Open-access A ciência como rede de atores: ressonâncias filosóficas

Science as a network of actors: philosophical resonance

Resumos

O objetivo deste artigo é analisar as conseqüências filosóficas da teoria ator-rede para os estudos acerca das ciências. Esta teoria tem renovado o debate em torno das ciências, por enfatizar a investigação da ciência em ação, isto é, tal como ela é praticada nos laboratórios de pesquisa. Os conceitos de sujeito e objeto, bem como aqueles de veracidade, racionalidade e fato científico são redefinidos com base neste enfoque teórico. Também são analisadas as possíveis alianças entre a teoria ator-rede e a filosofia da diferença, proposta por Deleuze, Guattari e Serres.

redes; ciência; conhecimento


The article analyzes what philosophical implications actor-network theory may have in studies of the sciences. Actor-network theory has revitalized the debate on the sciences because it puts the focus on investigating science in action, that is, on science as it is actually practiced in the research laboratory. The concepts of subject and object, along with the concepts of truth, rationality, and scientific fact, are redefined from the perspective of actor-network theory. The article analyzes possible alliances between this theory and the philosophy of difference proposed by Deleuze, Guattari, and Serres.

networks; science; knowledge


ANÁLISE

A ciência como rede de atores: ressonâncias filosóficas

Science as a network of actors: philosophical resonance

Marcia Moraes

Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense Rua Desembargador Cesínio Paiva, 15 24360-530 — Niterói RJ mmoraes@nitnet.com.br

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar as conseqüências filosóficas da teoria ator-rede para os estudos acerca das ciências. Esta teoria tem renovado o debate em torno das ciências, por enfatizar a investigação da ciência em ação, isto é, tal como ela é praticada nos laboratórios de pesquisa. Os conceitos de sujeito e objeto, bem como aqueles de veracidade, racionalidade e fato científico são redefinidos com base neste enfoque teórico. Também são analisadas as possíveis alianças entre a teoria ator-rede e a filosofia da diferença, proposta por Deleuze, Guattari e Serres.

Palavras-chave: redes, ciência, conhecimento.

ABSTRACT

The article analyzes what philosophical implications actor-network theory may have in studies of the sciences. Actor-network theory has revitalized the debate on the sciences because it puts the focus on investigating science in action, that is, on science as it is actually practiced in the research laboratory. The concepts of subject and object, along with the concepts of truth, rationality, and scientific fact, are redefined from the perspective of actor-network theory. The article analyzes possible alliances between this theory and the philosophy of difference proposed by Deleuze, Guattari, and Serres.

Keywords: networks, science, knowledge.

Introdução

O que significa pensar as ciências sem referi-las a priori às noções de sujeito e objeto, sociedade e natureza? O que significa pensar a ciência sem apriorismos como objetividade, neutralidade, racionalidade? Levantar tais questões não significa enveredar por um mundo irracional, do qual não se pode extrair nenhuma forma, nenhum rigor. Ao contrário; o mundo não-moderno que a teoria ator-rede traz para as ciências, por ser definido ontologicamente em sua multiplicidade e disparidade de elementos e conexões, leva-nos a pensar em um rigor plano, horizontalizado, um rigor que, conforme salienta Deleuze (1992, p. 42), não é inexato, mas anexato. Falar da exatidão ou inexatidão de um critério significa referi-lo a parâmetros que de antemão definem o que é exato e o que não é. Em outras palavras, trata-se, neste caso, de demarcar de saída o que é certo e o que não é, produzindo com isso um rigor verticalizado, isto é, predefinido. Quando Deleuze declara que, no plano das multiplicidades, o rigor é anexato, parece-me que ele aponta para um rigor construído como efeito de conexões heterogêneas; um rigor, portanto, a posteriori e, por isso mesmo, não referido a nenhuma unidade que lhe transcenda ou antecipe os seus efeitos. Do mesmo modo, no mundo não-moderno trazido pela teoria ator-rede para as ciências está em jogo a construção de efeitos de racionalidade, rigor, objetividade. Sendo efeitos, tais noções são marcadas por uma instabilidade que as torna formas instáveis e abertas, sempre prestes a diferir segundo direções múltiplas e não-antecipáveis.

Este artigo tem o objetivo de analisar as ressonâncias filosóficas presentes na teoria ator-rede proposta por Latour, Callon e outros. As contribuições desta teoria para os estudos sobre as ciências, bem como as ressonâncias filosóficas da noção de rede serão as questões aqui abordadas.

Sobre a noção de rede

Na teoria ator-rede, a noção de rede refere-se a fluxos, circulações, alianças, movimentos, em vez de remeter a uma entidade fixa. Uma rede de atores não é redutível a um único ator nem a uma rede; ela é composta de séries heterogêneas de elementos animados e inanimados, conectados e agenciados. Por um lado, a rede de atores deve ser diferenciada da tradicional categoria sociológica de ator, que exclui qualquer componente não-humano. Por outro, também não pode ser confundida com um tipo de vínculo que liga de modo previsível elementos estáveis e perfeitamente definidos, porque as entidades da quais ela é composta, sejam naturais ou sociais, podem a qualquer momento redefinir sua identidade e suas mútuas relações, trazendo novos elementos. Assim, uma rede de atores é simultaneamente um ator1, cuja atividade consiste em fazer alianças com novos elementos, e uma rede, capaz de redefinir e transformar seus componentes (Callon, 1986, p. 93). Tal definição implica uma ontologia de geometria variável, cujas conseqüências para os estudos em ciências devem ser seguidas a fim de não deixarmos escapar as contribuições da teoria ator-rede tanto em relação aos estudos sociais em ciências, quanto em relação aos estudos epistemológicos.

A noção de rede de atores fala de um plano de conexões heterogêneas a partir do qual emergem igualmente as ciências e as crenças, religiões etc. Retomando o sentido de rede proposto por Serres, podemos dizer que ela se caracteriza por estabelecer um campo de tensões heterogêneas, em que a síntese não é um resultado necessário. Uma rede, como já dissemos, é marcada por múltiplas conexões, múltiplas entradas. Diferentemente de um enfoque dualista, que afirma a existência de dois pólos privilegiados — o Sol e a Terra, o sujeito e o objeto, Deus e o Diabo —, uma ontologia de geometria variável declara múltiplas entradas possíveis. Penso ser o princípio de simetria generalizada proposto por Latour uma conseqüência dessa ontologia de múltiplas entradas e conexões. Trata-se de analisar simetricamente não apenas o erro e o acerto mas, antes, todo e qualquer efeito das negociações em rede, inclusive a natureza e a sociedade. Latour (1996, p. 41) reconhece a importância dos estudos sociais em ciências e do princípio de simetria tal como foi proposto por David Bloor. A análise social das ciências teve, segundo Latour, o mérito de estabelecer um princípio a-epistemológico de análise que colocava em cena a prática mesma dos cientistas, estabelecendo a exigência de que o verdadeiro e o falso fossem explicados com os mesmos termos.

Contudo, na perspectiva de Latour esse princípio a-episte-mológico é ainda assimétrico, porque joga todo o peso de suas explicações no pólo da sociedade. É, portanto, assimétrico porque mantém a sociedade como uma entrada privilegiada para os estudos sociais em ciências. Por isso o autor propõe uma extensão radical desse princípio, fazendo-o valer tanto para a natureza quanto para a sociedade. Ele nos sugere "mais uma volta nos estudos sobre ciências depois da volta social" (idem, 1992a, p. 279). Isto significa dizer que, para estabelecer uma simetria generalizada, é preciso uma guinada a mais nos estudos sobre as ciências, de modo que sociedade e natureza sejam simetricamente analisadas. Ambas são efeitos negociados em rede, e nenhuma delas pode funcionar como fundamento preestabelecido para os estudos sobre ciências. O princípio de simetria não tem como finalidade apenas estabelecer uma condição de igualdade entre natureza e sociedade, mas "gravar as diferenças, ou seja, no fim das contas, as assimetrias, e o [objetivo] de compreender os meios práticos que permitem aos coletivos dominarem outros coletivos" ( idem, 1994a, p. 105).

As redes não são, portanto, amorfas. Ao contrário, elas são altamente diferenciadas. Eliminar a oposição binária característica do pensamento moderno não supõe a afirmação de um solo homogêneo e indiferenciado. Está em foco a afirmação de uma diferença ontológica. A rede é, nesse sentido, uma afirmação de tal diferença. Ela consolida a potência do empírico como solo de invenção da razão, da verdade, da sociedade, da natureza.

Uma ciência definida como rede de atores não se caracteriza por sua racionalidade e objetividade, ou pela veracidade dos fatos por ela engendrados. Todas estas noções, tão caras ao pensamento moderno, são redimensionadas pela noção de rede e devem ser entendidas como efeitos, resultados alcançados a partir das tensões próprias à rede de atores. Definir a ciência como rede de atores significa defini-la por sua não-modernidade, por suas hibridações, enquanto que considerar as ciências a partir de noções tais como objetividade, neutralidade etc. implica considerá-las à luz do ideal de purificação, princípio característico do pensamento crítico ou moderno. Neste último caso as ciências são observadas a partir de uma crítica cuja função é estabelecer a priori as condições ideais para o conhecimento científico. Insisto que, para o pensamento crítico, interessa demarcar as condições ideais do conhecimento científico, o que nos leva a pensar em uma analogia entre as ciências e o mito bíblico da queda: para regressar ao paraíso perdido, as ciências precisam excluir de seu domínio tudo o que é da ordem da hibridação e que, em última instância, constitui a sua prática; em outras palavras, precisam excluir aquilo que Serres denominava mal, morte, sofrimento. Latour (1995, p. 38) concorda com Serres: o pensamento moderno faz nascer a ciência pela exclusão da finitude do homem. Partindo desta concordância entre os autores, parece-me lícito afirmar que, assim como a filosofia mestiça de Serres nos convoca a instruir a razão na mestiçagem, a teoria ator-rede, proposta por Latour, nos convida a instruir a ciência nas práticas de hibridação.

Efeitos das redes

Conseqüentemente, a racionalidade passa a ser um efeito de rede obtido a partir das tensões que a constituem. Um pesquisador, salienta Latour (ibidem), interessado única e exclusivamente pela humanidade estará fora do campo da ciência, porque a atividade científica tem por natureza uma dimensão coletiva, pública, cujo resultado é a impossibilidade de se enunciar um fato e confirmá-lo sem a presença dos 'caros colegas'. Para ser científico, um enunciado precisa ser validado e retomado pelos 'caros colegas'. O vácuo produzido por Boyle tornou-se um fato científico não por ser um representante objetivo da natureza, mas por ter sido retomado pelos colegas de Boyle, pela Royal Society. A difusão da bomba de ar pela Europa fez do vácuo um fato à disposição do mundo. Portanto, um fato não se constitui por sua racionalidade, mas antes pelos efeitos de racionalidade produzidos a partir do momento em que ele é acolhido na comunidade científica, e para tanto precisa interessar, convencer, produzir informação nova. Latour parece atribuir um sentido amplo ao termo 'interessar', cujo fio condutor é a disparidade constitutiva das redes. A meu ver, Isabelle Stengers nos fornece a chave para entendermos a noção de interesse no enfoque latouriano. Ela sugere que, assim como a verdade, a lei moral ou qualquer outra instância transcendente têm a pretensão de orientar os humanos em uma direção unívoca, mas os interesses não possuem tal poder. O interesse não se presta à unanimidade; ao contrário, ele se "presta à proliferação e à associação com outros interesses disparates ..." (Stengers, 1993, p. 109).

Na construção de um fato científico, o cientista não exige dos 'caros colegas' um interesse por sua proposição análogo ao seu; a ele basta que aceitem passar por algumas condições nas quais esta proposição lhe interessa. Um cientista se remete não à natureza em si, mas aos seus colegas e à rede que o constitui como tal. Lembremos que desta fazem parte os colegas, as instituições de financiamento, as rivalidades, a mídia, os periódicos de divulgação científica, o mercado consumidor. Em uma palavra, uma vez constituído, um fato implica uma redefinição de valores, uma redefinição simultânea da natureza e da sociedade. Os fatos científicos são heterogêneos e impuros por natureza e destino, "eles são compostos de elementos heterogêneos, associam competências a equipamentos, textos a saberes tácitos, humanos a não-humanos. É desta impureza que depende sua capacidade de resistir e interessar" (Callon, 1989, pp. 32-3).

Um fato científico, portanto, só existe se é sustentado por uma rede de atores. A epistemologia de língua francesa já nos ensinou que um fato é feito, isto é, construído a partir de uma articulação entre o falso e o verdadeiro, ou, conforme Canguillhem, entre ideologia científica e ciência. Até certo ponto sua perspectiva se coaduna com aquela proposta pela teoria de rede de atores. No entanto este último enfoque vai mais longe do que o primeiro quando afirma haver na constituição de um fato uma disparidade radical, composta não apenas de elementos no campo do conhecimento mas, antes de tudo, de elementos tão díspares quanto uma bomba de ar e uma rivalidade entre filósofos. Eles são partes constitutivas do fato, são o modo como se compõe a rede que produz e sustenta um fato.

Com a noção de rede de atores, Latour aponta para o caráter heterogêneo da atividade científica. Enquanto que na perspectiva epistemológica essa atividade era definida com base em sua produção conceitual e teórica, na análise de Latour ela é enunciada a partir das conexões estabelecidas entre atores muito heterogêneos; em última instância, entre humanos e não-humanos. Não há nenhum princípio essencialista capaz de estabelecer, de antemão, que atores serão mobilizados para a construção de uma rede; ao contrário, uma rede de atores se define por engendrar conexões performativas2 que, uma vez estabelecidas, dotam de propriedades novas os atores nelas implicados. "Um potente ator, mobilizado sem esforço, vê-se redefinido pelo simples fato de que ele adere a um projeto que não é o seu" (idem, ibidem, p. 80).

Para que uma aliança desse tipo venha a ser formada, é preciso que os interesses em jogo sejam traduzidos, deslocados, desviados a fim de poderem mobilizar outros atores. A noção de tradução3 é fundamental para entendermos o que se passa no nível das redes de atores. No domínio destas, tradução não significa apenas a mudança de um vocabulário para outro, mas acima de tudo um deslocamento, um desvio de rota, uma mediação ou invenção de uma relação antes inexistente e que de algum modo modifica os atores nela envolvidos. Tradução não se confunde com interação (Callon et al. 1992, p. 347). Esta parece remeter a um sentido de interação social, um tipo de relação linear que vincula humanos a humanos. O sentido de tradução envolve, ao mesmo tempo, um desvio e uma articulação de elementos díspares e heterogêneos. Tradução, assim, refere-se à hibridação, mestiçagem, multiplicidade de conexões mais do que à repetição de elementos-chaves. A tradução é sustentada por uma ontologia definida por sua hibridação e, a meu ver, ao ser enfatizada como o cerne das atividades científicas, ela acarreta a afirmação de um vetor de devir intrínseco a tais atividades. A não-modernidade das ciências faz delas uma prática em devir, que se estabelece pela articulação de diferenças cujo operador é a tradução. Eis o que, do meu ponto de vista, constitui a novidade ao se pensar a ciência como rede de atores.

Herdeiros de Boyle e Hobbes

Entender a ciência como rede de atores reclama uma revisão das tarefas que nos foram legadas pelos herdeiros de Boyle, por um lado, e de Hobbes, por outro. Os primeiros, os cientistas naturais, criaram um parlamento — o laboratório —, onde os cientistas, e somente eles, falavam em nome das coisas. Os segundos criaram a República, na qual somente o soberano podia falar em nome dos cidadãos. De um lado, representação científica; de outro, repre-sentação política. Em ambas uma dupla possibilidade de traição, a epistemológica (até que ponto os cientistas falam em nome das coisas, até que ponto as ciências são fiéis às coisas?) e a política (até que ponto o soberano fala em nome dos cidadãos?). Com a noção de rede de atores esta dupla tarefa é revista: "Não há dois problemas de representação, mas apenas um. Não há dois ramos, apenas um único, cujos produtos só podem ser distinguidos a posteriori e após exame comum" (Latour, 1994a, p. 141). No plano das redes há operações de tradução que engendram ao mesmo tempo natureza e sociedade, sujeito e objeto. As práticas de mediação, de hibridação dispõem todo o espaço, de tal modo que já não falamos mais em dois tipos de representação, mas apenas em híbridos ou quase-objetos. Latour nos convida a lançar luz sobre esses quase-objetos, efeitos das redes de atores. A não-modernidade das ciências torna legítimos tais objetos híbridos.

Conforme indica Latour (ibidem), o paradoxo da constituição moderna é estabelecer as práticas de purificação como um ideal a atingir e, ao mesmo tempo, fazer proliferar os híbridos, esses quase-objetos que não se deixam purificar. Para homologar a prática de hibridação que nos faz não-modernos, Latour traz à luz os quase-objetos por meio de um parlamento das coisas. Este parlamento não é proposto como uma utopia, algo ainda futuro, mas pertencente ao presente como uma experiência de pensamento, "quer dizer, instrumento de diagnóstico, de criação e de resistência" (Stengers, op. cit., p. 174). Em vez de uma revolução, estamos diante de uma afirmação daquilo que somos em nosso engajamento prático: não-modernos. Do ponto de vista de Isabelle Stengers (ibidem), o parlamento das coisas expõe uma deformação do presente que não se confunde com uma revolução e tampouco com uma reforma. Nem revolucionário nem reformista, o parlamento das coisas supõe uma imagem da ciência como prática de mediação, aguçando novas sensibilidades voltadas para a proliferação dos híbridos, para a sua entrada nos coletivos. Os dois sentidos de representação separados por Boyle e Hobbes se reúnem em torno do parlamento das coisas, que, desse modo, recompõe a continuidade do coletivo. Não há verdades nuas nem cidadãos nus; há mediação, híbridos, articulação entre humanos e não-humanos. Assim, no parlamento das coisas,

pouco nos importa que um dos mandatários fale do buraco de ozônio, que um outro represente as indústrias químicas, um quarto os eleitores, um quinto a meteorologia das regiões polares, que um outro fale em nome do Estado, pouco nos importa, contanto que eles se pronunciem todos sobre a mesma coisa, sobre este quase-objeto que criaram juntos, este objeto-discurso-natureza-sociedade cujas novas propriedades espantam a todos e cuja rede se estende de minha geladeira à Antártida passando pela química, pelo direito, pelo Estado, pela economia e pelos satélites. Os imbróglios e as redes que não possuíam um lugar possuem agora todo o espaço. São eles que é preciso representar, é em torno deles que se reúne, de agora em diante, o Parlamento das Coisas (Latour. 1994a, p. 142).

O parlamento das coisas celebra a não-modernidade das práticas científicas, definidas como práticas de mediação porque nele os cientistas não são os únicos representantes das coisas. Eles falam ao lado de outros atores, como os empresários, os representantes do governo etc. Em outras palavras, as práticas científicas encontram-se ao lado de outras práticas até então vistas como "terrenos baldios disponíveis aos avanços da ciência" (Stengers, op. cit., pp. 172-3). O princípio de conquista que avança em nome da ciência e da racionalidade, estas definidas como condições a priori para o conhecimento. O parlamento das coisas se apresenta como um princípio de multiplicidade, segundo o qual todo novo representante das coisas será acrescentado aos outros por meio de relações de interesse e alianças performativas. O princípio de conquista se faz em nome de um ideal moralizante que de antemão separa o científico daquilo que não é, estabelecendo, portanto, um princípio de demarcação entre ciência e outras práticas humanas. O princípio de multiplicidade, colocado em cena pelo parlamento das coisas, é o princípio de conexão das redes de atores: alianças performativas conectam entre si atores heterogêneos e têm como resultado os muitos representantes que falam em nome das coisas. Assim, no parlamento das coisas, como diz Latour, não importa se alguém fala do buraco da camada de ozônio enquanto outro fala dos eleitores, porque o que os une é o tecido único das coisas definidas por seu hibridismo. À multiplicidade ontológica das coisas segue a multiplicidade dos seus representantes. A ciência é, nesse caso, um dentre outros representantes das coisas. Aqui, os cientistas não são como os conquistadores que fazem valer uma verdade, uma razão em nome da ciência. Não há um centro unificador do qual emana o poder de julgar, de estabelecer demarcações; não há um pensamento crítico que se aplique aos fatos como se fosse uma forma aplicada sobre uma matéria bruta. O parlamento das coisas aponta para um "modo de medida a mais, que se acrescenta aos outros e cria novas possibilidades de história e não o modo de medida enfim alcançado" (idem, ibidem, p. 186). Nele não há mais lugar para um julgamento, para o império de uma verdade.

Uma ressalva se faz necessária: ao evocar o parlamento das coisas, Latour não está procurando, em uma referência mais forte, a possibilidade de superar ou ultrapassar nossa crença na verdade objetiva, porque, fosse este o caso, o parlamento funcionaria como um tribunal que julgaria uma verdade como ultrapassada para afirmar outra. Não se trata de um julgamento, de uma recondução do heterogêneo ao homogêneo. O parlamento das coisas é uma afirmação da coexistência das práticas científicas com as demais práticas humanas. Assim, por exemplo, nas pesquisas sobre a Aids, os cientistas não são os únicos representantes do vírus HIV; ao lado deles estão os doentes, as indústrias farmacêuticas, os grupos de apoio, o governo. Entre estes atores heterogêneos são estabelecidas alianças performativas, negociações das quais emanam as decisões a serem tomadas a respeito do vírus e da doença. O parlamento das coisas é uma rede, um rizoma4 que funciona sem o julgamento de uma unidade trans-cendente, sem demarcações preestabelcidas, sem bordas. Assim como na filosofia de Deleuze & Guattari o rizoma é o modo de realização das multiplicidades, para Latour o parlamento das coisas é o modo de realização da rede de atores. Ele implica um vetor de devir e risco no campo das ciências. Não há razão nem método que possibilitem a economia desse risco. O parlamento das coisas acarreta uma visada sobre as ciências a partir de "sua audácia, sua experi-mentação, sua incerteza, seu calor, sua estranha mistura de híbridos, sua capacidade louca de recompor os laços sociais" (Latour, 1994a, p. 140). O parlamento das coisas é um outro modo de dizer que está em foco a ciência em ação, a ciência como rede de atores, como prática de mediação.

A idéia de um parlamento das coisas implica uma redefinição das relações entre ciência e política. Isto porque, no contexto desse parlamento, não é possível dizer que os cientistas falam apenas dos fatos enquanto que os políticos se ocupam dos valores e das relações entre os homens. O parlamento das coisas coloca em cena um híbrido de fatos e valores, um híbrido de humanos e não-humanos. Não há, portanto, como estabelecer de antemão uma linha demarcatória que separe, de um lado, os fatos científicos e de outro os valores humanos. Um exemplo recente da idéia de parlamento das coisas: a Conferência de Kyoto, no Japão. Representantes de 170 países se reuniram para discutir o aquecimento global ou o efeito estufa (Trauman, 10.12.1997). Sob a perspectiva de Latour (7.11.1997), nesta conferência o clima comparece simultaneamente como objeto científico — cientistas concordam que a emissão de poluentes resultantes, por exemplo, da queima de combustíveis provoca uma alteração climática elevando a temperatura em todo o planeta — e objeto político — tal alteração exige uma ação que se estenda ao planeta inteiro. O efeito estufa é, portanto, um híbrido que redefine nossas relações com a ciência e a política. Com a noção de parlamento das coisas, Latour pretende mostrar que esses híbridos que emergem em nossos coletivos clamam por uma filosofia capaz de acolhê-los e uma política que os tome como alvo de discussão.

Ressonâncias filosóficas: considerações finais

A meu ver, o parlamento das coisas situa o trabalho de Latour em um cruzamento entre as filosofias de Serres e de Deleuze & Guattari. Serres é uma referência necessária não só porque as coisas estão aí presentes na condição de híbridos, mas porque o parlamento das coisas lança luz sobre uma genealogia das coisas, uma genealogia das trocas de propriedades entre humanos e não-humanos, definida por Latour como um dos pontos relevantes da filosofia de Serres.5 Latour se utiliza dessa genealogia como uma saída perante os impasses do paradigma dualista, para mostrar como, por meio das traduções, mobilizações e alianças performativas, as coisas se constituem como híbridos de natureza e sociedade, híbridos de humanos e não-humanos que passam a exigir não apenas uma filosofia que lhes dê acolhida, mas também um parlamento, uma política.

Deleuze & Guattari são também referências necessárias, porque se o parlamento das coisas implica uma visão da ciência como um vetor de devir, parece-me imprescindível a referência à noção de nomadismo na ciência, tal como é proposta pelos dois filósofos. A noção de rede está implicada filosoficamente com a filosofia mestiça de Serres e, ao mesmo tempo, encontra ressonâncias com a filosofia da diferença de Deleuze & Guattari.

Parece-me possível dizer que a ciência entendida como rede de atores opera um duplo deslocamento: por um lado, o objeto se impõe por sua variação, isto é, ele comparece no campo científico como multiplicidade, como zona de flutuação objetiva; por outro lado, o sujeito se impõe, ele também, como rede, multiplicidade. Nesse sentido, é preciso ajustarmos a nomenclatura: há um deslocamento da noção de sujeito — fortemente marcado como centro unificador do conhecimento — para a noção de subjetividade — constituída em um processo genético que articula elementos díspares e conexões múltiplas.

Por certo o deslocamento da noção de objeto — tal como definido pelo pensamento crítico — para a noção de coisa — definida por seu hibridismo — desemboca em um nomadismo, uma deriva verificável no domínio das práticas científicas. Trata-se aqui de uma questão levantada anteriormente por Michel Serres. Do ponto de vista da filosofia mestiça, as coisas não se confundem com o objeto passivo e dominado pela razão humana, identificado por Serres como alvo do conhecimento na filosofia cartesiana. A natureza reage às intervenções da razão, ela interroga a razão acerca de suas práticas, de suas finalidades, dos seus modos de realização. Com os grandes desastres ecológicos, a camada de ozônio etc., abandonamos o cartesianismo: o objeto deixou de ser uma propriedade da razão para se afirmar como coisa, híbrido de sujeito e objeto. "Os objetos são sujeitos de direito e não mais simples suportes passivos da apropriação. ... Se os próprios objetos se tornam sujeitos de direito, então todas as balanças tendem a um equilíbrio" (Serres, 1991, p. 50). Parece-me que o parlamento das coisas se configura como uma revisão ao mesmo tempo filosófica e política. Filosófica porque nos deparamos com os limites das filosofias centradas na figura do sujeito legislador. A palavra política, por sua vez, sofre uma revisão no sentido de não se referir apenas aos homens entre si, mas englobar em seu terreno as coisas, os híbridos sociotécnicos. Michel Serres afirma que o contrato social era um contrato jurídico que estabelecia uma relação dos homens entre si. Mas desde que a natureza irrompeu em nossos coletivos, somos levados a estabelecer o que ele chama de contrato natural, isto é, um acordo não-assinado, virtual, que reconhece "um equilíbrio entre a nossa potência atual e as forças do mundo" (idem, ibidem, p. 59). O filósofo observa que, assim como o contrato social reconhecia uma certa igualdade entre os homens e os diversos contratos de direito procuravam equilibrar os interesses das partes, o contrato natural, de modo semelhante, reconhece a igualdade entre "a força de nossas intervenções globais e a globalidade do mundo" (idem, ibidem, p. 59). A meu ver, o parlamento das coisas é um outro modo de marcar a urgência desse contrato natural. Latour, tal como Serres, considera a reação da natureza às intervenções humanas como uma chave para entendermos a não-modernidade do mundo em que vivemos. Ele considera exemplar o ano de 1989, quando foram realizadas em Paris, Londres e Amsterdã as primeiras conferências sobre o estado global do planeta. Ou seja, nessas conferências "a natureza compareceu ao tribunal na qualidade de vítima dos excessos do mundo moderno" (Pereira, 1997, p. 12). Mais uma vez podemos mencionar a recente Conferência de Kyoto. O que se espera dela? Um contrato natural que, diferentemente do contrato social, "nos leva a considerar o ponto de vista do mundo em sua totalidade" (Serres, op. cit., p. 59). Em uma palavra, espera-se dela — ou do parlamento das coisas — uma retenção dos excessos do pensamento moderno. O parlamento das coisas dá consistência ao que Serres afirmava, com sua filosofia mestiça: uma retenção da razão e de seus dualismos, uma retenção do pensamento crítico, ou, dito de outro modo, uma retenção das relações de propriedade e dominação da razão sobre os seus objetos do conhecimento.

Isabelle Stengers indica que o parlamento das coisas não envolve a utopia da intersubjetividade, mas aquilo que Guattari chamou de produção coletiva de subjetividade. Citando este filósofo, Stengers (op. cit., p. 182) diz que "os diversos níveis de prática não somente não têm que ser homogeneizados, reunidos uns aos outros sob uma tutela transcendente, mas convém engajá-los em um processo de heterogênese". Tal processo remete à multiplicidade de componentes da subjetividade. Esta, por sua vez, passa a ser vista como um efeito, uma dobra a partir de um campo de multiplicidades. Conforme Guattari, o sujeito, no sentido tradicional, identifica-se com o centro unificador dos estados da consciência e com o ponto originário a partir do qual o mundo é apreendido. Com as noções de subjetividade e heterogênese, o autor traz à cena um processo de constituição da subjetividade a partir de elementos díspares. O processo hetero-genético aponta para um campo de multiplicidades pré-individuais. Por isso, para Guattari (1992, p. 20), importa a "apreensão da existência de máquinas de subjetivação que não trabalham apenas no seio de 'faculdades da alma', de relações interpessoais ou nos complexos intrafamiliares. A subjetividade ... [é fabricada] nas grandes máquinas sociais, mass-mediáticas, lingüísticas, que não podem ser qualificadas de humanas".

Nesse sentido, enquanto que o sujeito se marca por sua unidade, a subjetividade é sempre parcial, pré-pessoal, polifônica, coletiva. Do ponto de vista da teoria de rede de atores, parece-me pertinente afirmar que esse processo de heterogênese está em obra nas controvérsias científicas, na construção de uma rede a partir da mobilização de aliados. Penso ser possível dizer que uma rede de atores se define tanto pela mobilização do mundo quanto pela produção de subjetividade. Trata-se de um caminho de duas vias: uma rede é um processo de produção ao mesmo tempo do mundo e da subjetividade. Como sociólogo da ciência, Latour explicita o modo como uma rede engendra o mundo, mas deixa em aberto a questão acerca da produção de subjetividade. A meu ver, o parlamento das coisas traduz esta dupla exigência da ciência definida como rede de atores: redefinição dos objetos e redefinição do sujeito. Podemos afirmar que um e outro se definem por sua multiplicidade, e tanto um como outro se define como rede de atores.

Recebido para publicação em janeiro de 2003

Aprovado para publicação em maio de 2003

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  • 1
    Latour utiliza a noção de ator — algumas vezes menciona actantes — no sentido semiótico: um ator ou actante se define como qualquer pessoa, instituição ou coisa que tenha agência, isto é, produza efeitos no mundo e sobre ele. É importante diferenciar o sentido atribuído por Latour do sentido sociológico tradicional porque, neste último caso, ator se confunde com a noção de fonte de ação atribuída a um humano. Na acepção de Latour, um actante é caracterizado pela heterogeneidade de sua composição; ele é, antes, uma dupla articulação entre humanos, e não-humanos e sua construção se faz em rede (ver Latour 1992b, p. 59, nota 11; 1991, pp. 15-6; 1992a, p. 293, nota 5).
  • 2
    Sobre o caráter performativo das conexões em rede ver Callon (ibidem, p. 80) e Law (1996, p. 6).
  • 3
    A respeito da noção de tradução ver Callon (1981; 1989) e Latour (1994b).
  • 4
    Sobre as relações entre os conceitos de rede para Latour e rizoma para Deleuze & Guattari, ver Kastrup (1997, pp. 61-7).
  • 5
    A este respeito ver Latour (1994c, p. 794).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Out 2004
    • Data do Fascículo
      Ago 2004

    Histórico

    • Aceito
      Maio 2003
    • Recebido
      Jan 2003
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