Open-access A antropologia das emoções: conceitos e perspectivas teóricas em revisão

Anthropology of emotions: concepts and theoretical perspectives

As emoções na antropologia

A atenção para a dimensão emocional da experiência humana está presente em diversos momentos do pensamento antropológico. O clássico “A expressão obrigatória dos sentimentos”, de Marcel Mauss (1980), pode ser tomado como uma primeira formulação teórica a respeito das emoções, em que o autor, nuançando o modelo teórico durkheimiano baseado no conceito de “fato social”, analisa um conjunto de ritos funerários australianos como forma de pensar um problema central de sua teoria social: a oposição indivíduo-sociedade, expressa ali sob a forma da tensão entre espontaneidade e obrigação, problema que, de resto, atravessa sua obra, em particular no clássico estudo sobre a dádiva.

As emoções surgem também em outras vertentes da teoria antropológica, como na reflexão dos funcionalistas sobre a relação entre organização social e afeto, a exemplo da discussão de A. R. Radcliffe-Brown sobre a maneira como a jocosidade é gramaticalmente prescrita ou interdita em determinadas relações de parentesco; a centralidade das emoções e da personalidade em sua relação com a cultura nos trabalhos de R. Benedict (como no clássico estudo sobre a honra japonesa - O crisântemo e a espada) e M. Mead (como na conhecida comparação entre os temperamentos socialmente definidos como desejáveis para homens e mulheres, em Sexo e temperamento); ou ainda na importância das concepções de self no interpretativismo de C. Geertz, como no uso comparativo feito pelo autor entre as concepções balinesa, javanesa e marroquina de pessoa como forma de discutir a natureza do entendimento antropológico.1

Entretanto, embora presente em todos esses momentos do pensamento antropológico, a emoção não é aí pensada como eixo organizador de uma área autônoma de estudos, ao contrário de outras temáticas já dotadas dessa autonomia em momentos anteriores da história da antropologia, tais como o parentesco, o gênero ou a sexualidade.

A antropologia das emoções se constituiu como área autônoma de investigação na cena antropológica norte-americana nos anos 1980. Três autoras são referências canônicas: Lila Abu-Lughod, Catherine Lutz e Michelle Rosaldo. De suas obras extraímos alguns conceitos-chave que nos servirão aqui para delinear os contornos gerais do campo.

Em 1984, Michelle Rosaldo publicou um artigo no qual discutia a fecundidade teórica da antropologia interpretativista de Clifford Geertz para a construção do self e das emoções como objetos possíveis para a investigação antropológica. Encontra-se nesse texto uma definição das emoções que é hoje referência obrigatória na área:

As emoções são pensamentos de alguma forma “sentidos” em rubores, “movimentos” dos nossos fígados, mentes, corações, estômagos, pele. São pensamentos incorporados, pensamentos infiltrados pela percepção de que “estou envolvido”. Pensamento/afeto revelam assim a diferença entre a mera escuta do choro de uma criança e uma escuta sentida - como quando percebemos que existe perigo ou que a criança é a nossa filha. (Rosaldo, 1984, p. 143, tradução nossa, grifo da autora).

Essa definição aparentemente tão “econômica” - “as emoções são pensamentos incorporados” - concentra em si duas tensões constitutivas do campo: a fronteira (ou a articulação?) entre o corpo e a emoção e a articulação (ou a fronteira?) entre a emoção e a razão. Na formulação de Rosaldo, há implícito um esforço de conjugação dessas três dimensões da experiência humana, dimensões essas, contudo, que, conforme discute Catherine Lutz, estão apartadas na “etnopsicologia euro-americana”.

Em sua etnografia dos Ifaluk na Micronésia, Lutz (1988) recorre ao conceito de “etnopsicologia” para discutir a percepção da vida emocional desse grupo. Por “etnopsicologia” entende-se o conjunto de ideias locais sobre a vida emocional e/ou sobre emoções específicas. Para nossos propósitos aqui, contudo, interessa em particular um capítulo em que a autora realiza aquele “efeito bumerangue” tão típico da antropologia: iluminar aspectos da própria sociedade do antropólogo por meio do esforço de compreensão do outro.

Lutz esboça, então, aquilo a que se refere como a “etnopsicologia euro-americana”, ou seja, um conjunto de ideias sobre a vida emocional que seria característico da Europa Ocidental e da América do Norte. Para ela, essa etnopsicologia seria organizada em torno de duas oposições: emoção/razão e emoção/distanciamento. Na primeira oposição, a emoção seria associada ao feminino e ao descontrole, sendo por isso o polo negativo, enquanto a razão seria atributo do masculino e do controle, sendo, portanto, o polo positivo. Na segunda oposição, as associações entre emoção e gênero permanecem, mas as valorações se invertem: a emoção associada ao feminino recebe a valência positiva porque expressa, agora, a capacidade de envolvimento com o sofrimento alheio, enquanto o masculino aparece como frieza e distanciamento, quase que como uma ausência de empatia, recebendo então a valência negativa. Para Lutz, toda a etnopsicologia euro-americana giraria em torno desses dois eixos, o que faria dos temas do gênero e do (des)controle pedras fundamentais da antropologia das emoções.

Apenas dois anos depois, a própria Catherine Lutz lançaria, em parceria com Lila Abu-Lughod, uma coletânea que se tornou um marco bibliográfico da área: Language and the politics of emotion (Lutz; Abu-Lughod, 1990). A importância desse livro reside no seu texto introdutório, em que as autoras realizam um mapeamento das principais vertentes teóricas existentes até então para em seguida propor uma nova perspectiva. No mapeamento, apontam a existência de três perspectivas. A primeira, o “essencialismo”, considera, como o próprio nome sugere, serem as emoções dotadas de “essências” universais, perspectiva essa que predominaria nos estudos de orientação “psi”. A segunda, batizada por elas de “historicismo”, rompe com a concepção das emoções como dotadas de qualquer atributo universal, considerando-as como construtos históricos. A terceira, alcunhada de “relativismo”, realiza ruptura de teor semelhante sob a égide da noção de “construção cultural”, entendendo as emoções como produtos de contextos socioculturais particulares. Historicismo e relativismo, assim, têm em comum o pressuposto de que as emoções seriam construções culturais e, portanto, variáveis de uma sociedade para outra, seja sob uma perspectiva diacrônica (no historicismo) ou sincrônica (no relativismo).

Contra esse pano de fundo, Lutz e Abu-Lughod propõem uma nova perspectiva: o “contextualismo”. Inspiradas na noção de “discurso” de Michel Foucault - uma “fala que forma aquilo sobre o que fala” -, as autoras advogam que as emoções só poderiam ser estudadas como discursos em contexto, havendo discursos emotivos e discursos sobre as emoções. Nessa visão, além de não possuírem essências transculturais, as emoções já não teriam sequer “atribuições de essências”, ainda que relativizáveis, sendo sempre referidas ao contexto de enunciação de seus discursos. Essa perspectiva dá origem à concepção de que as emoções teriam uma capacidade “micropolítica”, ou seja, uma capacidade de dramatizar, reforçar ou alterar as relações de poder, hierarquia ou status dos sujeitos que as sentem e/ou expressam. Àquela díade conceitual - gênero e controle - vem, assim, se somar uma terceira preocupação: o poder.

A título de exemplos, poderíamos citar, entre muitos outros, o desprezo e o nojo, entendidos por Miller (1997) como “emoções de demarcação de status”; a compaixão, entendida por Clark (1997) como capaz de construir/ressaltar hierarquias; ou a gratidão, já apontada por Simmel (1964) como dotada de “um gosto de servidão”, ou seja, como um sentimento que se faria acompanhar de uma percepção de si como inferiorizado.

Temos, aqui, um conjunto de ideias que balizaram a construção desse campo na cena antropológica norte-americana: a intrincada relação entre emoção, corpo e pensamento; a tríade gênero-(des)controle-poder na etnopsicologia euro-americana; e a capacidade micropolítica das emoções. É esse conjunto de ideias que vem servindo de referência para o desenvolvimento da antropologia das emoções no Brasil.

A consolidação do campo no Brasil

A relevância de qualquer empreendimento intelectual pode ser justificada com base em dois princípios: originalidade ou consolidação. Naturalmente excludentes, essas duas linhas de justificativa se apoiam ou na natureza (supostamente) inédita do trabalho ou em sua inserção em áreas já consolidadas.

O campo da antropologia das emoções no Brasil já pode, hoje, ser considerado sólido o suficiente para não permitir o recurso à “originalidade” como forma de justificar uma iniciativa intelectual. Sua institucionalização é já bastante evidente não apenas em sua versão mais visível - as publicações -, mas também na produção sistemática de teses e dissertações e na recorrência do tema há pelo menos 15 anos nas atividades das reuniões das principais associações científicas - Reunião Brasileira de Antropologia (RBA), Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM) e Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs).2

Entre as publicações, algumas iniciativas de formatos diversos merecem destaque. A Revista Brasileira de Sociologia das Emoções (RBSE), fundada em 2002 pelo Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções (Grem) sob a liderança do Prof. Mauro Koury, é um espaço pioneiro no campo no Brasil, com uma linha editorial específica para a divulgação da produção brasileira na área e uma seção voltada para a tradução de textos clássicos. Em 2010, Rezende e Coelho publicaram um pequeno volume de introdução ao campo, em que historicizam a construção das emoções como um objeto das ciências sociais e apresentam as principais questões e conceitos, tomando como principal referência a cena antropológica norte-americana revisada acima (Rezende; Coelho, 2010).

Há ainda dois esforços de sistematização sob o formato de compilação de textos: a coletânea Cultura e sentimentos: ensaios em antropologia das emoções (Coelho; Rezende, 2011) e o dossiê “Emoções, trabalho e política” (Coelho; Durão, 2017), que trazem dois conjuntos de textos apresentados nas reuniões mencionadas acima ou derivados de teses e dissertações. Ambos incluem textos de revisão do “estado da arte” da área.

É a esse esforço, iniciado em meados dos anos 1990, que a iniciativa de organizar este número temático de Horizontes Antropológicos vem se somar.

O trabalho de organização de dossiês, coletâneas ou números temáticos implica sempre um desafio inicial: a preparação do sumário. Longe de se constituir em uma “tecnicalidade”, um mero arremate formal da reflexão intelectual, a definição da sequência dos artigos em uma publicação nesse estilo deve expressar, já de saída, a contribuição que a combinação dos textos - para além de seus méritos singulares - pode dar para uma área de investigação.

Há, evidentemente, vários caminhos possíveis: proximidade temática, recursos metodológicos, filiações teóricas. Nada há nos textos em si que se imponha como uma sequência evidente. Trata-se, antes, de dispô-los de uma forma que os faça conversar entre si para além de seus propósitos mais explícitos, revelando conexões subjacentes à diversidade temática e teórica.

É a esse exercício que nos propomos aqui: transitar por assuntos díspares, casos etnográficos apartados entre si. Por um lado, objetos próximos podem surpreender ao permitir análises que colocam o foco em sentimentos distintos; por outro, uma mesma emoção pode ser central para a compreensão de fenômenos só longinquamente aparentados.

Escolhemos, assim, fazer uma aposta em uma certa iconoclastia na definição do sumário. O primeiro texto aborda uma comunidade em situação de guerra e é sucedido por uma reflexão sobre pornografia. Em seguida, situamos um estudo sobre a morte de uma cafetina, após o qual vem uma discussão sobre o testemunho em comunidades evangélicas. O percurso prossegue com uma análise sobre revelação da homossexualidade, um estudo sobre moda e autoestima de mulheres negras e uma discussão sobre experiências de parto.

Desse ponto em diante, a iconoclastia na costura temática arrefece, e seguem-se três trabalhos com alguma proximidade: sobre uma experiência pedagógica “alternativa”, sobre a evasão escolar e sobre as emoções no trabalho intelectual. O final fica a cargo de uma reflexão teórica sobre tensões inerentes ao estudo antropológico das emoções.

A próxima seção desta apresentação traz breves exposições de cada texto, estruturadas sempre da mesma maneira: inicialmente, suas ideias principais; em seguida, alguns pontos que destacamos como contribuições para a reflexão sobre o campo da antropologia das emoções que, esperamos, este número temático pode trazer.

Do que falam os artigos

O artigo de Daniel Castaño Zapata e Gabriel Ruiz Romero realiza uma etnografia do município de Tumaco, na Colômbia. Trata-se de uma comunidade em situação de guerra na qual o medo tem lugar central na organização do cotidiano, podendo ser entendido, como colocam os autores, como “gestor social da ordem”. O medo surge, em sua análise, como um sentimento central na produção da dominação. Os autores enfocam o papel dos rumores na produção do medo, tratando-os como “atos perlocucionários”. Atentam também para o papel do silêncio e dos “vazios narrativos” como expressão de “estados afetivos sociais” que desempenham papel central na subjugação.

O caso estudado traz duas contribuições que nos interessam aqui particularmente: para a reflexão em torno da dimensão micropolítica das emoções, devido à centralidade do medo na análise de uma situação-limite de dominação; e para a importância de atentarmos para o trabalho teórico realizado pelas emoções na análise de fenômenos de ordem política, da qual áreas conflagradas são um exemplo de excepcional dramaticidade.

O texto de María Elvira Díaz-Benítez tem por tema a pornografia, abordada com base em duas situações. Na primeira, a autora revisita seu trabalho anterior sobre a indústria de filmes pornográficos, partindo de uma pergunta que escutara recorrentemente quando fazia trabalho de campo: se as atrizes “gostavam”. Díaz-Benítez elege para reflexão aqui as trajetórias de ex-atrizes pornô, perpassadas por sentimentos como culpa, arrependimento, nojo, solidão. A segunda situação é a “pornografia da vingança”: o vazamento proposital de fotos íntimas nas redes sociais. Nessa situação, outros sentimentos são abordados, como vergonha e confiança.

Esses diversos sentimentos tratados a partir dessas duas formas de pornografia formam uma constelação em torno de um problema central: a relação entre humilhação e gênero. A autora sugere a possibilidade de haver aí uma via de mão dupla: se, por um lado, a “gramática” da humilhação seria generificada, por outro a humilhação poderia “constituir gênero”. De mãos dadas com essa sugestão, interessa também realçar, para os propósitos deste número temático, uma outra questão abordada por Díaz-Benítez: a fronteira (ou intercambialidade) entre violência e humilhação.

O artigo de José Miguel Nieto Olivar tem como tema as gramáticas emocionais da “fronteira”. Trata-se da análise da trajetória - vida e morte, o que, se seria óbvio em uma biografia, não é assim tão usual em uma etnografia - de uma cafetina lésbica, dona de um bordel na cidade de Tabatinga, situada na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. O autor discute os sentimentos associados ao mito da fronteira, esboçando uma oposição tripartite: de um lado, estaria a fronteira como exploração, espaço do ato heroico, vivida sob o signo da coragem; do outro, a fronteira como civilização, lugar de sofrimento, marcada por sentimentos de pena.

O entrelaçamento entre gênero, violência e humilhação aparece aqui também na análise da trajetória de Carmelo, culminando em sua doença, seu abandono, sua solidão e sua morte, profundamente marcados por uma tensão entre sua percepção de si e um conjunto de ressignificações empreendidos pelos cuidados hospitalares, incluso aí um conflito em torno da “(re)generificação” de sua pessoa, traduzido na briga pelo pijama: o traje feminino com estampa de mariposas fornecido pelo hospital versus o pijama “de hombre” que pede ao antropólogo.

Raphael Bispo aborda os testemunhos de conversão de artistas evangélicas como um gênero narrativo. A perspectiva adotada conjuga a antropologia do sofrimento de Arthur Kleinman - com sua pergunta “o que realmente importa” - à discussão sobre o trabalho do tempo de Veena Das e sobre a agência diante das normas de Saba Mahmood. O autor analisa um conjunto de depoimentos de artistas nos quais seus sofrimentos são expostos em público sob a forma testemunhal em narrativas de conversão, nas quais têm destaque sentimentos de “vazios”, “angústias” e “dores”, bem como a adesão a um estilo de feminilidade característico de papéis de gênero tradicionais.

Chama a atenção aqui o recurso a categorias êmicas - “vazios”, “angústias” e “dores” - para se referir a estados subjetivos. Vocábulos da “etnopsicologia euro-americana” aparecem também, tais como o arrependimento e o remorso, que apontam para a temporalidade das emoções, conduzindo-nos assim a mais um eixo central da antropologia das emoções: a dimensão moral da vida emocional.

O texto de Leandro de Oliveira discute o processo de revelação da homossexualidade de uma jovem lésbica à sua família. Trata-se de um estudo que recorre à metodologia das “histórias de vida”, entendidas pelo autor como maneira de fugir à oposição clássica entre indivíduo e sociedade. O sentimento que conduz a análise é a vergonha, relatada em um episódio particular pela entrevistada como uma forma de insulto, na medida em que se trata da reação emocional de sua mãe diante da sua orientação sexual.

Antropologia das emoções e antropologia da sexualidade se conjugam aqui por meio da análise da vergonha em sua dimensão micropolítica. A vergonha da mãe, entendida como um insulto, ilumina a dimensão heteronormativa da sexualidade, permitindo também realizar uma aproximação com a violência, na medida em que ter sua orientação sexual tratada como um motivo de vergonha é entendido, pela entrevistada, como uma “agressão sutil”. A articulação entre o moral e o físico na violência, explorada por Oliveira (2008), fica explícita aqui no impacto provocado sobre o sujeito de ser visto como causa da vergonha provocada em outro.

A partir de uma etnografia de um circuito de atividades culturais e comerciais voltadas à comunidade negra na cidade de São Paulo, o artigo de Gleicy Mailly da Silva reflete sobre as relações entre corpo, estética e emoção e formas de engajamento político protagonizado por mulheres negras. A autora analisa o espaço de produção de moda Xongani, que, além do comércio de roupas e acessórios em padrões estéticos (estampas) e de tamanho (numeração) alternativos ao (bio)tipo europeu, também se apresenta como um espaço de desconstrução do “sentimento de desajuste” e de produção de uma estética-política feminista.

Para o diálogo que este volume se propõe, destaca-se a discussão da autora sobre a categoria de empoderamento e sobre o papel das emoções na construção de uma experiência de enunciação de novos discursos que conjugam consumo e feminismo. A transformação de vergonha e do constrangimento, próprios do “sentimento de desajuste”, em emoções positivas capazes de reconstruir subjetividades empoderadas passa pela experiência coletiva do discurso que exprime bem-estar, orgulho e prazer na visibilidade de uma estética que carrega consigo uma afirmação identitária.

Claudia Barcellos Rezende, tomando a experiência de parto como um fato social total, discute a presença das emoções nas narrativas de parto de mulheres de camadas médias no Rio de Janeiro. A partir de entrevistas realizadas com mulheres de duas gerações distintas, a autora enfoca, em especial, as formas de narrar o parto onde se revelam as agências do tempo, do espaço, de um conjunto de personagens, do corpo e das emoções. Mas se, por um lado, a estrutura narrativa se apresenta de maneira muito semelhante nas falas das mulheres de ambas as gerações, por outro, as entrevistas revelam uma série de diferenças na descrição, na qualificação e na avaliação de aspectos da experiência das mulheres mais jovens em comparação à das mais velhas, entre eles os tipos de dificuldades, a participação de outras pessoas, as negociações com os médicos, a presença do bebê e a intensidade da dor.

Dentre as várias contribuições do artigo para a antropologia das emoções, encontra-se a reflexão sobre o entrelaçamento das categorias que se referem, ao mesmo tempo, a emoções e a sensações corporais. Explicitada no texto através dos sentidos (enquanto sensações e sentimentos) de dor e de alívio na hora do parto, a dimensão corporificada das emoções se desvela nas narrativas, evidenciando, entre outras coisas, o desgaste das tradicionais dicotomias mente-corpo, razão-emoção.

O artigo de Alessandra Rivero Hernandez e Ceres Víctora toma como ponto de partida um conjunto de práticas de criação infantil que colocam em evidência os sentidos - percepções, afetos, emoções, intuição, empatia - e que se pautam na retórica da escolha e do engajamento individual, para analisar a gramática emocional que organiza os jogos de linguagem através dos quais se ensina e se aprende uma forma de vida ecologicamente orientada. A partir da análise do espaço de educação infantil Tardes no Verde, o texto apresenta os percursos e as interações das crianças entre si e com o ambiente, destacando os sentidos e a sensibilidade romântica engendrada em práticas e discursos que exaltam o Indivíduo. A gramática emocional em operação nos jogos de linguagem das Tardes do Verde pode ser percebida a partir de dois eixos principais: o primeiro, onde se alinham dinâmicas de participação e de escolha (ex.: coragem para enfrentar situações de conflito; confiança em si e nos outros); e o segundo, que inclui estados de imobilidade e de coerção (ex.: medo de elementos da natureza; tédio diante do tempo livre).

Um aspecto a ser destacado no artigo é o caráter moral da gramática emocional colocada em prática nas dinâmicas das Tardes no Verde. Através de palavras, gestos e ações em um ambiente preparado para enaltecer alguns sentimentos - e não outros - apresentam-se valores e regras que devem ser sentidos e incorporados pelas crianças a partir de jogos de linguagem.

Alef de Oliveira Lima problematiza o fenômeno da evasão escolar a partir de pesquisa realizada em contexto da Educação de Jovens e Adultos (EJA), sugerindo que o abandono deve ser pensado para além dos problemas das políticas educacionais, dificuldades socioeconômicas ou gravidez na adolescência, entre outras razões já descritas amplamente na literatura. Trabalhando com dados da etnografia que realizou junto a uma turma de estudantes adultos que frequentam a escola no período da noite, o autor propõe que o abandono seja pensado como um processo de desengajamento, que, como uma deserção, é ao mesmo tempo corporal e político. Assumindo a perspectiva da corporeidade, o autor observa que o desânimo, conjugado com a moleza e a preguiça, é um afeto corporificado que trabalha a evasão, tanto em termos do movimento (o abandono) como do sujeito (o evadido).

Uma das questões instigantes do artigo diz respeito ao que os evadidos querem dizer a partir do seu abandono. Além da dimensão contrapolítica do corpo ausente na sala de aula que interpela as políticas educacionais de maneiras diversas, a evasão fala de uma forma de experienciar a educação formal, afetada pelos corpos, pelos sentidos, pelos tempos e pelas dinâmicas da vida dos jovens e adultos.

O artigo de Maria Claudia Coelho é de natureza bibliográfica e se debruça sobre o lugar das emoções na história do pensamento antropológico. Partindo de um problema consagrado na literatura da antropologia das emoções - a recorrência, no senso comum, da representação das emoções como capazes de conspurcar os universos profissionais e institucionais -, a autora propõe a existência de três maneiras de encarar o lugar das emoções no trabalho do antropólogo: como intrusas indesejáveis, como via de acesso ao que é fazer etnografia e como forma de compreensão da alteridade.

O texto discute também o lugar das emoções na produção de conhecimento, tanto como “molas propulsoras” de projetos disciplinares específicos - a nostalgia no caso da antropologia, o pessimismo no caso da sociologia - quanto como “motor” do trabalho intelectual - o amor como ímpeto para pensar (a partir da relação entre Beatrice e Sidney Webb). A questão que perpassa toda a argumentação é o lugar das emoções como motivações para conhecer, revisitando assim a clássica oposição entre razão e emoção.

Com o intuito de contribuir para o campo da antropologia das emoções, Mariana Sirimarco e Ana Spivak L’Hoste abordam uma das maiores dificuldades da incorporação das emoções em estudos socioantropológicos. Perguntam ao longo do artigo o que implica a opção de assumir as emoções como uma categoria analítica: quais os obstáculos recorrentes quando se inicia um estudo que pretende enfocar emoções, como desnaturalizar as emoções e interrogá-las como parte de um problema antropológico de pesquisa? Levando em consideração suas experiências de investigação e docência, as autoras sugerem que um dos maiores desafios está em superar o descritivismo, ou seja, a armadilha de arrolar emoções no texto - esta persona lloró, tal otra evidenció enojo, aquella fue una situación de alegría - que as autoras tributam ao forte apelo à biologia e à psicologia que as emoções provocam e às barreiras que isso proporciona à construção de um problema de pesquisa.

A partir da análise de textos clássicos e contemporâneos nos quais as emoções são problematizadas, as autoras apontam para a importância dos discursos nos quais os sentimentos estão imersos, por quem e para quem são proferidos, em que contexto e que tipo de relações de poder expressam/produzem.

Essas questões, inventariadas a partir da exposição de cada texto, um a um, formam um conjunto no qual podemos identificar, com alguma sistematicidade, alguns pontos de aproximação.

O primeiro deles é temático: a relação entre violência e emoção. Esse tema aparece na etnografia de Castaño Zapata e Ruiz Romero, com foco no medo; na análise da pornografia de Díaz-Benítez, com ênfase na humilhação; e na história de vida estudada por Olivar, com destaque para a solidão. Uma temática - a violência -, três sentimentos - medo, humilhação e solidão.

O segundo ponto de aproximação entre os textos é também temático: as gramáticas emocionais relacionadas à sexualidade e ao gênero. Os textos de Díaz-Benítez e de Olivar conversam agora com os artigos de Bispo e Oliveira, com o arrependimento, o remorso e a vergonha se somando à humilhação e à solidão como sentimentos capazes de iluminar aspectos das experiências relacionadas ao exercício da sexualidade e à vivência dos papeis de gênero.

Invertendo agora a relação entre objeto de pesquisa e problema teórico, podemos sublinhar uma conexão entre os textos de Oliveira e de Silva: a importância da autoestima como um problema passível de análise pelas ciências sociais, tratado nos artigos a partir da relevância dos sentimentos de vergonha e de orgulho como chaves explicativas dos dramas e conflitos analisados.

Ainda no registro de focar as emoções analisadas (em vez do objeto pesquisado), sublinhamos a importância de se dar atenção a categorias êmicas na descrição dos estados emocionais e subjetivos. Esse eixo nos permite aproximar os trabalhos de Bispo e Silva, por meio, respectivamente, dos sentimentos de “vazio” e de “desajuste” que estão no cerne de suas análises.

Corpo e sensorialidade são também uma questão que atravessa temáticas distintas. O corpo está presente na discussão de Silva sobre a moda e o empoderamento de mulheres negras; nas experiências de parto examinadas por Rezende; e na interpretação da evasão escolar realizada por Lima.

Os artigos entabulam ainda uma outra conversa (para retornar ao registro temático): as emoções presentes em instituições de ensino/pesquisa. Por esse ângulo, o trabalho de Hernandez e Víctora dialoga com os textos de Lima e Coelho, sugerindo a relevância de se dar atenção à dimensão emocional de projetos pedagógicos e de produção de conhecimento, colocando em xeque a primazia da dimensão cognitiva na análise desses fenômenos sociais.

Três temáticas: violência, sexualidade, ensino/pesquisa. Três questões: as gramáticas emocionais vinculadas à autoestima, a relação entre corpo/sensorialidade e emoções, a importância das categorias êmicas na análise dos sentimentos. Essas são algumas possibilidades de articulação entre os textos que compõem este número temático e que vêm assim se somar àquelas tantas outras questões já delineadas nos esforços anteriores de mapeamento do campo no Brasil citados acima - o trabalho micropolítico das emoções, a dimensão moral dos sentimentos e o lugar das emoções em fenômenos da vida pública, entre outras - na formulação de uma “agenda de pesquisa” para os estudos socioantropológicos das emoções, para a qual essa iniciativa de organização de um número temático pretende contribuir.

Na seção Espaço Aberto publicamos o artigo “‘Libertação’, ‘discernimento’ e ‘abertura’: acerca da religião e dos modos de conhecimento”, de Ypuan Garcia. Nele, o autor apresenta o resultado de uma pesquisa etnográfica realizada entre os anos de 2013 e 2016 junto a um grupo de oração, de uma comunidade católica, da cidade de São Paulo, tendo como foco principal questões relativas à “libertação”, ao “discernimento” e à “abertura”. O argumento é de que para esse coletivo cristão libertar não é se emancipar, mas se vincular e se comprometer cada vez mais com Deus. Trata-se de uma aliança com a divindade que incita a violência do demônio e cujo caráter comungatório da relação com Ele resulta no discernimento, que se caracteriza pela realização de “distinções”, em lugar de divisões e misturas, que viceja em um mundo intrinsecamente “aberto”.

Na capa deste volume encontra-se a escultura Mélancolie, criada pelo artista romeno Albert György em 2012 e situada às margens do Lago de Genebra. O uso da imagem na capa de Horizontes Antropológicos foi autorizado pelo autor.

Referências

  • CLARK, C. Misery and company: sympathy in everyday life. Chicago: The University of Chicago Press, 1997.
  • COELHO, M. C.; DURÃO, S. Introdução ou como fazer coisas com emoções. Interseções, v. 19, n. 1, p. 44-60, 2017.
  • COELHO, M. C.; REZENDE, C. B. (org.). Cultura e sentimentos: ensaios em antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Faperj: Contra Capa, 2011.
  • LUTZ, C. Unnatural emotions: everyday sentiments on a Micronesian atoll & their challenge to western theory. Chicago: The University of Chicago Press, 1988.
  • LUTZ, C.; ABU-LUGHOD, L. Language and the politics of emotion New York: Cambridge University Press, 1990.
  • MAUSS, M. A expressão obrigatória dos sentimentos. In: FIGUEIRA, S. (org.). Psicanálise e ciências sociais Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980. p. 56-63.
  • MILLER, W. I. The anatomy of disgust Cambridge: Harvard University Press, 1997.
  • OLIVEIRA, L. R. C. de. Existe violência sem agressão moral?. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 67, p. 135-146, 2008.
  • REZENDE, C. B.; COELHO, M. C. Antropologia das emoções Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
  • ROSALDO, M. Toward an anthropology of self and feeling. In: SHWEDER, R.; LEVINE, R. (ed.). Culture theory: essays on mind, self, and emotion. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. p. 137-157.
  • SIMMEL, G. Faithfulness and gratitude. In: WOLFF, K. H. (ed.). The sociology of Georg Simmel New York: Free Press, 1964. p. 379-395.
  • 1
    Para uma discussão sobre a presença das emoções na teoria antropológica, ver Rezende e Coelho (2010).
  • 2
    Entre os pesquisadores que participaram desse esforço de organização de atividades, podemos citar Octavio Bonet, Susana Durão, Mauro Koury, Ana Spivak L’Hoste, Rachel Aisengart Menezes, Claudia Barcellos Rezende, Jane Russo, Cynthia Sarti, Mariana Sirimarco e as organizadoras deste número - Ceres Víctora e Maria Claudia Coelho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019
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