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A ecocrítica norte-americana de século XXI: a contestação à condição pós-humana em Political Cactus Poems de Jonathan Skinner

RESUMO

No contexto poético norte-americano, o intercâmbio da reconhecida ontologia com base no conceito da natureza como universo extra-humano e a sua concomitante epistemologia na poética realça-se como contraste aos devastadores resultados do capitalismo atual. Além disso, o lugar da ecocrítica na comunidade de poetas dos Estados Unidos oferece uma possibilidade de gerir uma nova concepção do transnacionalismo. Nasce uma metalinguagem desconstrutiva e anti-hegemónica na poesia ecocrítica como expressão de um possível paradigma cuja finalidade é de servir como vanguarda de confronto à corrente sociopolítica da maioria. Um exemplo pouco estudado e reconhecido no âmbito da língua portuguesa, mas cuja presença vem a calhar num momento propício para a expansão dos estudos da literatura ecocrítica a um patamar transnacional e global, é o poeta norte-americano Jonathan Skinner. A sua primeira coleção de poemas, Political Cactus Poems (2005), revela uma novidosa epistemologia extra-humana na qual a natureza recobra a sua primacia por meio da expressão duma ética natural.

Palavras Chaves:
ecocrítica; Jonathan Skinner; poesia americana

ABSTRACT

In the North American poetic context, the exchange of a recognized ontology based on the concept of nature as an extra-human universe and its concomitant poetic epistemology are highlighted in contrast to the devastating results of modern capitalism. Besides this, ecocriticism’s place in the United States community of poets offers the possibility of generating a new concept of transnationalism. An antihegemonic and deconstructive metalanguage is born from ecocritical poetry as an expression of a possible paradigm whose goal is to serve as the vanguard to a confrontation with a majority sociopolitical current. An example scarcely studied or recognized in the environment of the Portuguese language, yet whose presence falls in a propitious moment for the expansion of studies on ecocritical literature at a transnational and global level, is the North American poet Jonathan Skinner. His first collection of poems, Political Cactus Poems (2005), reveals a novel, extra-human epistemology in which nature recovers its primacy by way of the expression of a natural ethic.

Keywords:
ecocriticism; Jonathan Skinner; American poetry

Uma notável variedade de temáticas se apresenta sob esta delineação, como os estudos do chamado “turismo escuro” (CARRIGAN, 2014CARRIGAN, Anthony. Dark tourism and postcolonial studies: Critical intersections. Postcolonial Studies, v. 17, n. 3, p. 236-250, 2014. , p. 243) e a dialética das realizações poéticas em torno das crises mundiais causadas pela fragmentação do equilíbrio natural no antropocénico: “[...] eco-poetics: the poetics of people sundered from a natural context, seeking return; strategies of compensation for cultural/linguistic pressures toward fragmentation” (ARNOTT et al., 2012ARNOTT, Joanne et al. Tomorrow and tomorrow and tomorrow: On poetry and the environmental crisis. Capilano Review, Vancouver, v. 3, n. 16, p. 78-95, 2012. , p. 84).1 1 A eco-poética: a poética dum povo separado do seu contexto natural, à procura do retorno; estratégias de compensação pelas pressões culturais/linguísticas até à fragmentação. (Tradução nossa). No âmbito norte-americano, o intercâmbio da reconhecida ontologia com base no conceito da natureza como universo extra-humano com a sua concomitante epistemologia na poética realça-se como contraste aos devastadores resultados do capitalismo atual.

Além disso, o lugar da ecocrítica na comunidade de poetas dos Estados Unidos oferece uma possibilidade de gerir uma nova conceição do transnacionalismo: “Nature and the biosphere when seeking to re-anchor American Studies within a more transnational and comparative framework” (BELLARSI, 2009BELLARSI, Franca. The challenges of nature and ecology. Comparative American Studies, London, v. 7, n. 2, p. 71-84, jun. 2009., p. 72).2 2 A natureza e o bioesfera ao andar à busca de reancorar os estudos americanos dentro duma estrutura mais transnacional e comparada. (Tradução nossa). De forma similar à crítica pós-humanista, nasce uma metalinguagem desconstrutiva e anti-hegemónica na poesia ecocrítica como expressão de um possível paradigma cuja finalidade é servir como vanguarda de confronto à corrente sociopolítica da maioria, expressão última do falso predomínio do antropocénico:

[…] ecocritics have attacked anthropocentrism and the centrality it accords to man (more often so than to woman, tellingly enough) in the realm of creation - a central place repeatedly invoked over time to legitimize the subordination, abuse, and erasure of the non-human ‘other’. Along a broad spectrum ranging from less to more radical stances, ecocritics seek to displace anthropocentrism in favour of ecocentrism […] and to substitute interdependence and exchange for subordination. If ecocriticism shares with postmodernism and post-structuralism some of their discontents with Modernity, ecocritics have, however, also felt compelled to distance themselves in part from some of the excesses and more extreme positions of postmodernism and deconstruction, as well as from the ethical relativism which these other critiques of the Modern may seem at times to condone in connection with the environment. (BELLARSI, 2009BELLARSI, Franca. The challenges of nature and ecology. Comparative American Studies, London, v. 7, n. 2, p. 71-84, jun. 2009., p. 74).3 3 Os críticos ecológicos já agrediram o antropomorfismo e a centralidade que privilegia ao homem (mais frequentemente do que à mulher, interesantemente) no âmbito da criação — um lugar central invocado repetidamente e ao longo para legitimizar a subordenação, o abuso, e o apagamento do outro “não-humano”. Através dum largo espetro que abrange posturas menos ou mais radicais, esses críticos procuram a deslocação do antropoformismo a favor do ecocentrismo […] e de substituir com a interdependência a subordinação. Se a ecocrítica compartilham com o pós-modernismo e o pós-estruturalismo algumas das suas inquietações para com a Modernidade, os próprios ecocríticos também se sentiram compelidos, no entanto, a distanciarem-se em parte de algo dos excessos a a política extremista do pós-modernismo e da deconstruição, e também dod relativismo ético que anteriores críticas do modernismo às vezes pareciam perdoar, em conexão com o meio ambiente. (Tradução nossa).

Portanto, a finalidade desejada, em princípio, concebe-se como o descobrimento, por meio da poesia, da relação entre as ações da humanidade e a terra na qual os resultados e detritos de tal ação forjam um mundo áspero e sem futuro certo.

Some of this poetry addresses conceptual challenges of the Anthropocene, such as the difficulty of grasping the scale of humankind’s planetary impact in relation to deep time, while some confronts material problems, such as the damage toxic anthropogenic chemicals and materials such as plastic do to human and environmental health” (KELLER, 2017KELLER, Lynn. Recomposing Ecopoetics: North American poetry of the self-conscious anthropocene. Virginia: University of Virginia Press, 2017. 304 p., p. 3).4 4 Algumas destas obras poéticas tratam dos desafios conceituais do antropocénico, como as dificuldades em of compreender o tamanho do impacto humano no planeta em relação ao tempo profundo, enquanto outras se confrontam com problemas materiais, como a danificação que materiais como o plástico, e substâncias químicas antropogénicas tóxicas, causam na saúde ambiental e humana. (Tradição nossa).

Consta, portanto, no reconhecimento da dialética e da concomitante dependência do ser humano, e a natureza, ser esse todo um universo construído de nações extra-humanas:

[…] even if human communities continue to differ as to how they see the relationship between Nature and Culture and as to the kind of ecological imprint they leave upon their environment, no human society has historically existed completely independently from Nature, be it at the material level or the one of cultural representation. No societies or individuals can entirely extirpate themselves from the exchange between the human and the non-human (though, admittedly, the myriad forms taken by this exchange defy attempts at universal generalization). On the other hand, Nature actually turns out, in certain respects, to be one of the most ineluctably transnational realities of all. (BELLARSI, 2009BELLARSI, Franca. The challenges of nature and ecology. Comparative American Studies, London, v. 7, n. 2, p. 71-84, jun. 2009., p. 72).5 5 Se as comunidades humanas continuarem a divergir em como se apercebem da relação entre a natureza e a cultura, e quanto ao impacto ecológico que deixam no meio ambiente, ninhuma sociedade humana existiu historicamente em total escisão à natureza, quer ao nível material, quer ao da representação cultura. Nenhuma sociedade nem indivíduo pode-se extirpar totalmente do intercâmbio entre o humano e o não-humano (embora, admitidamente, a plétora de formas que este intercâmbio já tomou desfia as tentativas das generalizações universais). Por outro lado, a natureza, por sua vez, e em certos respetos, é uma mas realidades mais ineludivelmente transnacionais de todas. (Tradução nossa).

Talvez esses laços com o binarismo patente do detrito humano como com a suposta pureza do mundo natural sejam vistos como símbolo da evolução da poesia ecocrítica nos Estados Unidos:

The tenacity of Romantic perspectives on nature and the human relation to it fostered an ongoing sympathy among early ecocritics for the ideas and feelings expressed in poetry from that tradition. Environmental critics writing in the late decades of the twentieth century responded to what was perceived as the continually increasing separation of industrialized humanity from nature much as the Romantic poets themselves did nearly two centuries earlier: by lamenting that split and by treating poetry as a means of transcending it. (KELLER, 2017KELLER, Lynn. Recomposing Ecopoetics: North American poetry of the self-conscious anthropocene. Virginia: University of Virginia Press, 2017. 304 p., p. 10).6 6 A tenacidade da perspetiva romântica acerca da natureza e a relação humana para com esta alimenta uma contínua simpatia entre os primeiros ecocríticos pelas ideias e os sentimentos expressos nessa tradição poética. Os críticos ambientais, a redatarem nas últimas décadas do séc. XX, respondiam àquilo que se percebia como a continuamente incrementada separação da humanidade industrializada à natureza, semelhante à reação dos românticos dois séculos antes: em lamentar a escisão e tratar a poesia como forma de trascendê-la. (Tradução nossa).

Noutras palavras, a poesia que se direciona exclusivamente para a natureza sem aprofundização do discurso crítico, de forma semelhante àquela das últimas gerações de poetas em Portugal, em termos da acerba desconstrução da superficialidade dos discursos sociopolíticos no séc. XXI, dissolve-se numa palpável insuficiência epistemológica (SIMON, 2011SIMON, Robert. Algumas novas vozes em Portugal: Um estudo de três poetas do século XXI. Portuguese Studies Review, v. 16, n. 2, p. 153-162, 2011.; KELLER, 2017KELLER, Lynn. Recomposing Ecopoetics: North American poetry of the self-conscious anthropocene. Virginia: University of Virginia Press, 2017. 304 p.). É sob essa aproximação teleológica que vários poetas, a partir da metade do séc. XX até hoje, dedicam as suas obras à abertura dessa problemática relacional para um público leitor mais abrangente, “[...] highly distinctive intervention into debates on the Anthropocene has vital relevance for the critical discourse of ecopoetics and the environmental humanities more broadly” (BLOOMFIELD, 2019BLOOMFIELD, Mandy. Review of: Lynn Keller, Recomposing Ecopoetics: North American poetry of the self-conscious anthropocene. Contemporary Literature, v. 60, n. 1, p. 132-137, abr. 2019., p. 132).7 7 [...] uma intervenção notavelmente distinta nos debates sobre o antropóceno tem uma relevância essencial para o discurso crítico da ecopoesia e aos estudos humanísticos ambientais em termos mas abrangentes. (Tradução nossa). A raíz dessa crítica à poética contemporânea geral, a poesia ecocrítica norte-americana pretende uma movimentação até a posição oposta, a profundização do contributo do simbolismo natural por meio da sua primacia na relação com a humanidade.

Um exemplo pouco estudado e reconhecido no âmbito da língua portuguesa, mas cuja presença vem a calhar num momento propício para a expansão dos estudos da literatura ecocrítica a um patamar transnacional e global, é o poeta norte-americano Jonathan Skinner. O autor nasceu em 1967 na cidade da Santa Fé, no Novo México, e formou-se na Universidade Estadual de Nova Iorque, em Buffalo (SUNY-Buffalo), com doutoramento em letras em 2005. Após vários anos a desempenhar o cargo de professor de estudos ambientais na Bates College, realiza o seu cargo atual como professor de inglês e estudos comparados na Universidade de Warwick. A sua primeira coleção de poemas, Political Cactus Poems (2005), revela uma nova epistemologia extra-humana na qual a natureza recobra a sua primacia por meio da expressão duma ética natural.

A abordagem crítica enfatiza que a obra de Skinner, conforme as suas próprias elucidações a respeito, a poesia de foco ecológico “[...] may extend from the topologically referential to ethnological” (BELLARSI, 2009BELLARSI, Franca. The challenges of nature and ecology. Comparative American Studies, London, v. 7, n. 2, p. 71-84, jun. 2009., p. 79).8 8 Talvez se extenda do topologicamente referencial à lógica étnica A extensão da poesia ecológica, portanto, pode existir à beira, e até fora, das limitações impostas pela noção duma trajetória focada exclusivamente na crise do meio-ambiente. Numa entrevista em 2012, Skinner explorou a relação de conceitos que o informa acerca da noção duma poética ecocrítica numa recente entrevista:

Ecopoetics, as I understand it … is the pursuit of connections that reach beyond the human sphere of interest and also, I think, beyond the frame of the artwork or poem. At the same time, ecopoetics acknowledges disconnection-how we are both connected to and disconnected from the environment. Focused on crossing, ecopoetics explores the difficulties and opportunities at the boundary. (SKINNER, ANO, p. 0 apudHUME, 2012SKINNER, Jonathan. Writing the dark side of travel. New York: Berghahn Books, 2012. 228 p., p. 754-755).9 9 A ecopoesia, tal como eu a entendo … é a busca de vínculos alcança mais além da esfera de interesses humanos e também, penso eu, além do plano artístico ou poético. Ao mesmo tempo, a ecopoesia reconhece a desconexão—como somos ligados e desligados ao meio ambiente. Focalizado na encruzilhada, a ecopoesia explora as dificuldades e as oportunidades na margem. (SKINNER, ano, p. 0 apud HUME, 2012, p. 754-755, tradução nossa).

Esse movimento ontológico na margem das limitações reconhecidas da poesia contemporânea surge para o patamar mais visível da expressão poética na obra de Skinner, conforme se vê a seguir.

Um poema publicado avulso inverte o discurso da sensibilidade à crítica do capitalismo, um elemento essencial, embora não necessariamente singelo, do neoliberalismo contemporâneo:

Ecotrigger Warning:

Please be advised: this poem
may contain references to
environmental destruction. It might
suggest inferiority of the Homo
sapiens. Although you may not feel
formally threatened by this poem
your concern for fellow humans
who could fear for their safety
prompting very public reactions
might upset you. Poetic forms
can be violent, traumatic: your life
beyond this poem, unexpected,
misunderstood, might be in peril.
Your learning could be disrupted.
If you have known colonialism
you might be triggered. This poem
is liable to make you squirm.
Very possibly, rising temperatures
will make us change our lives.

(SKINNER, 2015SKINNER, Jonathan. Ecotrigger Warning. Colorado Review, v. 42, n. 3, 195, 2015., p. 195).

O poema apresentada começa na imitação dum aviso oficial, técnica já notada entre os poetas pós-modernos como elemento desconstrutivo/desnaturalizador. No entanto, expressa por meio duma aguda ironia, vários conceitos essenciais do discurso da ecocrítica. Enfatiza o ativismo ecológico como ameaça às estruturas de poder, não do ponto de vista coletivo, mas da perspetiva do parceiro individual duma inquestionável hegemonia humana. A partir daqui, o poema, e mais especificamente, a palavra poética, torna-se arma de luta explícita contra o perigo da normalização da destruição do meio-ambiente. Nos cinco últimos versos, o ideal da perturbação (“disruption”) desse processo atrai a noção histórica do colonialismo como ponto de partida para o desmantelamento do próprio colonialismo humano do âmbito natural, apresentado nesse e noutros poemas em oposição à presença humana. É assim que xs leitorxs conseguem aperceber-se da dicotomia “humano/não-humano” que a voz poética estabelece.

Entre os vários temas que permeiam a obra poética de Skinner, inclui-se a aproximação da presença humana como interferência no âmbito natural. No seção-poema “Mined” (“minado”), por exemplo, a série de indagações filosóficas cujo ponto de partida é sempre algum objeto natural ou humano, o qual participa nesse diálogo dalguma maneira, a voz poética explica que: “[...] the British consulate donates these / bedbugs to the next resident / alien or ancient, a vocal matzoh / to this world of trash and plastic / the squirrel in a window of light […]” (SKINNER, 2005SKINNER, Jonathan. Political cactus poems. Michigan: Palm Press, 2005. 108 p., p. 14).10 10 o consulado britânico doou estes / percevejos axs próximxs residentes / foránexs ou ancianxs, um matzoh vocal / a este mundo de lixo e plástico / o esquilo numa janela de luz (Tradução nossa). A ação humana torna-se uma infestação para os futurxs residentes do espaço, e, se o tomarmos como microcosmo (o qual é lógico, dada a presença dessa técnica poética ao longo da coleção), a relação metonímica do ser humano e o percevejo assenta as bases para os símbolos carregados de significado crítico a seguir. O matzoh, uma espécie de pão judaico sem levedura, mas com um forte simbolismo religioso e cultural essencial para o povo judaico, responde às ações humanas num grito de aviso à natureza que se tenciona aproximar e, portanto, aperceber da situação. Resolve-se numa chamada ao afastamento às sociedades humanas como criadoras de “lixo e plástico” e, assim, destrutivas.

Uma problematização, a raiz da anterior, aparece na forma da temática da abjeção da natureza após a invasão humana no espaço extra-humano. Essa imposição ocorre tanto historicamente como na atualidade, conforme a linguagem poética do livro.

A forma de exemplo, os seguintes versos traçam a linha destruidora da humanidade de acordo com a perspetiva da natureza: “I don’t see any hope / year after year, another ergot / epidemic in the colonies / if you remember me, spurned / by the worldly vanities / in an elegant but weather- / beaten frame - unlike Priam / I had no orifices. this is sick.” (SKINNER, 2005SKINNER, Jonathan. Political cactus poems. Michigan: Palm Press, 2005. 108 p., p. 12).11 11 Não vejo nenhuma esperança / ano trás ano, outra cravagem / epidemia nas colónias / se lembrares de mim, desprezado / pelas vaidades do mundo / numa marcação elegante mas batida / pelo tempo - não como Príamo / eu não tinha orifícios. isto é asqueroso. (Tradução nossa). Os versos citados representam uma expressão poética do desespero provocado pelo ciclo de destruição da natureza. Esse ato de esperpentismo vem à sua infeliz realização por parte da presença e das ações do ser humano. A aparência de Príamo, a figura mitológica do último rei de Troia, morto pelo filho de Aquiles, como ponto de comparação com o sofrimento do meio-ambiente intensifica-se pela falta de “orifícios” para a libertação dum grito ou duma chamada de atenção. O assédio à natureza, então, leva-se a cabo numa doentia violação dos direitos concretos e físicos do meio ambiente.

O subsequente passo à descrição do processo da apropriação humana do mundo natural se apresenta, na crítica à humanidade, pela crise provocada num mundo fora da esfera humana. O poema “Niagara” ilustra essa evolução crítica:

Measure wet splashing pool
frayed on the smooth
gestures inside impassive
catches, tributary shifts
stolen from the big cool
opposing forces at notched
meeting places, matter’s clatter
earth pummelled [sic] with life
some four odd billion years.

(SKINNER, 2005SKINNER, Jonathan. Political cactus poems. Michigan: Palm Press, 2005. 108 p., p. 27).12 12 Medir uma piscina natural molhada desgasta nos gestos suaves dentro de safras impassíveis, mudanças tributárias roubadas do grande arrefecimento forças opostas em lugars de encontro entalhados, o alvoroço da matéria a terra esmagada com a vida há uns quantro mil milhões de anos

O apreço pela natureza é-nos palpável no poema. Expressa-se a sensação da movimentação da água, a abertura duma gota aos vários cantos aos quais o fluxo natural do espaço rochoso permite entrar. Vários contrastes, por sua vez, existem e prosperam nesse âmbito primordial. A solidão da pedra orienta e simultaneamente rejeita o poder da agilidade da água. A vida logo impõe-se, descrita como objeto que “esmagou” (“pummelled”) a superfície do planeta, em contraste com a pacificidade do espaço. Essas imagens da água fluvial geram um momento alegórico da luta pela sobrevivência da vida num planeta em perpétua mudança e decadência.

No entanto, outro poema da mesma seção, “Wind” (Port. “Vento”), revela uma possibilidade de renascimento na destruição, oferecida pela mesma natureza que o ser humano se dedica a solapar:

Etretat
at eyrie in grasses
thrushes braced for night
look out as far as sea
to a world in prickly
connivance of wind and sprouts
pulled into tufts of air
what is liquid is a friction
aggregates compiled sound

(SKINNER, 2005SKINNER, Jonathan. Political cactus poems. Michigan: Palm Press, 2005. 108 p., p. 30).13 13 Falésia no ninho entre as ervas os tordos preparados para a noite olham tão longe como o mar até a um mundo em conivência espinhosa de vento e de brotos arrancados em tufos de ar aquilo que é líquido é uma frição conjuntos complilados de som

A cena descreve a falésia perto da aldeia que compartilha o seu nome, Étretat. É de notar que o espaço físico da audaz escarpa reluz num branco de alabastro. O vento, elemento impérvio aos mesmos efeitos provocados pela evolução geológica do mundo, apresenta-se como líquido invisível. Um diálogo estabelece-se entre esses símbolos é mediado pela voz poética. Descobre-se, portanto, o contraste da mesma água, uma vez criadora e destrutora, em colaboração com o vento que moldeia o meio ambiente. Eis também a primeira menção, embora indireta, dos cactos (“prickly / connivance of wind and sprouts”), os quais servem como objeto de estudo poético na segunda parte da obra.

O antropomorfismo dos cactos resulta patente nesses poemas. Faz também sentido, dada a predileção de Skinner pelo processo de personificação como ponte de compreensão para a conceição humana da natureza alheia. Por exemplo, em “Ariocarpus Fissuratus” (SKINNER, 2005SKINNER, Jonathan. Political cactus poems. Michigan: Palm Press, 2005. 108 p., p. 55), cujo título vem do nome científico dum cacto baixo e redondo e do qual nasce uma só flor púrpura, exemplifica essa aproximação que, com base no ponto de vista poético expresso neste estudo, apenas se pode delinear como “transcultural”:

Aryan theories hold that
a carp gave birth to Adam
deeply wrinkled on the surface
like a toad with a ruff

his blunted tip rises into the sun
with white gunk between the buds
a fully bearded urethra
lips cracked, the stamens burgeon14 14 teorias arianas asseguram que a carpa deu a luz a Adão profundamente enrugada na superfície como um sapo com rufo a sua ponta embotada alçou até ao sol de gosma branca entre os brotos uma uretra completamente barbuda lábios partidos, os estames florescem

No poema, uma evidente antropomorfização reescreve esse cacto, aparentemente de uma beleza singela e subtil, num ser patético. A identidade sociopolítica vem gerada por teorias de supremacia falsas, e a realidade física dessa planta antropomorfizada apresenta-se como “profundamente enrugada” (“deeply wrinkled”). Essa decadência não a atingiu pelo tempo, pois a voz poética descreve uma cena de nascimento teleológico, apesar da sua suposta majestosidade, pela sua própria natureza como ser nascido à reprodução e subsequente destruição do seu ambiente, tal como se evidencia no último verso do poema quando explica que “the stamens burgeon”.

A obra de Skinner, portanto, desmente o contributo humano e revela-o como uma mera infusão de intervenções negativas, enquanto realça a noção do panteão natural como uma complexa rede de relações mais bem denominadas como transnacionais. Entre os versos que apoiam esse conceito transferencial, encontram-se também as seguintes palavras do poema “Second”, o qual abre a coleção: “[...] infinite scale, neither down nor up, the same / heard even as silence, made tangible / as a dormouse or a rock, a tick / conceivable but not by any vertebrate [...]” (SKINNER, 2005SKINNER, Jonathan. Political cactus poems. Michigan: Palm Press, 2005. 108 p., p. 3).15 15 escala infinita, nem para cima nem para baio, os mesmos / ouvidos até no silência, feitos tengíveis / como um ratinho ou a pedra, o carrapato / concebível mas não por nenhum vertebrado (Tradução nossa). Existe uma harmonia, representada como um som imperceptível como tal, mas sim tangível em forma sólida e viva (inclui-se a pedra como ser vivo no universo natural de Skinner), um nível de comunicação e comunalidade entre as entidades não-humanas.

Ao nível macrotemático, numa coleção de 2012, Writing the Dark Side of Travel, Skinner explica que o fascínio para com as consequências destrutivas da modernidade, e talvez da mera presença humana no planeta, tem-se comodificado por meio da fixação de lugares de sofrimento celebrado, como os museus dedicados ao holocausto europeu:

Museums such as the Museum of Tolerance in Los Angeles and the Holocaust Museum in Washington, DC, involve survivors in their activities to personalize and dramatize the tourist’s visit experience. The living connection with the past literally brings home the horror and lends authenticity to the uneasy representation of the Holocaust […] reactions to Auschwitz and the Museum of Tolerance show how difficult it is to foster a balanced and respectful but disturbing representation of a darkness without causing offence or failing to elicit the appropriate response from the visitor. (SKINNER, 2012SKINNER, Jonathan. Writing the dark side of travel. New York: Berghahn Books, 2012. 228 p., p. 8-9).16 16 Museus como o Museu da Tolerãncia em Los Angeles e o Museu do Holocausto em Washington, DC, involvem aos sobreviventes nas suas atividades em personalizar e dramatizar a experiência dx turista. O laço vivo com o passado traz literalmente a casa o terror e outorga autenticidade à representação inquieta do Holocausto […] as reações a Auschwitz e o Museu da Tolerância demonstram as dificuldades em nutrir uma representação equilibrada e respetosa e, por sua vez, perturbadora da sem ofender nem falhar em invocar as reações apropriadas the dxs visitantes. (Tradução nossa).

Nesse sentido, na questão da legibilidade do mundo por parte do ser humano, existem relações intersticiais e essenciais cujo miolo se vê na “[...] relationship between cultural representation and touristic memorialization” (CARRIGAN, 2014CARRIGAN, Anthony. Dark tourism and postcolonial studies: Critical intersections. Postcolonial Studies, v. 17, n. 3, p. 236-250, 2014. , p. 243-244).17 17 [...] a relação entre a representação cultural e a memorialização turística Na reescrita da memória histórica como forma de conhecimento extremo, a abjeção da experiência alheia do indivíduo abre a porta a uma fenomenologia da abjeção humana:

[O] princípio de alteridade, tal como a identificação, e diz sobre as maneiras pelas quais o Ego converte o mundo exterior (a sociedade e a tecnologia, no caso do estudo) em percepção própria - a parir da qual se naturalizam certos dualismos (semelhante/dessemelhante ou igual/desigual, por exemplo). Em suma, identificando-se com tal realidade, ou não, todos os elementos constituintes da mesma são internalizados pela ‘célula individual’. Daí termos afirmado anteriormente que o corpo é tanto imagem exterior quanto interior de seu ‘entorno’ (FERREIRA; MACHADO; CAMINHA, 2016FERREIRA, Andréa Martins; MACHADO, Dina Maria; CAMINHA, Tibério. Um corpo tecnorgânico para a era da cibercultura: Efeitos sobre o sexo e o gênero. Trabalhos Em Lingüística Aplicada, v. 55, n. 2, p. 483-502, maio 2016., p. 487).

Se aplicarmos essa noção à poesia de Skinner e, em particular, à temática que se desenvolve nos poemas apresentados previamente, num sentido teleológico mais abrangente, chega-se à conclusão de que a voz poética de Skinner, na sua própria trajetória epistemológica e ecocrítica, contesta a imposição das forças brutais humanas no âmbito natural por meio da abjeção do mesmo ser humano, tornando-o um mero símbolo antagónico da transnacionalidade da flora e fauna do nosso planeta, um estado a ser amálgama das oposições criação/destruição de todo um universo.

References

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  • SKINNER, Jonathan. Writing the dark side of travel New York: Berghahn Books, 2012. 228 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2022
  • Aceito
    04 Jan 2023
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