Open-access Um novo clássico da história do Brasil, com humor, ironia e sentimento

A new classic of the history of Brazil, with humor, irony, and feeling

Um novo clássico da história do Brasil, com humor, ironia e sentimento

A new classic of the history of Brazil, with humor, irony, and feeling

Isabel Lustosa

Historiadora

Fundação Casa de Rui Barbosa

Rua São Clemente, 134

22260-000 Rio de Janeiro — RJ Brasil

Em animada polêmica que movimentou o meio acadêmico em 1997, o historiador Boris Fausto admirava-se de que sua colega, Maria Sylvia de Carvalho Franco, autora do (arrisquemo-nos, vá lá) clássico Homens livres na sociedade escravocrata, tenha se aborrecido tanto com a inclusão de seu livro entre aqueles que Fausto achava merecerem ser chamados, justamente, de clássicos. Espantado com a reação da colega, Fausto escreveu: "Se perguntarmos a vinte especialistas na área de ciências humanas o que é um clássico, estou seguro de que a resposta será mais ou menos a seguinte: um livro muito relevante, marco de referência obrigatória para os trabalhos subseqüentes e que já realizou um percurso no tempo maior ou menor, conforme o caso, permitindo que a condição de clássico se afirmasse." E acrescentava alguns exemplos de livros clássicos: Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr., Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre. A lista encerrava-se com a dupla A construção da ordem e Teatro de sombras, de José Murilo de Carvalho.

* Este artigo foi publicado originalmente em História, Ciências, Saúde — Manguinhos (vol. II[2], jul.-out. 1995, pp. 68-84).

(N. do E.)

Os que acompanham a trajetória de José Murilo de Carvalho já conhecem a maior parte dos artigos que estão reunidos em Pontos e bordados. Muito justamente, boa parte deles pode fazer companhia aos dois livros citados por Boris Fausto: são obras de leitura e referência obrigatória nos temas de que tratam.

José Murilo tirou a inspiração para o título do primeiro dos artigos: aquele que trata de João Cândido e da surpreendente revelação que o acaso proporcionou ao historiador de que o valente marinheiro manejava com igual maestria tanto a agulha e a linha como o leme de seu navio. O título também é oportuno ao sugerir uma divisão entre os artigos mais densos, mais trabalhados, os bordados, e os outros, os pontos, quase todos mais curtos, escritos para serem publicados na grande imprensa. O fato de um historiador sisudo como José Murilo ter escolhido referência tão poética para dar título ao livro, onde reúne quase tudo que tem de mais significativo em sua obra esparsa, diz muito da maturidade estilística que alcançou, ao lado de sua inegável consagração na história do pensamento social brasileiro.

O Almirante Negro emerge deste ensaio iluminado por luz nova: seus bordados, segundo José Murilo, foram a autoterapia instintiva para fugir dos fantasmas que o perseguiriam depois daquele trágico Natal de 1912, em que 18 de seus companheiros morreram envenenados pelo pó da cal fresca com que tinha sido lavado o chão da cela que dividiam.

Murilo contrasta a revolta do negro João Cândido, descendente de escravos, que sonhava com "uma Armada de cidadãos e não uma fazenda de escravos que só têm dos seus senhores o direito de serem chicoteados" com a de outro marinheiro seu contemporâneo, Ferreirinha. Este, relembrando as condições da marinha no começo deste século, disse: "Chicotadas e lambadas que levei quebraram o meu gênio e fizeram com que eu entrasse na compreensão do que é ser cidadão brasileiro." Declaração que, aliás, será glosada por José Murilo em outro artigo na segunda parte do livro: ‘Cidadania a porrete’. Tão forte fora a marca da escravidão, ressalta o historiador, que podia levar alguém a ver a punição física como pedagogia cívica.

Em dois dos artigos de maior fôlego, José Murilo contempla o tema da escravidão. Em ‘Escravidão e razão nacional’ ele contrasta a mentalidade expressa através dos discursos e das políticas implementadas pelas colonizações portuguesa e anglo-saxônica. É realmente chocante o contraste entre a atitude religiosa dos quackers que, desde 1737, declaravam que todos os proprietários de escravos eram apóstatas com o discurso que a Igreja Católica produzia para justificar a escravidão no Brasil: desde o padre Antônio Vieira (1680), esta aconselhava aos escravos a obediência. O jesuíta de origem italiana, Jorge Benci, em 1705, além de manter a mesma recomendação para o escravo, aconselhava ao senhor agir como o pai de uma grande família cristã da qual os escravos eram parte. Já o padre Manuel Ribeiro da Rocha, autor de obra que ostentava o impressionante título O etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado (1758), ia mais além, recomendando solução intermediária para resolver gradativamente o problema: a compra de escravos seria proibida. O que se compraria seria o direito de penhor e redenção, ou seja, o direito de manter o escravo até que ele repusesse o custo de seu resgate.

Porém o discurso mais impressionante é o do célebre bispo José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, criador do Seminário de Olinda. Este homem da Igreja foi originalmente senhor de engenho em Campos e teve notável trajetória intelectual e política em seu tempo. D. José, em texto publicado em 1798, e republicado em 1808, combate a versão iluminista da idéia de direito natural. Para ele o pacto social não existe: o homem nasce em sociedade e dela derivam seus direitos. Todos os meios necessários à preservação da sociedade são concedidos pela natureza e o trabalho escravo se torna uma necessidade social sempre que há abundância de terras e escassez de população. Seu argumento é, na visão de José Murilo, hobbesiano. Mas d. José não aceita o individualismo que aparece na ficção do estado de natureza desenvolvido por Hobbes. O que se vê no pensamento do bispo é a total primazia da sociedade, do coletivo, do todo, sobre o homem, sobre o indivíduo, sobre a parte. Ao mesmo tempo, não há preocupação com os aspectos morais ou espirituais da questão. Em sua obra, mais do que na de seus antecessores, a razão cristã desaparece, para dar lugar exclusivamente à razão colonial.

A partir de José Bonifácio é que emerge, pela primeira vez, um discurso organizado contra o tráfico e a escravidão (1823). A base de seu argumento é a razão nacional, ou seja, a idéia de que a escravidão impedia a formação nacional. Da perspectiva de José Bonifácio, a luta pelo fim da escravidão era uma luta pelo triunfo da razão, pelo reconhecimento dos verdadeiros interesses do homem. Daí em diante, segundo José Murilo, até a década de 1860, não foram publicados textos abolicionistas importantes. A cortina de silêncio só foi quebrada em 1867 com a menção do problema na fala do trono: a abolição, segundo a vontade do imperador, seria questão de forma e oportunidade.

Tão tímida intenção seria, no entanto, combatida por José de Alencar, que contrastava a situação do proletário europeu com a do escravo brasileiro, afirmando que a daquele era bem pior. Em defesa da abolição, Joaquim Nabuco, em 1883, esgrimia quase os mesmos argumentos que José Bonifácio na independência: a seu ver, a escravidão era obstáculo intransponível no caminho da construção da nação brasileira. A intuição mais profunda de Nabuco, segundo José Murilo, foi a de perceber a natureza da escravidão brasileira comparada à norte-americana. Entre nós todos podiam ter escravos, até mesmo o próprio escravo, por isso os valores da escravidão invadiam todo os domínios, todas as classes. "O senhor e o escravo conviviam dentro do cidadão, gerando mestiços políticos, assim como a relação das raças produzia mestiços étnicos."

O tema será mais amplamente desenvolvido no artigo seguinte: ‘As batalhas da abolição’, onde o autor contrasta, inserindo dados quantitativos, as condições da escravidão e do movimento abolicionista no Brasil e na América do Norte. Para José Murilo, o fim da escravidão foi essencialmente um fenômeno político que dependeu da ação de forças políticas, seja de dentro seja de fora do sistema. Nos Estados Unidos houve uma sangrenta guerra civil; em Cuba houve revoltas e ação da metrópole; no Brasil, nas várias fases do processo abolicionista, houve pressão externa, ação do governo e pressão popular, incluindo aí pressão escrava.

Mas as semelhanças param aí. Na América do Norte, o tráfico foi proibido a partir de 1808; no Brasil, apenas em 1850. Por isso, na segunda metade do século XIX, a população escrava do Sul dos Estados Unidos, onde a escravidão, por razões culturais e políticas que o autor detalha, foi mais renitente, era quase totalmente crioula, ao passo que o Brasil recebeu grandes contingentes africanos. José Murilo ressalta a importância crucial que teve a divisão dos Estados Unidos em uma região livre e outra região escrava: no Sul, ficava a sociedade solidamente escravista; no Norte, uma sociedade onde predominavam os valores de liberdade que fundamentaram a criação da sociedade norte-americana. No Norte, foi permitido aos negros articularem e desenvolverem campanhas abolicionistas. O Norte dos Estados Unidos era um grande quilombo para onde fugiam milhares de escravos sulistas. Valendo-se de um conceito que foi desenvolvido pelo historiador Eduardo Silva, Murilo diz: o escravo do Sul, que fugia para o Norte, fugia para fora do sistema escravista, fugia para uma sociedade dominada por outros valores. No Brasil, no entanto, a sociedade inteira era escravista. O escravo quando escapava apenas subia um degrau na extensa hierarquia social.

Esta situação, como comprova o desenvolvimento do tema ‘Entre a liberdade dos antigos e a dos modernos’, não se alterará com a abolição nem com a República. O liberalismo associado a esta muito convirá aos proprietários rurais paulistas e mineiros. A definição individualista do pacto social embutida na idéia de liberdade dos modernos (o modelo norte-americano de Hamilton, em contraste com o modelo revolucionário francês de Rousseau) evitava o apelo ao elemento popular e definia o interesse público como a soma de interesses privados. Nas circunstâncias brasileiras do pós-abolição, caracterizadas pela enorme desigualdade social e pela absoluta concentração de poder, o liberalismo adquiria um sentido de consagração da desigualdade, sanção da lei do mais forte. Em contraste com os Estados Unidos da América, na jovem república brasileira, como inspiradamente lembra José Murilo, o que predominou foi o espírito do capitalismo, sem a ética protestante.

O federalismo (tema contemplado em ‘Federalismo e centralização no Império brasileiro: história e argumento’) também convinha aos republicanos paulistas. Ele fora o grande fantasma que assombrara o Império. O medo da fragmentação do país adiara os sonhos federativos dos republicanos na independência, no final da Regência, e mergulhara-o num sono profundo até o final do Império. Com a República, ele volta impulsionado pelo ardente desejo dos estados do Sudeste rico de se livrarem do compromisso de sustentar seus vizinhos pobres.

É difícil dar conta, no curto espaço de uma resenha, da densidade de conteúdo e análise dos tantos artigos que compõem esta obra de José Murilo. Selecionei, aleatoriamente, alguns dos Bordados, lamentando ter que deixar de comentar outros tantos igualmente importantes, como os que tratam do positivismo no Brasil, tema sobre o qual o autor tem se debruçado de maneira recorrente; a leitura original e corajosa que faz da obra de um autor maldito, Oliveira Viana, ou da trajetória de José do Patrocínio e do músico Gotschalk. Alerto o leitor, no entanto, que muito do que vem tratado de forma densa nos Bordados reaparece nos Pontos de uma perspectiva às vezes até mais aguda, por conta da própria necessidade de síntese a que o artigo de jornal obriga. Estão ali também, é claro, a vibração natural do intelectual cidadão diante do fato, da realidade e da história de seu país, e em diálogo com seus contemporâneos, o humor e a ironia e, até mesmo, o sentimento que, quase sempre, têm que ser expurgados da obra acadêmica. De modo que, para os que preferem valorizar os aspectos humanos dos personagens históricos, para os que respeitam mais os heróis quanto mais humanos parecem, Pontos e bordados revela um José Murilo, tal como seu herói do primeiro capítulo, mais humanizado. Por tudo isso, ele deve, com certeza, se juntar aos outros livros do autor na estante das obras de referência obrigatória.

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    Liberdade e leveza caracterizam o artigo de José Murilo sobre os bordados do almirante negro João Cândido, o herói da revolta da Chibata de 1910.
    Bordados que encontrou por acaso perdidos num museu do interior de Minas Gerais. Desse raro encontro é que o autor vai puxando os fios da meada e, aos poucos, nos colocando em contato com a trajetória de João Cândido, com a realidade da vida de marinheiro na virada do século e com o tema tabu do homossexualismo na marinha. No texto elegante, José Murilo permite-se metáforas onde relaciona a reconhecida maestria do marinheiro com a arte de seus bordados: "João Cândido, bordava as águas da baía com o lento e majestoso evoluir dos encouraçados."
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Out 1999
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