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A intencionalidade estética autoral em Uma duas, de Eliane Brum * * Este texto faz parte de recortes da minha tese de doutorado A voragem maternal em Uma duas, de Eliane Brum, defendida em 31 março de 2023 no Programa de Pós-Graduação de Literatura, da Universidade de Brasília. Disponível em: http://repositorio.unb.br/jspui/bitstream/10482/47565/1/neiladasilvadesouza_tese.pdf.

The Authorial Aesthetic Intentionality in One Two, by Eliane Brum

RESUMO:

Este artigo tem por objetivo demonstrar a intencionalidade estética de Eliane Brum na constituição do romance Uma duas (2011). Assim, ao me aproximar do objeto estético em questão, procuro captar intencionalidades com auxílio de informações de fora do texto, seja pela gênese da obra analisada, ou pelo conjunto de obras da autora. Para tanto, usarei os estudos da teoria Epistemologia do romance.

PALAVRAS-CHAVE:
Uma duas; intencionalidade; leitor-pesquisador; conjunto de obras

ABSTRACT:

This article aims to demonstrate Eliane Brum's aesthetic intentionality in the constitution of the novel One Two (2011). Thus, when approaching the aesthetic object in question, I try to capture intentions with the help of information from outside the text, either by the genesis of the work generated, or by the set of works by the author. For that, I will use the studies of the theory Epistemology of the novel.

KEYWORDS:
One two; Intentionality; reader-researcher; set of works

Introdução

Uma duas (2011) é o primeiro romance de Eliane Brum e traz a narrativa de uma filha (Laura) e de uma mãe (Maria Lúcia) que possuem uma relação conturbada e não moram juntas há alguns anos. No decorrer dos fatos, o leitor depara-se com Laura, jornalista, que propõe escrever um livro com intuito de expurgar o ódio que sente pela mãe. Assim, na angustiante tentativa de se livrar dessa relação, Laura afirma: “ escrevo na esperança de que as palavras me libertem do sangue. Do corpo da mãe. Mas e se não existir eu além dessa mistura de carnes de mãe e filha? [...] não há como escapar da carne da mãe. O útero é para sempre” 1 1 Usarei as citações, conforme original impressa da obra de 2011, tanto no que se refere à cor vermelha quanto, às fontes ora itálico, ora negrito. ( Brum, 2011BRUM, Eliane. Uma duas. São Paulo: Leya, 2011. , p. 16). Dessa forma, Laura encontra na escrita um meio de demarcar corporalmente os limites entre ela e a mãe. No entanto, sua escrita é interrompida ao saber que Maria Lúcia está com uma doença terminal. Diante do impasse, a filha dispõe, mesmo a contragosto, a conviver com a mãe, a qual se encontra debilitada, para ajudá-la no processo de tratamento.

Distanciadas há tempos, por meio do reencontro das duas, o leitor aproxima-se da história de vida de cada uma, principalmente quando o receptor tem acesso às escritas de Laura e de Maria Lúcia. Isso acontece porque Laura, durante a produção do próprio livro, relata suas experiências nada afáveis com a mãe. Enquanto Laura sai do apartamento, a mãe interfere na escrita do livro da filha, e, assim, o leitor começa a desvendar o motivo dessa relação maternal ser conflituosa: “ é para os seus leitores que escrevo. Mas a decisão de publicar também a minha versão é sua. Será sempre sua. [...] Vai ter de me matar ou não na sua narrativa ” ( Brum, 2011BRUM, Eliane. Uma duas. São Paulo: Leya, 2011. , p. 71). Nesse fragmento, a personagem, por meio de suas intervenções nas páginas do livro de Laura, estabelece um diálogo com seu leitor e o convida a escrever junto com ela, como se fosse possível a este ser um coautor, assim, ele também pode interferir graficamente nas páginas do livro. Ao longo da narrativa, o leitor defronta-se com a estratégia de narradores que oscilam ora em primeira pessoa, ora em terceira pessoa. A narração em primeira pessoa cumpre a função de pôr incerteza à onisciência da terceira pessoa, conduzindo o receptor a refletir sobre o fato de que os acontecimentos são narrados sob o julgo de duas perspectivas: a versão de Laura e a versão de Maria Lúcia.

No desdobrar das inquietudes que o romance Uma duas me apresenta, ressalvo que a palavra voragem que se encontra de forma isolada no capítulo 22, instigou-me desde a primeira leitura. A forma como a voragem aparece no livro, por meio de recursos da diagramação, atribui-lhe uma inegável carga semântica, que parece intencionalmente querer interferir na experiência do leitor. No meu caso de leitora-pesquisadora, o modo como a palavra voragem está disposta na página, não só mexe com minhas percepções sensíveis diante da obra, mas também, ao criar ranhuras em minha experiência estética, leva-me a inúmeros questionamentos que se orientam pela pergunta kantiana de conhecimento “o que posso saber?” 2 2 O gesto desta leitora-pesquisadora tem o entendimento de que a pesquisa, em arte, nasce do esforço para se ter consciência a respeito da experiência. No entanto, é necessário fazer questionamentos para poder ir além do efeito estético. Por isso, a constante pergunta do sujeito transcendental de Kant “o que eu posso saber?”, presente em Crítica da razão pura (2018), pois ela conduz ao lugar do conhecimento, ligado a outros mecanismos que nascem da ordem subjetiva, mas que ultrapassa essa ordem: o que eu posso saber sobre voragem ao ler Uma duas? .

Lidar com aspectos referentes à maternidade no espaço literário permitem-me enxergar o quão as relações são complexas e possibilitam diferentes maneiras de abordagem sobre as complexidades da maternidade, que sempre esbarram em questões universais. No caso específico do romance de Eliane Brum, o questionamento da sacralização maternal apresenta-se como uma forte configuração a ser investigada, principalmente quando, ao buscar pesquisas externas ao romance, começo a entender a intencionalidade estética autoral de Eliane Brum. Desde a linguagem visceral, o uso da palavra voragem e os temas abordados em U ma duas, fazem parte de uma escolha intencional e vestígios que se repetem ao longo de sua produção intelectual. Assim, na busca por entender tanto a transmissão desse objeto estético em questão, como a recepção, faz-se importante atentar tanto para elementos intrínsecos quanto extrínsecos a ele.

A intencionalidade autoral e algumas teorias

A Epistemologia do romance 3 3 No site <http://epistemologiadoromance.com/>, é possível encontrar publicações de textos que surgiram a partir das discussões do grupo Epistemologia do romance. é entendida como uma teoria complexa na mediada em que se ampara em discussões, principalmente, de disciplinas basilares como a Estética, a Hermenêutica e a Epistemologia para uma melhor compreensão do objeto de criação artística. Por ser interdisciplinar, não quer dizer que não se esbarra em outras disciplinas. Ana Paula Caixeta e Maria Veralice Barroso no livro Verbetes da Epistemologia do romance (2019CAIXETA, Ana Paula Aparecida; BARROSO, Maria Veralice; BARROSO FILHO, Wilton. (org.). Verbetes da Epistemologia do Romance. v.1. Brasília: Verbena, 2019.) afirmam que a partir dos gestos estéticos e hermenêuticos, a Epistemologia do romance procura refletir filosoficamente sobre a estética enquanto lugar voltado para o entendimento da relação do sujeito com objeto de criação artística, a ponto de levar o leitor-pesquisador a um gesto epistemológico que permita extrair possibilidades de conhecimentos sensíveis sobre o humano ( Caixeta, 2019CAIXETA, Ana Paula Aparecida; BARROSO, Maria Veralice; BARROSO FILHO, Wilton. (org.). Verbetes da Epistemologia do Romance. v.1. Brasília: Verbena, 2019., p. 65). Esse leitor-pesquisador é aquele que sintetiza a busca consciente por algo na obra de arte, decompõe o objeto estético, fazendo com que haja uma maior aproximação do elemento constitutivo no interior da obra literária, no processo interpretativo.

Ainda em consonância com a ER 4 4 Em alguns momentos, no decorrer do artigo, usarei a sigla ER para substituir o termo Epistemologia do romance. , é importante decompor o romance e observar, concomitantemente, a intencionalidade estética na qual não há ingenuidade ou coincidências nem para o jogo do escritor nem para o jogo do leitor-pesquisador, já que são possíveis reações que as opções estéticas querem provocar. Será nesse jogo que haverá estratégia de constituição da obra por parte do autor jogador e de análise por parte do leitor-pesquisador jogador. Entretanto, quando esse leitor-pesquisador chega a um possível entendimento sobre a obra, surgirão outras assimilações, e, assim, o jogo permanecerá contínuo e inesgotável, e a cada nova leitura feita e refeita, a obra ganhará novos e múltiplos sentidos, novas e várias possibilidades de se jogar. Dessas considerações, observa-se que a busca parte do leitor(a)-pesquisador(a), e este(a) sempre poderá estabelecer novas formas de se jogar, conforme se relaciona com o objeto e promove conexões de reflexão.

Caixeta e Barroso mencionam ainda que o jogador constitui-se de duas instâncias com intencionalidade, “a primeira, o leitor-pesquisador, sujeito perverso e inquieto, que não se satisfaz com impressões iniciais e o efeito estético provocado pela obra; e a segunda, o autor, outro jogador inserido no jogo interpretativo, cuja obra não é vazia de intencionalidade” ( Caixeta; Barroso, 2019CAIXETA, Ana Paula Aparecida; BARROSO, Maria Veralice; BARROSO FILHO, Wilton. (org.). Verbetes da Epistemologia do Romance. v.1. Brasília: Verbena, 2019., p. 65-77). Sendo assim, jogar deixa de ser apenas uma brincadeira, para se fazer no ato de jogar junto, em uma estreita correspondência entre sujeito e objeto estético.

A respeito da intencionalidade autoral, ao longo do século XX, surgiram diversas análises sobre o apagamento do autor, e a intencionalidade estética, muitas vezes, ainda é condenada no âmbito de alguns estudos literários. Em seus estudos, no livro O Demônio da Teoria: Literatura e Senso Comum (2014COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. 2. ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014.), Antoine Compagnon volta-se à problemática apresentando diversas questões em torno das teorias relacionadas à literatura. Ele assinala questionamentos que perpassam teóricos, mas que não alcançam uma resposta de maneira satisfatória e uma dessas questões diz respeito à intenção do autor. Em suas palavras: “o ponto mais controvertido dos estudos literários é o lugar que cabe ao autor” ( Compagnon, 2014COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. 2. ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014., p. 8). A perspectiva adotada por Compagnon mostra-nos as questões teóricas no conjunto do contexto histórico-social, do autor, da realidade do leitor e da época em que foi escrita a literatura ( Compagnon, 2014COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. 2. ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014.. p. 44). Logo, segundo o crítico, as obras do passado vão sofrendo ressignificações no presente a partir de nossas vivências e experiências.

Para se pensar a questão, textos como A morte do autor, publicado em 1968 , de Roland Barthes, e O que é um autor?, divulgado pela primeira vez em 1969, de Michel Foucault, discutem a instância autoral sob o viés do seu apagamento. Para Barthes, a concepção de autor não diz respeito a um deus que cria fundamentado na sua inventividade. Além disso, Barthes dá abertura ao leitor, já que a morte de um indizível autor-criador permite, consequentemente, o nascimento do leitor. “A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo onde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda a identidade, a começar pela do corpo que escreve” ( Barthes, 2004BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 57-64. , p. 58-59). Enquanto Foucault (2009FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Tradução de Inês Autran D. Barbosa. Rio de janeiro: Forense, 2009. p. 264-298., p. 265-267), ao explorar a função-autor, demonstra que a configuração da ideia de escritor se relaciona com o funcionamento desse nome dentro da ordem do discurso, ao desenvolver uma crítica ao pensamento do autor em que este deve ser apagado em proveito das formas próprias aos discursos em determinados espaços. Isso viabiliza a descoberta de quais lacunas e as funções livres que estes espaços deixaram descobertos. Sendo assim, o autor não é aquele que cria um texto, é quem exerce determinada função que esteja relacionada à sua obra.

Mediante a tais posicionamentos, é possível notar que as discussões em torno da autoria provocaram reflexões a respeito da interpretação e o continuam fazendo, principalmente após a década de 60: como se constituiu o autor e qual o seu papel? Diferentes abordagens surgiram advindas de diferentes domínios de estudos, seja pela linguística, semiologia, estética, hermenêutica ou teoria literária. Por mais que haja diferenças entre essas correntes, o ponto em comum deve-se à possibilidade de recuperação das intenções autorais no contexto especificado. Ressalto que

[...] a intencionalidade da ER não é se fechar ou se ancorar às teorias filosóficas para “aplicá-las” ao romance ou qualquer outro objeto estético. O trânsito disciplinar do qual a ER se vale ao se enquadrar no âmbito comparatista lhe permite justamente um lugar dinâmico, não fixado em teorias [...]. ( Caixeta, 2021CAIXETA, Ana Paula Aparecida; BARROSO, Maria Veralice. Verbetes da Epistemologia do Romance. v. 2. Campinas: Pontes Editores, 2021., p. 9, grifo da autora).

Além disso, para a ER, não há interesse em tentar compreender o que determinado autor pensou no ato da escrita do objeto artístico, ou buscar recursos biográficos para explicar a obra de arte, ou ainda se o que ele fala sobre a própria obra deva ser levado em consideração como única verdade. Trata-se de notar se, a partir da análise do objeto artístico e somado às outras obras do autor, a interpretação ocasiona indagações sobre a condição humana; sempre na tentativa de buscar compreender de forma mais ampla como funciona o romance analisado pelo leitor-pesquisador, não responder ou validar a interpretação como fazem alguns teóricos.

Com o texto A falácia do anti-intencionalismo de 2001 do pesquisador Rafael Lopes Azize, há a proposta de que a intencionalidade autoral deve ser contemplada. Conforme o estudioso, a intencionalidade não é traduzida apenas como se fosse uma linguagem correspondente e objetiva entre o homem e o mundo, mas ela emerge de um plano de codificação que é variável e complexa. Para explicar seu posicionamento, Azize faz um percurso histórico mencionando que grande parte das teorias da interpretação do século XX foram teorias antirromânticas:

Essas teorias anti-intencionalistas pretendiam contestar uma noção de literatura como expressão, coagulada no Romantismo e que no seu tempo ganhou um ascendente sobre a doutrina anterior, uma noção de literatura como modalização de procedimentos de gênero, a qual havia sido operativa desde a Arte poética de Aristóteles, e que o classicismo ocidental havia retomado. Assim, para compreender a contundência do anti-intencionalismo dos New Critics, do Estruturalismo e dos seus pós ao longo do século XX, e para compreender por que se julgou que para combater o expressivismo era preciso jogar fora a intencionalidade. ( Azize, 2001AZIZE, Rafael Lopes. A falácia do anti-intencionalismo. Cognitio: Revista de Filosofia. n. 2, p. 18-27, 2001. Disponível em: https://revistas.pucsp. br/index.php/cognitiofilosofia/article/view/13479/9987 . Acesso em: 15 out. 2020.
https://revistas.pucsp. br/index.php/cog...
, p. 21- 23).

Assim, para Azize, o Romantismo, ao fugir da lógica das rimas, traz algo prosaico, com certo grau de expressividade, com lirismo, porque, dentro da ideia romântica, a mimese interior é capaz de exprimir estados interiores. Isso assegura que a crença na capacidade da arte para exprimir estados interiores, faz do indivíduo independente de uma tradição clássica. Por essa razão, o autor lembra-nos de que, na virada do século XX, as experimentações do modernismo criaram críticas semânticas, impessoalistas que também desconsideram a intenção autoral.

Em outro ponto do texto, Azize (2001AZIZE, Rafael Lopes. A falácia do anti-intencionalismo. Cognitio: Revista de Filosofia. n. 2, p. 18-27, 2001. Disponível em: https://revistas.pucsp. br/index.php/cognitiofilosofia/article/view/13479/9987 . Acesso em: 15 out. 2020.
https://revistas.pucsp. br/index.php/cog...
, p. 26) refuta o pensamento de Beardsley e Wimsatt 5 5 O texto a que Azize (2001) se refere é A falácia intencional, de Beardsley e Wimsatt (2002) da década de 40 e depois retomado em 1968, em que eles não aceitam a intenção autoral. “Falácia intencional”, termo usado por esses autores, é uma crítica direta da interpretação da obra de arte literária pelo recurso ao biografismo ou ao relativismo das autointerpretações autorais. Os autores afirmam que todo texto deve ser compreendido em sua unidade e autonomia. Para isso, devem-se eliminar os elementos biográficos, históricos e sociais, a intenção do autor e a reação subjetiva do leitor diante da obra. no qual eles afirmam que buscar artefatos do autor enfraquece a intenção autoral. Para o pesquisador, não há artefatos causados sem interesse humano, mesmo se posto à prova, não funcionam, isto é, não há artefatos que não sejam intencionais. Todos os objetos da cultura têm uma intenção, porque são dependentes da intenção humana, por isso não se deve desconsiderar a intenção autoral. Fazer isso seria cair na ingenuidade de achar que o objeto literário não possua intenção humana. Como assegura Azize (2001, p. 27), a intencionalidade não é traduzida apenas na linguagem objetiva entre homem e mundo, ela pode surgir de um plano de codificação que é variável e complexa, uma vez que, ao contemplar a intencionalidade, não se exclui outras interpretações, mas sim, reconhece-se que ela é um instrumento interpretativo, além de não ser uma forma permanente:

[...] ainda que na teoria da interpretação literária haja outras histórias a contar que não apenas a intencional (refiro-me a todos os processos de articulação conceptual e linguística e os problemas da polissemia), uma vez que a literatura é linguagem, a história intencional não pode ser invalidada. ( Azize, 2001AZIZE, Rafael Lopes. A falácia do anti-intencionalismo. Cognitio: Revista de Filosofia. n. 2, p. 18-27, 2001. Disponível em: https://revistas.pucsp. br/index.php/cognitiofilosofia/article/view/13479/9987 . Acesso em: 15 out. 2020.
https://revistas.pucsp. br/index.php/cog...
, p. 26).

Por isso, de acordo com Azize, a intenção autoral não é uma tentativa de revelar um limite, mas de construir novas possibilidades de interpretar. A partir dessas considerações, compreendo, como leitora-pesquisadora, que a invalidação por completo da intenção autoral de Eliane Brum por causa de imperativos formalistas, já que, para muitas correntes, o objeto literário comporta apenas um significado para cada texto, limitaria a possibilidade de uma compreensão mais ampla e profunda do romance Uma duas, e tal aspecto não ampliaria o discurso sobre a minha interpretação do objeto literário.

Sendo assim, a consideração pela intencionalidade autoral, em consonância com Azize (2001AZIZE, Rafael Lopes. A falácia do anti-intencionalismo. Cognitio: Revista de Filosofia. n. 2, p. 18-27, 2001. Disponível em: https://revistas.pucsp. br/index.php/cognitiofilosofia/article/view/13479/9987 . Acesso em: 15 out. 2020.
https://revistas.pucsp. br/index.php/cog...
, p. 26), não anula uma interpretação dinâmica sobre o objeto literário. Além disso, a visão sobre intenção autoral, para Azize, não é aquela compreensível tal qual como se dizia, que o autor escreveu motivado por algo, permanecendo estático o significado. Portanto, a verificação desses posicionamentos mostra-nos que as discussões a respeito das intenções do autor para interpretação literária não se esgotam. A partir dos exemplos citados, entendo que, junto à experiência, há um gesto de intencionalidade também por parte do leitor-pesquisador, que se interessa em pensar a respeito desse objeto artístico. Por isso, considero a opção por trabalhar diferentes instâncias de interpretação do romance Uma duas, principalmente a que se refere assumir a intencionalidade estética autoral, partindo da perspectiva que tal aspecto potencializa a interpretação, multiplicando-a, reconhecendo-a, assim, como uma gama complexa de motivações que ainda não são traduzíveis de forma definitiva.

Na pesquisa do conjunto de obras de Eliane Brum, encontro possibilidades de aproximações as quais se revelam que, no campo da criação estética, o exercício de compreensão implica um gesto reflexivo que leve em consideração “as intencionalidades daquele que cria, o objeto criado e as ações daquele que recebe” ( Caixeta; Barroso, 2019CAIXETA, Ana Paula Aparecida; BARROSO, Maria Veralice; BARROSO FILHO, Wilton. (org.). Verbetes da Epistemologia do Romance. v.1. Brasília: Verbena, 2019., p. 77). A intencionalidade estética autoral é entendida também pela Epistemologia do romance com o conceito de “invariância 6 6 Para a teoria literária, o termo leitmotiv é utilizado para apontar a repetição de personagens que perpassam várias obras de determinado autor. Conforme B. Tomacheviski (1971), no capítulo “Temática” do livro Teoria da literatura, formalistas russos, “quando o motivo é repetido mais ou menos frequentemente e sobretudo quando é livre, isto é, exterior à fábula, fala-se de um leitmotiv.” (1971, p.180). Na ER, optamos pelo termo invariância, pois queremos explorar não apenas personagens que se repetem, mas sim buscar a intencionalidade estética do autor em criar repetições no decorrer de seu conjunto de obras, observando o fio condutor desse autor para melhor compreender o objeto estético analisado. ” ou a repetição de determinado(s) elemento(s), sendo uma estratégia do autor para criar determinado alcance na consciência do leitor. Conforme a Epistemologia do romance, a repetição de termo ou de temas de determinado autor em suas produções faz parte do conjunto de obra:

Conjunto de obra é uma terminologia utilizada para designar todas as obras envolvidas na produção escrita de um autor. [...] é o sentido amplo da produção de um escritor que exige um olhar da totalidade de suas publicações para que se possa compreender seu processo de criação. É por meio do conjunto de obra que se chega à ideia estética de regularidade da criação literária 7 7 Lembro que conjunto de obras, para ER, vai além de obras publicadas de determinado autor pode-se recorrer a entrevistas, a publicações em mídias sociais, a cartas, ou até mesmo a uma dedicatória. . ( Caixeta; Barroso, 2019CAIXETA, Ana Paula Aparecida; BARROSO, Maria Veralice; BARROSO FILHO, Wilton. (org.). Verbetes da Epistemologia do Romance. v.1. Brasília: Verbena, 2019., p. 13).

Ao ler o conjunto de obras de Eliane Brum e atentar para o movimento da repetição da palavra voragem, uma construção racional que se estabelece, reconheço como o projeto estético da autora torna-se também a percepção humana de fenômenos capazes de se repetir no tempo. Assim, integrar o conjunto de obras de Brum é notabilizar uma rede narrativa que me oferece o desempenho de um narrar a partir de um processo racional, manifestado no tecido conjuntivo de toda a sua obra e de entrevistas.

Como se pode perceber, há um olhar consciente alicerçado na experiência por parte do leitor-pesquisador, e também na observação intencional a partir do gesto racional de Eliane Brum no ato da escrita. Portanto, é ancorado nesse movimento que, no curso das reflexões aqui pretendidas, quer promover-se a abertura de possibilidades de entendimento acerca de Uma duas, principalmente pelo fato de a autora usar insistentemente o termo voragem tanto em Uma duas quanto em outras produções intelectuais.

Elementos extrínsecos e intrínsecos em Uma Duas

Alicerçada pelas interpelações que o romance Uma duas suscitam por meio da palavra voragem, recorri ao Dicionário etimológico da língua portuguesa de Antônio Geraldo Cunha. Nele, o vocábulo é definido como: “aquilo que sorve ou devora, turbilhão, abismo” (2010CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010. , p. 682).

Essas ponderações ajudam-me a pensar que as questões maternais diante dos elementos de experiência de vida das personagens conduzem a minha reflexão a temas maiores: o que a voragem me permite refletir e contemplar sobre os conflitos da condição humana? Por meio dessas ponderações busco articular como funciona a voragem enquanto fio condutor em Uma duas. Visto desse modo, o jogo estabelecido por Eliane Brum em utilizar uma palavra com tamanha carga semântica em seu romance, faz-me levantar a hipótese de uma intencionalidade estética da autora em mostrar a maternidade como voragem, desde a diagramação do livro ao conteúdo da relação de Laura e de Maria Lúcia.

Saliento que o primeiro contato que tive com Uma duas foi através da sua primeira edição de 2011, da editora Leya. Mesmo tendo acesso à segunda edição, neste trabalho, escolhi trabalhar a primeira em função de a letra impressa ser vermelha, enquanto a edição de 2018 da editora Arquipélago, o livro não manter a impressão com a letra em vermelho, permanecendo apenas a diferenciação da diagramação das três tipologias das fontes. Destaco ainda que, nas edições do formato em e-book, também é suprimida a cor vermelha.

Em decorrência dessa maneira de jogar, enquanto leitora-pesquisadora, encontro-me envolta pela ideia da voragem desde o projeto gráfico de Uma duas. Sendo assim, a cor vermelha da primeira edição surgiu dessa predileção da autora. Já na segunda edição, não há a estética inicial da primeira publicação de contemplar a cor vermelha, prevalecendo as diagramações distintas, pois, conforme a própria autora afirma, ela renunciou à sua ideia inicial para atender a uma reclamação de certos leitores e também por questões contratuais com a editora Arquipélago. Eliane Brum, em entrevista concedida para o canal Portal Cronópios (2015), afirma que ela escolheu a cor vermelha das letras da publicação de 2011:

[...] eu já o escrevi colorido, porque ele tem três narradores, cada voz tem três fontes diferentes. E quando eu o escrevi, escrevia apenas em fontes diferentes. Acho que ele mexe. Tenho isso de escrever como leitora [...] tem gente que se incomoda muito com a fonte em itálico. Mas eu acho que a incomodação é necessária, não é à toa. Este é um livro que é sobre uma disputa no território do corpo. Então o corpo da letra tem uma importância e também essa disputa também ocorre no papel nela ocorre no papel a cada uma tem seu corpo de letras. O incômodo, ele faz parte dessa leitura 8 8 Portal Cronópios: Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=G3bQXdbBY9c> Acesso em: 13 jul. 2021. . (Brum, 2015, s/p).

Sobre essa mesma questão, em outra entrevista para o programa Leituras da TV Senado (2014), Brum indica que “o livro tem essa cor meio laranja, meio sanguínea não é à toa, tem fontes diferentes, eu já escrevi assim. Eu tinha que trocar fonte para consegui escrever” ( Brum, 2014BRUM, Eliane. Meus desacontecimentos: a história da minha vida com as palavras. São Paulo: Leya, 2014. , s/p). 9 9 Entrevista concedida para o programa Leituras da TV Senado. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rmHzeKcpohY&t=1s>. Acesso em: 13 ago. 2022. Do contexto exposto, a escolha da cor da letra foi sua intenção, porém, na segunda edição, e nas publicações em e-book, tal feito não foi possível, ou seja, a ideia de produzir uma narrativa em que o texto visual e verbal dialogassem, surgiu do gesto criativo da autora. Por intermédio da entrevista virtual, concedida a mim e à Nathália Coelho da Silva 10 10 BRUM, Eliane. Eliane Brum: a ficção da jornalista. [Entrevista concedida à] Neila da Silva de Souza e Nathália Coelho da Silva. Modo remoto. (24 set. 2021), 1 arquivo mp4 (30 min.), 2021. , em 24 de setembro de 2021BRUM, Eliane. Banzeiro Òkòtó - Uma viagem à Amazônia centro do mundo. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2021a., Eliane Brum conversou conosco e respondeu a algumas perguntas de grande interesse desta pesquisa. A respeito do projeto gráfico da obra, a autora explicou como se deu o acordo contratual nas edições de Uma duas. Em suas palavras:

Sempre que muda a editora, eles querem fazer uma reedição com outra capa. Eu gosto das duas capas. Mas eu gosto mais da capa da segunda reedição, ela tem uma sutileza interessante: Voragem mesmo, de mistura. Mas é porque a editora nem pode publicar com a mesma capa, quando muda. Quando foi lançado com a letra vermelha, que para mim sempre fez muito sentido, teve muita reclamação. Eu fico tentando entender o porquê dessas reclamações. Acho que têm duas coisas: a letra e o gato. A morte do gato. Muita gente disse que não conseguia ler, que parava por causa do gato. Para mim, me parece bastante óbvio que o que fazia as pessoas não continuarem a ler nem era a cor da letra, e nem era o gato, mas a questão do que o livro está falando, do conteúdo. Mas ali se achava um jeito de escapar. Então a letra preta foi uma maneira de tirar, de escapar das pessoas. O gato não vou tirar. A cor... Ok, está preto, e agora? E outra coisa é porque ia para o e-book, virava preto. Eu nem sei porque não teria vermelho... no e-book virava preto, então... (...) eu fiquei superarrependida depois, preciso dizer... se tiver uma edição nova, vai voltar a ser vermelha. E também na edição americana eles passaram para preto. ( Brum, 2021bBRUM, Eliane. Eliane Brum: a ficção da jornalista. [Entrevista concedida a] Neila da Silva de Souza e Nathália Coelho da Silva. Modo remoto. (24 set. 2021), 1 arquivo mp4 (30 min.) , 2021b. A entrevista, na íntegra, encontra-se transcrita no apêndice da tese. Disponível em: http://repositorio.unb.br/jspui/bitstream/10482/47565/1/NeilaDaSilvaDeSouza_TESE.pdf . Acesso em: 13 mar. 2024.
http://repositorio.unb.br/jspui/bitstrea...
, s/p, grifos meus).

Demonstro, a seguir, as imagens das duas edições ( Figuras 1, 2, 3, 4, 5 e 6): a grafia em vermelho trata-se da edição da Editora Leya e a grafia em preto, da edição da editora Arquipélago:

Figura 1.
Letra sem realce.

Figura 2.
Letra sem realce.

Figura 3.
Letra em negrito.

Figura 4.
Letra em negrito.

Figura 5.
Letra em itálico.

Figura 6.
Letra em itálico.

Na perspectiva da diagramação em Uma duas, permiti colocar-me em um lugar de observação em que a linguagem visual também merece ser explorada, na medida em que ela é intencionalmente utilizada como recurso estético para interferir na recepção. Assim, ainda que os recursos visuais, utilizados nesse objeto estético, tenham me provocado efeitos estéticos vários - inclusive no sentido de me fazer criar em alguns momentos repulsa, estranhamentos e desconfortos ao me debruçar na narrativa-, eles, os efeitos estéticos, também contribuíram para que eu pudesse identificar jogos de intencionalidades da criação que me permitiam apreender elementos de conhecimento. Como exemplo disso, discorro sobre a estratégia para diferenciar os tipos de narradores, o uso da alternância entre as fontes negrito, padrão 11 11 Chamo de fonte padrão a letra que não possui realce de estilo itálico ou negrito. O realce deve-se apenas à cor da letra em vermelho. e itálico; acerca da diagramação da capa; e sobre a letra do livro, que tem a cor vermelha. Com esse entendimento, faço aqui a opção por tratar da voragem da enunciação como um jogo narrativo que procura colocar-me em suspeição. A suspeição de qual personagem está narrando é um jogar constante com o leitor, principalmente pelo fato de este encontrar diálogo entre as duas pelos relatos escritos; no interior da narrativa, observam-se, por exemplo, poucas conversas diretas entre Laura e Maria Lúcia.

Como apontado, por meio dos relatos de Brum em suas entrevistas, entendo que a configuração estética formal da obra é entendida como um recurso intencionalmente utilizado pela autora na tentativa não só de relacionar conteúdo e forma, mas também de provocar efeitos na recepção. A escolha da cor da letra exige maior concentração, há momentos que interfere na leitura, havendo a necessidade de desviar o olhar, já que a letra em vermelho tende a cansar a visão mais rapidamente que a cor preta. A estrutura do livro quebra o padrão de leitura sequencial, caso o leitor opte por ler os capítulos seguindo a ordem das fontes das letras, negrito, itálico, padrão. Essa dinâmica, muito provavelmente, o deslocaria em outras direções, pois ler dentro de várias possibilidades, causa desconforto, mobilidade e inibição do desempenho físico da leitura, como se o livro precisasse ser movido em várias direções, criando, com tal característica, outros movimentos de leitura.

No que tange à questão estética, em Uma duas, a forma escolhida por Eliane Brum quanto à diagramação com letras distintas e a escolha da cor da letra em vermelho da editora Leya, causa, em mim, um efeito que corrobora, mutuamente, para a ampliação das questões envolvendo a relação mãe e filha e gera um enriquecimento de perspectivas diversas. A partir da percepção em relação aos diálogos entre as personagens centrais, entendo que a estrutura formal de apresentação do livro talvez seja um caminho possível para ampliações interpretativas acerca da relação simbiótica e conturbada das protagonistas de Uma duas. Como leitora-pesquisadora da obra, instiga-me pensar na letra em vermelho enquanto algo que se aproxima da ideia do parto, no qual o sangue, presume a metáfora do nascimento e do cordão umbilical não rompido entre mãe e filha. Entre as diversas possibilidades que se estabelecem entre o jogo criação e recepção, entendo que a escolha do vermelho pode ainda remeter à escrita com sangue. Essa percepção está relacionada com a protagonista do romance já que Laura mutila o próprio corpo devido aos traumas que possui. Tal como os corpos das personagens, a narrativa não é harmônica, nem linear, a começar pela acepção de família, em Uma duas não há concepção de família aos moldes do discurso tradicional. A questão maternal, reverberada por meio da não sublimação, pode ser entendida como uma ranhura que Brum quer criar nos discursos de positividade sobre a maternidade.

Os temas que provocam questionamentos éticos e morais, lançados ao leitor de forma crua, provocam uma dificuldade moral para adentrar tranquilamente nessa leitura. Situações como o prazer de Maria Lúcia em matar os filhos não desejados, ou como o desejo que Laura demonstra de matar a mãe, causam reações de repulsa no leitor. O corpo de Laura é um lugar de interposição sobre a estética perfeita, pois é permeado de cicatrizes em função da automutilação. Dito de outro modo, o corpo de Laura, repleto de obstáculos e ranhuras, não corresponde aos padrões de beleza pautados na estética da positividade. De igual modo, observa-se, na decomposição do corpo em finitude de Maria Lúcia, que passa seus últimos dias de vida no hospital. Percorrer esses corpos degradados não parece ser uma experiência agradável, antes se configuram em algo dominado pela voragem.

Nesse contexto, a forma escolhida para narrar evidencia que a intencionalidade estética de Brum é mostrar que a vida é assim, o que importa nesse momento é incomodar, de tal modo que pode trazer reações de repulsa para aquele que lê. Não por acaso que a autora afirma no livro A menina quebrada (2013BRUM, Eliane. A menina quebrada: e outras colunas de Eliane Brum. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2013. ): “não escrevo para apaziguar, nem a mim nem a você. Para mim só faz sentido escrever se for para desacomodar, perturbar, inquietar” ( Brum, 2013BRUM, Eliane. A menina quebrada: e outras colunas de Eliane Brum. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2013. , p. 18). Em outros termos, determinadas escolhas em Uma duas contribuem para a confirmação de uma estética que desestabiliza.

Pensando nesta forma de narrar que Brum procura criar personagens que causam repulsa. Maria Lúcia, por exemplo, enterra quatro recém-nascidos no quintal de casa e sente prazer neste ato; Laura masturba-se com o cabo de uma faca entranhado na vagina; Laura mata o gato, rasgando-o com as próprias unhas; o jogo ora incesto, ora pedofilia entre mãe e filha durante a amamentação; entre outros momentos são bons exemplos dessa tentativa de chocar e de incomodar. Depreende-se disso que os diversos temas levantados no romance como masturbação, não sublimação materna, velhice, interdição, infanticídio, estupro, abuso e desejo infantil, automutilação, solidão, depressão, eutanásia corroboram para diferentes reações, pois são temas espinhosos em que poucos querem e evitam refletir. Nessa circunstância, não incomoda apenas a cor vermelha, as diagramações das letras ou a forma como Laura mata o gato, ou ainda quando o gato se alimenta de um pé em putrefação, mas sim como tais temas ou situações são abordadas para se pensar a condição humana. Dessa forma, as escolhas estéticas (conteúdo e forma em Uma duas) de Brum são de grande importância na constituição de um narrador que lida com temas da condição humana, como se tentasse sugar as energias do leitor por meio da voragem (violenta e ininterrupta).

Ainda em relação à diagramação, na relação leitora-pesquisadora e objeto estético, consequentemente, diante da experiência estética das edições das capas, penso, então, Uma duas ( Figura 7) em processos estéticos que proporcionam mais de uma leitura. Sendo assim, desde o título, observo constituições de interpretações diferentes.

Figura 7.
Edições das capas do romance Uma duas.

Observo pelas imagens que as três capas dialogam com o conteúdo da obra, visto que as nuances da linguagem verbal e visual dos títulos escolhida pelos designs do projeto gráfico não se fazem ausentes do conteúdo, como se a história de Maria Lúcia e Laura começasse pelo título e pela ilustração da capa, em conformidade com cada edição. Na primeira edição, por exemplo, há uma barra oblíqua, enquanto na segunda edição, não há pontuação. A barra oblíqua 12 12 NEVES, Flávia. Norma culta. (s/d, s/p). Disponível em <https://www.normaculta.com.br/barra-obliqua/>. Acesso em: 15 set. 2022. , conforme a norma culta da língua portuguesa, tem função para indicar itens que possuem algum tipo de relação entre si, atestar apenas inclusão, quando utilizada na separação das conjunções “e” e “ou”, ou ainda designar disjunção e exclusão, podendo ser substituída pela conjunção “ou”. Nesse sentido, a barra oblíqua presente no título da primeira edição UMA/DUAS sugere a disputa por espaço e corpo na relação entre Laura e Maria Lúcia, indicando UMA “ou” “e” DUAS, adquirindo e dando sentido acerca da suspeição.

Acerca das mencionadas ponderações, os traços presentes na capa da segunda edição (2018) remetem ao cordão umbilical, ao movimento do bebê no útero, ao parto onde há sangue, à cor vermelha - a qual lembra a escrita com sangue - e, principalmente, ao fato de podermos comparar voragem dentro das suas infindas possibilidades semânticas, relembrando o constante movimento giratório pelos aspectos de uma imagem que transmite a atmosfera de movimento contínuo.

Sendo assim, noto que a capa da primeira edição permite-me uma experiência; enquanto da segunda edição, outra; ao passo que a versão em inglês propicia-me outra experiência, porém sempre em consonância com o conteúdo do romance. Partindo do princípio de que a história entre Maria Lúcia e Laura trata-se de uma relação entre mãe e filha que se questionam como arrancar-se uma do corpo da outra, pois uma se vê como extensão da outra, nesses projetos gráficos, o visual e o verbal relacionam-se, tendo em vista que há uma harmonia com seu conteúdo, relacionando a questões maternas corroborando, desse modo, com sua forma.

Como vimos, Eliane Brum comenta sobre seu gosto pela capa do livro lançado em inglês. Enquanto, nas duas edições brasileiras, temos o tom avermelhado, ora alaranjado, que sugere a cor do sangue, o parto, o cordão umbilical, entre outas possíveis interpretações, na edição americana, é azul. Ao atentar para essa capa, percebo que o fato de haver a letra “o” da palavra one, sendo amarrada e tecida ao “o” da palavra two, remete-me à ideia do símbolo do infinito, um símbolo que nos faz conceber o quanto esta mãe e filha estão ligadas, encarnadas, tecidas juntas, pois onde uma (mãe/filha) começa, onde outra (mãe/filha) termina? Parece haver também a consistência de uma incompletude diante da imagem dos fios estarem soltos, remetendo ao movimento da escrita e da vida de Laura e Maria Lúcia, o que torna possível a continuidade da ideia de um livro sendo tecido por fragmentos, porque se trata de uma espécie de cartas ou de diário das duas, que está sendo feito, mas que ainda se tem a fazer.

No contexto de articulação entre capa e conteúdo, desde o título de Uma duas chama a atenção, em virtude de não testificar uma separação nem entre as protagonistas, nem entre as narradores, como foi demonstrado pelas capas acima. Ser uma ou duas?, Ser uma e duas? O título traz ao leitor incômodos, desconfortos, principalmente ao se pensar a figura do “uma” e as possibilidades de se ser não somente “uma”, mas também “duas”. Laura, ao perceber que não pode desgarrar-se da mãe, não pode ser “uma”, pois “o útero é para sempre” começa a questionar sobre sua identidade enquanto única, do quanto refletir acerca de si, encontra não um “eu”, mas sim “eus”. Desse modo, não consegue olhar para si, sem ver a mãe, assim como Maria Lúcia não se vê sem a filha.

Disso, compreende-se o impacto da vivência na formação das protagonistas, problematizando o estereótipo de a mulher não estar dissociada da maternidade: “ Porque as duas não são próximas. Não são próximas porque são uma só, [...] Uma não, duas” ( Brum, 2011BRUM, Eliane. Uma duas. São Paulo: Leya, 2011. , p. 18). Então, por que usar as palavras Uma duas? Essa tentativa de quantificar algo que, em relações entre mãe e filha, é um afeto abstrato e evoca a ideia de univocidade, mas por serem mulheres, são múltiplas, mostrando, com isso, que a maternidade é complexa. O fato de nascer mulher e já se constituir como mulher destinada a ser mãe. O jogo entre as palavras Uma duas demonstra, portanto, essa problematização.

Ressalvo que a leitura, independente da minha predileção, demonstra essa relação maternal conflituosa, e que não se trata de uma verdade, resposta ou idealização por determinado título ser com pontuação ou sem pontuação, ou uma exigência por uma cor específica, mas atentar que são opções enquanto leitora-pesquisadora de vestígios deixados diante do conjunto de obras de Brum. Os argumentos diante das diagramações partem das minhas investigações, não sendo o intuito de mostrar que determinada seleção seja correta ou seja uma verdade, resposta ou exigência sobre as escolhas estéticas. A investigação, a partir das minhas leituras, deve-se ao fato de apontar que essas dinâmicas entre imagem e palavra em Uma duas são um vestígio de que determinadas escolhas ajudam-me a examinar de forma mais detalhada esse movimento de pensar a voragem maternal.

Outro ponto a ser pensado é a supressão da cor vermelha da segunda edição de Uma duas. Como percebemos pelo relato de Eliane Brum, nem todos leitores e editores aceitaram a intenção da autora, havendo um valor comercial sugerido. Sem aprofundar nessa discussão, percebo que há uma preocupação com o destinatário, uma busca por cumplicidade, uma vez que o leitor e os contratos editoriais acabam caracterizando seu trabalho, como se fosse uma proposta aberta, consolidando confiança recíproca entre criador e leitor, para que o livro mantenha existência, pois o leitor é de grande importância nessa relação artística. Todavia, diante da exclusão da cor, podemos refletir que a recepção mediada por determinado impedimento, suprime a arte de acompanhar as problemáticas éticas e morais do sujeito. Dito de outro modo, omitir determinada escolha implica evitar questões como: qual efeito estético a cor vermelha causa? Por que esse sujeito se incomoda com a cor vermelha? Negligenciar essa intenção de Eliane Brum, suprime-se determinadas experiências que a cor vermelha iria contemplar. Desse modo, o diálogo estabelecido entre o verbal e o visual acentuam a importância de um manuscrito em vermelho em uma página em branco, com uma multiplicidade de significados semânticos que remetem à cor vermelha, tais como: a escrita quase biológica (sangue) das personagens, a menstruação, o parto, entre outros elementos abordados no romance. Se fosse em outra obra, não teríamos o mesmo efeito pelo que lateja em Uma duas. A partir disso, verifica-se que, por meio do tratamento dos temas, da construção das personagens, entre outras escolhas, Eliane Brum consegue, intencionar uma arte que incomoda, desloca determinados leitores, fazendo do referido objeto estético uma obra que muito se distancia das concepções estética agradáveis, pois por onde a voragem passa, deixa caos.

A voragem para além de Uma duas

As definições, aliadas ao que acontece no jogo literário de Uma duas, tornam-se primordiais para pensarmos o modo como Eliane Brum se apropria do termo voragem para fazer suas produções na construção de seu projeto estético, de modo a fundamentar o sentido de sua escrita. Para isso, faço um percurso pelo conjunto de obras da autora, procurando entender por que esta palavra faz parte de escolhas estéticas de Brum. Pensando do ponto de vista entre leitora-pesquisadora e objeto estético, o jogo, pautado pela voragem em Uma duas, faz que a ação interpretativa não se feche, mas continue em mobilidade. Em uma entrevista Eliane Brum afirma: “Voragem é minha palavra preferida porque ela é, para mim, a própria literatura. E, ao mesmo tempo, aquilo que não vira literatura, aquilo que permanece fora das palavras” ( Brum, 2018BRUM, Eliane. Uma duas. 2ª ed. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2018., p. 7). Assim, Brum possui uma forte atração pela palavra voragem, em uma tentativa de entender o ato da criação literária e a utiliza na própria construção literária. A questão da preferência pelo termo torna-se, por conseguinte, um engendramento de pontos de vista repleto de significações e de experiências, tornando-se um instrumento de exercício do seu ato criativo.

Ao aprofundar nos estudos do conjunto de obras, pude notar que, entre 2009 a 2011, ocorreu a produção de algumas resenhas de filmes, reportagens para Revista Época, e crônicas para o extinto site Vida Breve. 13 13 Mesmo não existindo mais o site Vida breve, é possível ao leitor ter acesso a todas as crônicas que foram publicadas através da página pessoal de Eliane Brum: d esacontecimentos. Disponível em: < http://desacontecimentos.com/?p=22 >. Acesso em: 03 jul. 2022. Dentre as diversas crônicas, fiz a seleção das seguintes narrações: A vagina dentada, A coveira, O gato, A costureira, O alien, dado que encontrei uma escrita com estilo permeado por uma linguagem visceral, por temas que coadunam com a narrativa presente em Uma duas. Meu recorte, diante dos inumeráveis textos jornalísticos produzidos pela autora durante décadas, volta-se para vestígios de textos produzidos no contexto de reportagens que evidenciam um experienciar anterior à edição do romance, a elaboração e a organização de temas anterior ao lançamento dos livros que permitem o transitar por diversas possibilidades, até chegar à montagem final. Tal recorrência demonstra, portanto, que houve um projeto estético na feitura de Uma duas por parte de Eliane Brum como algo que foi sendo experienciado constantemente, projeto que procuro chamar de laboratório experiencial.

Nas crônicas mencionadas, por exemplo, surgem repetições de palavras como a carne, o sangue, a cor vermelha, a unha, a palavra encarnada, a relação mãe e filha, o termo voragem, contemplando temas e termos que me permitem estabelecer uma conexão com Uma duas. Além disso, a linguagem utilizada na escrita de grande parte de suas crônicas é visceral, principalmente nas publicações entre 2009 a 2010, data próxima ao lançamento de Uma duas, em 2011.

Esmiuçando, por meio de entrevistas da autora para jornais, entrevistas midiáticas, prefácios dos seus livros, há uma associação de expressões que se repetem em seus discursos. Encontro recorrências de termos que remetem à ideia de voragem: movimento e abismo, por exemplo, são as mais repetidas, dentre outras como: submergir, deslocar, abissal, desordem, avesso, brutalidade, banzeiro. Observar e analisar o que dialoga com outras obras da autora é o que me interessa em relação à palavra voragem, mostrando que ela perpassa mais de um texto de Eliane Brum. Além das entrevistas, exemplifico, nessa perspectiva, o seu livro Meus desacontecimentos- a história da minha vida com as palavras, Brum diz : “A palavra fez a volta, mas como na fita de Moebius. Libertei as letras, e elas emergiram dos meus abismos como voragem. Voltei a escrever. Dessa vez, uma vida para mim” ( Brum, 2014BRUM, Eliane. Meus desacontecimentos: a história da minha vida com as palavras. São Paulo: Leya, 2014. , p. 143). Em suas narrações, ela comenta o estreito elo com a escrita desde criança e diz que escreve para não morrer e para não matar, atribuindo, assim, o gesto de escrever ao próprio existir.

Observo que, por meio da intencionalidade, averiguando as repetições e adentrando em questões que envolvem um projeto estético, há um forte vínculo de textos anteriores a Uma duas que dialogam com essa narrativa. Ao perscrutar entrevistas, colunas, livros publicados de Eliane Brum, esbarro em pensamentos que se repetem, principalmente o vocábulo voragem, ao qual são agregados vários sentidos. Na entrevista virtual de 2021b, Brum respondeu sobre o perpassar da voragem por suas produções. Vejamos:

[...] esses dias eu acordei de madrugada e pensei na evolução das palavras. E eu me dei conta de que, antes de voragem, eu tinha outra palavra. Pensei, “nossa, eu fui dessa palavra para essa palavra e para essa palavra, só que, eu dormi e eu não lembro mais”. Mas o fato de que eu me lembro é de que voragem já evoluiu de uma outra, evoluiu não, ela transmutou. Eu acho que voragem era a minha palavra preferida quando eu escrevi Uma duas. Em meus desacontecimentos, eu dei essa palavra, porque foi a palavra que, naquele momento, e, por muito tempo, definiu, encarnou, como fala, encarnou a minha vida. Minha vida era voragem. Em 2016, o meu pai morreu. Me perdi como as pessoas, como os ribeirinhos, como os indígenas, porque o rio foi violentado e ele já era outro e partes dele estavam mortas e tinha o banzeiro. E eu encarnei esse banzeiro. E eu fui entrando no banzeiro. E o banzeiro começa a ganhar outros sentidos. E, recentemente, depois de toda essa transmutação desses anos, eu chego, neste ano, na palavra Òkòtó, que é uma palavra em iorubá. E, por isso, que, então, da voragem, desses dois outros livros, principalmente, do Uma duas, chego nesse título desse livro novo que é Banzeiro Òkòtó. ( Brum, 2021bBRUM, Eliane. Eliane Brum: a ficção da jornalista. [Entrevista concedida a] Neila da Silva de Souza e Nathália Coelho da Silva. Modo remoto. (24 set. 2021), 1 arquivo mp4 (30 min.) , 2021b. A entrevista, na íntegra, encontra-se transcrita no apêndice da tese. Disponível em: http://repositorio.unb.br/jspui/bitstream/10482/47565/1/NeilaDaSilvaDeSouza_TESE.pdf . Acesso em: 13 mar. 2024.
http://repositorio.unb.br/jspui/bitstrea...
, grifos meus).

Nesse refletir acerca da produção de Brum, percebo que as escolhas da autora transitam pelo espaço-tempo, de modo que está continuamente a construir novas conexões, reescrevendo, recomeçando, e, assim, anunciando novas possibilidades de significações. Pensando nessa voragem contínua que ressurge e reafirma seu projeto estético, flui o surgimento de novas formas viventes. Por mais que banzeiro ou òkòtó possuam outros significados para a autora de acordo com cada momento que vivencia, nesse contexto de reflexão, não deixa de abarcar seu projeto estético sobre a voragem, pois todos esses elementos remetem à ideia de infinito, de movimento constante, de desorientação, de espiral. Brum trabalha com vários corpos, mas sempre dentro da perspectiva de círculos concêntricos. Assim, passeia por palavras de outras línguas, mostrando as dimensões da voragem. Destaco que esses elementos reforçam que voragem é indício de uma reflexão de Eliane Brum que não surge no romance Uma duas, mas que fez parte e mantém-se como parte ininterrupta da experiência de vida e experiência intelectual da autora, sempre em continuação.

Desse ponto de observação, é possível afirmar que Eliane Brum faz sua escolha estética e em todo o tempo intenciona jogar com o leitor, seja ele um leitor comum ou um leitor munido de maior perspicácia, bem como se pensa sobre o leitor-pesquisador. Nesse ponto de vista, pode-se averiguar e localizar a voragem como elemento que fundamenta a obra Uma duas, visto que o meu perscrutar sobre a voragem partiu primeiramente do romance, e não de buscas externas como elemento primário. No entanto, foram estas buscas externas - vestígios - que ampliaram a perspectiva interpretativa de Uma duas.

Considerações finais

A partir de Uma duas, as escolhas estéticas tornam-se necessárias, visto que o leitor-pesquisador precisa de uma intenção para desvendar os pontos de conexões entre objeto e autor, ou seja, tal leitor deverá lidar com a sua subjetividade que servirá para lidar com um a construção de pensamento e o modo como se intenciona jogar. Dessa maneira, cada indivíduo tem um objetivo diante dos próprios objetos estéticos, uma vez que essa abertura de possibilidades de conhecimento acontece justamente pela natureza estética do objeto.

Meu olhar direcionou-se para pensar como a voragem faz um atravessamento por Uma duas, tanto no que diz respeito às instâncias intrínsecas como às extrínsecas. Tais exemplos demonstram que Uma duas é um romance em que Eliane Brum reflete sobre sua escrita e que cada assunto, palavra, diagramação, ou expressões não se encontram na narrativa de forma despretensiosa, há toda uma elaboração racional dentro do seu projeto estético, que pensa a maternidade como voragem.

Assim, a concepção de vestígios que pode ser percebida no laboratório experiencial da obra de Brum, ao não ser tratada como uma origem definida no tempo e no espaço, mas como história de um processo racional de criação que se faz legível no aqui e agora de cada texto, permitindo com que cada texto instaure um núcleo de origem mutável. É um movimento que se lança para outra produção da autora, tornando-se um gesto inacabado, caráter que corrobora para uma leitura por camadas realizada pelo leitor-pesquisador, compreendendo o processo de sua escrita por meio de elementos externos em relação ao objeto literário. São fios que vão traçando movimentos acerca da escolha de determinado assunto e que perpassam, dessa forma, por todo o conjunto de suas obras.

Desse contexto, as tessituras da pesquisa em torno da obra Uma duas de Brum trabalham com a hipótese de que a experiência entre obra e leitor não inviabiliza um jogo, ao contrário; o jogo que se quer mais audaz, mais completo, tal qual aquele esperado de um leitor-pesquisador necessita perpassar por esse processo. Portanto, o jogo literário, constituído por meio das especulações em torno dos escritos de Uma duas, do modo como aqui é pensado e refletido, preocupa-se igualmente com lugar da autoria a partir do entendimento da intencionalide estética autoral, para, com isso, ampliar a interpretação do objeto estético analisado.

Por meio da voragem presente em Uma duas, foi possível buscar possibilidades de conhecimentos, atentando para o fato de que não é examinar um dado histórico como prova, mas observar como as experiências do autor, enquanto sujeito, podem ter contribuído para a construção de um elemento estético que se torna crível dentro do texto literário, o que nos leva a um diálogo fora do texto literário.

Diante da minha intenção de leitora-pesquisadora, pude chegar a uma reflexão que me levou a questionar problemas da ordem da ética e da moral, visto que romantizar a maternidade silencia conflitos. São questões que conduzem o ser humano a viver com tais inquietudes e com seus conflitos subjetivos. Portanto, a intencionalidade estética autoral de Brum conduziu-me a problematizar questões éticas por meio de uma construção mais subjetiva que configura sua forma de pensar que a maternidade como voragem é atravessada por grandes enigmas da condição humana, e, consequentemente, convida-me a participar na construção da própria obra, à medida que Brum se faz uma questionadora do próprio processo criativo, revelando seu nortear de escritos.

Referências

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  • BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 57-64.
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  • BRUM, Eliane. Eliane Brum: a ficção da jornalista. [Entrevista concedida a] Neila da Silva de Souza e Nathália Coelho da Silva. Modo remoto. (24 set. 2021), 1 arquivo mp4 (30 min.) , 2021b. A entrevista, na íntegra, encontra-se transcrita no apêndice da tese. Disponível em: http://repositorio.unb.br/jspui/bitstream/10482/47565/1/NeilaDaSilvaDeSouza_TESE.pdf Acesso em: 13 mar. 2024.
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  • CAIXETA, Ana Paula Aparecida; BARROSO, Maria Veralice; BARROSO FILHO, Wilton. (org.). Verbetes da Epistemologia do Romance v.1. Brasília: Verbena, 2019.
  • CAIXETA, Ana Paula Aparecida; BARROSO, Maria Veralice. Verbetes da Epistemologia do Romance v. 2. Campinas: Pontes Editores, 2021.
  • CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual São Paulo: Martins Fontes, 2005.
  • COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. 2. ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014.
  • CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa 4ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010.
  • FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Tradução de Inês Autran D. Barbosa. Rio de janeiro: Forense, 2009. p. 264-298.
  • *
    Este texto faz parte de recortes da minha tese de doutorado A voragem maternal em Uma duas, de Eliane Brum, defendida em 31 março de 2023 no Programa de Pós-Graduação de Literatura, da Universidade de Brasília. Disponível em: http://repositorio.unb.br/jspui/bitstream/10482/47565/1/neiladasilvadesouza_tese.pdf.
  • 1
    Usarei as citações, conforme original impressa da obra de 2011, tanto no que se refere à cor vermelha quanto, às fontes ora itálico, ora negrito.
  • 2
    O gesto desta leitora-pesquisadora tem o entendimento de que a pesquisa, em arte, nasce do esforço para se ter consciência a respeito da experiência. No entanto, é necessário fazer questionamentos para poder ir além do efeito estético. Por isso, a constante pergunta do sujeito transcendental de Kant “o que eu posso saber?”, presente em Crítica da razão pura (2018), pois ela conduz ao lugar do conhecimento, ligado a outros mecanismos que nascem da ordem subjetiva, mas que ultrapassa essa ordem: o que eu posso saber sobre voragem ao ler Uma duas?
  • 3
    No site <http://epistemologiadoromance.com/>, é possível encontrar publicações de textos que surgiram a partir das discussões do grupo Epistemologia do romance.
  • 4
    Em alguns momentos, no decorrer do artigo, usarei a sigla ER para substituir o termo Epistemologia do romance.
  • 5
    O texto a que Azize (2001) se refere é A falácia intencional, de Beardsley e Wimsatt (2002BEARDSLEY, Monroe Curtis, WIMSATT, William Kurtz. A falácia intencional. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 2, p. 639-655.) da década de 40 e depois retomado em 1968, em que eles não aceitam a intenção autoral. “Falácia intencional”, termo usado por esses autores, é uma crítica direta da interpretação da obra de arte literária pelo recurso ao biografismo ou ao relativismo das autointerpretações autorais. Os autores afirmam que todo texto deve ser compreendido em sua unidade e autonomia. Para isso, devem-se eliminar os elementos biográficos, históricos e sociais, a intenção do autor e a reação subjetiva do leitor diante da obra.
  • 6
    Para a teoria literária, o termo leitmotiv é utilizado para apontar a repetição de personagens que perpassam várias obras de determinado autor. Conforme B. Tomacheviski (1971), no capítulo “Temática” do livro Teoria da literatura, formalistas russos, “quando o motivo é repetido mais ou menos frequentemente e sobretudo quando é livre, isto é, exterior à fábula, fala-se de um leitmotiv.” (1971, p.180). Na ER, optamos pelo termo invariância, pois queremos explorar não apenas personagens que se repetem, mas sim buscar a intencionalidade estética do autor em criar repetições no decorrer de seu conjunto de obras, observando o fio condutor desse autor para melhor compreender o objeto estético analisado.
  • 7
    Lembro que conjunto de obras, para ER, vai além de obras publicadas de determinado autor pode-se recorrer a entrevistas, a publicações em mídias sociais, a cartas, ou até mesmo a uma dedicatória.
  • 8
    Portal Cronópios: Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=G3bQXdbBY9c> Acesso em: 13 jul. 2021.
  • 9
    Entrevista concedida para o programa Leituras da TV Senado. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rmHzeKcpohY&t=1s>. Acesso em: 13 ago. 2022.
  • 10
    BRUM, Eliane. Eliane Brum: a ficção da jornalista. [Entrevista concedida à] Neila da Silva de Souza e Nathália Coelho da Silva. Modo remoto. (24 set. 2021), 1 arquivo mp4 (30 min.), 2021.
  • 11
    Chamo de fonte padrão a letra que não possui realce de estilo itálico ou negrito. O realce deve-se apenas à cor da letra em vermelho.
  • 12
    NEVES, Flávia. Norma culta. (s/d, s/p). Disponível em <https://www.normaculta.com.br/barra-obliqua/>. Acesso em: 15 set. 2022.
  • 13
    Mesmo não existindo mais o site Vida breve, é possível ao leitor ter acesso a todas as crônicas que foram publicadas através da página pessoal de Eliane Brum: d esacontecimentos. Disponível em: < http://desacontecimentos.com/?p=22 >. Acesso em: 03 jul. 2022.

Editado por

Editor-chefe dos Estudos de Literatura

Silvio Renato Jorge

Editores convidados

Manoel Mourivaldo Santiago
Ceila Maria Ferreira Batista

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2023
  • Aceito
    13 Mar 2024
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