Resumo
O artigo contribui para o conhecimento do universo das formações e carreiras médicas num tempo de mudança, impulsionado pelas ideias iluministas, mas também de conflito entre estruturas centenárias e novos enquadramentos jurídicos. Analisando um percurso individual, visto em interação com outros indivíduos e instituições, desvendam-se as contradições da conjuntura histórica que condicionaram a vida de José Pinto de Azeredo. Trata-se da análise das circunstâncias que enquadraram sua atividade profissional, uma vertente do percurso desse médico que ainda não tinha sido estudada. Formulam-se algumas hipóteses que poderão explicar as razões pelas quais não terá alcançado os objetivos a que se propôs.
carreiras médicas; José Pinto de Azeredo (1764-1810; Universidade de Coimbra; físico-mor do reino; séculos XVIII-XIX
Abstract
This article contributes to knowledge on medical training and careers at a time of change driven by Enlightenment ideas, but also a time of conflict between age-old structures and new legal frameworks. By analyzing an individual trajectory in interaction with other individuals and institutions, the contradictions of the historical context that constrained the life of José Pinto de Azeredo are brought to light. The circumstances surrounding his professional activity are analyzed – an aspect of this physician’s trajectory that was until now unstudied. Some hypotheses are formulated to explain why he did not reach the objectives he set for himself.
medical careers; José Pinto de Azeredo (1764-1810; Universidade de Coimbra; chief physician of the kingdom; eighteenth to nineteenth centuries
José Pinto de Azeredo nasceu no Rio de Janeiro, em 1764. Formou-se em medicina na Universidade de Edimburgo, entre 1786 e 1788, tendo defendido a tese de final de curso na Universidade de Leiden, a 24 de maio de 1788. No dia 7 de fevereiro de 1789, a Junta do Protomedicato (organismo criado em 1782 para substituir o físico-mor e o cirurgião-mor, autoridades que superintendiam boticários, curadores empíricos e médicos graduados no estrangeiro) era convocada pelo ministro e secretário de Estado dos Negócios do Reino, José Seabra da Silva, para verificar o pedido de equivalência dos cursos de José Pinto de Azeredo e de seu irmão Francisco Joaquim de Azeredo (Pedido…, 7 fev. 1789). O Protomedicato foi rápido a realizar os exames e a deliberar positivamente; 12 dias depois, por diploma de 19 de fevereiro, a rainha assinava as duas “cartas de aprovação” em medicina (Carta..., 19 fev. 1789).1 1 Os termos dessa carta têm gerado dúvidas quanto ao local da realização do exame: quando o Protomedicato afirma que “foi examinado na presença dos meritissimos deputados ... os quais o examinarão na dita faculdade de medicina”, a palavra “faculdade” significa a capacidade/competência em medicina, e não que os deputados o tivessem examinado na Faculdade de Medicina, o que seria incompreensível por causa da natureza distinta das duas entidades.
José e Francisco Pinto de Azeredo, dois dos três médicos acreditados pelo Protomedicato nesse ano (Acreditação…, 7 dez 1789),2 2 O terceiro foi António Caetano de Freitas, formado na Universidade de Aberdeen. corporizam um caso de ascensão social e profissional pela formação universitária. O pai, Francisco Ferreira Azeredo,3 3 Confirma-se a informação de Pinto et al. (2005), e não a de Carvalho (s.d.) – um autor bastante problemático quanto à credibilidade das fontes que utiliza –, que apresenta como progenitor Francisco Ferreira de Sousa. tinha recebido carta de cirurgião, passada pelo cirurgião-mor do reino em 22 de novembro de 1754, mediante as informações enviadas do Rio de Janeiro pelo seu comissário e examinador. Como muitos dos seus congéneres, seguira a via do Exército, verdadeiro ascensor social para quem provinha dos grupos sociais mais desfavorecidos, tendo chegado a cirurgião-mor do 1º Regimento de Infantaria do Rio de Janeiro, posição que manteve até pedir a reforma em dezembro de 1795 (Carta…, 22 nov. 1754; Pedido…, 2 dez. 1795). Francisco Ferreira Azeredo quis para os filhos a graduação em medicina, quebrando, assim, o estigma social associado à cirurgia (Abreu, 2007ABREU, Jean Luiz Neves. Os estudos anatômicos e cirúrgicos na medicina portuguesa do século XVIII. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, v.5, p.149-158, 2007., p.149-158; Furtado, 2005FURTADO, Junia. Ferreira. Barbeiros, cirurgiões e médicos na Minas colonial. Revista do Arquivo Público Mineiro, v.41, p.88-105, 2005., p.88-105), qualificada como profissão mecânica.4 4 Apesar de a situação ser relativamente generalizada na Europa, há, contudo, testemunhos de valorização dos cirurgiões, como ocorria em Groningen, conforme demonstrado por Frank Huisman(1996).
Logo em abril de 1789, pouco tempo após o reconhecimento do curso, portanto, José Pinto de Azeredo era nomeado “físico-mor da cidade de São Paulo da Assunção, capital do Reino de Angola”, cidade onde aportou em finais de setembro do ano seguinte, depois de uma breve experiência como médico no Rio de Janeiro (Pinto et al., 2005PINTO, Manuel Serrano et al. O médico brasileiro José Pinto de Azeredo (1766?-1810) e o exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.12, n.3, p.617-673, 2005., p.619-620). A carta patente de atribuição do cargo reproduzia os termos do contrato celebrado com o seu antecessor, com o mesmo ordenado de 600$000 mil-réis: “curar, além do corpo militar daquele reino, os doentes de hospital da dita cidade e igualmente abrir escola de medicina para os que se quisessem empregar no exercício e prática dela”. A novidade, pelo menos segundo os estudos até agora realizados, estava no fato de Pinto de Azeredo ser o primeiro médico formado no estrangeiro a desempenhar aquela função.
Pinto de Azeredo viveu “6 anos e 9 meses completos” em Angola, como frequentemente repetia, durante os quais trabalhou com empenho e afinco (Oliveira, 2013OLIVEIRA, António Braz de. Do Rio a Lisboa, passando a Luanda: achegas para uma biografia de José Pinto de Azeredo. In: Oliveira, António Braz de; Marques, Manuel Silvério (ed.). Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola. Lisboa: Colibri, 2013. p.153-187.). Releva, acima de tudo, o seu papel de professor, na “escola de medicina” do hospital da Misericórdia de Luanda, hospital onde tratou sobretudo soldados, o que poderá ter facilitado a sua integração no Hospital Militar em Lisboa, que ocorreu, segundo informa, no dia 15 de julho de 1801. As circunstâncias em que trabalhou não foram, contudo, fáceis: entre os obstáculos, sobressaem as perigosas condições epidemiológicas, as dificuldades em aceder aos medicamentos – em 1792 uma garrafa de água de Inglaterra que custava 1$000 mil-réis em Lisboa chegava aos 6$400 em Angola –, a falta de mantimentos (recorda como dramáticas as fomes de 1793 e 1794) e o clima de guerra permanente.
Pinto de Azeredo regressa ao reino em 1797. Como recompensa pelos serviços prestados em Angola, recebeu o hábito da Ordem de Cristo (1799), mercê usualmente atribuída pela Coroa aos físicos-mores que a serviam no Império. Em 1806, foi nomeado médico da Casa Real.5 5 Essa informação, bem como a de que terá sido riscado, sem que se saiba a razão, da Academia Real das Ciências, em maio de 1798, decorre da análise dos Almanaques da Academia das Ciências de Lisboa, mencionados pelos seus vários biógrafos. Morreu em abril de 1810, deixando uma vasta obra médica. Porém, nunca foi admitido a todos os postos militares aos quais concorreu – “primeiro médico” do Hospital Militar de Xabregas; físico-mor das tropas do Rio de Janeiro e físico-mor do Exército. Que razões terão estado por detrás desses insucessos?
O estigma da formação no estrangeiro
Conforme o Regimento dos médicos e cirurgiões cristãos-velhos, de 1604 (Silva, 1854SILVA, José Justino de Andrade e. Colecção cronológica da legislação portuguesa, 1603-1612. Lisboa: Imprensa de J.J.A. Silva, 1854., p.42-46), o diploma de 1o de abril de 1608 e os Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1772, e contrariamente ao que seriam as expectativas da família Pinto de Azeredo, a graduação em medicina no estrangeiro era uma desvantagem que colocava os diplomados numa posição de inferioridade em relação aos médicos formados em Portugal. Para entender esta situação, é necessário recuar um pouco mais no tempo, até ao diploma de criação de bolsas de estudo para formar médicos na Universidade de Coimbra, de 1568, e mesmo até ao Regimento do físico-mor, de 1515 (Abreu, 2017ABREU, Laurinda. Tensions between the físico-mor and the University of Coimbra: the accreditation of medical practitioners in Ancien-Regime Portugal. Social History of Medicine, v.31, n.2, p.231-253, 2017.).
O Regimento do físico-mor (Sousa, 1791SOUSA, José Roberto Monteiro de Campos Coelho e. Sistema ou colecção dos regimentos reaes, t.6. Lisboa: Oficina de Francisco Borges de Soisa, 1791., p.338-343) (reformado em 1521 para reforçar os poderes do titular do cargo sobre as boticas e os boticários) surgiu no âmbito de um profundo movimento de organização e restruturação do campo da saúde e da assistência em Portugal. O regimento dava consistência normativa às atividades que os físicos-mores do reino há muito vinham desenvolvendo, clarificando o seu papel como agentes de acreditação dos diplomas de medicina obtidos fora de Portugal. Genericamente falando, o físico-mor do reino era um direto concorrente da universidade. Essa condição seria fortalecida pela reforma do curso de medicina, feita na década de 1540, quando a formação médica em Coimbra se tornou uma das mais longas da Europa, ao mesmo tempo que se reforçava o controlo aos cristãos-novos, tradicionalmente associados às atividades curativas – circunstâncias que contribuíram para aumentar o número de portugueses a recorrer às universidades estrangeiras.
A contestação da universidade não se fez esperar. Enquanto trabalhava numa solução para minorar os danos resultantes da concorrência do físico-mor, começou a associar os graus por este acreditados aos que “enxertava” em cirurgiões, em estudantes que não tinham acabado o curso de medicina ou, ainda, em indivíduos a quem apenas eram reconhecidas “capacidades curativas”. Propositadamente, a Universidade de Coimbra ignorava a distinção entre “cartas para curar de medicina” (licenças temporárias e restritivas quanto às práticas curativas, que criavam “médicos a termo”, apenas autorizados a exercer em locais onde não houvesse médicos diplomados por Coimbra), que eram a maioria das licenças concedidas pelo físico-mor, e as “cartas de medicina”, essas sim, correspondentes a diplomas de medicina atribuídos a quem se tinha graduado no estrangeiro ou em situações excepcionais.
Foi para travar o definhamento da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, num contexto de crescente procura de médicos, quer por parte de particulares, quer dos poderes locais e das misericórdias, já então responsáveis por um número considerável de hospitais, que a Coroa estabeleceu, em 1568, um programa de bolsas para trinta estudantes de medicina, custeadas pelos municípios (Abreu, 2014ABREU, Laurinda. Assistance et santé publique dans la construction de l’État moderne: l’expérience portugaise. Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, v.61, n.3, p.67-97, 2014.).6 6 Filipe I, por diploma de 23 de dezembro de 1585, acrescentou vinte bolsas para boticários, a formar nas boticas de Coimbra, sob a tutela da Faculdade de Medicina. Com o objetivo explícito de aumentar os recursos humanos em saúde e de afastar o predomínio dos médicos cristãos-novos, que estariam a engrossar a fileira formativa de Salamanca, a Coroa procurava fidelizar os portugueses à sua universidade e, também por isso, logo em julho de 1578, recomendava aos municípios que, na altura de recrutarem médicos, deviam preferir os que tivessem sido bolseiros (“partidistas”, segundo a designação coeva).
Nesses anos finais da dinastia de Avis, um acordo informal, ainda que apoiado pela Coroa, entre o físico-mor do reino e a Universidade de Coimbra permitiu a suspensão da acreditação dos graus obtidos no estrangeiro a troco de uma contrapartida monetária que esta se obrigava a entregar-lhe. Os monarcas Habsburgo ditariam o fim desse pacto e a manutenção da capacidade de acreditação do físico-mor, mas também permitiriam que a Universidade de Coimbra integrasse no Regimento dos médicos e boticários, de 7 de fevereiro de 1604, o direito de preferência dos seus médicos aos lugares da administração pública e ao serviço de instituições religiosas. Por diploma régio de 1 de abril de 1608, a prerrogativa ganhava força de lei, determinando-se que os médicos “idiotas” ou “não letrados” fossem automaticamente excluídos dos concursos onde se apresentassem médicos formados na Universidade de Coimbra. Por essa altura, estava consumada a associação entre graduação no estrangeiro e o epíteto de médico “iletrado e ignorante” (Abreu, 2017ABREU, Laurinda. Tensions between the físico-mor and the University of Coimbra: the accreditation of medical practitioners in Ancien-Regime Portugal. Social History of Medicine, v.31, n.2, p.231-253, 2017.).
As considerações sobre a superioridade formativa da Universidade de Coimbra, defendida nos alvores de Seiscentos, passariam quase na íntegra para os Estatutos de 1772. Ali se determinava que não se consentisse “mais exercitarem a medicina e a cirurgia pessoas idiotas e que não foram aprovadas pela universidade”, revogando-se toda a legislação anterior que permitia ao físico-mor e ao cirurgião-mor licenciarem pessoas caracterizadas como tal. A decisão não tinha, porém, aplicações retroativas, autorizando-se que continuassem a exercer os médicos e cirurgiões estrangeiros aprovados pelas universidades dos seus países, ou os portugueses formados no exterior e já reconhecidos pelas instâncias nacionais. O adiamento da regulamentação relativa aos “cirurgiões vulgares” (Estatutos..., 1772, p.197-201), de imediato suspendeu a acreditação dos cursos médicos feitos fora de Portugal e a consequente atribuição de “cartas para curar de medicina” (“médicos a termo”).7 7 Entre 1772 e 1781, apenas foi atribuída uma carta de medicina e duas licenças “para curar de medicina” (Projeto “José Pinto de Azeredo”, PTDC/HIS-HIS/113416/2009, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa).
Todavia, embrenhada em múltiplos problemas, a universidade não conseguia cumprir na íntegra os desígnios reformistas pombalinos na área da saúde pública. Perante a desordem reinante entre os curadores empíricos resultante do vazio de poder que se seguiu a 1772,8 8 O fato de o último registo assinado por Cristóvão Vaz Carapinho, físico-mor nomeado em 1763, datar de 30 de julho de 1770, sugere que poderá ter havido a decisão de não avançar com nova nomeação para o cargo, uma vez que já estariam em preparação novos estatutos para a universidade. O último registo do cirurgião-mor, António Soares Brandão, nomeado em 1754 e reconfirmado no cargo em 1779, foi assinado em 1780 (Projeto “José Pinto de Azeredo”, PTDC/HIS-HIS/113416/2009, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa). a Coroa criou o Protomedicato em 17 de junho de 1782, como foi referido. Fê-lo, no entanto, sem cuidar da sobreposição de jurisdições entre o novo organismo e a universidade, a quem Pombal tinha atribuído a total autoridade sobre o campo médico. Quando os irmãos Pinto de Azeredo solicitaram a esse órgão a acreditação dos seus cursos, em 1789, a instituição procurava afirmar-se, tentando mesmo assumir o direito de superintender os médicos formados pela Universidade de Coimbra. Contudo, dissensões internas e a incapacidade de produzir nova regulamentação que expressasse a modernidade que justificara o seu surgimento – aquela instituição manteve os regimentos do físico-mor (1515-1521) e do cirurgião-mor (1631) até à sua extinção – conotavam o Protomedicato com o passado.
Nesse contexto, independentemente da qualidade do curso, da reputação dos professores, como era o caso de William Cullen, de quem tinha sido discípulo em 1787, do trabalho académico realizado como aluno, das obras já publicadas e até de algum reconhecimento público, a formação médica de Pinto de Azeredo no estrangeiro reunia todas as condições para ser desconsiderada pelas elites médicas graduadas em Portugal, inclusivamente pelas que governavam o Protomedicato. O fato é que Pinto de Azeredo frequentara um curso de dois anos (o de Coimbra tinha cinco) que não lhe permitia exercer em Portugal, como declarava o ministro e secretário de Estado, a quem tinha sido apresentada a súplica para a acreditação do curso, observando que os requerentes estavam cientes dessa circunstância: “que a Junta do Protomedicato lhes dê sua aprovação na forma do estilo, sem embargo de não apresentarem certidão de práticas neste reino, aonde não têm de exercitar a sua profissão mas sim na América, onde se propõem exercitá-la” (Pedido…, 7 fev. 1789).9 9 À ausência da prática hospitalar em Portugal, necessária para a conclusão do curso de medicina, a que se refere o documento, contrapõem os irmãos Pinto de Azeredo a indicação de que haviam praticado nos hospitais de Londres e Edimburgo, informação que não foi possível confirmar. Só especial autorização régia, depois de passados os exames pelo Protomedicato, permitiu aos irmãos Pinto de Azeredo “exercitar a dita ciência da física nesta corte e cidade de Lisboa e em qualquer parte destes reinos e senhorios de Portugal e suas conquistas” (Pedido…, 7 fev. 1789). No caso de José Pinto de Azeredo, é provável que já estivesse em marcha a sua nomeação como físico-mor de Luanda, lugar que a Coroa procurava ocupar e para o qual ele se voluntariou. Assim se compreende que, simultaneamente, dona Maria I concedesse aos dois irmãos “todos os privilégios e liberdades … que [se] guardam aos médicos graduados e aprovados” pela Universidade de Coimbra (Concessão…, 17 fev. 1789), médicos para quem aqueles cargos estavam reservados.
A função de físico-mor no Império: clarificando valorações, conceitos e jurisdições
Além de o seu diploma condicionar as possibilidades de ascensão profissional, o cargo de físico-mor desempenhado em Angola por Pinto de Azeredo não era considerado particularmente prestigiante no reino. A situação de médico servidor da Coroa no império poucas vezes foi apelativa para os médicos, tanto mais que tinham alguma facilidade de emprego na metrópole, sem necessitarem de se expor aos perigos inerentes às viagens marítimas e às difíceis condições epidemiológicas da maioria das colónias portuguesas (Abreu, 2021ABREU, Laurinda. A presença médica portuguesa no Império (séculos XVI-XVIII): acção dos agentes políticos. História da ciência, tecnologia e medicina em Portugal, v.1. In: Leitão, Henrique; Costa, Palmira Fontes da; Sánchez, Antonio (coord.). Lisboa: Tinta da China, 2021. p.269-294.).
Angola estava entre os locais mais problemáticos do Império em termos de recursos médicos europeus. É certo que nem sempre tinha sido assim: com o início da colonização, em 1575, e com a fundação, no ano seguinte, da cidade de São Paulo da Assunção de Luanda, as expectativas eram elevadas, quer para a Coroa, quer para cirurgiões, boticários e médicos que para ali se dirigiram. Todavia, além das dificuldades já enunciadas, e até, talvez, por causa delas, Angola tornou-se o principal ponto de recepção dos “facinorosos degredados e corrompidos por tantos e abomináveis abusos”, que ali perpetrariam “crimes ferozes” (Silva, 1842SILVA, António Delgado da. Suplemento à Colecção da legislação portuguesa, 1750 a 1762. Lisboa: Tipografia de Luiz Correa da Cunha, 1842., p.833), tudo confluindo para um rápido abrandamento do fluxo de agentes médicos oriundos do reino.
A custo, a Coroa ia conseguindo nomear um ou outro cirurgião ou médico “para curar os doentes do presídio que nele há como para os mais moradores da terra que todos perecem à míngua por falta de quem os cure por ser a terra muito doentia”, como se reconhece na carta de designação do médico António Lopes de Oliveira, em maio de 1649 (Nomeação…, 26 maio 1649). Nem para o presídio nem para o Hospital da Misericórdia de Luanda, fundado no final dos anos de 1620, há informação de que os lugares “médicos” tenham sido preenchidos em regime de continuidade: eram poucos os voluntários que arriscavam a vida naquelas paragens, mesmo quando a Coroa cedia às suas exigências, às vezes bem pesadas do ponto de vista financeiro, como ocorreu com o médico Catela de Lemos, em 1732 (Solicitação…, 18 ago. 1732). Acrescem, ainda, as dificuldades de relacionamento entre os médicos e as autoridades do território (Abreu, 2021ABREU, Laurinda. A presença médica portuguesa no Império (séculos XVI-XVIII): acção dos agentes políticos. História da ciência, tecnologia e medicina em Portugal, v.1. In: Leitão, Henrique; Costa, Palmira Fontes da; Sánchez, Antonio (coord.). Lisboa: Tinta da China, 2021. p.269-294.).
Sempre que o poder central lograva recrutar agentes de saúde, tendia a prolongar as comissões de serviço contra a vontade dos visados. Em Benguela, chegou mesmo a ser acusado de sequestrar os cirurgiões que ali exerciam, impedindo-os de regressar a casa. O próprio Pinto de Azeredo, apesar de ter obtido um atestado médico que confirmava a sua debilidade física decorrente de uma doença que por pouco não o vitimara (Atestado…, 8 out. 1797) haveria de ser denunciado como quase fugitivo pelo governador-geral, em carta de 29 de outubro de 1797, acusando-o também de ter abandonando os doentes, comportamento que, na sua perspectiva, merecia punição. As dificuldades em o substituir foram expressas pelo intendente-geral da polícia, que se envolveu pessoalmente no processo, e só uma generosa subida de ordenado, de 600.000 para 800.000 réis, terá convencido o médico José Maria Bomtempo a viajar até Angola (Carta-patente…, 25 jan. 1799).10 10 Em 19 de setembro de 1798, Pina Manique queixa-se a dom Rodrigo de Sousa Coutinho de que não encontra “quem voluntariamente se queira sujeitar a este emprego” (Consulta..., 19 set. 1798).
As nomeações para os diferentes cargos foram-se fazendo sem a preocupação de ajustar os títulos aos graus nem separar as esferas civil e militar. Formalmente, os físicos-mores e os cirurgiões-mores representavam as autoridades médicas de um lugar, que tanto podia ser um regimento, um hospital, um forte ou um presídio. Acima deles estavam os físicos-mores e os cirurgiões-mores do Exército, para os militares, e os físicos-mores e os cirurgiões-mores do reino, para os civis. Só em alguns casos os cirurgiões-mores e físicos-mores nomeados para as colónias levaram delegação de poderes dos titulares dos cargos em Lisboa, o que lhes permitia controlar os demais curadores da área geográfica de influência e fazer exames “profissionais”, que depois teriam de ser registados nas chancelarias régias. À exceção do Estado da Índia, onde a Coroa replicou os mecanismos de regulação da metrópole (criando as figuras de físico-mor e cirurgião-mor do Estado da Índia), e durante algumas décadas no Brasil (entre 1634 e o início do século XVIII) (Abreu, 2018ABREU, Laurinda. A institucionalização do saber médico e suas implicações sobre a rede de curadores oficiais na América portuguesa. Tempo, v.24, n.3, p.493-524, 2018.), os cargos de físico-mor e de cirurgião-mor não tiveram, pelo menos até aos finais de Setecentos, uma aplicação à totalidade do território colonial.
Em Angola, a primeira tentativa de criar um sistema de regulação médica foi protagonizada em 1654 pelo cirurgião João Luís Leitão, com o apoio do cirurgião-mor do reino, que lhe passou uma “carta comissória” autorizando-o a “examinar os que por lá curavam e sangravam sem licenças oficiais, provocando muitas mortes” (Carta…, 16 nov. 1654). A criação de um novo ofício, porque efetivamente era disso que se tratava, foi imediatamente proibida pelo presidente do Conselho Ultramarino, que não reconheceu ao cirurgião-mor do reino jurisdição para tal (algo idêntico aconteceria em relação a Cabo Verde, em 1676 (Proibição…, 21 abr. 1676). O tipo de formação desses cirurgiões (Pina, 1943PINA, Luís de. História da medicina imperial portuguesa (Angola). Boletim Geral das Colónias, v.19, n.211, p.18-72, 1943., p.58-59)11 11 Até ao início de Oitocentos, Angola recebeu sobretudo cirurgiões-mores, os curadores mais indicados, de acordo com o presidente do Conselho Ultramarino, em 1654: as “conquistas” precisavam de homens habituados “a cortar pernas e braços e com muita particular ciência nas feridas de guerra” (Pina, 1943, p.58-59). – ao contrário do que acontecia em Portugal, no império a maioria dos cirurgiões-mores era recrutada nos escalões mais baixos da sociedade, às vezes sem qualquer exame (Carta…, 12 ago. 1732), e/ou apenas com experiência curativa adquirida nos barcos ou nas frentes de batalha (Carta…, 12 fev. 1707)12 12 Como foi o caso de Manuel Dias Neto: tendo começado como cirurgião de navio e dali passado para o Exército, foi nomeado, a seu pedido, cirurgião-mor de Angola em 1750 (Nomeação..., s.d.). – e o reduzido número de colonos portugueses poderão ter funcionado como um travão à duplicação de encargos que oneravam a fazenda régia.
Angola oferece vários exemplos da desordem que reinava ao nível das nomenclaturas. Com físicos-mores apenas em Luanda, são frequentes casos como o do médico Manuel de Andrade de Góis, em 1703, referenciado em fontes distintas como indo “curar a infantaria e os soldados da praça de Angola” e como “físico-mor do reino de Angola (Nomeação..., 14 feb. 1730).13 13 Também terá limitado as aspirações de Francisco Tavares de Ataíde, treinado em cirurgia no Hospital de São Paulo de Assunção e lá exercendo como “médico a termo”, que nos anos de 1660 ali quis acumular as funções de físico-mor com as de cirurgião-mor. Situação replicada com Eusébio Catela de Lemos, que se oferecera “a passar ao Reino de Angola para nele servir de médico” (Nomeação…, 18 ago. 1732, 30 ago 1732).14 14 Catela de Lemos começou a solicitar o seu regresso ao reino ou a deslocação à Bahia para tratar da sua saúde (“que a terra arruinara”) em 1734, mas em abril de 1755 ainda se encontrava em Luanda (Solicitação..., s.d.). O mesmo acontecera com Pinto de Azeredo, por vontade própria “despachado em físico mor p[ara] o Reino de Angola” (Requerimento..., 27 maio 1805), na esperança de que o serviço à Coroa pudesse ser capitalizado no regresso à metrópole. Nada na documentação indica que tivesse jurisdição sobre toda a colónia ou poderes delegados do físico-mor do reino, muito embora a ele se deva a introdução do ensino médico em Luanda.
A primeira referência à necessidade de reproduzir conhecimento médico em Angola para colmatar a ausência de europeus foi feita em 1703 pelo presidente do Conselho Ultramarino, Francisco de Távora (Pina, 1943PINA, Luís de. História da medicina imperial portuguesa (Angola). Boletim Geral das Colónias, v.19, n.211, p.18-72, 1943., p.23-24).15 15 Não era, contudo, uma opinião unânime: em 1732, o Conselho Ultramarino negou a pretensão do boticário António Inocêncio Pita ao lugar de cirurgião-mor de Angola por “os naturais da terra serem melhores cirurgiões que os que vão de fora pela experiência que têm adquirido da forma por que se deve curar naquele clima” (Carta..., 12 ago. 1732). Desconhece-se se Francisco de Távora estaria a pensar no treino de cirurgiões nos hospitais, até porque esses eram escassíssimos naquela parte do império português, ou se teria em mente algo semelhante ao que nesse mesmo ano começava no Hospital Real de Goa, um projeto que ganhava forma após vinte anos de tentativas falhadas de ali estabelecer aulas de medicina. Como se lê na carta do governador de Angola, Manuel de Almeida Vasconcelos, de 10 de setembro de 1791 (Pina, 1943PINA, Luís de. História da medicina imperial portuguesa (Angola). Boletim Geral das Colónias, v.19, n.211, p.18-72, 1943., p.62-64), era propósito do governo central instituir uma “aula de medicina prática, com instruções anatómicas, em benefício de todos aqueles que quiserem seguir a profissão”: tratava-se de fornecer alguns conhecimentos médicos aos cirurgiões ou aprendizes de cirurgia.
A prática, porém, não confirmou as elevadas expectativas de Pinto de Azeredo expressas na oração de sapiência proferida na sessão inaugural da dita escola a 11 de setembro de 1791, no Hospital da Misericórdia de Luanda (Azeredo, 2014b). Apesar de Pinto de Azeredo afirmar, em 1805, que tinha deixado “os regimentos, a cidade e os seus presídios bem providos de hábeis facultativos e V[ossa] A[lteza] R[eal] isento de fazer u[m]a extraordinária despesa em mandar continuadamente p[ar]a aquele país cirurgiões que não sendo dele naturais viviam pouco, ou se retiravam logo pelas enfermidades de que eram atacados” (Requerimento…, 27 maio 1805), não há dados que comprovem semelhante abastança de recursos médicos por ele graduados. As chancelarias régias apenas registam a formação de três agentes de saúde, todos eles oriundos de Portugal: João Manoel de Abreu, um recém-encartado boticário (Carta…, 31 out. 1789); Guilherme José Pires e Francisco de Carvalho, dois ajudantes de cirurgia (o primeiro, do corpo da cavalaria do Reino de Angola (Carta…, 1 jun. 1799), o segundo, do corpo de artilharia (Carta de cirurgião-mor, 29 abr. 1799), transformados em cirurgiões-mores militares após a formação ministrada por Pinto de Azeredo (Carta…, 29 abr. 1799). Logo no início das atividades letivas, em 1792, o governador Manuel de Almeida e Vasconcelos, em carta endereçada a José de Seabra da Silva, se queixara da “indolência dos filhos do país que embora bastante hábeis inibe-os de seguir as aulas de medicina e anatomia e de matemática, que poucos frequentam” (Azeredo, 2014b; Correspondência…, 25 jan. 1799).16 16 Desconhece-se se a decisão de criar uma aula de cirurgia em 1796 pretendeu captar mais alunos para um ensino mais prático. Importa, contudo, distinguir entre alunos graduados e alunos formados, já que era corrente a atividade curativa sem validação de conhecimentos pelas autoridades competentes. Podia ser esse o caso dos “hábeis facultativos” mencionados por Pinto de Azeredo.
Como já foi afirmado, a experiência adquirida em Angola, quer como médico, quer como docente, ter-lhe-á aberto as portas do Hospital Militar de Lisboa. Eventualmente, também, a intervenção de Luís Pinto de Sousa Coutinho, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra do Reino de Portugal, a quem Pinto de Azeredo dedicou o manuscrito Tratado anatómico dos ossos, vasos linfáticos e glândulas (Abreu, J.L.N., 2013), obra que terá nascido a partir de textos pedagógicos preparados para os seus alunos em Luanda.
Quando iniciou as suas funções no hospital, Pinto de Azeredo já teria escrito a maioria dos 16 trabalhos que lhe são atribuídos, entre os quais o artigo “Exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro” (Kury, 2008KURY, Lorelai. Rio de Janeiro: a cidade e os médicos no período joanino. In: Fleck, Eliane Cristina Deckmann et al. A Corte no Brasil: população e sociedade no Brasil e em Portugal no início do século XIX. São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2008. p.119-134.), publicado no Jornal Enciclopédico, em 1790, e o livro Ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola, dado à estampa em 1799, na Régia Oficina Tipográfica.Teria já em preparação Isagoge patológica do corpo humano, considerado pelos especialistas “obra notável da medicina portuguesa” (Azeredo, 2014a; Marques, Oliveira, 2014, p.11).17 17 Para além das obras já referidas no texto, realça-se, do mesmo autor, Coleção de observações clínicas (Azeredo, 2020). Para uma listagem completa da produção científica de José Pinto de Azeredo, veja-se o texto “O médico brasileiro José Pinto de Azeredo (1766?-1810) e o exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro” (Pinto et al., 2005). Tinha então 37 anos, e crê-se que, a par com a prática privada em Lisboa, terá mantido o emprego no Hospital Militar até à sua morte, aos 46 anos.
Pinto de Azeredo e os militares
A mudança do secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra no início de janeiro de 1801, antes da conclusão do processo de integração de Pinto de Azeredo, poderá ter significado perda de proteção e, consequentemente, a sua colocação na posição secundária de “segundo médico”. Já em Xabregas, para onde tinha sido transferido o hospital militar, em janeiro de 1802, Pinto de Azeredo faz sentir o seu descontentamento às chefias militares, tanto mais que tinham recrutado Bernardo José Abrantes e Castro como primeiro médico.
À riqueza do seu trajeto profissional (como físico-mor em Angola organizara o hospital de Luanda, tratara os doentes, ensinara medicina e dera ao “prelo escritos interessantes à saúde e conservação daqueles povos”), Pinto de Azeredo contrapunha o de Abrantes e Castro, “que apenas conta quatro anos de um serviço bem ordinário”, além de ter entrado no hospital uns meses depois dele (Carta…, s.d.).18 18 O documento não está datado, mas Joaquim Barradas (2014), que o transcreveu (bem como os restantes documentos desse arquivo relativos a esse médico (Azeredo, 2014a, p.489-528), sugere 1803. Sem certeza, apontamos para 1802, caso contrário teria esperado quase dois anos para contestar a desconsideração a que acreditava ter sido sujeito. Solicitava, assim, que o príncipe regente fosse “servido indemnizá-lo fazendo-o também primeiro-médico”, o que não só não aconteceu, como lhe valeu a inimizade de Abrantes e Castro. Foi como seu superior hierárquico que o primeiro médico lhe retirou (em novembro de 1803) os soldados com doenças oculares, acusando-o de ter cegado um “lastimoso número” deles, contrapondo que “ainda não ficou cego um só soldado por mim tratado” (Correspondência…, 1805-1807).
Os militares deixavam, entretanto, bem clara a preferência pelos seus “camaradas”: Abrantes e Castro havia prestado serviço médico-militar, durante o qual adquirira “merecimentos muito superiores” aos de Pinto de Azeredo (Pinto et al., 2005PINTO, Manuel Serrano et al. O médico brasileiro José Pinto de Azeredo (1766?-1810) e o exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.12, n.3, p.617-673, 2005., p.634). E essa era, creio, a questão central: Pinto de Azeredo, um civil, entrava no universo militar num momento em que o seu “sector médico” estava sob forte ameaça externa e a corporação procurava proteger-se contra potenciais elementos de perturbação: pela primeira vez, a Coroa mostrava-se interessada em criar um sistema unificado de formação dos cirurgiões e acabar com a autonomia dos militares, habituados, afirmava-se, a nomear indivíduos “sem cartas, sem exames e sem aptidão para a sangria e para a cirurgia”, que, não raras vezes, acabavam a exercer como médicos (Consulta…, 26 maio 1786).
O embate entre autoridades civis e militares começara com a determinação régia de 26 de maio de 1786, atribuindo ao Protomedicato “jurisdição privativa ... sobre os cirurgiões militares, como vassalos que exercitam as mesmas artes”, documento que os militares ignoraram (Jurisdição…, 26 maio 1786), mesmo depois de os Avisos de 1789 e 1791 insistirem nos “inconvenientes resultantes dos coronéis nomearem cirurgiões-mores e até ajudantes” sem prévia avaliação de competências. Sem solução à vista, em 1798 a Coroa mudou de estratégia: ao reduzir a composição do colégio diretivo do Protomedicato de nove para três membros,19 19 O Protomedicato nasceu com sete deputados; passou para nove em 1785, foi reduzido a três em 1798 e passou para cinco em 1803 (corrige-se a informação apresentada no livro de Abreu, L., 2013, p.361, onde é estudada essa instituição). juntou a José Correia Picanço e Francisco Tavares, dois antigos professores da Universidade de Coimbra, o físico-mor do Exército, João Francisco de Oliveira (Junta…, 4 nov. 1798). O objetivo seria facilitar a integração da formação médica militar nas reformas que estavam em curso.
A substituição de João Francisco de Oliveira (enredado num complexo problema amoroso) por Manuel Joaquim Henriques de Paiva, em 14 de junho de 1803 (Ofício…, 14 jun. 1803), pode ter provocado alguma satisfação entre os militares. Porém, a 3 de agosto do mesmo ano, João Francisco de Oliveira perdia igualmente o lugar de físico-mor do Exército, sendo substituído por um médico civil, José Pinto da Silva. Médico formado pela Universidade de Coimbra, nela exercendo a função de professor havia 23 anos, Pinto da Silva trazia consigo uma longa experiência como administrador dos hospitais da universidade (Nomeação…, 3 ago. 1803), elemento que terá pesado na escolha para o cargo. Confiante nas suas competências, o príncipe regente dom João ordena-lhe a imediata elaboração de um relatório sobre o Hospital Militar de Xabregas e a apresentação de sugestões sobre “alterações ou melhoramentos de que julgar susceptível o mesmo hospital” (Ordem…, 20 jul. 1803). Solicita-lhe, ainda, um regimento geral para todos os hospitais militares, permanentes e de campanha. Para facilitar a tarefa do novo físico-mor do Exército, um Aviso de 11 de agosto reforçava os seus poderes sobre o hospital e quem lá trabalhava, inclusive os guardas (Aviso..., 11 ago. 1803). Nos finais de 1804, pouco mais de um ano depois de assumir funções, José Pinto da Silva apresentava a sua demissão. O que se terá passado entretanto e que impacto teve em José Pinto de Azeredo?
No cerne do problema esteve o fato de o governo ter nomeado um físico-mor civil sem acautelar possíveis conflitos jurisdicionais com a Junta da Fazenda dos Arsenais Reais do Exército, a quem atribuíra, a 23 de março de 1802, a geral administração do Hospital de Xabregas. Por outro lado, o físico-mor ter-se-á convencido de que o respaldo oferecido pelo príncipe regente seria suficiente para impor aos militares os procedimentos curativos e administrativos que então norteavam os hospitais civis.
O relatório elaborado sobre o Hospital Militar de Xabregas provocou um levantamento geral nas hostes militares. Basicamente, Pinto da Silva demonstrava que os militares não tinham competências nem para administrar hospitais – entre muitas outras críticas, referia o fornecimento de comida de má qualidade e de “fundas de pano podre”, além da livre circulação da guarda militar pelo hospital levando aos doentes géneros proibidos –, nem para curar doentes. Acusava o primeiro cirurgião, Francisco José de Paula, de tratar todos os doentes venéreos de igual modo, independentemente do estádio da doença (razão pela qual recrutara um “cirurgião paisano” para as “enfermarias venéreas”), abusar do mercúrio e das sanguessugas, cobrir os “tumores com cataplasma de miolo de pão” e receitar vinho com ópio aos feridos embriagados. Os restantes cirurgiões, e a multidão de praticantes que os acompanhavam, todos militares, eram recriminados por desconhecerem os mais elementares preceitos médicos. Considerava que deviam ser substituídos por dois médicos que exercessem cirurgia, mantendo-se apenas dois cirurgiões-mores dos regimentos (Exposição..., 16 jun. 1804).
Da análise ao inquérito interno que se seguiu para averiguar da veracidade das denúncias proferidas pelo físico-mor, retém-se o propósito de os militares o desacreditarem, considerando-o um intruso que pretendia manchar reputações imaculadas, como era a de Francisco José de Paula, “um cirurgião da primeira ordem … cirurgião da Real Câmara” (Carta..., 15 jul. 1795).20 20 Francisco de Paula era, desde 1795, primeiro cirurgião da Armada Real com graduação de tenente. A Junta da Fazenda dos Arsenais Reais do Exército não só lhe devolveu as críticas de ignorante e o culpou pela insubordinação reinante, defendendo as qualidades profissionais dos militares, cirurgiões e praticantes, como impugnou a sugestão de os despedir e os substituir por dois médicos que fossem capazes de exercer cirurgia: escreviam que estes profissionais não existiam em Portugal, isto, 32 anos depois de os estatutos da universidade tornarem obrigatório o ensino conjunto da medicina e da cirurgia.21 21 Os militares afirmavam que “saber Cirurgia não era o mesmo que praticá-la. Que tinha a Cirurgia muitas relações com a Medicina, porém que a prática de cada uma delas era muito vasta e só por si podia mui bem ocupar a vida de um homem” (Alegação..., 24 nov. 1804).
A alegação final dos militares explorou as indefinições terminológicas e funcionais em torno do vocábulo físico-mor, atrás discutidas, optando pela que lhes era mais conveniente: o cargo de físico-mor correspondia ao lugar de “1º médico do hospital”, trabalho que Pinto da Silva não cumpria. Acrescentavam, ainda, que “se devia reputar inútil o lugar de físico-mor, que só costumava haver em tempo de guerra” (Alegação..., 24 nov. 1804). Surpreendido, Pinto da Silva não poupou nos argumentos demonstrativos da falsidade dos seus delatores, que propositadamente haviam confundido funções, o que não tinha acontecido com os físicos-mores anteriores. Sem sucesso, haveria de reclamar que não competia aos físicos-mores cuidar diretamente de um hospital, que recebia entre trezentos a quinhentos doentes por ano, mas pensar todo o sistema, tarefa que ele estava a desempenhar: a 19 de julho de 1804, o príncipe regente cedia em toda a linha e revogava diplomas anteriores, indicando que ao “físico-mor do Exército no Hospital Militar da Corte só lhe pertence regular o Curativo dos Doentes e prescrever as dietas”,22 22 Documento transcrito por Isabel Abecasis (2014, p.487). tudo o mais era da competência da Real Junta dos Arsenais (Definição..., 19 jul. 1804).
Como todos os médicos e cirurgiões que trabalhavam no hospital, José Pinto de Azeredo foi interrogado no âmbito do relatório do físico-mor. Reconhecidas pelos especialistas as bases científicas dos seus escritos e a defesa da ciência experimental, profundo conhecedor dos avanços da medicina (Cardoso, 2013CARDOSO, Adelino. Pinto de Azeredo: um médico livre, positivo e ecléctico. In: Oliveira, António Braz de; Marques, Manuel Silvério (ed.). Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola. Lisboa: Colibri, 2013. p.267-276.; Costa, 2014COSTA, Júlio Manuel Rodrigues. Breve escólio ao Tratado anatómico dos ossos, vasos linfáticos e glândulas de José Pinto de Azeredo. In: Azeredo, José Pinto de. Tratado anatómico dos ossos, vasos linfáticos e glândulas: antecedido da oração de sapiência feita e recitada no dia 11 de setembro de 1791. Lisboa: Colibri, 2014. p.247-277.; Carneiro, Simões, Diogo, 2000), como faz questão de demostrar na vasta erudição que imprime a cada um dos seus escritos – muitos dos autores citados fazem parte dos 366 títulos (e mais de seiscentos volumes) que constam da sua biblioteca pessoal (Inventários..., s.d.) –,23 23 Obras maioritariamente de medicina e estrangeiras, onde constam as últimas novidades editoriais, conforme se pode ver no inventário de bens que ficaram por sua morte. Documento transcrito por Maria Teresa Monteverde Plantier Saraiva (2014). Pinto de Azeredo não podia deixar de secundar as críticas do físico-mor. Não obstante, entre esse e os militares que o empregavam, tenta o difícil equilíbrio, isentando de culpas as chefias e fazendo recair o ónus dos problemas nos guardas e nos soldados doentes, interesseiros e arruaceiros, sempre prontos a reclamar, sobretudo quando não os deixavam sair, mas rápidos a fingir “moléstias para se conservarem no Hospital de cujo tratamento se queixavam” (Carta..., 1804).
Um ano após a demissão do físico-mor, Pinto da Silva, Pinto de Azeredo expressa o desejo de regressar ao Brasil e candidata-se, antes de 27 de maio de 1805 (a primeira data que surge nessa demanda) ao “emprego de físico-mor das tropas do Rio de Janeiro”. Propõe-se, igualmente, “ler medicina prática e especulativa” no hospital militar, isto é, repetir a experiência de Luanda, solicitando, para isso, o mesmo ordenado do seu físico-mor. Antes de 21 de agosto de 1805 (quando, a seu pedido, foi dada ordem de devolução dos documentos que instruíram a sua candidatura), desiste “da sobredita pretensão p[ar]a nunca jamais pretendê-la”. Se parece certo que não terá recebido o despacho final rejeitando a sua aspiração, todos os pareceres dados até àquele momento (que Pinto de Azeredo conheceria) eram negativos: no Rio de Janeiro não havia físico-mor; no Hospital Militar apenas estava colocado um cirurgião, que ganhava 200$000; o ordenado do físico-mor de Angola era de 800$000; o momento era de reduzir despesas, não de agravá-las (Parecer..., 27 maio 1805).
A rapidez das várias diligências ilustra a vontade das autoridades em encerrar o processo, mas Pinto de Azeredo não se dava por vencido. Tendo os seus documentos sido devolvidos a 13 de setembro, de imediato ter-se-á candidatado ao lugar de físico-mor do Exército, em Lisboa. Também sem perderem tempo, a 27 do mesmo mês, os militares deram nova resposta negativa: de forma lacónica, informava-se que o seu requerimento “não pode ter lugar, primeiro porque não há exemplo de tal coisa; segundo porque Sua Alteza Real houve por bem determinar que não houvesse o título de Físico-Mor do Exército”. Assinava o parecer Abrantes e Castro, entretanto nomeado inspetor-geral dos Hospitais Militares, e Teodoro Ferreira de Aguiar, cirurgião-mor do Exército (Requerimento…, 27 set. 1805), também nascido no Rio de Janeiro, um pouco depois (1769) de Pinto de Azeredo e, como ele, graduado por Leiden (1797).
Em nenhum documento se fazia referência à graduação de Pinto de Azeredo no estrangeiro, fato que poderia ser de menor importância, considerando as questões corporativas com que se estava a debater no Exército, mas a verdade é que o Regulamento para os hospitais militares…, publicado em março de 1805, exigia o diploma da Universidade de Coimbra para os lugares dirigentes dos hospitais militares e dava preferência aos médicos com experiência castrense.24 24 Impunha, ainda, que os hospitais militares funcionassem como “escolas de medicina cirúrgica”, o que significa que as “Aulas de Anatomia e Cirurgia” instituídas nos hospitais das praças de Almeida (1773), Elvas (1783), Tavira (1786) e Chaves (1789) não tinham cumprido todos os objectivos planeados (Regulamento..., 1805).
A vitória dos militares seria consumada em março de 1806, com a nomeação de um novo físico-mor do Exército, o tal cargo cuja existência não se tinha justificado no ano anterior: tratava-se de João Manuel Nunes do Vale, formado em Coimbra, que tinha participado na campanha do Rossilhão, sendo, desde 1805, médico da Câmara Real. Acompanharia a família real na viagem para o Brasil, em novembro de 1807, acabando responsável pelo Hospital Militar do Rio de Janeiro em 1810 e também pela Escola Anatómica, Cirúrgica e Médica lá instituída dois anos antes. De certa forma, cumpria o que Pinto de Azeredo tinha desejado para si, ele que ficara em Lisboa, apesar de, por diversas vezes, ter manifestado o seu desejo de regressar ao Brasil e apesar de também pertencer, desde 1806, ao núcleo restrito dos médicos da corte.25 25 Maia (1858, p.629) refere que não acompanhou a família real por se encontrar gravemente doente, mas não foi encontrada informação que o comprove.
Não há indícios de que Pinto de Azeredo tivesse procurado novos cargos depois de 1805, nem o período seguinte foi propício para as autoridades médicas militares que permaneceram em Portugal. Depois de 1807, as carreiras construíram-se do outro lado do Atlântico, como mostrava o físico-mor do Exército, bem como José Correia Picanço e Manuel Vieira da Silva, que, com ele, seguiram na comitiva real. Manuel Vieira da Silva, por exemplo, viria a ficar com o cargo de físico-mor do reino, em 1808, e, logo depois, com o de primeiro provedor de saúde da Corte e Estado do Brasil. Com José Correia Picanço, que acumulava, desde janeiro de 1808, as funções de cirurgião-mor do reino e de deputado do Protomedicato com as de cirurgião-mor do Exército, dominavam as novas estruturas médicas em formação na América portuguesa. A consagração dos seus poderes ocorreria por diploma de 7 de fevereiro de 1808, ao atribuir-lhes os títulos de físico-mor e cirurgião-mor do Reino, Estados e Domínios Ultramarinos, uma decisão que antecipava o fim do Protomedicato (7 de janeiro de 1809). Doravante, os seus poderes seriam pessoais, sustentados nos regimentos de 1521 e de 1631, suporte da jurisdição privativa dos titulares dos ditos cargos.
Em maio de 1808, Manuel Vieira da Silva e José Correia Picanço estavam entre os servidores da Câmara Real que auferiam rendimentos mais elevados (Malerba, 2000MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência, 1808 a 1821. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p.236-237), praticamente equivalendo-se nas honrarias recebidas (entre outras, fidalgos cavaleiros da Casa Real; conselheiros do príncipe regente e, posteriormente, baronato [Alvaiázere, o primeiro; Goiana, o segundo]). Nesse trajeto, o percurso de José Correia Picanço (1745-1823) foi verdadeiramente excepcional e não terá deixado indiferente quem, por aquela altura, se movia no universo médico em Portugal, o que obviamente inclui Pinto de Azeredo.
Rupturas e continuidades no campo médico
Apanhado nas teias de dois conflitos centenários – entre a Universidade de Coimbra e a entidade (físico-mor/Protomedicato) que acreditava os graus de medicina obtidos no estrangeiro, bem como as disputas entre militares e civis a propósito da formação “médica”, num momento em que os militares lutavam para preservar a sua autonomia nessa área –, Pinto de Azeredo sucumbiu perante a inércia de um sistema que resistia à mudança, embora já estivesse a abrir brechas profundas. Prova-o a carreira de José Correia Picanço, também ele filho de um cirurgião, que ocupou todas as posições cimeiras da hierarquia “médica” sem ter frequentado uma universidade na condição de estudante.
Com efeito, para Correia Picanço apenas está documentada a aprendizagem de cirurgia, segundo carta passada pelo cirurgião-mor a 26 de março de 1765 (Carta…, 26 mar. 1765). A 3 de outubro de 1772, entrava na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, por ordem do marquês de Pombal, que o designou “demonstrador” (isto é, “subalterno … para ajudar nas lições práticas”) da cadeira de Anatomia, Operações Cirúrgicas e Arte Obstetrícia, ministrada pelo médico italiano Luís Cichi. Até esse momento, e além da dita carta de cirurgia, o seu currículo está envolvido numa nebulosa, onde pontuam referências a uma aprendizagem no Hospital de Todos os Santos, de que não há registos documentais, e formação em saúde pública com um médico de Paris que nunca existiu (Freitas, s.d.).26 26 Segundo a aturada investigação de Divaldo Gaspar de Freitas (que actualiza informações anteriores). Correia Picanço era o único na lista dos nomeados por Pombal não identificado como doutor.
Um fato fortuito, que Correia Picanço terá sabido aproveitar, poderá ter-lhe ditado o sentido da carreira profissional construída a partir daí: na transcrição da ordem de Pombal para a portaria régia, de 9 de outubro, que o nomeava para demonstrador (Nomeação…, 9 out. 1765),27 27 Documentos transcritos por Roger Lee de Jesus. o escrivão juntava ao seu nome a indicação de que entraria na universidade “com privilégios de Lente”, condição que, no documento de 3 de outubro, se reportava ao médico substituto António José Francisco, que imediatamente o antecedia (Privilégio…, 3 out. 1765). Só as circunstâncias políticas do momento terão permitido que um cirurgião, sem estudos universitários, fosse equiparado a lente sem qualquer questionamento por parte do restante corpo docente.
O que se passou a seguir é conhecido: o médico Luís Cichi foi suspenso em 1776, pedindo a demissão em 1778 (Suspensão…, 1776-1778), na sequência de problemas relacionados com o seu mau desempenho. Correia Picanço, que, pelos Estatutos de 1772, era obrigado a assistir às aulas lecionadas pelo responsável da cadeira, tomou o seu lugar como substituto, até 18 de janeiro de 1779, quando obteve nomeação definitiva (Nomeação…, 18 jan. 1779). Um mês depois, foi provido na posse da dita cadeira (propriedade registada em secretaria a 10 de abril) com a indicação de que deveria ser incorporado na Faculdade de Medicina com o grau de doutor (Propriedade..., 10 abr. 1779),28 28 O pagamento contínuo de ordenados exclui uma hipotética viagem a Montpellier, referenciada por alguns autores, onde se teria formado em medicina, durante esse período. prerrogativa concedida por Pombal aos professores por si nomeados, libertando-os da frequência do sexto ano do curso e da submissão aos Atos Grandes, requisitos obrigatórios à obtenção do doutoramento exigido a quem queria ser professor universitário. Correia Picanço passava diretamente da condição de cirurgião à de lente e como lente se manteve em Coimbra até junho de 1790, quando se jubilou e transitou para Lisboa, iniciando uma nova carreira ligada ao Protomedicato.
Correia Picanço está longe de ser o único a ilustrar a flexibilidade das autoridades relativamente aos Estatutos de 1772, na parte que impunha a graduação na Faculdade de Medicina para ocupar os cargos públicos no campo da saúde. Veja-se o caso de Teodoro Ferreira de Aguiar: com registos de matrículas em Filosofia na Universidade de Coimbra (1786 a 1788), não há indícios de que tivesse concluído o bacharelato de que o próprio se arroga, o mesmo acontecendo em relação ao reconhecimento do grau de medicina obtido em Leiden, a 12 de fevereiro de 1797, 11 dias depois de se ter matriculado. De resto, em momento algum surge identificado como médico nas fontes primárias, mas isso não foi impeditivo de um itinerário vitorioso: tendo solicitado a nomeação como cirurgião-mor do Hospital Militar do Rio de Janeiro e professor régio de cirurgia, nos finais de 1800, esteve envolvido num processo de duplicação de nomeações para o mesmo cargo de cirurgião-mor, que o Conselho Ultramarino desaconselhou, mantendo-o apenas como professor régio – a patente de cirurgião-mor e professor de cirurgia foi concedida a José Soares de Oliveira, em janeiro de 1802 (Nomeação…, 2 jan. 1802).29 29 Uma perspectiva diferente é apresentada por Silva (2013, p.95), mas não foi possível confrontar o documento mencionado pela autora. Acabou designado, a 8 de agosto de 1803, cirurgião-mor da Armada Real e, nove dias depois, membro da comissão de acompanhamento da campanha de vacinação em Lisboa (Nomeação…, 8 ago. 1803). Em 1805, surge na documentação como cirurgião-mor do Exército, e foi nessa categoria que apresentou o Regulamento para os hospitais militares..., um documento muito próximo do regimento elaborado por João Francisco de Oliveira em 1797, e travou as aspirações de Pinto de Azeredo ao lugar de físico-mor do Exército.
Esse desajuste entre as decisões dos governantes e o programa reformador inscrito nos Estatutos de 1772 não podia deixar de se sentir na universidade. A Faculdade de Medicina mostrava-se incapaz de suster o avanço do Protomedicato, assistindo a um agravamento dos conflitos a cada ano que passava. A relação entre os dois centros formadores de médicos sempre se pautara pela ambiguidade, com a contestação da universidade quando o rei preteria os seus lentes como físicos-mores do reino, mesmo sabendo que essa posição era concorrencial com o curso de medicina. Durante a vigência do Protomedicato, todos os deputados médicos eram graduados por Coimbra.
A particularidade daquela ligação nos últimos anos de Setecentos reside no fato de, naquele preciso momento, o Protomedicato, fortalecido pela ascensão à categoria de Tribunal Régio em 1799, apesar dos muitos problemas jurisdicionais vividos (Subtil, 2016SUBTIL, José. O Antigo Regime da saúde pública entre o reino e o Brasil. Revista Ultramares, n.8, v.15, p.39-66, 2016.; Abreu, L., 2013, p.353-362), estar a desenvolver estratégias concretas para se sobrepor à universidade na superintendência dos diversos ramos da saúde pública. Sem sucesso, lembrava a Academia que lhe cabia não só formar os recursos em saúde, “mas também no que pertence à Polícia Médica, tanto pelo que respeita aos muitos diferentes ramos de que ela se compõem, e de que pende a conservação da saúde pública ... de tudo quanto respeita a prática e exercício da arte de curar neste reino, e seus domínios” (Representação..., s.d.). O Plano de exames dos médicos e cirurgiões estrangeiros ou de nacionais droguistas, químicos e destiladores (Silva, 1828SILVA, António Delgado da. Colecção da legislação portuguesa: desde a última compilação das Ordenações, v.4. Lisboa: Tipografia Maigrense, 1828., p.193-202), por exemplo, apesar de não abranger os diplomados na Faculdade de Medicina, como inicialmente intentara, previa a transformação do Hospital de S. José num centro para formar e examinar médicos e cirurgiões, tutelado pelo Protomedicato, contrariando o espírito da reforma pombalina. Enquanto delineava esses planos, o Protomedicato ressuscitava as licenças para “curar de medicina” (“médicos a termo”), diplomas que tinham sido praticamente suspensos em meados do século XVII, para serem retomados em 1750 e novamente interrompidos em 1772: entre 1797 e 1807, o Protomedicato licenciou 354 “médicos a termo”, a uma média de 32 por ano.30 30 Situação diferente ocorreu em relação às cartas de medicina, tendo sido apenas atribuídas nove entre 1798 e 1807.
A liderar essa mudança estava Correia Picanço, que não era médico mas tinha sido professor da Faculdade de Medicina, e um seu colega, jubilado em abril de 1795 (Representação…, s.d.), Francisco Tavares, que assina como presidente do Protomedicato desde que foi nomeado como físico-mor do reino, a 6 de maio de 1799 (Nomeação…, 6 maio 1799), considerado um dos mais profícuos professores da universidade, embora tivesse publicado à sua revelia a Farmacopeia geral para o reino e domínios de Portugal, como explicado noutro lado (Abreu, 2013ABREU, Jean Luiz Neves. O saber médico e as experiências coloniais nos ensaios sobre algumas enfermidades d’Angola. In: Oliveira, António Braz de Oliveira et al. (org.). Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola. Lisboa: Colibri, 2013. p.188-211., p.349-353; Pita, 1996PITA, João Rui. Farmácia, medicina e saúde pública em Portugal, 1772-1836. Coimbra: Minerva, 1996., p.531-544). A sua nomeação como físico-mor do reino, a par da de José Correia Picanço, como cirurgião-mor do reino, a 6 de março de 1799, era uma profunda afronta à universidade reformada (Nomeação…, 6 mar. 1799).
As contingências políticas do início de Oitocentos acabariam por interromper essas dinâmicas, porém elas já tinham marcado indelevelmente a reforma da Faculdade de Medicina. Já a formação em saúde feita em contexto militar continuava com plena autonomia, apesar dos esforços do marechal Beresford, que, pela Junta de Exames para Cirurgiões Militares, criada por Aviso de 7 de fevereiro de 1810, tentou expurgar o Exército português de cirurgiões-mores e cirurgiões ajudantes sem as devidas habilitações. Um dos responsáveis pela realização dos exames era bem conhecido no meio: Francisco José de Paula, o principal defensor da “excelência” profissional dos cirurgiões que trabalhavam no Hospital Militar de Xabregas, em 1803, quando o físico-mor os quis despedir por incompetência. Gravemente doente a 23 de janeiro de 1810, quando ditou o testamento (morreu a 15 de abril), Pinto de Azeredo pouco terá acompanhado essas diligências de Beresford.
Enquanto isso, no Brasil, por diploma régio de 18 de fevereiro de 1808, José Correia Picanço fundava a Escola de Cirurgia no Hospital Real Militar de Salvador (com ensino de anatomia e obstetrícia), escola replicada, a 5 de novembro, no Hospital Militar do Rio de Janeiro, ambas precursoras das Escolas Médicas (Bahia e Rio de Janeiro), fundadas em 1832. Com algum atraso, Portugal reproduziria esse exemplo: por alvará de 25 de junho de 1825, eram instituídas as Régias Escolas de Cirurgia de Lisboa e do Porto, transformadas em Escolas Médico-cirúrgicas, em 1836, assim ditando o fim do monopólio da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Na origem das primeiras, e seu docente, esteve o anterior cirurgião-mor do Exército, Teodoro Ferreira de Aguiar.
Considerações finais
Num trabalho anterior sobre a institucionalização do saber médico no Brasil colonial, foi sublinhada a necessidade de estudar o impacto dos cirurgiões, sobretudo os militares, na construção social e política do território. Neste texto, referimos três filhos daqueles cirurgiões, que partilharam o mesmo tempo e foram, todos eles, casos de mobilidade social ascendente. Dos três, diferenciámos José Pinto de Azeredo e, em menor escala, José Correia Picanço. Em relação a Pinto de Azeredo, um dos primeiros médicos modernos portugueses, nas palavras de Manuel Silvério Marques (2013)MARQUES, Manuel Silvério. Malhas que o corpo tece: excurso da medicina de José Pinto de Azeredo. In: Oliveira, António Braz de; Marques, Manuel Silvério (ed.). Ensaio sobre algumas enfermidades de Angola. Lisboa: Colibri, 2013. p.213-251., mostrámos como o seu percurso profissional foi condicionado pelos constrangimentos que ainda recaíam sobre o universo médico português nos finais do Antigo Regime, não obstante os ventos reformistas que sopravam: apesar das funções que desempenhou e da modernidade do seu saber, científico e experimental, expressa na obra produzida, Pinto de Azeredo não logrou fazer carreira no Exército, que cerrou fileiras e o impediu de progredir. Com Correia Picanço, evidenciámos um trajeto que beneficiou das mudanças em curso, mesmo quando resvalavam em sentidos opostos, e como foi capaz de se alcandorar até ao topo dos lugares de poder nas questões ligadas à saúde e aos seus praticantes: em Coimbra, foi professor da Faculdade de Medicina sem ter frequentado uma universidade (pelo menos, provadamente); em Lisboa, por meio do Protomedicato, procurou tirar protagonismo à universidade; no Brasil, estruturou o campo médico, a partir das escolas de cirurgia da Bahia e do Rio de Janeiro.
Ambos os casos, o de Pinto de Azeredo e o de Correia Picanço, evidenciam a importância dos indivíduos e, por conseguinte, dos estudos prosopográficos para melhor entender o curso da história, um trabalho que aqui também não foi feito: apenas se revelaram algumas dinâmicas que podem ajudar a perceber, por exemplo, a persistência de quadros estruturais centenários, quer ao nível do enquadramento jurídico, quer das representações sociais e corporativas, que comprometeram, ou mesmo inviabilizaram, o sucesso da reforma da Universidade de Coimbra na área da saúde pública. Importaria conhecer, por exemplo, as reações críticas à postura científica de Pinto de Azeredo e os possíveis anticorpos criados, eventualmente agravando as consequências de duas circunstâncias já de si negativas: o fato de ser um estrangeirado e de não ser aceite pelo Exército. Igualmente relevante seria saber até que ponto o tempo dedicado à escrita não o terá retirado dos círculos de sociabilidade onde se adquiria o capital social necessário à construção de carreiras de sucesso. Dito de outra forma, aspectos estritamente individuais podem ter comprometido a carreira de Pinto de Azeredo e permitido a outros terem alcançado o que ele não alcançou.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à professora doutora Margarida Sobral Neto a leitura crítica do manuscrito e os comentários e sugestões que fez. Este texto foi suscitado pela participação no projeto de investigação “José Pinto de Azeredo, doutrina e clínica. Textos e contextos”, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, Portugal, MP/P-125742 (2013-2014), coordenado por Manuel Silvério Marques (Centro de Filosofia/Universidade Nova de Lisboa).
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NOTAS
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1
Os termos dessa carta têm gerado dúvidas quanto ao local da realização do exame: quando o Protomedicato afirma que “foi examinado na presença dos meritissimos deputados ... os quais o examinarão na dita faculdade de medicina”, a palavra “faculdade” significa a capacidade/competência em medicina, e não que os deputados o tivessem examinado na Faculdade de Medicina, o que seria incompreensível por causa da natureza distinta das duas entidades.
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2
O terceiro foi António Caetano de Freitas, formado na Universidade de Aberdeen.
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3
Confirma-se a informação de Pinto et al. (2005)PINTO, Manuel Serrano et al. O médico brasileiro José Pinto de Azeredo (1766?-1810) e o exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.12, n.3, p.617-673, 2005., e não a de Carvalho (s.d.) – um autor bastante problemático quanto à credibilidade das fontes que utiliza –, que apresenta como progenitor Francisco Ferreira de Sousa.
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4
Apesar de a situação ser relativamente generalizada na Europa, há, contudo, testemunhos de valorização dos cirurgiões, como ocorria em Groningen, conforme demonstrado por Frank Huisman(1996)HUISMAN, Frank. Civic roles and academic definitions: the changing relationship between surgeons and urban government in Groningen, 1550-1800. In: Manland, Hilary; Pelling, Margaret (ed.). The task of healing: medicine, religion and gender in England and the Netherlands, 1450-1800. Rotterdam: Erasmus, 1996. p.69-100..
-
5
Essa informação, bem como a de que terá sido riscado, sem que se saiba a razão, da Academia Real das Ciências, em maio de 1798, decorre da análise dos Almanaques da Academia das Ciências de Lisboa, mencionados pelos seus vários biógrafos.
-
6
Filipe I, por diploma de 23 de dezembro de 1585, acrescentou vinte bolsas para boticários, a formar nas boticas de Coimbra, sob a tutela da Faculdade de Medicina.
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7
Entre 1772 e 1781, apenas foi atribuída uma carta de medicina e duas licenças “para curar de medicina” (Projeto “José Pinto de Azeredo”, PTDC/HIS-HIS/113416/2009, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa).
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8
O fato de o último registo assinado por Cristóvão Vaz Carapinho, físico-mor nomeado em 1763, datar de 30 de julho de 1770, sugere que poderá ter havido a decisão de não avançar com nova nomeação para o cargo, uma vez que já estariam em preparação novos estatutos para a universidade. O último registo do cirurgião-mor, António Soares Brandão, nomeado em 1754 e reconfirmado no cargo em 1779, foi assinado em 1780 (Projeto “José Pinto de Azeredo”, PTDC/HIS-HIS/113416/2009, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa).
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9
À ausência da prática hospitalar em Portugal, necessária para a conclusão do curso de medicina, a que se refere o documento, contrapõem os irmãos Pinto de Azeredo a indicação de que haviam praticado nos hospitais de Londres e Edimburgo, informação que não foi possível confirmar.
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10
Em 19 de setembro de 1798, Pina Manique queixa-se a dom Rodrigo de Sousa Coutinho de que não encontra “quem voluntariamente se queira sujeitar a este emprego” (Consulta..., 19 set. 1798).
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11
Até ao início de Oitocentos, Angola recebeu sobretudo cirurgiões-mores, os curadores mais indicados, de acordo com o presidente do Conselho Ultramarino, em 1654: as “conquistas” precisavam de homens habituados “a cortar pernas e braços e com muita particular ciência nas feridas de guerra” (Pina, 1943PINA, Luís de. História da medicina imperial portuguesa (Angola). Boletim Geral das Colónias, v.19, n.211, p.18-72, 1943., p.58-59).
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Como foi o caso de Manuel Dias Neto: tendo começado como cirurgião de navio e dali passado para o Exército, foi nomeado, a seu pedido, cirurgião-mor de Angola em 1750 (Nomeação..., s.d.).
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Também terá limitado as aspirações de Francisco Tavares de Ataíde, treinado em cirurgia no Hospital de São Paulo de Assunção e lá exercendo como “médico a termo”, que nos anos de 1660 ali quis acumular as funções de físico-mor com as de cirurgião-mor.
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Catela de Lemos começou a solicitar o seu regresso ao reino ou a deslocação à Bahia para tratar da sua saúde (“que a terra arruinara”) em 1734, mas em abril de 1755 ainda se encontrava em Luanda (Solicitação..., s.d.).
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Não era, contudo, uma opinião unânime: em 1732, o Conselho Ultramarino negou a pretensão do boticário António Inocêncio Pita ao lugar de cirurgião-mor de Angola por “os naturais da terra serem melhores cirurgiões que os que vão de fora pela experiência que têm adquirido da forma por que se deve curar naquele clima” (Carta..., 12 ago. 1732).
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Desconhece-se se a decisão de criar uma aula de cirurgia em 1796 pretendeu captar mais alunos para um ensino mais prático.
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Para além das obras já referidas no texto, realça-se, do mesmo autor, Coleção de observações clínicas (Azeredo, 2020AZEREDO, José Pinto de. Coleção de observações clínicas. Ed. de Junia Ferreira Furtado, Jean L. Neves Abreu, Manuel Silvério Marques. Lisboa: Colibri, 2020.). Para uma listagem completa da produção científica de José Pinto de Azeredo, veja-se o texto “O médico brasileiro José Pinto de Azeredo (1766?-1810) e o exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro” (Pinto et al., 2005PINTO, Manuel Serrano et al. O médico brasileiro José Pinto de Azeredo (1766?-1810) e o exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.12, n.3, p.617-673, 2005.).
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O documento não está datado, mas Joaquim Barradas (2014)BARRADAS, Joaquim. Um relatório da Real Junta.In: Azeredo, José Pinto de. Isagoge patológica do corpo humano. Ed. de António Braz de Oliveira e Manuel Silvério Marques. Lisboa: Colibri, 2014. p.489-528., que o transcreveu (bem como os restantes documentos desse arquivo relativos a esse médico (Azeredo, 2014a, p.489-528), sugere 1803. Sem certeza, apontamos para 1802, caso contrário teria esperado quase dois anos para contestar a desconsideração a que acreditava ter sido sujeito.
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O Protomedicato nasceu com sete deputados; passou para nove em 1785, foi reduzido a três em 1798 e passou para cinco em 1803 (corrige-se a informação apresentada no livro de Abreu, L., 2013, p.361, onde é estudada essa instituição).
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20
Francisco de Paula era, desde 1795, primeiro cirurgião da Armada Real com graduação de tenente.
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Os militares afirmavam que “saber Cirurgia não era o mesmo que praticá-la. Que tinha a Cirurgia muitas relações com a Medicina, porém que a prática de cada uma delas era muito vasta e só por si podia mui bem ocupar a vida de um homem” (Alegação..., 24 nov. 1804).
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Documento transcrito por Isabel Abecasis (2014ABECASIS, Isabel. Sobre a documentação levantada no Arquivo Histórico Ultramarino relativa a José Pinto de Azeredo. In: Azeredo, José Pinto de. Isagoge patológica do corpo humano. Ed. António Braz de Oliveira e Manuel Silvério Marques. Lisboa: Colibri, 2014. p.477-487., p.487).
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Obras maioritariamente de medicina e estrangeiras, onde constam as últimas novidades editoriais, conforme se pode ver no inventário de bens que ficaram por sua morte. Documento transcrito por Maria Teresa Monteverde Plantier Saraiva (2014)SARAIVA, Maria Teresa Monteverde Plantier. José Pinto de Azeredo na Torre do Tombo: inventário dos bens e outros documentos. In: Azeredo, José Pinto de. Isagoge patológica do corpo humano. Ed. de António Braz de Oliveira e Manuel Silvério Marques. Lisboa: Colibri, 2014. p.529-633..
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24
Impunha, ainda, que os hospitais militares funcionassem como “escolas de medicina cirúrgica”, o que significa que as “Aulas de Anatomia e Cirurgia” instituídas nos hospitais das praças de Almeida (1773), Elvas (1783), Tavira (1786) e Chaves (1789) não tinham cumprido todos os objectivos planeados (Regulamento..., 1805).
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Maia (1858MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Elogio histórico do Dr. José Pinto de Azeredo. Revista Trimestral de História e Geografia ou Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v.2, supl. ao n.8 (4º trimestre de 1840), p.629-635, 1858., p.629) refere que não acompanhou a família real por se encontrar gravemente doente, mas não foi encontrada informação que o comprove.
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26
Segundo a aturada investigação de Divaldo Gaspar de Freitas (que actualiza informações anteriores).
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27
Documentos transcritos por Roger Lee de Jesus.
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O pagamento contínuo de ordenados exclui uma hipotética viagem a Montpellier, referenciada por alguns autores, onde se teria formado em medicina, durante esse período.
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Uma perspectiva diferente é apresentada por Silva (2013SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura letrada e cultura oral no Rio de Janeiro dos vice-reis. São Paulo: Editora Unesp, 2013., p.95), mas não foi possível confrontar o documento mencionado pela autora.
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30
Situação diferente ocorreu em relação às cartas de medicina, tendo sido apenas atribuídas nove entre 1798 e 1807.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Dez 2021 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 2021
Histórico
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Recebido
3 Fev 2020 -
Aceito
3 Jun 2020