Resumos
No intuito de dar visibilidade ao arquivo fotográfico das excursões geográficas promovidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para reconhecimento do território nacional, o artigo mostra suas condições de formação e seu uso como fonte histórica. Aborda a apresentação das imagens e o inventário de temas e lugares na produção de Tibor Jablonszky no que se refere às representações construídas sobre trabalho feminino no Brasil nas décadas de 1950 e 1960, segundo o ponto de vista do fotógrafo a serviço de uma instituição de governo.
arquivo fotográfico; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; memória; trabalho feminino; Tibor Jablonszky (1924-1980)
Shining a light on the photographic archive of geographic missions assigned to do reconnaissance of the country's territory, sponsored by the Brazilian Institute of Geography and Statistics, the article describes the conditions under which this archive was compiled and how it can serve as a historical source. It addresses the presentation of images and the range of topics and places found in Tibor Jablonszky's work as far as the representations that this photographer constructed of female labor in Brazil during the 1950s and 1960s, from the viewpoint of a photographer working for a government agency.
photographic archives; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; memory; female labor; Tibor Jablonszky (1924-1980)
IMAGENS
O arquivo fotográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e o olhar de Tibor Jablonszky sobre o trabalho feminino
The photographic archive of the Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística and Tibor Jablonszky's view of female labor
Vera Lucia Cortes Abrantes
Pesquisadora do Centro de Documentação e Disseminação de Informações/Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Rua General Canabarro, 706, sala 120, 20271-205 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. veracortes@ibge.gov.br
RESUMO
No intuito de dar visibilidade ao arquivo fotográfico das excursões geográficas promovidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para reconhecimento do território nacional, o artigo mostra suas condições de formação e seu uso como fonte histórica. Aborda a apresentação das imagens e o inventário de temas e lugares na produção de Tibor Jablonszky no que se refere às representações construídas sobre trabalho feminino no Brasil nas décadas de 1950 e 1960, segundo o ponto de vista do fotógrafo a serviço de uma instituição de governo.
Palavras-chave: arquivo fotográfico; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; memória; trabalho feminino; Tibor Jablonszky (1924-1980).
ABSTRACT
Shining a light on the photographic archive of geographic missions assigned to do reconnaissance of the country's territory, sponsored by the Brazilian Institute of Geography and Statistics, the article describes the conditions under which this archive was compiled and how it can serve as a historical source. It addresses the presentation of images and the range of topics and places found in Tibor Jablonszky's work as far as the representations that this photographer constructed of female labor in Brazil during the 1950s and 1960s, from the viewpoint of a photographer working for a government agency.
Keywords: photographic archives; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; memory; female labor; Tibor Jablonszky (1924-1980).
A multiplicação de documentos providos de linguagem não textual evidenciou a necessidade de se estudarem o significado e o conteúdo cultural desse material. É nesse sentido que investigo a relação entre fotografia, memória e trabalho feminino nos registros do fotógrafo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) Tibor Jablonszky (1924-1980). Sua produção para o Arquivo Fotográfico Ilustrativo dos Trabalhos Geográficos de Campo adequou-se à importância de se estudar a fotografia como fonte de (re)conhecimento da realidade física e social do país em sua amplitude espacial, incluindo o cotidiano de vida do povo brasileiro.
Jablonszky produziu 9.254 imagens para o arquivo fotográfico entre 1952 e 1968. Vale ressaltar que, durante alguns anos, o fotógrafo chefiou o Setor de Fotografia e Cinema do Conselho Nacional de Geografia (CNG), órgão do IBGE, o que pode ter contribuído para sua expressiva produção.
Essa pesquisa caracterizou-se pela seleção das imagens do fotógrafo e, ao mesmo tempo, identificação do conteúdo imagético relacionado ao tema trabalho. Foi utilizado o conceito de trabalho1 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, adequando-o aos interes-ses da investigação. Do conjunto examinado, 791 fotos se ajustaram aos critérios inicialmente estabelecidos.
Estudos sobre o tema trabalho que tratam das relações de gênero apontam elementos que diferenciam as experiências de trabalho de homens e mulheres, elementos que poderiam estar presentes nas fotografias. Nesse contexto, decidiu-se investigar representações das trabalhadoras marcadas por valores culturais e sociais que definem os lugares das mulheres e meninas, diferenciados e desiguais.
A proposta objetiva, também, por se tratar de um recorte do acervo fotográfico produzido durante as excursões geográficas promovidas pelo IBGE, caracterizar as condições de formação do arquivo e seu uso como fonte histórica para a reconstrução da memória do trabalho feminino e elaborar, a partir da leitura das imagens, um 'retrato' do trabalho feminino no país entre 1952 e 1968.
O primeiro passo para determinar a série trabalho feminino na produção de Jablonszky consistiu em estabelecer uma norma de seleção das fotografias: mulheres e meninas desempenhando ocupação em seus espaços de trabalho ou moradia. Obteve-se, então, um conjunto com 116 imagens que foram categorizadas segundo as classes de trabalho feminino e trabalho feminino infantil nos seguintes temas: trabalho na agricultura familiar; trabalho doméstico e trabalho industrial. Assim, cada tema do conjunto fotográfico foi organizado segundo a atividade realizada pelas mulheres e meninas.
Ainda que este estudo tenha como proposta fundamental analisar o trabalho feminino representado em imagens, proporcionou também a oportunidade de conhecer a trajetória de um imigrante húngaro e o seu "olhar" sobre o país. A história oral, usada como metodologia de pesquisa, enfatiza aspectos vinculados às pesquisas geográficas de campo, ao ato de fotografar essas expedições e a Tibor Jablonszky em especial. Não podemos esquecer, também, que havia o propósito de se criar um arquivo fotográfico. Diante da qualidade do acervo, torna-se oportuno enfocar as condições de formação do arquivo, informações essenciais para a memória da instituição.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e a institucionalização da Geografia no Brasil
No princípio era o caos! Reinavam a desordem e a confusão no quadro territorial brasileiro. Nenhuma norma racionalizadora se impunha em meio ao tumulto, no sentido de uma razoável caracterização dos âmbitos geográficos. O Brasil não tinha, dessa maneira, a medida exata de sua grandeza física, porque lhe faltavam os elementos indispensáveis à perfeita definição de sua imagem (As atividades..., 1940, p.1).
A revolução de 1930 assume o caráter de um movimento de centralização, burocratização e racionalização em torno da esfera estatal, com quebra na autonomia dos estados, o que resultou em uma crescente centralização de poder, em que "o executivo federal não só comandava as políticas econômica e social, como também dispunha dos meios repressivos e executivos" (Draibe, 1985, p.62).
O processo que se inaugurou em 1930, com a instalação do governo provisório, e que se completou em 1937, ano em que foi outorgada a nova Constituição, inaugurando o Estado Novo, trouxe como consequência o reforço do Poder Executivo e poderes ilimitados ao presidente Getúlio Vargas. O contexto político foi marcado por uma fase de revitalização da estrutura governamental federal: "Velhos órgãos ganharam nova envergadura, estruturaram-se carreiras, assim como os procedimentos sujeitaram-se crescentemente à lógica racional-legal" (Draibe, 1985, p.62).
O processo de concentração de poder no Estado se expressou, também, na modernização e centralização dos instrumentos de informação estatística sobre as riquezas nacionais, a população e a estrutura das atividades econômicas. Não foram poucos os levantamentos estatísticos que redundaram precários ou falharam por completo, resultado das condições anormais em que se encontravam os quadros territoriais do país.
A necessidade de criação de um órgão que centralizasse as pesquisas estatísticas levou Mário Augusto Teixeira de Freitas, delegado geral do Recenseamento do Estado de Minas Gerais, a delinear um modelo de gerenciamento de informações territoriais em que as decisões operacionais ficavam nas mãos de um único gerente, mas o processo de normalização das informações era compartilhado pelos produtores e usuários dos dados coletados (As atividades..., 1940).
Aprovado o projeto, o governo criou em 6 de julho de 1934, por meio do decreto n.24.609, o Instituto Nacional de Estatística (INE), instalado somente em 29 de maio de 1936, quando foram regulamentadas suas atividades. Um dos principais fatores de coesão do governo Vargas, o INE caracterizava-se por sua estrutura de representações que contemplava todas as instâncias de governo, o que pode ser definido como agência do poder central capilarizada. A atuação do órgão seria diferente por ter como base uma orientação técnica mais precisa e unificada para todo o Brasil: "o Instituto teve que acompanhar uma diretriz política fundada na centralização do poder do Estado, e que combatia o federalismo das unidades esta-duais ..." (Gomes, 2002, p.176).
Ocorreu, então, um movimento de renovação da estatística nacional, em termos de ampliação da informação. A criação de um sistema nacional de estatística foi um passo importante, pois conferiu ao Executivo federal mais consistência no monopólio da informação (Draibe, 1985).
Contudo, ainda faltava um organismo que se dedicasse, especificamente, aos levantamentos geográficos realizados por diversos órgãos federais. Em 1931, o Brasil participou do Congresso Internacional de Geografia e teve o primeiro contato com a União Geográfica Internacional (UGI). Posteriormente, em 1933, o geógrafo francês Emmanuel De Martonne formalizou o convite de filiação à UGI, salientando a ideia da constituição de um órgão nacional encarregado da coordenação dos problemas da geografia brasileira. Nesse mesmo ano, a Diretoria de Estatística da Produção do Ministério da Agricultura iniciou suas atividades em benefício do conhecimento geográfico no país.
Em 1937, com a criação do CNG, membro da UGI, incorporado ao INE, o governo federal finalmente tinha um órgão responsável pelos projetos de reconhecimento do território brasileiro. Um ano depois, a alteração do nome para Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) enunciou com imparcialidade e integridade as suas atribuições.
Cabe ressaltar que a integração técnica entre a estatística, a geografia e a cartografia se deu nesse período, principalmente em relação à preparação das equipes de profissionais. Houve necessidade da estruturação de um aparato institucional dedicado à geografia, materializado com a criação de cursos universitários na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade do Distrito Federal (UDF), e a contratação de jovens professores franceses que iniciaram suas carreiras de pesquisadores no Brasil.
A função básica do CNG, nesse período, era produzir mapas para os levantamentos censitários. Havia pela primeira vez uma preocupação com a correta localização das áreas a cobrir pelo censo. "A Geografia e a Cartografia tiveram um papel essencial na melhoria da qualidade da informação. Os dados dos Censos, de 1940 para cá, evidentemente, têm um grau de fidedignidade muito maior" (Faissol, 1995, p.167).
A partir da oficialização do projeto que dividia o Brasil em grandes regiões, o CNG expandiu suas atividades aos estudos de geografia humana e regional com vistas a construir um corpo de conhecimentos geográficos sobre o Brasil, tanto no plano acadêmico, como no plano das estratégias de planejamento territorial do país.
Para isso, se fazia necessário identificar numerosos aspectos da realidade brasileira até então desconhecidos. E para desempenhar com eficiência essa tarefa que lhe tinha sido atribuída, o IBGE implantou métodos de pesquisa utilizados por instituições e sociedades geográfi-cas internacionais, tais como as excursões de estudo, que possibilitavam observações in loco. A pesquisa geográfica de campo permitia explorações detalhadas do processo de ocupação do território e estudos pioneiros do sistema urbano do país. "As excursões geográficas e os trabalhos de campo passam a ser o ponto alto das novas orientações didáticas" (Angotti-Salgueiro, 2005, p.25).
É importante destacar que as pesquisas geográficas proporcionaram aperfeiçoamento adequado aos técnicos do Instituto e forneceram, ao governo federal, subsídios aos seus projetos de reconhecimento do território brasileiro, mudança da capital federal, colonização agrícola, regionalização em várias escalas, acompanhamento da urbanização e diagnósticos ambientais.
Os trabalhos geográficos de campo e o conhecimento do território nacional
A geografia deu os primeiros passos como ciência no fim do século XIX, graças aos trabalhos de Alexander von Humboldt, Carl Ritter e Friedrich Ratzel, nos quais procuravam mostrar que "a atividade humana obedece a leis impostas pelo espaço e pela localização" (Glénisson, 1961, p.66). Instrumento fundamental para conhecimento do território nacional (Valverde, 1998), a geografia estuda o meio ambiente em seus aspectos geológicos e geomorfológicos, o clima, a vegetação, os solos etc., assim como os habitantes, sua relação com o meio e as estruturas econômicas e sociais implantadas nesse ambiente. Como consequência do desenvolvimento tardio, muitas vezes o campo da geografia está no domínio de outras ciências que evoluíram anteriormente, sendo difícil estabelecer os verdadeiros limites. O trabalho realizado pelos geógrafos foi de apropriação e sistematização de conceitos e teorias até então restritas ao Estado, que, recontextualizados no discurso geográfico, enfatizam as relações entre poder e saber. "Desde o momento em que se pode analisar o saber em termos de região, de domínio, de implantação, de deslocamento, de transferência, pode-se apreender o processo pelo qual o saber funciona como um poder e reproduz os seus efeitos. Existe uma administração do saber, uma política do saber, relações de poder que passam pelo saber" (Foucault, 1979, p.158).
Não há relação de poder sem constituição de um saber, como também, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder. Todo ponto de exercício do poder é um lugar de formação do saber e, em contrapartida, todo saber assegura o exercício de um poder. Então, o saber geográfico surge como um instrumento de alto valor para analisar os problemas das regiões e realçar suas necessidades. Tem, portanto, valor utilitário para o poder, que por sua posição estratégica é capaz de explorar. O processo de concentração de poder no Estado, no primeiro governo de Getúlio Vargas, se expressou também na intensa formulação oficial de políticas territoriais explícitas no sentido de se conhecer geograficamente o país.
O IBGE, através do CNG, objetivando atender às necessidades do governo federal, procurou garantir treinamento especializado em pesquisas geográficas - método utilizado por geógrafos estrangeiros - para os estudantes que fariam parte do primeiro grupo organizado pelo conselho, ainda no processo de implantação do curso de geografia da UDF. Pierre Deffontaines, geógrafo francês que lecionava na UDF, orientou os futuros geógrafos. "O geógrafo europeu, alemão e francês principalmente, tinha uma visão integrada de geografia física e geografia humana, apesar de se especializar nisto ou naquilo" (Valverde, 1998).
Com base na necessidade de desenvolvimento sistemático dos estudos sobre a terra e a atividade humana, o IBGE criou, em 1939, um centro de estudos destinado a coordenar e estimular pesquisas empreendidas por seus geógrafos. As atividades do centro se desdobravam em reuniões e em excursões com o propósito de realizar investigações no próprio local. "O fundamental dessas excursões era essencialmente o levantamento do território, o conhecimento das suas condições naturais e humanas, as condições terrestres" (Botelho, 1999).
Francis Ruellan, geógrafo francês discípulo de Emmanuel de Martonne e especializado em geomorfologia, tornou-se o grande formador da geração de geógrafos do CNG, a chamada "velha guarda ibgeana" (Almeida, 2000, p.183). Entre 1941 e 1956, organizou grandes trabalhos de campo, considerados por seus alunos como verdadeiros cursos especiais. Segundo relembra Cardoso (1999), "Nas excursões, secretariava o professor Ruellan. Tudo o que ele falava tinha que escrever na caderneta, tomar nota de tudo, medir, ficar encarregado da câmara clara, aquele aparelho que reconstitui o desenho, a paisagem, e principalmente providenciar todas as excursões. Tinha que fazer tudo, desde o seguro de vida, porque as excursões eram perigosas. Ficávamos acampados, sozinhos no meio do mato".
O Conselho de Geografia contratou, em 1945, Leo Waibel, professor da Universidade de Wisconsin, para orientar geógrafos em planejamento regional, tornando-se, então, esse geógrafo alemão, referência nos estudos de ocupação do território brasileiro. Seu vasto conhecimento de geografia agrária ampliou os horizontes de geógrafos encarregados pelo governo federal do desenvolvimento do projeto de colonização.
Em torno de Waibel, formou-se um seleto grupo de pesquisa de campo que propunha um novo enfoque para o conhecimento geográfico. Sua orientação era bastante detalhada, pois ensinava os alunos a organizar notas, redigir os diários, fotografar, fazer croquis, ver e pensar. Nas suas pesquisas, um dos alunos ficava encarregado de observar a paisagem e exigia que, primeiro, fossem apresentados os fatos, depois, as teorias. Dessa maneira, enfatizava seu ponto de vista metodológico de "que em geografia, como em qualquer ciência concreta, deve-se aplicar o raciocínio indutivo, as teorias devem adaptar-se aos fatos e não estes às teorias" (Waibel, 1979, p.15).
Primeiro projeto do grupo, o "Atlas geral da colonização do Brasil" localizava áreas que poderiam ser ocupadas por grandes massas de populações deslocadas pelo fim da Segunda Guerra Mundial. Depois veio o problema da mudança da capital para o Planalto Central, prevista na Constituição de 1946. Atendendo à demanda governamental de definir o espaço do Distrito Federal no interior do país, Leo Waibel e Francis Ruellan conduziram, cientificamente, pesquisas minuciosas nas zonas previamente escolhidas e estudos geográficos dos sítios adequados, que lá se poderiam encontrar, para a instalação de uma grande cidade (Expedições..., 1947).
Em obediência ao programa Marcha para o Oeste, linha mestra da política preconizada por Vargas, a expedição Roncador-Xingu destinava-se ao desbravamento do Brasil Central. A "Campanha Marcha para o Oeste" (Penha, 1993, p.57) propunha garantir a integração nacional, povoar e explorar as imensas áreas desertas do país, supostamente ricas em recur-sos naturais.
Como parte do plano geral de pesquisa sobre colonização no Brasil, o IBGE realizou no Rio Grande do Sul, em 1948, estudos geográficos que abrangeram a viabilidade para receber imigrantes. Esse plano exigiu numerosos trabalhos de campo.
Em 1949, o IBGE assinou um convênio com a Comissão do Vale do Rio São Francisco para realizar o levantamento geológico/geomorfológico da bacia do rio e investigar sítios para a construção da Usina de Paulo Afonso.
Foi a maior excursão que houve no IBGE, o primeiro trabalho no vale do São Francisco, pesquisa de campo com o senhor Francis Ruellan. A Francisca [Maria Francisca Cardoso, geógrafa que secretariava as expedições geográficas] quando fala já está amenizando muito as coisas. Aquilo foi uma excursão de trabalho e trabalho pesado. Muita coisa surgiu como documentação fotográfica, de conhecimento do Brasil, de formação dos geógrafos, de noção do valor de excursão de trabalho de campo. Eu não era dessa época, mas quando cheguei tudo girava em torno, quase tudo, em termos de metodologia de trabalho de campo (Sant'anna, 30 maio 1999).
Em 1953, o geógrafo Lúcio de Castro Soares percorreu toda a área de transição da Amazô-nia com o Centro-Oeste e o Nordeste, o que resultou no trabalho "Delimitação da Amazônia para fins de planejamento econômico", publicado na Revista Brasileira de Geografia. Segundo testemunha José César de Magalhães (3 jul. 2008), "Eu quando entrei no IBGE em 1953, o Lúcio de Castro Soares estava terminando de definir os limites da Amazônia Legal para entregar ao presidente [da República]. Nós fomos ao palácio do Catete".
O período entre o início dos anos 1940 e final dos anos 1950 é chamado pelos geógrafos do IBGE de época de ouro da pesquisa de campo, que culminou com as excursões efetuadas em 1956 no Décimo Sétimo Congresso Internacional de Geografia, e em 1957 com as expedições que visavam à elaboração da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros2: "A época de ouro dos trabalhos de campo foi até o Congresso Internacional, em 1956" (Sant'anna, 30 maio 1999).
O Décimo Oitavo Congresso Internacional de Geografia, promovido pela UGI, aconteceu no Rio de Janeiro entre 9 e 18 de agosto de 1956. Organizou-se um programa de excursões para que os congressistas pudessem conhecer as regiões geográficas de maior atração e interesse, conforme relata Valverde (1998).
Em 1956 se realizou o Décimo Oitavo Congresso Internacional de Geografia no Rio de Janeiro, que foi na União Geográfica Internacional. O maior congresso de geografia de todos os tempos. O primeiro na região tropical, na faixa tropical e, também, o primeiro no hemisfério sul. Nós organizamos excursões como guias de geógrafos, fizemos nove excursões, e conduzi um grupo de 22 geógrafos de 16 nacionalidades diferentes, do Rio de Janeiro até o interior do Rio Grande do Sul. Levamos 21 dias no campo. Um dos colegas, o Lúcio de Castro Soares, levou um grupo para a Amazônia. A maior curiosidade despertou. Já imaginou os europeus serem conduzidos por um geógrafo para a região amazônica, uma grande desconhecida? Foi um sucesso extraordinário.
As excursões desse congresso deram origem a nove livros guias que representam o resultado de viagens e pesquisas, proporcionando ao mesmo tempo uma visão geral das principais regiões do Brasil e a oportunidade de conhecimento mais pormenorizado da geografia física e humana das áreas estudadas (Boletim Geográfico, 1956).
O IBGE organizou muitas excursões de estudo em todas as unidades da federação. 'Era preciso redescobrir o Brasil'. E os trabalhos geográficos de campo foram essenciais no cumprimento da missão do instituto - revelar informações sobre a população brasileira e o território nacional.
O Arquivo Fotográfico Ilustrativo dos Trabalhos Geográficos de Campo
Fotografias ainda são vistas como documentos especiais, tanto na área arquivística, que as separa do restante do acervo para fins de tratamento técnico específico, quanto na de estudos históricos, que se serve dela como fonte ou objeto de pesquisa. Na área de história, Meneses (2003, 2005) propõe uma discussão bastante relevante e atual. Nos debates sobre arquivos, Lopez (2000) entende a reconstrução do contexto de produção do documento como tarefa indispensável da organização arquivística.
Entretanto, não nos cabe questionar aqui métodos de organização de documentos fotográficos, "uma vez que constitui ... um dos assuntos menos discutidos e mais naturalizados no que diz respeito ao cumprimento de metodologias arquivísticas" (Lacerda, 2009, p.3). O que tencionamos é apresentar o Arquivo Fotográfico Ilustrativo dos Trabalhos Geográficos de Campo, do qual os registros imagéticos de Jablonszky, nosso objeto de estudo, fazem parte.
No cenário pós-Segunda Guerra Mundial, a migração internacional readquirira importância para a Europa. "Essa migração, porém, era de um tipo novo, agora de trabalhadores qualificados e profissionais" (Klein, 2000, p.26). Nesse período, grupos de profissionais liberais e técnicos especializados migraram para o Brasil, procedentes das principais cidades da Hungria. Essa leva de húngaros deixou o seu país supostamente por motivos ideológicos, muitos certamente devido à estatização dos meios de produção e ao fim das grandes propriedades. Portanto, um bom número desses emigrantes pertencia à camada mais abastada da sociedade.
Entre o final da década de 1940 e início da seguinte, o CNG contratou os primeiros fotógrafos profissionais: três húngaros recém-chegados ao Brasil - Tibor Jablonszky, Tomas Somlo e Stivan Faludi - , que passaram a integrar os grupos de pesquisas geográficas de campo do IBGE.
Tibor Zoltan Jablonszky, natural de Sarospatak, nascido a 7 de junho de 1924, filho de Jozsef Jablonszky e de Iren Polnik, chegou ao Brasil procedente de Copenhague na embarcação Carina, desembarcando, no porto do Rio de Janeiro, em 27 de maio de 1948. Técnico de filmes, em seu país de origem exercia a ocupação de diretor na Companhia de Cinema da Hungria.
Foi admitido no território nacional em caráter permanente; a autorização definitiva, obtida no dia 13 de agosto de 1948, consta na sua carteira de identidade, emitida pelo Serviço de Registro de Estrangeiros. Em 27 de maio de 1953, solicitou naturalização ao Ministério da Jus-tiça e Negócios Interiores e citou como motivos para sua naturalização ser funcionário con-tratado do Conselho Nacional de Geografia e querer viver no Brasil permanentemente (Brasil, 27 maio 1953).
Tibor saiu da Hungria logo após a Segunda Guerra Mundial, quando os soviéticos ocuparam o país em 1945. De acordo com o passaporte concedido pela polícia de Budapeste em 5 de julho de 1946, antes de vir para o Brasil passou por cinco países: Áustria, Alemanha, Tchecoeslováquia, Dinamarca e Suécia. Em 1947 e 1948, teve seu passaporte renovado de cinco em cinco meses. Seu pai, Jozsef Jablonszky, era funcionário da Real Polícia do Estado Húngaro (Brasil, 19 abr. 1950); sua posição no governo pode ter-lhe permitido dar fuga ao filho, conforme a narrativa de Eva Menezes de Magalhães (14 fev. 2008):
Assim ele me contou na época: o pai dele tinha um cargo no governo e, quando soube que a Hungria ia ser invadida, deu fuga ao filho. ... [Tibor] Esteve em vários países ... até chegar ao Brasil, e nessa vida foi que encontrou o Faludi. Eu acho que na fuga eles se encontraram, e como eram húngaros, falavam a mesma língua, se uniram e chegaram ao Brasil os três juntos [Faludi, Jablonszky e Tomas Somlo]. Trabalharam primeiro em Laranjeiras. O IBGE tinha um laboratório em Laranjeiras.3
O governo de ocupação comunista, através do Departamento da Proteção ao Estado, aprisionou e por muitas vezes eliminou opositores ao novo regime entre 1945 e 1950. "Contra quem não conseguiam levantar provas simplesmente enviavam a campos de internação" (Szabo, 2006, p.14). Nesse mesmo período, como consequência da fuga de Tibor Jablonszky, seus pais estiveram presos nesses campos. "O russo ocupou a Hungria. O negócio era sair da Hungria, porque a Hungria estava sendo invadida pelos comunistas e quem não era comunista..." (Magalhães, 14 fev. 2008).
A Revolução Cultural Socialista combatia todas as tendências artísticas, a única aceitável era o realismo socialista. O modelo para as artes tinha que ser o soviético. Em 1948 foram extintas revistas literárias, estatizadas editoras, alguns escritores condenados ao silêncio e outros ao exílio. Destinos semelhantes tiveram músicos e cineastas. Para o cinema, área de atuação de Tibor, "foram produzidos 59 longas-metragens entre 1949 e 1956, uma produção pequena se comparada à húngara entre guerras, que entre 1931 e 1941 produziu 237 filmes" (Szabo, 2006, p.32).
Contratado como técnico de cinema pelo CNG, em primeiro de março de 1949, Tibor Jablonszky permaneceu no IBGE até 1980, ano da sua morte. Reconhecido pelos geógrafos por seu excelente trabalho, ao fotografar aplicava o conhecimento herdado dos estudos de cinema na Hungria. Teve também a oportunidade de realizar filmes e slides4 sobre a geografia do Brasil. É importante ressaltar que, na continuidade da pesquisa, não obtivemos mais informações sobre a trajetória do fotógrafo.
Tibor Jablonszky, Tomas Somlo e Stivan Faludi foram atores importantes na construção da memória institucional do IBGE, posto que, além de excelentes profissionais com experiência adquirida na Hungria, deixaram como legado um acervo precioso. "É porque eles chegaram juntos. Eu me lembro que ele [Tibor Jablonszky] contava que eles começaram em Laranjeiras, os três moravam juntos e tinham um laboratório. Naturalmente um laboratório rudimentar, depois o IBGE montou [seu próprio] laboratório" (Magalhães, 14 fev. 2008).
Na qualidade de técnicos especializados de alto nível, tiveram como atribuições produzir fotografias, acompanhar as excursões, identificar e guardar a documentação fotográfica produzida, entre outras funções de igual valor que contribuíram para a organização do Setor de Fotografia e Cinema do Conselho Nacional de Geografia (Figura 1). O setor também era responsável por cuidar das câmaras fotográficas e outros equipamentos. "É um tanto difícil especificar todos aqueles equipamentos que nós, lá do Setor de Fotografia e Cinema, utilizávamos, considerando os instalados no laboratório, somados aos modelos de câmeras e flashes que eram vários" (Mazzola, 12 jan. 2009).
Ao documentar as expedições científicas, o fotógrafo seguia orientação do geógrafo que chefiava o trabalho de campo. Segundo explica (Magalhães, 3 jul. 2008), "o Jablonszky ia sempre orientado pelo geógrafo, ele podia bater alguma coisa por conta dele, mas ele era sempre orientado. 'Jablonszky bate isso aqui pra mim'".
Assim, o primeiro olhar era do geógrafo, que mostrava o que deveria ser fotografado, e o segundo olhar ficava para o fotógrafo, que escolhia o que focar na paisagem indicada pelo geógrafo. Temos, portanto, duas seleções, duas escolhas: a do geógrafo e a do fotógrafo.
Reveladas assim que chegavam ao laboratório fotográfico, as imagens passavam por um novo processo de seleção, pois havia a preocupação em formar um arquivo fotográfico de qualidade para ilustrar as publicações editadas pelo IBGE, produzir slides que seriam exibidos nos cursos para aperfeiçoamento de professores de geografia e disponibilizar as fotografias a todos os usuários.
A sistemática desenvolvida para a organização do acervo fotográfico consistia em colar as fotos e as cópias de contato5 em cartolina tamanho ofício. O processo de legendar e classificar pelo número do negativo - número que obedece à ordem cronológica correspondente à data da excursão - objetivava recuperar pelo número as informações descritas nos cadernos de controle. As anotações manuscritas referenciam destino e geógrafo responsável pela excursão, data, número do negativo, local (estado e região) e legenda. Em alguns dos seis cadernos também está registrado o nome dos fotógrafos. Fotos e contatos arranjados no arquivo físico, assim como os cadernos de controle, constituíam o sistema de armazenagem/recuperação das informações imagéticas.
Quem fazia as legendas eram os geógrafos. Essa especialidade era do geógrafo, porque o importante na fotografia era identificar a área, e os geógrafos estavam preparados para isso. Então nosso trabalho no laboratório, quer dizer, o primeiro trabalho mesmo, de campo, era acompanhar os geógrafos nas excursões. Segundo, no laboratório, revelar os filmes todos. Quando nós chegávamos, nós os fotógrafos que acompanhávamos a excursão, revelávamos todas as fotografias para identificar os filmes. Depois disso, o geógrafo ou geógrafos, às vezes tinha mais de um, preparava as legendas e [a foto] era registrada então no setor, num livro (Aranha, 13 mar. 2008).
No final da década de 1960, por problemas de espaço, as fotografias em tamanho maior foram descartadas, preservando-se os contatos, que foram colados em fichas cartonadas e classificados de acordo com o número do negativo. Relacionados nessas fichas estão legenda, geógrafo responsável pela expedição, fotógrafo e data. Os cadernos com anotações manuscritas foram substituídos por cadernos de legendas datilografadas e organizados por região/estado, arranjo que atendia mais prontamente às necessidades dos usuários. Atualmente, o arquivo encontra-se estruturado pelo número do negativo, segundo o estado.
Para melhor entendermos o sistema de armazenagem/recuperação da informação, exemplificamos utilizando o negativo CNG 11095 "Casebres e habitantes do São Francisco, Pernambuco, 1962": o número do negativo coincide com a numeração do caderno de anotações manuscritas (Figura 2), com o caderno de legendas datilografadas (Figura 3), com a ficha cartonada em que está acondicionado o negativo (Figura 4) e com a ficha cartonada no qual está colado o contato, frente e verso (Figura 5).
O uso de levantamentos estatísticos nos estudos geográficos, conhecido como geografia quantitativa, e a introdução de novas tecnologias, como fotografias aéreas e imagens de satélite, contribuíram para que o IBGE, em 1968, deixasse de promover pesquisas geográficas de campo. Daí em diante, o arquivo fotográfico gerado a partir dessas pesquisas se manteve inalterado.
Em 1969, com a mudança no regime trabalhista do Instituto6, o acervo foto-gráfico ficou sob a guarda do Setor de Arquivo Fotográfico, e a tarefa de produzir fotografias sob a responsabilidade do Setor de Fotografia e Cinema. "Entre os geógrafos e fotógrafos, muitos entregavam o material, muitos não entregavam. Este foi um trabalho do Setor de Arquivo Fotográfico: garimpar" (Sant'anna, 30 maio 1999). Alterações na estrutura do IBGE, ocorridas no final da década de 1970, fizeram com que o arquivo fotográfico voltasse ao Setor de Fotografia e Cinema. "A fototeca material de documentação ficou com o Setor de Fotografia e Cinema" (Sant'anna, 30 maio 1999).
Em 1986, a exposição "IBGE: 50 anos produzindo informação (1936/1986)" motivou a reunião de toda a massa documental produzida em diferentes etapas de existência da instituição. A organização da exposição levou à criação de uma memória histórica do Instituto, que resultou no desenvolvimento do Projeto Memória, a partir daí, guardião e depositário da memória institucional do IBGE.
Reconhecido como componente do acervo da Memória Institucional (Costa, 1992) o Arquivo Fotográfico Ilustrativo dos Trabalhos Geográficos de Campo, formado por vinte mil registros fotográficos intencionalmente reunidos ao longo do tempo a partir dos trabalhos de campo da geografia, arquivo que, junto aos arquivos de Municípios Brasileiros, Tipos e Aspectos do Brasil e Eventos Institucionais, constitui a documentação fotográfica do IBGE.
A produção fotográfica de Tibor Jablonszky e a memória do trabalho feminino
As reflexões sobre gênero e trabalho mostraram que existe trabalho de homens e trabalho de mulheres, e que o trabalho feminino segmenta-se em alguns setores (Burke, 2004). Com base nessas questões, é apresentado o inventário das fotografias, segundo as regiões7 e estados, e as ocupações desenvolvidas pelas mulheres e/ou meninas8, assim como as imagens mais significativas do trabalho na agricultura familiar, do trabalho doméstico e do trabalho industrial (Tabela 1).
Do corpus analisado, 54% das fotografias representam mulheres e meninas em ajuda a membro da unidade domiciliar exercendo ocupação no beneficiamento e extração de produtos vegetais, na indústria de transformação em pequena escala e na agricultura. É im-portante destacar, neste mo-mento, que a participação femi-nina em todas as fases do processo produtivo agrícola desmitifica as concepções de que é um trabalho pesado, portanto, masculino, e que as mulheres só trabalham nessa atividade quando há neces-sidade (Figura 6). Por outrolado, se isso é verdade, veremos tam-bém que o registro fotográ-fico de Jablonszky nem sempre retrata a rudeza das atividades laborais.
O conjunto que representa o trabalho doméstico, 28% do total, agrega fotografias de mulheres e meninas ocupadas nas atividades caseiras: lavando roupa, apanhando água, apanhando lenha, fazendo renda, lavando louça, transportando leite, cozinhando e fazendo rede. Ocupação perigosa para as crianças, o trabalho doméstico infantil sempre foi considerado natural para os membros da unidade domiciliar, e com naturalidade é retratado no universo fotografado por Jablonszky (Figura 7).
O conjunto que representa mulheres exercendo ocupação na produção de bens em alguns setores da indústria, como produtos alimentícios, fumo, calçados e vestuário, espaços tradicionais do trabalho industrial feminino, reúne 18% do total de fotografias (Figura 8).
Considerações finais
Ao produzir as imagens fotográficas, Jablonszky sugeria o que deveria ser lembrado e o que deveria ser esquecido. Essa atividade de enquadramento da memória torna-se o trabalho de valorização de determinados padrões de lembrança. Os tipos humanos registrados pelo fotó-grafo marcam a escolha da geografia do IBGE na construção da nacionalidade brasileira. Assim, não há como ignorar o uso desses suportes imagéticos como fontes visuais na pesquisa histórica.
NOTAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Abr 2013 -
Data do Fascículo
Mar 2013