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Apresentação do volume 64 - Novos desenvolvimentos em semântica e pragmática

Nas últimas décadas, a Semântica tornou-se uma disciplina linguística bem estabelecida, produzindo teorias e análises de um conjunto impressionante de fenômenos, conforme documentado em vários manuais de grande abrangência que surgiram desde o início deste século. Para o leitor interessado, tanto Maienborn, Heusinger e Portner (2011MAIENBORN, C.; VON HEUSINGER, K.; PORTNER, P. (ed.). Semantics: An International Handbook of Natural Language Meaning. Berlin: de Gruyter, 2011. ), quanto Gutzmann et al. (2021GUTZMANN, D. et al. The Wiley Blackwell Companion to Semantics. Oxford: Wiley, 2021. ), com mais de cem contribuições cada, fornecem uma visão geral do estado atual da disciplina. Desde seu interesse inicial na quantificação e na análise de projeções nominais, e na Semântica Intensional (Tempo, Aspecto, Modalidade e atitudes proposicionais), que figuram com destaque em alguns livros didáticos e compêndios de leituras essenciais (e.g. Portner (2005PORTNER, P. What is meaning? Fundamentals of Formal Semantics. Oxford: Blackwell Publishing, 2005. ) e Portner e Partee (2002PORTNER, P.; PARTEE, B. Formal Semantics: The Essential Readings. Oxford: Blackwell Publishing, 2002.)), o campo expandiu-se de diversas maneiras.

Em primeiro lugar, outros tópicos passaram a integrar a agenda dos semanticistas: houve um novo interesse no significado de sentenças não declarativas (perguntas, imperativas e exclamativas) e em interfaces entre o significado sentencial e o discurso ou a interação verbal de forma geral. Um melhor entendimento da interação entre diferentes camadas de significado trouxe a Pragmática, em suas interações com uma visão da Semântica concebida de forma mais restrita e puramente representacional, para o primeiro plano. Questões como a natureza dos pressupostos e das implicaturas convencionais e conversacionais, o papel do contexto, dos atos de fala e da expressividade tornaram-se recentemente uma parte importante da pesquisa sobre o significado linguístico (Potts, 2005POTTS, C. The Logic of Conventional Implicatures. New York: Oxford University Press, 2005.).

Ao mesmo tempo, o campo foi movimentado pelo interesse na variação interlinguística - incluindo a variação diacrônica e a análise de línguas pouco estudadas - e pela adoção de novos métodos para a coleta de evidências empíricas. Von Fintel e Matthewson (2008VON FINTEL, K.; MATTHEWSON, L. Universals in semantics. The Linguistic Review, v. 25, n. 1-2, p. 139-201, 2008.) oferecem uma discussão abrangente sobre a questão dos universais semânticos e seus limites, e uma revisão completa dos tópicos que foram abordados a partir dessa perspectiva. A crescente riqueza e precisão dos métodos para a obtenção de dados semânticos está bem documentada no compêndio influente de Bochnak e Matthewson (2015BOCHNAK, R.; MATTHEWSON, L. (ed.). Methodologies in Semantic Fieldwork. New York: Oxford University Press, 2015.).

Este número da Gragoatá reúne uma amostra, que é necessariamente parcial, mas ainda assim representativa, desses novos desenvolvimentos em Semântica e Pragmática tal como são praticados no Sul global, oferecendo, assim, um panorama da diversidade de pesquisas sobre os temas sendo conduzidas nesta área do mundo. Os artigos deste volume relatam pesquisas realizadas em 8 diferentes universidades brasileiras que representam 4 das 5 regiões do país (Sul, Sudeste, Norte e Centro-Oeste), além de três universidades no exterior (na Argentina, Uruguai e França). O conteúdo deste volume é apresentado em três partes.

A primeira parte inclui artigos sobre semântica de eventos, TAM (tempo, aspecto e modalidade) e modificação adverbial. O tema da semântica de eventos é explorado no artigo “Alternância estativo-locativa no PB: verbos com sentido de continência” de Letícia Lucinda Meirelles, que adota o referencial da interface Sintaxe-Semântica Lexical para examinar a alternância encontrada em verbos como ‘armazenar’ no português brasileiro. A autora argumenta que se trata de um fenômeno de inversão locativa que envolve uma reinterpretação da estrutura temática verbal por coerção e uma mudança do aspecto na forma alternada como epifenômeno desse processo.

A grande parte sobre TAM (tempo, aspecto e modalidade) e modificação adverbial constitui mais da metade do volume com três artigos sobre tempo/aspecto, um sobre modalidade e dois sobre modificação adverbial. O artigo “Travelling in time with natural language: some cross-linguistic considerations” (“Viajando no tempo com linguagem natural: algumas considerações interlinguísticas”), de Ana Müller e Marta Donazzan, explora o tema da referência temporal. A partir de uma investigação das estratégias gramaticais em Karitiana, as autoras discutem diferentes sistemas encontrados nas línguas naturais para transmitir os significados de anterioridade e posterioridade. O artigo “Interpretação Temporal de Sentenças Negativas em Karitiana” de Luiz Fernando Ferreira relata uma investigação empírica da interpretação temporal de sentenças negativas em Karitiana. A base de dados relevante foi coletada por meio de um método inovador baseado na elicitação de áudios contextualizados e não contextualizados.

O artigo “Relaciones temporales en construcciones absolutas de gerúndio” (“Relações temporais em construções absolutas de gerúndio”) de Romina Trebisacce e Ana Clara Polakof apresenta uma análise semântica das relações temporais em construções absolutas de gerúndio em espanhol que atribui um papel crucial ao aspecto para a construção do gerúndio. Os autores mostram que se o predicado da construção absoluta é atélico, a interpretação é de simultaneidade entre eventos, enquanto os predicados télicos invariavelmente dão origem a uma interpretação de anterioridade.

O artigo “‘Se pá’ um condicional epistêmico!” de Roberta Pires de Oliveira e Bernar Costa de Carvalho apresenta uma análise das sentenças introduzidas por ‘se pá’. Essas sentenças, que são bem atestadas na fala de falantes mais jovens do português brasileiro, transmitem que, se tudo se desenvolver normalmente, seguir-se-á a proposição denotada pelo consequente. A proposta dos autores alia uma semântica para condicionais baseada em Kratzer (2012KRATZER, ANGELIKA. Modals and Conditionals: New and Revised Perspectives, vol. 36. New York: Oxford University Press, 2012.) para ‘se’ e uma análise baseada na Expressividade conforme Potts (2005POTTS, C. The Logic of Conventional Implicatures. New York: Oxford University Press, 2005.).

Em maior ou menor grau, pode-se dizer que todos os artigos sobre TAM envolvem uma reflexão sobre a variação interlinguística. Os dois primeiros fazem isso de forma mais óbvia, pois abordam seus temas de investigação a partir da perspectiva de dados do Karitiana, língua nativa brasileira. Mas os outros dois também oferecem uma análise de modalidades linguísticas sub-representadas: o espanhol rioplatense e o dialeto de jovens falantes do português brasileiro. O artigo sobre a construção absoluta em espanhol rioplatense investiga essa construção comparando-a com construções análogas mais bem estudadas em inglês, a fim de avaliar se sua descrição também é adequada ao espanhol. O artigo sobre ‘se pá’ centra-se em dar uma análise composicional a uma construção não idiomática, em que ‘se’ é a conjunção condicional e ‘pá’ substitui o antecedente.

A última parte deste grande bloco sobre TAM e modificação adverbial inclui dois artigos que abordam advérbios específicos no português brasileiro: ‘juntos’ e ‘já’. O artigo “Sobre a semântica de ‘juntos’ no português brasileiro: tipologia e investigação preliminar” de Renato Miguel Basso e Ana Carolina de Sousa Araújo segue uma estratégia comparativa semelhante à adotada no artigo sobre construções absolutas: investiga se ‘juntos’ poderia receber a mesma análise que ‘together’, sua contraparte em inglês, cuja semântica tem ampla tradição de pesquisa. Os autores propõem que o advérbio em PB está envolvido na criação de uma soma (mereológica) de entidades. O artigo “Considerações semântico-pragmáticas sobre o item ‘já’” de Letícia Lemos Gritti, Gabriela Paulina Aparecida Aiolfi e Lovania Roehrig Teixeira explora os significados de contra-expectativa e promessa do advérbio ‘já’ além das relações temporais, aspectuais e conjuntivas já descritas na literatura. As autoras apresentam evidências de que esses significados são implicaturas e, portanto, de natureza pragmática.

A segunda parte do volume abrande artigos que adotam alguma versão da Semântica Escalar como embasamento teórico. O artigo “Algumas considerações sobre os minimizadores no português brasileiro: contextos (não) afetivos e escalas” de Kayron Beviláqua baseia-se em uma noção mais prototípica de escalas, pois aborda temas como polaridade negativa em sua conexão com minimizadores no português brasileiro. O autor argumenta que o significado de afetividade presente nas sentenças com esses minimizadores se deve a suas propriedades escalares. O artigo “Uma explicação para o licenciamento de alguns adjetivos em duas posições atributivas em italiano” de Ana Paula Quadros Gomes e Nicolly Dutra de Carvalho Cabral, por sua vez, assume uma semântica de gradação para discutir a posição dos adjetivos em italiano. As autoras descartam uma análise baseada em propriedades puramente sintáticas e oferecem uma explicação na qual a semântica dos adjetivos, particularmente a propriedade de gradabilidade, desempenha um papel crucial.

A terceira parte deste volume compreende artigos sobre Pragmática. Os dois primeiros artigos são estudos que combinam a investigação do significado na interface Semântica/Pragmática com a Psicolinguística (aquisição da linguagem e processamento de sentenças). “Implicaturas escalares na aquisição de português brasileiro: uma análise da teoria da otimidade para o conectivo ‘ou’” de Jonathan Torres e Elaine Grolla aborda as chamadas interpretações inclusivas e exclusivas da disjunção na aquisição do português brasileiro. Os autores confirmam a existência de uma assimetria entre produção e compreensão no comportamento infantil nesse aspecto. Eles oferecem uma análise baseada na Teoria da Otimidade, argumentando que a assimetria pode ser explicada pela aquisição tardia da otimização bidirecional.

O artigo “O efeito da familiaridade como variável pragmática no processamento de metáforas” de Gladiston Silva e Eduardo Kenedy concentra-se no processamento de sentenças metafóricas e discute os resultados de um experimento de leitura segmentada autocadenciada on-line manipulando a variável de familiaridade. Os autores defendem que essa é a única variável que tem um efeito significativo no processamento desse tipo de frases.

O terceiro artigo desta parte discute a natureza do cálculo de implicaturas em uma língua nativa brasileira. “(In)definição, número e implicatura de multiplicidade em uma língua sub-representada: um estudo do Kaiowá (Tupí-Guaraní)” de Helena Guerra-Vicente e Daiane Ramires é dedicado à semântica nominal de uma língua indígena. As autoras argumentam que a interpretação de plural forte do marcador especial de plural '-kuera' é derivada via implicatura. Elas oferecem uma análise baseada em uma abordagem localista, na qual as implicaturas são calculadas passo a passo.

O último artigo trata da dinâmica do diálogo no português brasileiro. “A dinâmica de perguntas de constituinte em português brasileiro: uma proposta escalar” de Fernanda Rosa da Silva enfoca a natureza das inferências envolvidas nas respostas às questões abertas e para perguntas wh em português brasileiro. A autora argumenta que as respostas são de vários tipos e abrangem acarretamentos e pressuposições de exaustividade, mas também implicaturas conversacionais de exaustividade e falta de conhecimento do falante, o que sugere uma escala lógica baseada na informatividade.

Esperamos que os leitores deste volume não apenas gostem da leitura, mas também que se inspirem em novos temas de pesquisa para que a área continue a crescer no Brasil.

References

  • BOCHNAK, R.; MATTHEWSON, L. (ed.). Methodologies in Semantic Fieldwork New York: Oxford University Press, 2015.
  • GUTZMANN, D. et al The Wiley Blackwell Companion to Semantics Oxford: Wiley, 2021.
  • KRATZER, ANGELIKA. Modals and Conditionals: New and Revised Perspectives, vol. 36. New York: Oxford University Press, 2012.
  • MAIENBORN, C.; VON HEUSINGER, K.; PORTNER, P. (ed.). Semantics: An International Handbook of Natural Language Meaning. Berlin: de Gruyter, 2011.
  • PORTNER, P. What is meaning? Fundamentals of Formal Semantics. Oxford: Blackwell Publishing, 2005.
  • PORTNER, P.; PARTEE, B. Formal Semantics: The Essential Readings. Oxford: Blackwell Publishing, 2002.
  • POTTS, C. The Logic of Conventional Implicatures New York: Oxford University Press, 2005.
  • VON FINTEL, K.; MATTHEWSON, L. Universals in semantics. The Linguistic Review, v. 25, n. 1-2, p. 139-201, 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024
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