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A 'negritude' está para a manifestação cultural, assim como a 'etnicidade' está para a participação política?

Is "blackness" to "cultural expression" as "ethnicity" is to "political participation"?

RESENHAS

A 'negritude' está para a manifestação cultural, assim como a 'etnicidade' está para a participação política?

Is "blackness" to "cultural expression" as "ethnicity" is to "political participation"?

Fátima Cecchetto

Pesquisadora do Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde Departamento de Biologia do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz Av. Brasil, 4365 Manguinhos 21040-900 Rio de Janeiro – RJ – Brasil face@ioc.fiocruz.br

Negritude sem etnicidade, do antropólogo italiano Lívio Sansone, reúne resultados de pesquisas sobre o tema das relações raciais no Brasil e na Holanda. Autor de trabalhos sobre 'raça', juventude negra e música, Sansone apresenta uma seleção de ensaios e artigos que abordam o impacto local de transformações globais sobre as diferentes construções da etnicidade em três cidades: Rio de Janeiro, Salvador e Amsterdã, onde esteve nas décadas de 1980 e 1990.

O percurso dos argumentos segue uma espécie de mapa afetivo e teórico cujos pontos cardeais são momentos da trajetória pessoal e profissional desse pesquisador que viveu na Holanda e mora e trabalha no Brasil há vinte anos. O autor mescla teoria e observação direta na maior parte dos capítulos, produzindo um texto acadêmico competente e de interessante leitura.

Na introdução, o primeiro eixo de análise focaliza a circulação transatlântica dos discursos e práticas étnico-raciais. Aliás, é através da noção de Mundo Atlântico Negro – como tem sido heuristicamente chamada por Paul Gilroy1 1 Mundo Atlântico Negro, segundo Paul Gilroy, autor do livro Black Atlantic (1993), refere-se às estruturas transnacionais que se desenvolveram na modernidade e deram origem a um sistema de comunicações globais marcadas por fluxos e trocas culturais. essa área que abrange parte da Europa, as Américas, a África e o Caribe – que Sansone dialoga a respeito da criação das chamadas identidades negras no Brasil (p. 13). Sua tese central, a de 'Negritude' e 'Etnicidade' como conceitos e práticas dissociáveis, se organiza a partir de temas como globalização, pós-modernidade, multiculturalismo, mestiçagem e fragmentação. Algumas dessas noções se mostram esclarecedoras dos processos sociais que, em sua opinião, limitam a mobilização no Brasil e em outros lugares em torno da 'raça' e da etnicidade. A novidade do livro está na ênfase para o desenvolvimento de uma antropologia dos fluxos culturais transnacionais dada a importância que os grandes centros urbanos têm para as novas etnicidades negras.

O desenvolvimento das juvetnicidades, termo utilizado para descrever a mistura de fatores étnicos e geracionais na constituição das subculturas juvenis, poderia ser apontado como um outro eixo de análise. Nesse sentido, seguindo as indicações de Nestor Garcia Canclini quanto às repercussões da globalização cultural, o autor adota uma visão alternativa à tese da homogeneização, propondo o conceito de 'heterogeneização global', para pensar a criação das identidades nesses novos tempos. O tema da terminologia racial perpassará todos os capítulos, pavimentando o caminho trilhado no exercício comparativo entre as diversas culturas negras contemporâneas e os padrões locais de relações raciais.

Em relação ao conceito-chave de etnicidade, no entanto, Sansone não aborda, logo de início, os dilemas que envolvem o uso do termo, popularizado nas Ciências Sociais no entre-guerras e, muitas vezes, paradoxalmente reificado em contraste com a noção de raça (Stolcke, 1991). O autor retornará ao tema somente no capítulo final, empreendendo uma instigante discussão sobre as tensões contemporâneas entre identidade cultural, raça e comunidade negra com teóricos da etnicidade como Michael Banton e Albert Cohen. Desse lugar, posiciona-se contra qualquer obsessão com pureza racial ou absolutismos étnicos, embora positive a noção de identidade negra. Pode-se dizer que essa postura reflete as tensões entre particularismo e universalismo que atravessam o campo das relações raciais.

O primeiro capítulo oferece uma visão geral da posição sócio-econômica dos denominados afro-brasileiros. Ressalta-se, aqui, a preocupação do autor em demonstrar as principais estratégias da população negra baiana para a participação no desenvolvimento em diferentes períodos da sociedade brasileira. Como seu campo de pesquisa centrou-se em duas áreas proletárias de Salvador – Camaçari e Caminho da Areia –, o autor verificou que muitos canais de mobilidade importantes para a classe operária deixaram de ser valorizados pelas gerações novas de negros de classe baixa. Isto porque nos anos 90, com o agravamento do desemprego estrutural, as atividades de lazer e o consumo de estilos ganharam cada vez mais importância na definição das identidades.

Sempre no sentido de avaliar as repercussões locais de processos globais, Sansone anota a influência da cultura juvenil globalizada como um outro fio que compõe a teia do entendimento do que se passa com as novas etnicidades negras. Assim, é interessante constatar tanto a formação de um circuito comunicativo de moda e de música que ultrapassa as fronteiras do Estado-nação, permitindo as trocas culturais entre as populações negras dispersas, quanto os limites impostos aos jovens das camadas populares para o acesso a produtos industrializados e o consumo de comportamentos globalizados.

Idéia ainda mais precisa sobre o impacto desse conjunto de fatores para a percepção da 'raça' em Salvador é o crescente uso do termo 'Negro', que perdeu a conotação ofensiva entre os jovens. Para caracterização desse novo cenário, o pesquisador lança mão da definição de 'áreas leves', 'áreas pesadas' e 'intermediárias' nas relações raciais, espaços nos quais a cor pode ser um fator de prestígio ou empecilho (p. 78-80). Outra marca desse processo seria a menor demonstração de reverência dos jovens negros pobres pelos 'brancos e/ou ricos', configurando uma etiqueta racial diversa da dos pais, decorrente a vivência da negritude como um valor. Entra em cena, nesse particular, a manipulação dos símbolos étnicos tradicionais, como um movimento necessário para ser 'moderno'.

As transformações nos usos dos símbolos nacionais e internacionais, sobretudo os que remetem à África na cultura baiana, é o tema do capítulo dois. A análise do circuito do Atlântico negro é particularmente importante para se compreender os contornos que a identidade negra assumiu em termos de estilo de vida. No esquema interpretativo do autor, o consumo é um poderoso marcador étnico (p. 103). Sem a conotação genética, o termo é aqui utilizado para demonstrar o peso do processo de mercantilização da cultura negra na definição da cidadania. Desse modo, na configuração da nova cultura negra baiana Sansone aponta para uma combinação peculiar entre a manipulação de um poderoso banco de símbolos étnicos e religiosos associados à pureza e à autenticidade e o intercâmbio material e simbólico com as culturas negras anglófonas. Paradoxalmente, como a pesquisa identificou, ao mesmo tempo em que a globalização possibilitou certas formas de negritude estetizada, fez crescer o sentimento de exclusão entre os jovens.

O capítulo três complementa o texto anterior no que se refere ao crescimento das ligações internacionais da chamada cultura negra. Apoiando-se em estudos que analisam os efeitos locais da globalização econômica, Sansone mostra a convergência de fatores estruturais no âmbito da população negra de ambos os lados do Atlântico, como o desemprego de longa duração, o crescimento de novas formas de criminalidade e, em menor escala, o lazer e os estereótipos sexuais associados ao corpo negro (p. 143). Todavia, criticando as posturas que antevêem o fim das criações locais, o pesquisador nos lembra que os personagens dessas redes internacionais têm a oportunidade de redefinir as diferenças, através da celebração de estilos. Aqui se esboça mais fortemente o questionamento acerca da etno-política dos negros brasileiros, fio condutor dos ensaios do livro. Diz o autor: "A nova identidade baiana negra enfatiza alguns dos dilemas das relações raciais brasileiras. Exibe um sentimento fraco de 'comunidade negra', ao lado de uma cultura negra forte e rica..." (p. 153).

Para analisar essa tensão, o autor aponta, entre outras particularidades das relações raciais brasileiras, a recusa à polarização étnica, uma espécie de etnofobia nacional. Como discute mais adiante, o quadro é, assim, aparentemente contraditório. A nova cultura negra, cuja dimensão central é a liberdade do indivíduo para gerir suas próprias escolhas no que diz respeito ao acesso ao consumo e à modernidade, favoreceria o distanciamento de um uso coletivo da identidade negra.

No capítulo quatro, o antropólogo sublinha a importância que a música tem exercido na reprodução da cultura do Atlântico negro. A nova configuração das identidades negras também pode ser compreendida pela explosão, na Bahia e no Rio de Janeiro, da música funk, ritmo de inspiração norte-americana que tem exercido papel fundamental na reinterpretação de diferentes culturas juvenis. A chave interpretativa da heterogeneidade é aqui retomada no sentido de lançar luzes sobre as generalizações que ligam determinado gênero musical a um tipo de identidade étnica (p. 170). Na sua percepção, persistem aspectos inteiramente locais determinados pelos contextos estruturais e tradições musicais distintas, o que permite compreender o alto grau de ecletismo nas preferências e nos usos da música negra como uma marca diacrítica (p. 203).

Como esse capítulo tem o objetivo de comparar a subcultura funk em dois contextos, Sansone mostra como os objetos da cultura são explorados pelos jovens para criar uma aparência negra, porém brasileira. Nas duas cidades, Salvador e Rio de Janeiro, apesar de o discurso nativo enfatizar a mistura e o contato racial promovido pelo funk, seus poucos dados etnográficos, especialmente os do Rio, revelaram a sub-representação dos brancos nessa festa. Desse modo, o baile funk parece ser um bom exemplo do argumento e do questionamento da 'negritude sem etnicidade': a presença maciça de negros não é suficiente para alimentar uma mobilização étnica em torno da identidade negra. Como argumenta o pesquisador, a conotação étnica de ser negro é variável e as estratégias de afirmação étnica e política não são determinadas pela cultura negra 'forte', enfatizando o caráter interacional da cultura, mais que seu poder causal.

O quinto capítulo oferece uma análise das estratégias sociais de jovens negros de classe baixa de duas cidades globais: Salvador e Amsterdã. Além de descentrar os Estados Unidos como medida na análise das relações raciais brasileiras, a intenção nesse capítulo é mostrar os caminhos percorridos pelos grupos para adquirir prestígio social num contexto de precarização sócio-econômica.

A comparação feita entre dois contextos tem como ponto de partida a retomada da discussão da classe como variável explicativa para a condição ou o status dos negros. A análise advém de uma observação dos creole, maior grupo negro da cidade de Amsterdã, originário de parte do Suriname, na América Central, pesquisado entre 1981 e 1991. Pelo que afirma o autor, na Holanda, as visões sobre os surinameses é ainda assunto de acirrado debate com base em idéias estereotipadas sobre os negros e também pela auto-exclusão de determinadas atividades laborais. Na tentativa de resumir os sistemas locais de relações raciais e suas lógicas, o autor descreve Amsterdã, onde os negros são uma minoria relativamente pequena, como uma cidade muito aberta etnicamente, isto é, "a etnia e o direito à diversidade cultural são celebrados como valores positivos na Holanda" (p. 235). No Brasil, a mestiçagem, a ambigüidade, o continuum de cores seriam as marcas positivas da sociedade, e a etnicidade não seria uma linha demarcatória para a constituição de grupos.

Atento às experiências concretas da classe social nos dois países, o autor mostra como os jovens negros na Bahia têm menos opções que os surinameses creoles, na medida em que este último grupo goza entre outras coisas de um sistema de seguridade social eficaz, de um país desenvolvido como a Holanda. Em outro ângulo, enquanto para os surinamenes a questão que se coloca é 'como ganhar mais, em empregos decentes para se equiparar aos jovens brancos europeus', para os jovens brasileiros a questão é 'como conseguir o primeiro emprego e permanecer nele'. É real, também, o fato de que para compensar o status de classe baixa, as estratégias utilizadas pelos grupos têm se centrado no consumo ostensivo e na estetização do corpo negro, o que tem contribuído para o que o autor denomina como 'moderno hedonismo negro global', causa e conseqüência dos novos processos de racialização (p. 242).

Finalmente, na conclusão o autor faz uma reflexão sobre as identidades étnicas nas sociedades contemporâneas, ressaltando a importância de se compreender as experiências multiétnicas no contexto urbano moderno no lugar dos essencialismos que colocam a negritude em oposição à modernidade. Seu argumento principal é de que não é possível conceber uma teoria da mobilização étnica universal, cuja base ortodoxa idealiza um compromisso integral da 'raça' articulada a um discurso político (p. 254). Sugere que para se entender a ausência de uma mobilização étnica no Brasil é preciso antes examinar as mudanças estruturais que reorientaram as políticas de identidade, numa sociedade de tradições universalistas rigorosas como a brasileira. Por fim, defende uma nova versão da identidade negra, que, liberada de existir somente como tradicional, inspire os teóricos a considerarem a mestiçagem, sem que isso implique a afirmação do paraíso racial. Negritude constitui o produto de uma notável obra de pesquisa social qualitativa transcultural, ainda que focalize, no sistema de relações raciais brasileiras, as especificidades da Bahia. Seu mérito é deslocar a tendência hegemônica nos estudos das relações raciais brasileiras, que toma os Estados Unidos como medida de comparação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Canclini, Nestor Garcia 1999 Consumidores e Cidadãos. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ.

Stolcke, Verena 1991 Sexo está para gênero, assim como raça está para etnicidade? Estudos Afro-Asiáticos, n. 20, p. 101-19.

  • 1
    Mundo Atlântico Negro, segundo Paul Gilroy, autor do livro
    Black Atlantic (1993), refere-se às estruturas transnacionais que se desenvolveram na modernidade e deram origem a um sistema de comunicações globais marcadas por fluxos e trocas culturais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2005
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