partir, reclamando do ambiente intelectual brasileiro, especificamente da imprensa. É curioso notar que, defensor da minoritária cultura occitana diante da hegemônica cultura francesa, não percebe que desempenha o mesmo papel de opressor quando se coloca, como francês, diante da cultura brasileira:

La presse brésilienne est la moins hospitalière et la plus vile de toutes les presses. Je ne suis pas en très bons termes avec elle. Vous le savez d’ailleurs si vous lisez les derniers n° du journal. La vérité est qu’on jalouse ici la France et qu’on la déteste ; l’empire brésilien, pourri à un degré de décomposition qu'il est difficile d'imaginer, a peur de la propagation des idées démocratiques.38 38 “A imprensa brasileira é a menos acolhedora e a mais vil de todas as imprensas. Não mantenho boas relações com ela. Já o sabeis, aliás, se haveis lido os últimos números do jornal [Le Sud-Américain]. A verdade é que, aqui, invejam e detestam a França; o império brasileiro, apodrecido a um grau de decomposição difícil de imaginar, tem medo da propagação das ideias democráticas.” — ANATOLE, 1979, p. 42.

Ricard deve se ter dado conta de que a paixão pelos franceses que via em muitos brasileiros, não foi suficiente para poupá-lo de ataques veementes, a despeito de sua condição de legítimo intelectual francês. É o que ocorre quando se permite colocar o dedo na chaga da escravidão, atacando por aí o sistema político-econômico do país. Vai receber críticas muito fortes, como as que vêm de um certo Nestor (pseudônimo do então jovem Alcindo Guanabara), publicadas no jornal Novidades, de 3 de abril de 1887GUANABARA, Alcindo. Novidades, 3 abr. 1887, p. 1.:

Tenho à vista o Journal des Voyages que há dias, escancarado na vitrine de uma livraria, apresentava a gravura que foi para a Europa o corpo de delito do atraso selvagem de nossa civilização.

Acompanhando aquelas impudentes e indignas falsidades ali gravadas, acham-se artigos de um Sr. Xavier de Ricard que por algum tempo foi nosso hóspede, e que daqui saiu para na Europa desacreditar o Brasil (...)

Resta-nos mostrar quem é L. Xavier de Ricard.

Há certamente enorme diferença entre este turista galhofeiro, despeitado, e os sábios que se chamaram Von Martius e Geoffroy Saint-Hilaire, que visitaram o Brasil, escreveram a respeito, mas não guiados pela intenção traiçoeira de cobrir de ridículo este país.

As gravuras que despertaram a indignação de Alcindo Guanabara eram, por si sós, fortes libelos contra as violências do regime servil:

FIG. 1

FIG. 2
39 39 Ambas as gravuras estão no Journal des Voyages, de 22 e 29 de agosto de 1886.

Houve algumas reações favoráveis às críticas de Ricard, como se pode ver no levantamento acima apresentado nas páginas anteriores, oriundas dos grupos abolicionistas que, naquele momento, já eram numerosos e fortes. De toda maneira, os ataques a ele foram vários e vigorosos. Em outras palavras, se houvesse influência de Louis-Xavier de Ricard em nossos parnasianos, ela se teria dado, não de maneira explícita, no posicionamento político do intelectual francês, notadamente no que dizia respeito à luta contra a escravatura e à proclamação da república, mas não em discussões específicas do campo poético. Diga-se, contudo, que mesmo essas pretensas influências políticas não estão suficientemente documentadas em lugar algum, ao menos até onde pude chegar em minhas pesquisas. Ademais, elas teriam ocorrido num período curto de tempo que vai de 1885, quando Ricard chegou ao Brasil, até o final dessa década de 1880, quando ainda aparecem notícias sobre a atuação política do intelectual francês. A afirmação de Yann Mortelette parece mesmo ser resultado de um chovinismo apressado, atitude que, por vezes, atravessa as análises e os juízos da crítica francesa quando quer falar das relações entre as literaturas de nossos dois países. De fato, poeta (Ricard) e historiador (Mortelette) passam por cima do tempo que os separa e dão-se as mãos, ao tentarem, ambos, construir a imagem de um país (o Brasil) aberto e subserviente às influências francesas. Se, no mais das vezes, isso é verdade, sobretudo na literatura mais superficial, não é o que ocorre quando examinamos poetas e obras mais complexas e sofisticadas. Um exemplo, penso eu, basta para esclarecer definitivamente isto que estou querendo aqui dizer à moda de conclusão: as Fanfarras de Teófilo Dias, publicadas em 1882, têm já elementos simbolistas evidentes, trazidos ao público leitor ao menos quatro anos antes de que Moréas publicasse seu “Manifesto Simbolista” nas páginas de Le Figaro. Mas isso é assunto para um próximo trabalho.

REFERÊNCIAS

  • Academia Brasileira de Letras. Discursos acadêmicos Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira de Letras, 2005.
  • ALENCAR, José de. Le Fils du soleil (les Aventuriers, ou le Guarani) Traduzido do Português por L. Xavier de Ricard. Paris: J. Tallandier, [1902].
  • ANATOLE, Josette. Echos brésiliens dans quelques lettres de Louis-Xavier de Ricard. Littératures, numéro spécial 1, p. 35-45, 1979.
  • BEZERRA, Valéria Regina. A presença das obras de José de Alencar na França (1863-1907). Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 41, e41666, 2019. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciLangCult/article/download/41666/pdf/ Acesso em: 13 out. 2022.
    » https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciLangCult/article/download/41666/pdf/
  • CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema 5. ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.
  • JOURNAL des voyages et des aventures de terre et de mer Paris, 1877-1929. Disponível em: Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6859678b/f1.item Acesso em: 01 nov. 2022.
    » https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6859678b/f1.item
  • DEMOUGIN, Jacques. Dictionnaire de la littérature française et francophone Paris: Larousse, 1988.
  • GALLICA. Revue du Progrès, 1983. Disponível em: Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k96578900?rk=21459;2 Acesso em: 11 nov. 2022.
    » https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k96578900?rk=21459;2
  • GALLICA. La perle du Brésil Disponível em: Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9657709z/f354.image.r=bresil Acesso em: 11 nov. 2022.
    » https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9657709z/f354.image.r=bresil
  • GALLICA. L’Art, 1985. Disponível em: Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1265495q?rk=21459;2 Acesso em: 11 nov. 2022.
    » https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1265495q?rk=21459;2
  • GUANABARA, Alcindo. Novidades, 3 abr. 1887, p. 1.
  • GUIMARÃES JR., Luís. Corimbos São Paulo, 1868. Disponível em Disponível em https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=159764 Acesso em : 01 nov. 2022.
    » https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=159764
  • LE GENTIL, Georges. L’influence parnassienne au Brésil. Revue de Littérature Comparée, v. XI, n. 1, p. 23-43, 1931.
  • LOBO, Antônio. A carteira de um neurastênico: Romance. São Luís: Edições d'A Revista do Norte, 1903. Disponível em Disponível em https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=211967 Acesso em: 01 nov. 2022.
    » https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=211967
  • LUIZ DOS SANTOS, Alckmar; WILLRICH, Roberto. Epígrafes em obras poéticas publicadas Entre 1855 e 1927. In: BORGES, Isabela Melim; PERGHER, Paulo Henrique (org.). Literatura e seus híbridos III Florianópolis: UFSC, 2022. p. 16-45.
  • MARCUS, Cid. “Vicente de Carvalho, um poeta por si mesmo”. A Tribuna, Santos, 5 abr. 1966, p. 7.
  • MORTELETTE, Yann. Histoire du Parnasse Paris: Fayard, 2005.
  • RICARD, Louis-Xavier de (dir.). L’Art: journal hebdomadaire. Paris, 1865.
  • RICARD, Louis-Xavier de (dir.). Revue du progrès: moral, littéraire, scientifique et artistique. Paris, 1863.
  • ROCHA, Vera Lúcia Figueiredo Costa. Muse (im)passible. Revista de Letras, Fortaleza, v. 17, n. 1/2, p. 64-68, 1995.
  • SOUTO, Luiz Felipe Vieira. Artur de Oliveira. Ensaio biográfico Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935.
  • 1
    ... Heredia é seu modelo favorito, mas não o único: Gautier, Leconte de Lisle, Coppée e Sully Prudhomme também os influenciam. Ricard completou seu périplo pela América do Sul, no Rio de Janeiro, onde fundou o jornal Le Sud-Américain por volta de 1885. Ele aí contribuiu para a divulgação dos parnasianos no Brasil. Em colaboração com outros franceses, traduziu Cantos do Equador (1881) de Mello Moraes, na Revue Commerciale, Financière et Maritime em 1884. Essa coletânea foi inspirada nos poemas exóticos e animalistas de Leconte de Lisle. A influência do Parnaso se associa, na poesia brasileira, à do Simbolismo. Todas as traduções são da autoria do(a) autor(a) deste artigo.
  • 2
    "A influência parnasiana no Brasil”.
  • 3
  • 4
  • 5
  • 6
    “Os escravos no Brasil”.
  • 7
    A busca, em https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/, por “catálogo” e por “livros”, nos deu, como resultado, 136 dessas coletâneas de referências bibliográficas; foi dentro delas que encontramos as duas obras de Xavier de Ricard.
  • 8
    Disponível em http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/. Acesso em 05/09/2022.
  • 9
    Sua duração foi de pouco mais de sete meses, de 5 de julho de 1885 a 28 de fevereiro de 1886, num total de 35 números.
  • 10
    Órgão dos interesses franceses na América do Sul.
  • 11
    À Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro devemos agradecer a gentileza e o trabalho de nos enviar o arquivo digitalizado das imagens microfilmadas.
  • 12
    “Hino para a festa da Federação de 14 de julho de 1792”. O nome do autor está ilegível.
  • 13
    “Plantando o carvalho dos Estados Unidos da Europa no jardim de Hauteville-House”.
  • 14
    Não está explicitado, mas sabemos que a tradução foi feita por Ricard.
  • 15
    Que não conseguimos identificar.
  • 16
    Sendo essa edição do Sud-Américain de 6 de dezembro, verão no Brasil, a referência geográfica aí só pode ser a França.
  • 17
  • 18
    “Em um romance — que não se propõe a ser uma banal narrativa de aventuras — o enredo é de somenos importância; o que se impõe é a evocação sincera da vida exterior e dos personagens”. (tradução nossa)
  • 19
    Ibid., p. 798.
  • 20
    .................................. eu vejo sempre, Astro, teu olhar claro através do mar negro...
  • 21
    Ver nota 2 acima.
  • 22
    Idem nota anterior.
  • 23
  • 24
  • 25
    Na edição de 26 de julho 1885, à página 3.
  • 26
  • 27
    Op. cit., pp. 199-200. Na edição em livro dos Poèmes de l’esclavage et legendes des indiens, em 1884, pela Garnier, afirma-se que a tradução foi realizada pela redação da Revue Commerciale, Financière et Maritime.
  • 28
    “Les Chants de l’équateur ont du reste été traduits, dès leur apparition, par Charles Morel, Xavier de Ricard, Émile Deleau et Allain.” — LE GENTIL, 1931LE GENTIL, Georges. L’influence parnassienne au Brésil. Revue de Littérature Comparée, v. XI, n. 1, p. 23-43, 1931. , p. 27 (“Os Cantos do Equador, de resto, foram traduzidos, logo após sua publicação, por Charles Morel, Xavier de Ricard, Émile Deleau e Allain.”).
  • 29
    Cf. ANATOLE, 1979ANATOLE, Josette. Echos brésiliens dans quelques lettres de Louis-Xavier de Ricard. Littératures, numéro spécial 1, p. 35-45, 1979., p. 42 — “... Sr. Mello Moraes (sic), de quem já vos falei e de quem vos envio um volume — em seu nome — pelo próximo correio. Os Poemas da Escravidão. Está traduzido de modo estúpido, a despeito do bom senso, por alguém chamado Morel...”
  • 30
    ALENCARALENCAR, José de. Le Fils du soleil (les Aventuriers, ou le Guarani). Traduzido do Português por L. Xavier de Ricard. Paris: J. Tallandier, [1902]., José de. Le Fils du soleil (les Aventuriers, ou le Guarani). Traduzido do Português por L. Xavier de Ricard. Paris: J. Tallandier, [1902].
  • 31
    Há registro de uma tradução com esse mesmo título, mas realizada por Albert Savine. Vide BEZERRA, 2019BEZERRA, Valéria Regina. A presença das obras de José de Alencar na França (1863-1907). Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 41, e41666, 2019. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciLangCult/article/download/41666/pdf/ . Acesso em: 13 out. 2022.
    https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/...
    .
  • 32
    ”O Rio é uma cidade intelectualizada, bem mais do que Buenos Aires. Isso quer dizer que, ali, poderei me dedicar um pouco à literatura [...]” — ANATOLE, 1979ANATOLE, Josette. Echos brésiliens dans quelques lettres de Louis-Xavier de Ricard. Littératures, numéro spécial 1, p. 35-45, 1979., p. 37. Trata-se, como também nas citações seguintes, de trecho de cartas enviadas ao poeta Auguste Fourès.
  • 33
    ”Mas o Rio é outra coisa. Há ali um público muito numeroso e muito apaixonado por tudo que vem da França. Só se leem e só se vendem livros franceses e estou certo de que mais do que em muitas cidades francesas (eu me refiro às maiores). (...) Nos jornais, só se fala de livros franceses, só se representam peças francesas. O brasileiro possui grandes habilidades literárias e é fanático pela França.” ANATOLE, 1979ANATOLE, Josette. Echos brésiliens dans quelques lettres de Louis-Xavier de Ricard. Littératures, numéro spécial 1, p. 35-45, 1979., p. 38.
  • 34
    “A literatura brasileira não deixa de ser interessante: ela não é, de modo algum, negligenciável, com seus evidentes defeitos da imaturidade. Mas o brasileiro é certamente o povo mais literário da América do Sul [...]” — ANATOLE, 1979ANATOLE, Josette. Echos brésiliens dans quelques lettres de Louis-Xavier de Ricard. Littératures, numéro spécial 1, p. 35-45, 1979., p. 40.
  • 35
    “Recebi ao mesmo tempo vossos quatro exemplares de La Lauseta: imediatamente dei um deles a um dos literatos mais distintos do Brasil, Mello Moraes Filho [...]” — ANATOLE, 1979ANATOLE, Josette. Echos brésiliens dans quelques lettres de Louis-Xavier de Ricard. Littératures, numéro spécial 1, p. 35-45, 1979., p. 41.
  • 36
    Ver ANATOLE, 1979ANATOLE, Josette. Echos brésiliens dans quelques lettres de Louis-Xavier de Ricard. Littératures, numéro spécial 1, p. 35-45, 1979., p. 40: ”Nous sommes dans la saison de la fièvre jaune. Elle commence bien : de trente à cinquante cas par jour. Si le temps reste le même on nous prédit pour le mois de février et celui de mars, une belle épidémie. Espérons que nous y échapperons.” — ”Estamos na estação da febre amarela. Ela começa bem: de trinta a cinquenta casos por dia. Se o tempo continua assim, nos preveem, em fevereiro e março, uma bela epidemia. Esperemos que possamos escapar a ela.”
  • 37
    Curiosamente, aparece no Le Sud-Américain uma faceta muito pouco conhecida desse escritor: vários anúncios de seu gabinete de medicina (Mello Moraes Filho foi também médico). Terá Ricard utilizado os préstimos profissionais do escritor brasileiro?
  • 38
    “A imprensa brasileira é a menos acolhedora e a mais vil de todas as imprensas. Não mantenho boas relações com ela. Já o sabeis, aliás, se haveis lido os últimos números do jornal [Le Sud-Américain]. A verdade é que, aqui, invejam e detestam a França; o império brasileiro, apodrecido a um grau de decomposição difícil de imaginar, tem medo da propagação das ideias democráticas.” — ANATOLE, 1979ANATOLE, Josette. Echos brésiliens dans quelques lettres de Louis-Xavier de Ricard. Littératures, numéro spécial 1, p. 35-45, 1979., p. 42.
  • 39
    Ambas as gravuras estão no Journal des Voyages, de 22 e 29 de agosto de 1886JOURNAL des voyages et des aventures de terre et de mer. Paris, 1877-1929. Disponível em: Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6859678b/f1.item . Acesso em: 01 nov. 2022.
    https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6...
    .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Nov 2022
  • Aceito
    03 Dez 2022
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