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Histórias transculturais de psicoterapias: novas narrativas

Caros leitores,

Neste número especial investigamos histórias das psicoterapias. É possível encontrar o termo “psicoterapia” já em meados do século XIX. Médicos advindos de escolas diversas, como Tuke, Bernheim e Van Eeden começaram a utilizá-lo para definir terapias que buscavam o tratamento moral, curar automatismos, persuadir ou produzir catarse, afetando o corpo, a mente e o subconsciente. No início do século XX, a palavra ganhou maior espaço de circulação, sendo adotada por autores como Dubois, Janet, Forel, Jaspers e Jung, que passaram a buscar afetar comportamentos e o inconsciente. O termo ganhou ainda maior notoriedade e diversidade no pós-Segunda Guerra Mundial, passando a ser adotado por autores de referência psicanalítica, do gestaltismo, da escola existencial e mesmo por autores provenientes de referenciais cognitivo-comportamentais ( Borch-Jacobsen, 2009BORCH-JACOBSEN, Mikkel. Making minds and madness: from hysteria to depression, Cambridge: Cambridge University Press, 2009. ). No mundo contemporâneo, e apesar da falta de consenso sobre o seu significado, as psicoterapias ganharam um papel ainda mais central para as definições dos sujeitos, impactando os conceitos de sofrimento e de bem-estar psicológico e a ideia de identidade, sendo possível afirmar que conformamos hoje culturas e sociedades psicoterápicas ( Shamdasani, 2017SHAMDASANI, Sonu. Psychotherapy in society: historical reflections. In: Eghigian, Greg (ed.). The Routledge history of madness and mental health. London: Routledge, 2017. p.363-378. ) .

Este número especial apresenta diferentes histórias das psicoterapias, considerando que a expressão conforma um conjunto de práticas, historicamente situadas, que incorporam e produzem valores culturais específicos que precisam ser investigadas em termos de circulação, troca e deslocamento de uma rede de práticas conectadas em diferentes domínios (Subrahmanyam, 2004). A proposta advém de debates desenvolvidos no interior de um grupo internacional coordenado pelo professor Sonu Shamdasani (University College London, UCL) que vem se encontrando anualmente desde 2016 (recentemente apenas online ), com apoio da UCL Global Engagement Office. Desde 2019, o tema ganhou nova institucionalização, por meio de um “Memorandum of Understanding” entre a UCL e a Fundação Oswaldo Cruz. A partir dessas trocas, novos membros foram incorporados ao grupo, que é composto por psicólogos, psicanalistas, historiadores e filósofos de países da América Latina, da Ásia, da Europa e dos EUA.

O artigo de Sonu Shamdasani abre o número. Seu trabalho reflete sobre o desenvolvimento da perspectiva transcultural da história das psicoterapias. Analisando a historiografia sobre o tema, o autor aponta os limites de estudos que pensam as psicoterapias em termos universalistas, propondo ser o reconhecimento dos aspectos culturais e temporais nas psicoterapias ocidentais o que permite compreender as suas apropriações em contextos culturais radicalmente diferentes, em formas de redes recíprocas de troca.

Em seu trabalho, Cristiana Facchinetti analisa as interpretações médico-mentais acerca das relações entre arte e loucura em um hospital psiquiátrico brasileiro no século XIX e seu uso psicoterapêutico. A partir de fontes primárias, o artigo discute as razões pelas quais tais manifestações e as psicoterapias produzidas a partir delas foram em grande parte esquecidas pela historiografia, que geralmente aponta o nascimento da relação entre arte e terapia no país apenas na década de 1940.

O historiador Akihito Suzuki discute as apropriações da psiquiatria no Japão no segundo quartel do século XX. Em especial, seu texto se dedica a investigar o tratamento psicoterápico de pacientes hospitalizados no período, numa estratégia de análise que investiga as complexidades do encontro das práticas clínicas hospitalares e da cultura japonesa com os imigrantes coreanos internados nessas instituições, sublinhando as questões decorrentes desses (des)encontros culturais.

Suzanne Nortier Hollman, por sua vez, indica o modo como a psicanálise foi apropriada por uma instituição psiquiátrica estadunidense ainda nos primeiros anos do século XX, antes mesmo da visita de Sigmund Freud aos EUA, em 1909. Examinando a documentação institucional, ela demonstra que as práticas psicoterápicas então utilizadas incluíram um amplo grupo de pacientes, não limitando sua prática em termos de educação formal, classe ou diagnóstico, como a psicanálise foi posteriormente apropriada naquele país.

Renato Foschi e Andrea Romano, por sua vez, investigam a entrada da psicanálise na Itália a partir do século XX, desvinculada do controle das sociedades psicanalíticas e sob influência da psicologia experimental italiana, que a introduziu no país. Os autores demonstram como a psicanálise se converteu, por meio desse referencial, em um ponto de partida para o desenvolvimento de diferentes tipos de psicoterapias ao longo do século XX.

O artigo seguinte trata da história da arteterapia. Jelena Martinovic discute seu processo de profissionalização no pós-guerra em Inglaterra, França, Alemanha e Suíça, para demonstrar como e em que medida a arteterapia se envolveu com a aplicação de drogas que alteram a mente, em especial o LSD, contextualizando também os estudos de criatividade no pós-guerra e demonstrando como eles evoluíram em relação à arteterapia, sublinhando sua relação conflituosa com a arte psiquiátrica no período.

Marco Innamorati trata dos diferentes modos pelos quais as teorias freudiana, junguiana e psicodinâmica (ou psicoterapêutica) tratam a recusa da interpretação por parte do paciente. Em seguida, compara essas interpretações com as abordagens de outras psicoterapias, como a terapia cognitivo-comportamental e a terapia familiar. Seguindo diferentes ontologias e significados de verdade implícitos nas diferentes teorias, o autor centra-se no debate sobre o que é a psicoterapia e em seus fundamentos.

Fechando os trabalhos do grupo, o artigo de Ulrich Koch situa o surgimento e a evolução de técnicas psicoterapêuticas que visam estabelecer, manter e controlar uma relação transformadora entre terapeuta e paciente no amplo contexto de mudanças nas relações sociais e políticas no século XX, chamando atenção para o estreito vínculo que os processos terapêuticos e suas regulações guardam com o contexto social mais amplo.

O número especial conta também com outros três artigos de autores latino-americanos extremamente interligados ao tema da transculturalidade.

Analisando o caso argentino das terapêuticas mecânicas e de seu impacto sobre o psiquismo, bem de acordo com as perspectivas teóricas do entreguerras, José Ignacio Allevi estuda o caso da circulação do tratamento de choque em Rosário, Argentina, destacando as questões locais que permitiram sua apropriação e as especificidades dela decorrentes.

Debatendo o impacto do fim da Segunda Guerra Mundial no Brasil, Guilherme Marques e Carolina Carvalho tratam da atuação da psiquiatria local em um contexto em que a saúde mental buscava ganhar legitimidade na seleção de imigrantes, sob a chave de leitura dos traumas de guerra. Investigam o modo como as teorias que circulavam então foram ajustadas aos interesses e ao contexto do pós-guerra.

Finalmente, Carla Ribeiro Guedes, Vanessa Maia Rangel e Kenneth Rochel de Camargo Jr. historicizam a formação de um campo disciplinar no Brasil, o da “medicina psicossomática”, ou “psicologia médica”, organizado pelo médico e psicanalista Julio de Mello Filho (1933-2018). Discutem ainda os caminhos que o campo foi tomando diante de novas conjunturas político-científicas e que culminaram em seu afastamento do campo psiquiátrico e sua aproximação ao campo da psicologia da saúde.

Como podem ver, os artigos aqui reunidos fornecem amplo subsídio para uma apreciação crítica da circulação transcultural dos conhecimentos e práticas psicoterápicas na Argentina, no Brasil, nos EUA, na Itália, no Japão e na Suíça, além de incluir debates sobre seus fundamentos e verdade.

Desejamos uma boa leitura!

REFERÊNCIAS

  • BORCH-JACOBSEN, Mikkel. Making minds and madness: from hysteria to depression, Cambridge: Cambridge University Press, 2009.
  • SHAMDASANI, Sonu. Psychotherapy in society: historical reflections. In: Eghigian, Greg (ed.). The Routledge history of madness and mental health. London: Routledge, 2017. p.363-378.
  • SUBRAHMANYAM, Sanjay. Explorations in connected history: from the Tagus to the Ganges. Oxford: Oxford University Press, 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022
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