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Crítica Textual, mais do que importante: necessária para os estudos de literatura

O universo da Crítica Textual é o da interlocução entre a produção, a transmissão e a recepção de textos literários e não literários.6 1 Utilizamos, aqui, universo em conformidade com o uso dessa palavra, para expressar o escopo da Crítica Textual, no minicurso “Universo da Crítica Textual”, ministrado, na Universidade Federal Fluminense, por João Dionísio, em 2008, em evento do Laboratório de Ecdótica (Labec-UFF). Por produção, entendemos o processo que engloba a escritura de um texto, de uma obra - inclusive as marcas da pesquisa que foi feita para sua preparação -, não apartados do contexto de sua concretização. Quanto à transmissão, consideramos as várias “encarnações” de uma obra ou sua única materialização também relacionadas com o contexto de publicação.7 2 A palavra “encarnações” é utilizada por Roger Chartier para denominar as materializações de textos em edições. (cf. CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. Tradução George Schlesinger. São Paulo: UNESP, 2004). Acerca da recepção, a Crítica Textual investiga leituras, interpretações de textos, de obras, num determinado espaço e período de tempo.

Como podemos perceber do que foi dito até aqui, não é à toa que João Dionísio, Professor da Universidade de Lisboa, chamou o escopo dessa disciplina de universo. Realmente seu objeto de estudo, de investigação, é amplo, embora a sua divulgação e o seu reconhecimento no meio acadêmico brasileiro ainda estejam reduzidos.

Para nós que organizamos este número da Revista Gragoatá e que trabalhamos com a Crítica Textual, é muito difícil compreendermos o porquê de a Crítica Textual não ser amplamente reconhecida como uma das disciplinas fundamentais para os Estudos Literários, por exemplo. Contudo, devemos lembrar que o Brasil não passou ileso pelo “dia que durou 21 anos”, que, em 2024, completa 60 anos. Devemos lembrá-lo para que nunca mais aconteça ditadura e tortura. E, a nosso ver, uma das fraturas realizadas pela ditadura foi a de alimentar uma ojeriza por estudos, na área de Letras e de Linguística, relacionados à historicidade.

A Crítica Textual está intimamente relacionada à historicidade, assim como à mudança, inclusive uma das noções centrais dessa disciplina é a de que até mesmo os textos escritos sofrem alterações ao longo de seus processos de transmissão. Ou seja, é fundamental, para pesquisas com bases científicas, o cuidado na escolha das edições das obras que serão por elas trabalhadas. Qualquer descuido nesse quesito pode comprometer o resultado e a seriedade da investigação.

O exercício da Crítica Textual também nos ajuda a promover uma espécie de “escovar a história a contrapelo”, pois as pesquisas em arquivos ou bibliotecas com fontes primárias favorecem, dependendo de quem realiza a pesquisa, a prática do resgate de textos e de leituras, importantíssima num país que sofreu um processo de colonização, de escravismo, de apagamento da história dos vencidos e que tem muito a caminhar em termos de inclusão social, de cidadania, de defesa e de fortalecimento da democracia.8 3 Como sabemos, a expressão “escovar a história a contrapelo” foi assim traduzida por Sérgio Paulo Rouanet de um trecho de Walter Benjamin que está presente em “Sobre o conceito da história”. A edição que aqui utilizamos é a 8ª. de Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da cultura, publicada pela Brasiliense em 2012. Também história dos vencidos é, nesta apresentação, utilizada conforme Walter Benjamin, na edição acima citada.

Neste número da Revista Gragoatá, dedicado à tão importante disciplina, esperamos contribuir para a divulgação e para a valorização da Crítica Textual não apenas no meio universitário do Brasil, mas também em outros países e mesmo fora dos muros acadêmicos. E, por falar neste número, vamos à apresentação propriamente dita dos artigos que o compõem, acompanhada de uma sucinta apresentação de seus autores e de suas autoras.

O primeiro artigo, “The first Brasilian edition of Almeida Garret’s Frei Luís de Souza. Aspects of textual variation”, é de autoria de João Dionísio, aqui já referido na abertura desta Apresentação. Dionísio é professor de Literatura Portuguesa e de Crítica Textual da Universidade de Lisboa, membro da prestigiosa Equipa Pessoa (Grupo de Trabalho para o Estudo do Espólio e Edição Crítica da Obra Completa de Fernando Pessoa), coordenada por Ivo Castro. A partir de uma perspectiva filológica, o artigo de João Dionísio trata da primeira edição brasileira de Frei Luís de Sousa, de Almeida Garret. Nesse artigo, João Dionísio articula questões da transmissão da referida obra, destacando a sua importância para a história comparada do português europeu e do português americano, além de divulgar o nome e a obra de Walter W. Greg.

O segundo artigo, intitulado “A intencionalidade estética autoral em Uma duas, de Eliane Brum”, foi escrito por Neila da Silva de Souza, Doutora em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB), integrante do Grupo de Estudos da Metáfora e Pesquisas em Língua e Literatura da Expressão Amazônica, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e do Grupo de Pesquisa Epistemologia do Romance, da Universidade de Brasília (UnB). A autora nos brinda com um instigante texto sobre o romance Uma duas, publicado pela primeira vez em 2011, da escritora, jornalista, documentarista Eliane Brum. Neste artigo, que é uma contribuição para a divulgação da obra literária da Diretora de Sumaúma Jornalismo, há uma discussão sobre intencionalidade autoral e a respeito da materialidade do texto, temas caros à Crítica Textual, mais ainda na atualidade.

Após o texto de Neila da Silva de Souza, é a vez de “Algumas reflexões sobre a Crítica Textual na Itália: metodologias, fundamentos e desafíos”, de Raphael Salomão Khede, professor de Língua e Literatura Italiana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com robusta formação em Crítica Textual. Como sabemos, a Crítica Textual é bem difundida na Itália, e o artigo de Raphael Salomão Khede, que lá estudou, nos traz uma tradição de estudos de filólogos italianos que não é muito conhecida no Brasil, apesar de ser de imensa importância para os Estudos de Literatura. Ou seja, tal artigo é de grande contribuição para o incremento do diálogo entre filólogos brasileiros e italianos, assim como para a maior valorização da Filologia como Crítica Textual.

Em seguida, publicamos “Coleção Ad usum Delphini: aurora da censura na edição impressa de textos clásicos”, de Fábio Frohwein de Salles Moniz, professor de Língua e Literatura Latinas do Departamento de Letras Clássicas da Faculdade de Letras da UFRJ (FL-UFRJ). O autor é vice-líder do Grupo de Pesquisa Crítica Textual, da Fundação Biblioteca Nacional (RJ). Nesse instigante artigo, Moniz nos possibilita o conhecimento de estratégias, principalmente as do século XVII, na França, de edição de textos das literaturas latina e grega do período clássico, além de resultados dessas estratégias, como expurgos de trechos de obras, apesar de que, em alguns casos, numa espécie de índice, ter publicado o texto em sua provável integralidade, já que estão sendo publicadas edições de textos sem originais. O pesquisador nos faculta informações sobre alguns dos responsáveis pela preparação do texto de volumes específicos da Coleção Ad usum Delphini e nos revela também o nome de uma mulher que estava entre os responsáveis por alguns de seus volumes. O artigo de Fábio Frohwein nos mostra exemplos indiscutíveis de censura, os quais nos fizeram lembrar de problemas nas chamadas edição escolares de Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, durante a monarquia e, mais tarde, durante a ditadura do Estado Novo, que durou 41 anos, em Portugal, conforme indica a Tese de Flávio Garcia VichinskyVICHINSKY, Flávio Garcia. Os Lusíadas para os ‘lusitos’: o destino do épico camoniano no liceu português e a interferência do Estado Novo. 2015. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8150/tde-09032016-161458/ . Acesso em: 16 fev. 2024.
http://www.teses.usp.br/teses/disponivei...
, intitulada Os Lusíadas para os “lusitos”: o destino do épico camoniano no liceu português e a interferência do Estado Novo, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), em 2015. Muito provavelmente tivemos tal recordação, pois, em 2024, estamos comemorando os 500 anos de Camões e os 50 anos da Revolução dos Cravos, que felizmente derrubou a ditadura acima mencionada.

O sexto artigo deste número da Revista Gragoatá é “Sobrevoo por Terra Crua: para a gênese da obra de autoria de Jorge Ferreira Duque Estrada”, de Helcius Pereira e Marcelo Módulo. Helcius Pereira é professor da Universidade Estadual de Maringá, e Marcelo Módulo é professor de Filologia e Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). O material aqui publicado trata da gênese de uma importante obra de Jorge Ferreira Duque Estrada sobre a fundação da cidade de Maringá, no estado do Paraná, além de aspectos de sua recepção.

Logo após esse artigo, temos o “Folclore brasílico no segundo ato de Na festa de São Lourenço, de Anchieta (1587): questões crítico-interpretativas e historiográficas”, de Leonardo Ferreira Kaltner, Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), membro da Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL), e Melyssa Cardozo Silva dos Santos, Doutoranda do Programa Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da UFF. O artigo trata de um auto de Anchieta que foi escrito em três línguas, inclusive o tupi, e de aspectos de sua exegese, tema também caro à Crítica Textual.

O sétimo artigo, “Thomas Middleton’s dramatic social spaces”, de Régis Augustus Closel, professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), tradutor e editor de textos literários da língua inglesa dos séculos XVI e XVII. O autor nos oferece a oportunidade de termos acesso a questões relativas às mulheres, às terras, sob uma perspectiva econômico-social, em algumas das obras de Thomas Middleton. Nesse sentido, também está em consonância com a Crítica Textual, pois acolhe a disposição de tratar sobre temas que promovem o que chamamos, lembrando e citando Walter Benjamin, como já o fizemos anteriormente, de uma espécie de “escovar a história a contrapelo”.

Também no artigo seguinte, Rosani Ketzer Umbach, Professora Titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), e Sabrina Siqueira, pesquisadora doutoranda na mesma instituição, falam sobre um conto intitulado The Bride, da escritora irlandesa Maeve Brennan, ainda pouco conhecida no Brasil, mas que trabalha com uma temática que discute preconceitos de classe, de gênero e um determinado tipo de xenofobia, além de enfatizar a luta por autodeterminação do povo irlandês e de tratar da diáspora, mais especificamente de mulheres irlandesas, nos Estados Unidos. Vale destacar que o referido conto de Maeve Brennan tem como protagonista uma personagem de uma classe economicamente menos favorecida - o que é também relevante em um país de tanta exclusão social como o nosso -, assim como promove o resgate de uma literatura e de uma autora pouco divulgadas no Brasil

O nono artigo, “Teoria, autoria...”, foi escrito por Fábio Almeida Carvalho, Professor Titular da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Tal artigo trata de discussões muito caras à Crítica Textual, como as de autor e autoria, propondo ainda uma discussão teórica sobre as condições do saber nos campos dos estudos literários e das humanidades.

O décimo artigo, de César Nardelli Cambraia, Professor Titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor de Introdução à Crítica Textual, publicado pela Martins Fontes, em 2005. Cambraia é um dos idealizadores, em conjunto com a organizadora deste número da Revista Gragoatá, da criação do GT de Crítica Textual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Linguística (ANPOLL), grupo de trabalho que inclui, entre seus fundadores, o co-organizador do número. Neste artigo, César Nardelli Cambraia faz uma discussão, sob a perspectiva da Crítica Textual, de fontes da versão abreviada da tradução espanhola da obra de Isaac de Nínive, teólogo do século VI d. C, além de sua transmissão e de sua recepção, analisando testemunhos em grego, latim, italiano, espanhol, catalão e português. O texto de César Nardelli Cambraia acompanha a tradição da corrente que trabalha com a interlocução entre Crítica Textual e Linguística Histórica e com estudos culturais. Além disso, também promove o resgate de nomes como o de Isaac de Nínive, que faleceu no que é hoje o Iraque, nos levando também para uma reflexão sobre a importância do diálogo sul-sul como disse o filósofo e teólogo recentemente falecido Enrique Dussel.9 4 Veja-se Dussel, 1993.

Portanto, caras leitoras e caros leitores, com este número da Revista Gragoatá, vocês têm acesso a várias portas que podem levá-las/os ao universo instigante e interdisciplinar da Crítica Textual. Basta terem a generosidade de abri-las. Certamente, serão recebidas e recebidos com hospitalidade10 5 Generosidade e hospitalidade são utilizadas, por Edward Said, em Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente, para se referir a duas das características da Filologia/Crítica Textual, na p. 22, no Prefácio à edição de 2003, presente na edição de 2007, da Companhia das Letras. Tal edição foi traduzida para o português por Rosaura Eichenberg. .

References

  • BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política Obras escolhidas, vol. 1. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.
  • CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor Tradução de George Schlesinger. São Paulo: Editora da Unesp, 2004.
  • DUSSEL, Enrique. 1492 - O encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993.
  • SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • VICHINSKY, Flávio Garcia. Os Lusíadas para os ‘lusitos’: o destino do épico camoniano no liceu português e a interferência do Estado Novo 2015. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8150/tde-09032016-161458/ Acesso em: 16 fev. 2024.
    » http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8150/tde-09032016-161458/
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    Utilizamos, aqui, universo em conformidade com o uso dessa palavra, para expressar o escopo da Crítica Textual, no minicurso “Universo da Crítica Textual”, ministrado, na Universidade Federal Fluminense, por João Dionísio, em 2008, em evento do Laboratório de Ecdótica (Labec-UFF).
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    A palavra “encarnações” é utilizada por Roger Chartier para denominar as materializações de textos em edições. (cf. CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. Tradução George Schlesinger. São Paulo: UNESP, 2004CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. Tradução de George Schlesinger. São Paulo: Editora da Unesp, 2004.).
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    Como sabemos, a expressão “escovar a história a contrapelo” foi assim traduzida por Sérgio Paulo Rouanet de um trecho de Walter Benjamin que está presente em “Sobre o conceito da história”. A edição que aqui utilizamos é a 8ª. de Magia e Técnica, Arte e PolíticaBENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas, vol. 1. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.: Ensaios sobre literatura e história da cultura, publicada pela Brasiliense em 2012. Também história dos vencidos é, nesta apresentação, utilizada conforme Walter Benjamin, na edição acima citada.
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    Veja-se Dussel, 1993DUSSEL, Enrique. 1492 - O encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993..
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    Generosidade e hospitalidade são utilizadas, por Edward SaidSAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., em Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente, para se referir a duas das características da Filologia/Crítica Textual, na p. 22, no Prefácio à edição de 2003, presente na edição de 2007, da Companhia das Letras. Tal edição foi traduzida para o português por Rosaura Eichenberg.

Editado por

Editor-chefe dos Estudos de Literatura

Silvio Renato Jorge

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024
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