Resumos
Analisa o modo como os psiquiatras brasileiros Henrique Roxo e Murillo de Campos conceituaram e distinguiram as categorias diagnósticas de demência precoce e esquizofrenia, no final da década de 1920, em artigos publicados no principal periódico psiquiátrico à época. Observa-se como ambos se apropriaram do conhecimento europeu que forjou tais categorias e como as representaram no contexto da institucionalização da psiquiatria no Brasil. Busca compreender como esse processo de nomeação e definição cientifica de diagnóstico se articulava à produção da diferença entre o que deveria ser considerado fenômeno, no que se refere à patologia mental.
demência precoce; esquizofrenia; classificação psiquiátrica; história; Brasil
This article analyzes how the Brazilian psychiatrists Henrique Roxo and Murillo de Campos understood and differentiated between the diagnostic categories dementia praecox and schizophrenia at the end of the 1920s in scientific articles published in the principal psychiatric journal of the time. We note how the aforementioned psychiatrists incorporated the European knowledge that created these diagnostic categories and how they represented them in the context of the institutionalization of psychiatry in Brazil. We seek to understand how this scientific diagnostic naming and defining process developed in conjunction with the definition of the difference between what should and should not be considered phenomena, with respect to mental pathologies.
dementia praecox; schizophrenia; psychiatric classification; history; Brazil
ANÁLISE
Classificando diferenças: as categorias demência precoce e esquizofrenia por psiquiatras brasileiros na década de 1920
Ana Teresa A. Venancio
Pesquisadora e professora do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde/Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz. Fundação Oswaldo Cruz - Casa de Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4036/404, 21040-361 - Manguinhos - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. anatave@terra.com.br
RESUMO
Analisa o modo como os psiquiatras brasileiros Henrique Roxo e Murillo de Campos conceituaram e distinguiram as categorias diagnósticas de demência precoce e esquizofrenia, no final da década de 1920, em artigos publicados no principal periódico psiquiátrico à época. Observa-se como ambos se apropriaram do conhecimento europeu que forjou tais categorias e como as representaram no contexto da institucionalização da psiquiatria no Brasil. Busca compreender como esse processo de nomeação e definição cientifica de diagnóstico se articulava à produção da diferença entre o que deveria ser considerado fenômeno, no que se refere à patologia mental.
Palavras-chave: demência precoce; esquizofrenia; classificação psiquiátrica; história; Brasil.
Este artigo analisa o modo como dois psiquiatras brasileiros conceituaram e distinguiram as categorias diagnósticas demência precoce e esquizofrenia, em artigos científicos publicados na década de 1920. Os trabalhos aqui analisados foram apresentados no 3º Congresso Brasileiro de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal, realizado em julho de 1929 pela Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal, no Rio de Janeiro. Foram divulgados, no mesmo ano, no periódico oficial dessa sociedade cientifica, os Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria. "Conceito atual da demência precoce", de autoria de Henrique Roxo (1877-1969), foi publicado no número 2 (set.-out. 1929) e "O grupo das esquizofrenias ou demência precoce", por Murillo de Campos, no número subsequente, relativo ao mês de novembro.
Num primeiro nível analítico, observa-se a apropriação, por parte dos psiquiatras mencionados, do conhecimento europeu que forjou tais categorias diagnósticas e como elas foram representadas no contexto da institucionalização da psiquiatria no Brasil. Nesse sentido, parto do pressuposto de que os significados conferidos pelos psiquiatras brasileiros às categorias demência precoce e esquizofrenia - criadas respectivamente pelo alemão Emil Kraepelin (1856-1925) e pelo suíço Eugen Bleuler (1857-1939) - não equivalem necessaria-mente ao que foi cunhado pelos psiquiatras europeus, como também não retratam uma leitura equivocada ou eclética em relação aos sentidos originais dessas categorias, provenientes do conhecimento psiquiátrico produzido no além-mar. O modo como elas foram lidas e difundidas em nosso contexto, enfatizando-se certos aspectos em detrimento de outros, estava referendado em injunções relativas à própria reprodução e consolidação do conhecimento psiquiátrico no mundo da ciência, em nosso país, naquele período.
Num segundo nível, busca-se compreender como a nomeação e definição científicas de fenômenos relativos às perturbações físico-morais1 1 O uso da noção de perturbações físico-morais visa "designar da maneira a mais abrangente possível todas as alterações do estado 'normal' da pessoa, que se supõe ser culturalmente definido" Duarte (1986, p.13). Trata-se de categoria analítica que serve para agrupar os estados indicativos do que "não vai bem com as pessoas", aqui incluindo não só "os males alocáveis univocamente ao mundo das causalidades físicas", mas igualmente "todos os outros alocáveis, também univocamente, à ação genérica de grandes princípios religiosos, cosmológicos ou socioeconômicos" (p.26, 27). , no debate em torno da classificação diagnóstica, estiveram articuladas à distinção entre o que deveria e o que não deveria ser considerado fenômeno relativo à patologia mental. Como sabemos, o ato de classificar e a constituição de classificações estão presentes nas mais diferentes sociedades e culturas. Servem à tarefa de estabelecer e organizar parâmetros de diferenciação entre objetos e pessoas, e deles advêm sistemas simbólicos de representação e atuação no mundo, cotidianamente acionados pelos indivíduos que deles participam. Também para o campo psiquiátrico, considera-se aqui o sentido mais geral do ato de classificação: aquele que hierarquiza noções, buscando, mais do que facilitar a ação, tornar inteligíveis as relações existentes entre os seres, unificando socialmente o conhecimento a respeito do universo circundante (Durkheim, Mauss, 1981, p.451). Ademais, as condições de que dependem as classificações são, antes de tudo, de natureza social. Para Durkheim e Mauss, o modo de organização social dos homens, desde as classificações primitivas, determinava o lugar das coisas e dos seres na ordem da natureza. Portanto, "muito longe de serem as relações lógicas das coisas que servem de base às relações sociais dos homens ..., na realidade são estas que serviram de protótipo àquelas" (p.451).
Nessa perspectiva, as categorias diagnósticas obedecem aos princípios gerais de hierar-quização e inteligibilidade que constituem o ato de classificar. Tais princípios conformam-se a características do mundo da ciência, que são diferenciadas historicamente. Não podemos esquecer que o ato de classificar as perturbações físico-morais pela via de um conhecimento especializado como o psiquiátrico foi um evento social e intelectual diversificado no tempo e no espaço. Durante o século XIX, para os alienistas, a elaboração de uma classificação própria fazia parte da 'maturidade' profissional e conferia prestígio ao seu autor, do mesmo modo que, no século seguinte, as instituições psiquiátricas nacionais passaram a formular suas próprias classificações (Berrios, 2008, p.115).
Busca-se aqui mais do que o resgate de uma história conceitual como uma vertente das ciências humanas que toma, como objeto, a semântica, a etimologia e as mudanças de sentido de categorias. Pretende-se observar como, num mesmo contexto histórico, personagens relevantes na construção do conhecimento psiquiátrico no Brasil conferiram sentidos diferenciados às categorias de demência precoce e esquizofrenia, procurando entender como questões pertinentes à psiquiatria da época, no país, estavam sendo ali traduzidas. Trata-se assim de, levando a sério o discurso 'nativo', inventariar os repertórios que os atores em questão utilizaram para circunscrever e dar sentido aos estados de perturbação físico-moral nomeados como demência precoce e esquizofrenia; observar como cada autor dividiu o repertório que utilizou quanto a definição, 'sintomas', origem ou causa e tratamento; perceber as possibilidades de intercâmbio entre as noções contidas nesses repertórios; e verificar o estabelecimento, ou não, de relações de oposição ou complementaridade entre os diferentes conjuntos de categorias em questão.
Os personagens
Segundo Bercherie (1989), a criação da categoria esquizofrenia, em 1906, relaciona-se estreitamente com o surgimento da chamada corrente psicodinâmica na psiquiatria, emergente na Alemanha na década de 1900. Tal corrente seria oposta à vertente psiquiátrica kraepeliniana, que teria estabelecido correlações estáticas entre os sintomas e as lesões, a exemplo da medicina anatomoclínica do século XIX. Ela seria a primeira a dialogar com as ideias de Freud, considerando-se que as formulações freudianas a respeito da concepção de um 'eu dividido', alicerçadas na importância dada ao 'inconsciente', já integravam o cená-rio erudito e científico da época.2 2 Quando Bleuler elaborou seu trabalho sobre a esquizofrenia, a psicanálise, como teoria fundada por Freud na noção de inconsciente, já estava constituída. Tal noção estava presente no sétimo capítulo de Interpretação dos sonhos (1900), e em 1906 Freud já publicara também Estudos sobre a histeria (1893/1895), A psicopatologia da vida cotidiana (1901) e Três ensaios sobre sexualidade (1905). A aproximação e interlocução de Bleuler com o médico neurologista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) intensificaram-se graças a Carl Gustav Jung (1875-1961)3 3 Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço, é hoje reconhecido como o fundador de uma psicologia analítica na qual o conceito de inconsciente é central. Naquele início do século XX, Jung dialogava com o pai da psicanálise, e a correspondencia trocada entre ambos (1906 a 1913) foi para ele um impulso fundamental para que aprofundasse seus estudos sobre o inconsciente. O contato entre os dois também foi extremamente rico para Freud, que adotaria a noção básica de complexo, criada por Jung. , então um médico assistente em Burghölzli, onde Bleuler era psiquiatra de prestígio (McGuire, 1993, p.14, 15).
Como nos indica o próprio Bleuler (1911), a criação da categoria esquizofrenia vinha exatamente se contrapor à ideia da existência de uma demência cujo desenvolvimento patológico seria característica e determinantemente precoce ou juvenil. A nova categoria, primeiramente no plural - o grupo das esquizofrenias -, vinha também enfatizar o pressuposto de que não se podia deduzir de sua sintomatologia e de sua evolução uma única entidade mórbida. Definia ela um estado patológico em que o indivíduo apareceria claramente dividido em sua totalidade, pela cisão de suas funções psíquicas. Essa cisão partiria sobretudo da afetividade, ocasionando um afrouxamento básico das associações que dificultava a síntese mental diretiva do eu e favorecia a pregnância dos 'complexos': um grupo de ideias investido emocionalmente em torno de um núcleo central, parcial ou totalmente reprimido, ou seja, um grupo de ideias reprimidas e interligadas num todo complexo, que assediava o indivíduo e o impelia a pensar, sentir e agir segundo um único padrão. "Os complexos constituiriam, em sua ação sobre o pensamento e sobre a conduta do sujeito, o fator realmente motivador da vida psíquica" (Bercherie, 1989, p.226).
É com base nessa perspectiva sobre a esquizofrenia que se pode entender a circunscrição que Bleuler estabeleceu para seus "sintomas fundamentais": distúrbios afetivos, perda associativa, autismo e ambivalência. Definia-se assim a existência de uma afecção que acometia várias esferas da interioridade moral do indivíduo - as faculdades do pensamento, da afetividade, da vontade -, mas cujo traço distintivo estaria no fato de se constituir como uma cisão psíquica do sujeito. A esquizofrenia seria um estado patológico que traduzia a busca interna de superação de uma situação da ordem do insuportável, em que o indivíduo produziria um 'outro' sentido para a sua existência e para a realidade da qual seria parte integrante (Venancio, 1998).
No Brasil, a historiografia aponta que o primeiro psiquiatra a introduzir a ideia de esquizofrenia no Brasil foi Hermelino Lopes Rodrigues (1899-1971), médico baiano que ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia em 1916 e quatro anos mais tarde transferiu-se para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (Silveira, 2009; Mendonça, Coelho, Gusmão, 2000). Ali terminou seus estudos sendo, ao mesmo tempo, aluno de Henrique Roxo e discípulo de Juliano Moreira (1873-1933), com quem trabalhou no Hospital Nacional de Alienados. Com o incentivo desses psiquiatras, em 1926 prestou concurso para professor catedrático de Psiquiatria na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Federal de Minas Gerais, no qual foi aprovado com a defesa das teses "Etiopatogenia da demência precoce" e "Estudo clínico das esquizofrenias". Silveira (2009, p.584) afirma que "Lopes Rodrigues estava totalmente interessado no grande debate científico da época, a substituição do conceito kraepeliniano de demência precoce pelas contribuições do suíço Eugen Bleuler e seus conceitos acerca da esquizofrenia".
Foi, portanto, no contexto de recente introdução do conceito de esquizofrenia na vida acadêmica psiquiátrica, em meados da década de 1920, que Henrique Roxo e Murillo de Campos apresentaram e debateram suas ideias sobre a propriedade dessa categoria diagnóstica.
Henrique de Brito Belford Roxo formou-se doutor pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1900, quando defendeu a tese "Duração dos atos psíquicos elementares nos alienados". Tratava-se de um período em que a clínica psiquiátrica se consolidava como campo disciplinar autônomo em relação à medicina legal, ainda que a assistência pública psiquiátrica já estivesse posta como tarefa para o Império, e depois a República, por cerca de cinquenta anos.
A atuação profissional de Henrique Roxo ao longo das décadas confunde-se com a institucionalização da psiquiatria no Brasil como campo científico, o qual se articulava e diferenciava de outros campos disciplinares em gestação ou já consolidados - não apenas a medicina legal, mas também a neurologia e a psicanálise. Sua tese para obtenção do título em medicina foi orientada por Teixeira Brandão, psiquiatra brasileiro que, em 1883, foi o primeiro professor da recém-criada cátedra de Clínica Psiquiátrica e Moléstias Nervosas e, em 1887, tornou-se diretor do Hospício de Pedro II (depois denominado Hospício Nacional de Alienados), permanecendo no cargo por dez anos. Posteriormente, de 1904 a 1907, Henrique Roxo substituiria seu antigo orientador na direção do Pavilhão de Observação4 4 O Pavilhão de Observação do Hospício Nacional de Alienados foi criado com o decreto 1559, de 7 de outubro de 1893. O mesmo ato também estabelecia o aumento do número de médicos naquela instituição, incluindo os cargos de oftalmologista e diretor sanitário. O Pavilhão deveria ser um serviço de avaliação preliminar dos pacientes que se apresentavam para serem internados - objetivando acolher os pacientes de tipo gratuito, suspeitos de alienação mental, que ali chegavam por meio das autoridades públicas - e destinava-se às atividades práticas da clínica psiquiátrica e de moléstias mentais da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (Venancio, 2003, p.888). do Hospício, já que aquele estava impedido de continuar no cargo por ter se tornado deputado federal.
Durante sua carreira, Roxo frequentou as clínicas psiquiátricas de Heidelberg e de Munique, onde se encontrava o alemão - Émil Kraepelin, e figurou entre os nomes ilustres da psiquiatria brasileira, tendo participado, entre 1908 e 1910, da comissão nomeada pela Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal para elaborar a primeira classificação psiquiátrica brasileira. O intuito do projeto brasileiro de classificação das entidades nosológicas era romper com as taxionomias que adotavam os métodos empregados pelas ciências naturais. O novo sistema reforçava a hegemonia das categorias diagnósticas e dos modelos de classificação alemães, em especial o kraepeliniano, propondo, indiretamente, que as psicopatologias seriam universais e que, portanto, as classificações europeias poderiam servir de modelo para a brasileira (Venancio, Carvalhal, 2001, p.155, 156).
No final da década de 1920, quando escreveu o artigo sobre o conceito de demência precoce, Roxo já era um eminente psiquiatra de 52 anos. Em 1925 publicara o Manual de psiquiatria, que, a exemplo dos compêndios internacionais, visava a ser um grande tratado do conhecimento psiquiátrico no meio brasileiro. Desde 1919 participava da vida acadêmica universitária como professor substituto das cadeiras de Clínica Neurológica e Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e em 1921 tornou-se professor catedrático de Psiquiatria da mesma faculdade.
Segundo ele próprio (Roxo, 1942), em 1919 o Supremo Tribunal Federal legalizou a acumulação dos cargos de professor catedrático e diretor do Instituto de Psicopatologia do Hospital Nacional de Alienados (antigo Pavilhão de Observação do então Hospício Nacional de Alienados). Garantia-se assim o espaço para a Faculdade de Medicina desenvolver suas atividades docentes com relativa autonomia perante o Hospital, que desde 1903 era dirigido por Juliano Moreira. O Instituto de Psicopatologia mantinha a tradição do Pavilhão de Observação de ser a porta de entrada para internação de pacientes no Hospital: ali eles permaneciam 'em observação' pelos médicos que cursavam a Faculdade de Medicina, sob orientação de Henrique Roxo.5 5 Sobre as relações controversas entre a assistência psiquiátrica prestada pelo Hospício Nacional de Alienados, dirigido por Juliano Moreira, e a autonomia relativa do Pavilhão de Observação, chefiado por Henrique Roxo, ver Venancio, 2003.
Nosso segundo personagem é Murillo de Campos, sobre quem há muito pouca informação disponível, o que nos permite supor que era mais jovem do que Henrique Roxo e não alcançou o mesmo prestígio que este. Parece ter feito parte da nova geração de psiquiatras que trabalharam sob orientação de Juliano Moreira no Hospital Nacional de Alienados e de Henrique Roxo na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tornando-se posteriormente livre-docente da Faculdade de Medicina. Sua tese de livre-docência foi publicada em 1928 sob o título As constituições em psiquiatria: contribuição a seu estudo. Entre seus trabalhos que conhecemos, divulgados nos anos 1920 e 1930, observa-se a dedicação a temas específicos, a exemplo do livro sobre espiritismo, publicado em 1931 em coautoria com o médico-legista Leonídio Ribeiro, e da obra sobre epilepsia, publicada em 1934. Não se dedicou a publicar qualquer compêndio, diferentemente de Henrique Roxo e psiquiatras de renome da época, cujas obras e sucessivas reedições atualizadas permaneciam no campo psiquiátrico como referência 'obrigatória' para estudantes e profissionais dessa especialidade.
Murillo de Campos dedicou-se também à discussão do tema da higiene. Ao menos desde 1925 foi chefe da clínica psiquiátrica do Hospital Central do Exército, e escreveu trabalhos sobre a "higiene mental no Exército", publicado nos Arquivos Brasileiros de Higiene Mental, em 1925, e sobre "higiene militar", divulgado em livro editado em 1927. Seu interesse pelo tema certamente fazia coro com o que estava em voga na psiquiatria brasileira de meados da década de 1920, com a fundação da Liga Brasileira de Higiene Mental em 1923 e a publicação de seu órgão de divulgação, os Arquivos Brasileiros de Higiene Mental. Já em 1925 o jovem psiquiatra contribuía com essa entidade no cargo de secretário-geral da nova diretoria, que assumiu após o afastamento do fundador da Liga, Gustavo Riedel (1887-1934), por motivo de doença (Piccinini, 2008).
Murillo de Campos fazia parte do círculo de médicos psiquiatras que, naquele início dos anos 1920, passavam a difundir a psicanálise, propondo-a como prática terapêutica, publicando trabalhos a respeito dela e difundindo-a em cursos. Segundo Perestrello (1987), em maio de 1924 a própria Liga Brasileira de Higiene Mental teria criado uma 'clínica psicanalítica'. Alguns anos mais tarde, em 1928, a aula inaugural do Curso de Psicanálise Aplicada à Educação, ministrada por Júlio Pires Porto-Carrero (1887-1937), fazia referência a vários nomes que "trataram de assuntos psicanalíticos. Além da referência especial a Juliano Moreira, Franco da Rocha, Antonio Austregésilo e Medeiros de Albuquerque, cita Afrânio Peixoto, Genserico de Souza Pinto, Murillo de Campos, J. Martinho da Rocha, Carneiro Ayrosa de Paula (no Rio de Janeiro)" (Perestrello, 1987, p.13). Naquele mesmo ano, Murillo de Campos teria até mesmo colaborado na fundação da filial do Rio de Janeiro da Sociedade Brasileira de Psicanálise (p.25). No ano seguinte, com a autorização de Juliano Moreira e juntamente com Carneiro Ayrosa, também teria instalado um 'consul-tório psicanalítico' no Hospital de Alienados (p.13).
Assim como outros psiquiatras da época, Henrique Roxo e Murillo de Campos se reuniam em torno da Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal, como polo de debate e divulgação da psiquiatria em nosso contexto. A Sociedade era herdeira da primeira instituição cientifica psiquiátrica brasileira, a Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins, fundada em 1905 na sede da Academia Nacional de Medicina, por iniciativa de Juliano Moreira e Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947), jovens médicos à época (Amarante, 2001). Seu órgão de divulgação eram os Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins (1905-1907), também o primeiro periódico brasileiro na área da psiquiatria, cuja impressão era feita nas Oficinas de Tipografia e Encadernação do Hospício Nacional de Alienados, onde a maioria dos operários era de internos. A periodicidade inicial dos Arquivos era trimestral e contava com a colaboração de médicos e alienistas como Teixeira Brandão, Miguel Couto, Henrique Roxo, Carlos Penafiel, Franco da Rocha e Ulysses Vianna.
Dois anos mais tarde, a entidade foi refundada com o nome de Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal, e a elaboração de seus estatutos, em 1907, ficou a cargo de Afrânio Peixoto, Henrique Roxo e Carlos Eiras. Seu órgão de divulgação oficial passou a ser denominado Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal. O periódico circulou de 1908 a 1918 e também era impresso nas Oficinas de Tipografia e Encadernação do Hospício Nacional de Alienados. Manteve a numeração corrente do periódico anterior, e divulgava como seus fundadores Juliano Moreira e Afrânio Peixoto. O editorial do primeiro número de 1908 noticiava: "no quarto ano de sua existência o presente periódico continuará a ser o fator natural de boas relações científicas entre nossos alienistas, neurologistas e médico-legistas e os do resto do Mundo" (Editorial, 1908).
A criação dessa sociedade cientifica - e de seus órgãos de divulgação - voltada para a psiquiatria, fazia parte de um movimento de ideias e ações em curso durante fins do século XIX até as duas primeiras décadas do século seguinte, que visavam a transformar as ciências no Brasil.6 6 Sobre esse tema, ver Sá, 2006. A psiquiatria se inseria nesse movimento de tornar a ciência uma profissão, e a Sociedade teve papel fundamental ao defender o uso de linguagem e métodos especializados, incentivar o debate científico; integrar-se a uma rede de congressos internacionais divulgando notícias e enviando comissões; promover a interação com membros de sociedades europeias; e publicar artigos baseados em pesquisas clínicas.
Segundo Amarante (2001), em 1919, cortes nos gastos públicos devido ao alto custo do papel e da tinta - reflexo da escassez causada pelo pós-guerra - prejudicaram a impressão e encadernação do Arquivos, que continuava a cargo das oficinas tipográficas do Hospital Nacional de Alienados. Foi então que se procedeu a uma nova mudança no nome do perió-dico, que passou a se chamar Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria, e a impressão ficou a cargo da tipografia particular Besnard Frères, localizada na rua Buenos Aires, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Dessa vez não se manteve a numeração original dos volu-mes, passando-se em 1919 para o Ano I, mas continuou sendo publicado a cada três meses.
Já no primeiro número do novo periódico divulgaram-se as atas da 4a sessão da Sociedade, realizada em 27 de março de 1919, quando se decidiu que a publicação seria dirigida pelos médicos Juliano Moreira, Antônio Austregésilo e Ulysses Vianna, e teria como redatores Faustino Esposel, Heitor Pereira Carrilho e Waldemar de Almeida. A partir do número editado no segundo trimestre de 1919, Henrique Roxo também passou a figurar como dire-tor do periódico.
Segundo seu estatuto publicado em 1919, a Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquia-tria e Medicina Legal mantinha a finalidade de promoção da institucionalização da psiquiatria no Brasil, ao comprometer-se a
concorrer para o desenvolvimento e progresso das especialidades que lhe dão o nome; apurar a contribuição nacional de certas especialidades, dando-lhes divulgação e realce nos círculos científicos nacionais e estrangeiros; estudar e propagar recursos psiquiátricos contra o aparecimento e disseminação dos distúrbios mentais; interessar-se pela sorte dos alienados no nosso país, cuidando em especial das suas questões médico-legais e influindo por todos os meios a seu alcance para a percepção dos processos de bem assisti-los (ABNP, 1919, p.57).
Foi nesse contexto - e por intermédio da autoridade científica em que a referida Sociedade imprimia a sua publicação - que um psiquiatra consagrado, formado no final do século XIX, e um jovem médico-psiquiatra, interessado nas questões da psicanálise, se dedicaram a debater sobre as categorias demência precoce e esquizofrenia.
As concepções de demência precoce e esquizofrenia por Henrique Roxo
Roxo (1929) demarca uma oposição entre as duas concepções patológicas propondo-se, primeiramente, a apresentar a noção de demência precoce de Kraepelin para então discutir a concepção bleuleriana de esquizofrenia. Desde o início do texto deixa clara sua preferência pelo conceito kraepeliniano, cunhado por uma "visão genial" do psiquiatra alemão, em contraposição à interpretação de Bleuler sobre a esquizofrenia, considerada generalizadora. A oposição que estabelece entre a definição de demência precoce como "entidade clínica" bem definida e circunscrita, e a concepção de esquizofrenia como "grupo patológico", em que vários outros quadros mórbidos poderiam ser incluídos ou com ele serem confundidos, sintetiza bem a opinião de Henrique Roxo. E não é à toa que o texto se intitula "O conceito atual da demência precoce": para o psiquiatra brasileiro, o aparecimento da noção de esquizofrenia não implicou mudança de paradigma, pois "Bleuler não acabou com a demência precoce e sim substituiu o seu conceito pelo de esquizofrenia, que muito amplia o daquela" (p.79). Para Roxo, é como se houvesse uma única natureza, uma essência patológica que estaria mais bem retratada pela categoria nosológica de demência precoce.
Na apresentação de seu ponto de vista, Roxo utiliza dois recursos analíticos. Primeiro, define cada uma das categorias diagnósticas descrevendo suas características, por vezes chamadas predicados. Depois demonstra a existência, no contexto psiquiátrico inter-nacional, de diversas críticas à noção bleuleriana de esquizofrenia, aderindo em especial à posição do professor Henri Claude7 7 Henri Charles Jules Claude (1896-1945), psiquiatra e neurologista francês, foi médico assistente no Hospital da Salpêtrière e, de 1922 a 1939, trabalhou no Hospital Sainte-Anne. É considerado personagem importante na introdução das teorias psicanalíticas freudianas na psiquiatria francesa, sendo o responsável pela criação do primeiro laboratório de psicoterapia e psicanálise na Faculdade de Medicina da Universidade de Paris. , apresentada em 1926 "num congresso de alienistas e neurologistas franceses reunidos em Lausanne" (Roxo, 1929, p.84). Esse segundo recurso insere as reflexões do psiquiatra brasileiro no debate especializado então em voga, e serve à construção e legitimação de seu discurso de autoridade nas críticas ao significado concedido por Bleuler à noção de esquizofrenia.
Com relação às características estabelecidas por Roxo (1929) para cada um dos diagnósticos, observam-se, no Quadro 1, muitas semelhanças: alucinações; inadaptação ao meio social e familiar; não ser sempre uma patologia que aparece precocemente e produz esquecimento ou falta de memória, mas sim apresentar-se como uma perturbação da vontade e da afetividade. Uma dessas características, apesar de comum aos dois diagnósticos, está relacionada de modo complementar à definição de esquizofrenia. Assim, o predicado "falta de adaptação ao meio" serve para corroborar a ideia de que essa categoria diagnóstica seria um grupo patológico amplo, já que a inadaptação social encontra-se presente em vários tipos de perturbações mentais (p.81).
Dois predicados, entretanto, aparecem diferenciados em seus sentidos quando referidos à demência precoce ou à esquizofrenia: o relativo à condição mental e o relativo à condição afetiva. No primeiro caso, a demência precoce é caracterizada por "déficit mental", "enfraquecimento da inteligência", uma perda da capacidade mental que apareceria desde o início da doença, ainda que o surgimento da patologia pudesse não ocorrer nas primeiras fases da vida do indivíduo. Já a esquizofrenia não implicaria o rebaixamento da capacidade mental, mas tratar-se-ia de um evento disruptivo, uma "dissociação mental".
No que se refere à afetividade, observa-se que Roxo (1929) utiliza indistintamente as duas categorias diagnósticas a fim de discutir a controvérsia em torno da perda ou não da mesma. Assim, afirma que "o sintoma mais impressionante da esquizofrenia é o de demência afetiva", e que "um dos sinais mais característicos da doença é um defeito na capacidade de modulação afetiva, uma verdadeira rigidez afetiva" (p.82). Ainda no contexto da discussão sobre a esquizofrenia, o autor observa que "no tocante à afetividade há quem queira contestar que na demência precoce haja realmente perda da afetividade" e que "exercem na demência precoce influência indiscutível os complexos que representam um conjunto de idéias fortemente impregnadas de um coeficiente afetivo" (p.82; grifos meus). Aqui Roxo trata a categoria demência precoce como sinônimo de esquizofrenia, se considerarmos, como vimos, que a ideia dos complexos esteve fortemente associada, por Bleuler, à noção de esquizofrenia. Essa sinonímia, em vez de expressar um erro ou equívoco, serve à confirmação de sua tomada de posição, favorável à noção de demência precoce, em detrimento da de esquizofrenia. Atualizado com a nova nomenclatura e com as noções a ela correlatas (como a de complexos), o psiquiatra mantém a adoção da categoria demência precoce. Com isso, mantém também a ideia mais geral de uma evolução patológica desfavorável, e de terminação fatal, em que a personalidade do sujeito estaria crescentemente comprometida, demente, em detrimento da defesa da ideia de uma cisão psíquica do sujeito que não levaria o indivíduo, necessariamente, à imbecilidade.
Ademais, defende que esquizofrenia, ou demência precoce, não deve ser vista como uma doença da afetividade devido a uma "anomalia afetiva", mas sim como uma patologia cuja 'evolução' provocaria um crescente desinteresse afetivo, pois o doente iria se isolando em seu 'castelo interior' como em um sonho acordado, único lugar onde o sentimento permaneceria. Com isso, segundo o autor, o que caracterizaria a esquizofrenia ou demência precoce não seria uma anomalia da afetividade, mas sim a falta de exercício da mesma, já que tudo seria uma "questão de falta de utilização prática, de carência da atividade pragmática" (Roxo, 1929, p.82). Essa falta de pragmatismo levaria, assim, a uma deterioração global do indivíduo.
Outras características foram apresentadas como próprias a cada uma das noções diagnósticas em questão. A desproporção e desconexão entre sentir, pensar e querer, a ponto de atingir a integridade de toda a personalidade individual, foi remetida espe-cificamente à demência precoce. O autismo, por sua vez, era uma concepção cara à categoria diagnóstica bleuleriana e, assim como demonstra Roxo (1929), não parece ter correspondido a noções anteriormente associadas por Kraepelin à demência precoce.
A maior ênfase concedida por Roxo (1929) à irredutibilidade do quadro mental patológico designado como demência precoce também se reflete na formulação que ele apresenta a respeito da esquizofrenia. Na sequência da descrição de várias características que teriam sido ressaltadas por Bleuler, considera que "a esquizofrenia é uma afecção de base orgânica que surge em uma pessoa predisposta por uma enfermidade constitucional, havendo sempre uma superestrutura psicogênica considerável, isto é, um distúrbio geral da vida psíquica que vai até a vida dos instintos" (p.84). Ainda que Bleuler tenha afirmado a existência de uma dimensão orgânica da esquizofrenia - mesmo que não comprovada cientificamente -, a novidade de sua concepção diagnóstica sempre foi a ênfase na dimensão psicoafetiva do quadro mórbido, bem retratada pelo uso da ideia dos complexos. Nesse contexto, H. Roxo lançou mão da tensão entre as dimensões físico-orgânica e moral-psicológica como determinantes para a definição dos quadros diagnósticos psiquiátricos. Pautado pela ideia da existência dessa dupla dimensão, sua descrição da patologia esquizofrênica parece defender a preponderância dos fatores orgânicos, ainda que aponte nela uma superestrutura psicológica, de todo modo oposta à maior determinação da infraestrutura.
As concepções de demência precoce e esquizofrenia por Murillo de Campos
Comparativamente ao texto de Henrique Roxo, Campos (1929) pouco se detém na explicação da categoria kraepeliniana de demência precoce. Após breve explicação, apenas ressalta que tal categoria sofreu críticas exatamente nos pontos que lhe seriam essenciais: nem todos os casos evoluiriam para a demência; a doença poderia estacionar em qualquer fase de sua evolução ou mesmo apresentar uma regressão dos sintomas; e nem sempre seu início seria precoce (p.156). Com tal descrição da demência precoce, sob o subtítulo "Alguns dados históricos", o autor deixa para trás essa categoria diagnóstica, concentrando-se no que lhe parecia de fato mais essencial: a discussão em torno da esquizofrenia.
A denominação dos tipos de esquizofrenia e as características relativas a essa patologia, apresentadas por Campos (1929), não são diferentes daquelas mencionadas no texto de Roxo (1929). Alucinações, autismo, dissociação mental, demência afetiva, rigidez afetiva expressam, em ambos os autores, o quadro esquizofrênico. Diferenciam-se, entretanto, na autoridade e legitimidade que concedem a Bleuler e a sua descrição da esquizofrenia. Roxo, ainda que mencione a divisão estabelecida por Bleuler entre sintomas essenciais e assessórios, o faz em um parágrafo sintético, no contexto da apresentação das críticas à categoria cunhada pelo psiquiatra suíço-alemão (p.86). Em Campos, a divisão entre sintomas fundamentais e acessórios é estruturante da própria organização do texto, tendo em vista a intenção do autor em fazer uma exposição da matéria que acompanhasse quase literalmente o pensamento do mestre suíço, tal como divulgado em seus principais trabalhos.
Com esse procedimento analítico - o de ser o mais fiel possível ao 'mestre' - Murillo de Campos relata que tenta se precaver de julgamentos inadequados sobre a concepção de esquizofrenia, os quais o próprio Bleuler teria observado no Congresso de Médicos Alienistas e Neurologistas da França e de Países de Língua Francesa, realizado em Genebra-Lausanne, em agosto de 1926: "Quando leio os trabalhos franceses sobre a esquizofrenia, tenho a impressão de ser um personagem legendário ao qual, frequentemente, se atribuem palavras que ele jamais pronunciou e atos que jamais realizou" (citado em Campos, 1929, p.155; tradução livre). Trata-se do mesmo congresso que Henrique Roxo (1929) cita em seu texto como "um congresso de alienistas e neurologistas franceses reunidos em Lausanne" (p.84), posicionando-se então a favor das críticas proferidas contra Bleuler - críticas que este, provavelmente, teria considerado infundadas, já que, segundo relato de Campos (1929), não concordava nem mesmo com a versão de sua concepção sobre a esquizofrenia que teria sido apresentada por seus pares de língua francesa.
Configura-se assim uma controvérsia entre Henrique Roxo e Murillo de Campos, respectivamente opositor e defensor das ideias de Bleuler. Como vimos, a questão fundamental, para Roxo, era a manutenção de uma perspectiva clínica que pudesse garantir a circunscrição bem delimitada de uma entidade nosológica que, embora ligada a fatores de natureza psicológica, manteria em sua base e fundamentação eventos de ordem físico-orgânicas que tomariam conta do doente em direção a um enfraquecimento intelectual totalizante (mesmo que nem sempre precoce, rápido ou completo). Mantinha-se, pois, fiel à perspectiva organicista propagada por Kraepelin.
Para Murillo de Campos, a categoria esquizofrenia possibilitava o entendimento e a discussão dos mecanismos 'psíquicos', tão caros a seu interesse pela psicanálise. A exposição de tais mecanismos na esquizofrenia aparece em Campos (1929), principalmente, nas variadas considerações a respeito dos 'complexos'. Para esse autor os gestos incoerentes, as ideias delirantes e as perturbações psicossensoriais que dariam forma ao autismo encobririam os 'complexos'.
Com o intuito de ser fiel ao mestre suíço, apresenta então o que seria a própria definição de Bleuler a respeito dessa noção: "um grupo de lembranças, representações ou ideias, dotado de forte carga afetiva e privado dos laços que o deveriam prender, como no estado normal, à unidade psíquica individual" (Campos, 1929, p.161). A partir de então, a categoria complexo é acionada para explicar que, assim como na esquizofrenia, "nas doenças mentais a exteriorização dos complexos faz-se sobretudo por meio de sintomas clínicos", os quais sempre manteriam uma relação de sentido com os próprios complexos (p.162). O complexo aparece como explicação não apenas para o caso especifico da esquizofrenia, mas para o próprio estatuto da diferença relativa às patologias mentais. Ademais, o conjunto dos complexos de um determinado caso formaria o "conteúdo da psicose", como se os sintomas, em especial os considerados acessórios - estereotipias, mutismo etc. -, ocultassem o núcleo significante dos complexos (p.163).
Apesar de seu interesse pelos complexos e mecanismos psíquicos presentes na esquizofrenia, Campos (1929) também considera a tensão entre as dimensões físico-orgânica e moral-psicológica como determinante para a definição dos diagnósticos psiquiátricos. Assim como Henrique Roxo, aborda com detalhes as considerações de Bleuler sobre a origem orgânica do quadro esquizofrênico. Segundo ele, tal origem poderia ser demonstrada pelas lesões anatomopatológicas e por fenômenos tóxicos, embora a natureza do processo orgânico que os provocaria ainda não tivesse sido descoberta. Entretanto, após afirmar que a hipótese de Bleuler era a de que origens orgânicas causariam os sintomas fundamentais e destes derivariam os sintomas acessórios, Campos volta a tratar da dimensão psíquica mencionando as ideias delirantes, alucinações da sensibilidade e visuais, e colocando em xeque a possibilidade de que uma "doença constitucional" predispusesse à esquizofrenia. Esta última compreenderia as psicoses funcionais, isto é, relativas ao funcionamento do sujeito, sobre as quais não se poderia comprovar integralmente uma natureza orgânica.
Com base, portanto, no que considera ser o processo fundamental da esquizofrenia - uma dissociação das faculdades psíquicas -, Campos ainda rebate as críticas do professor Henri Claude a Bleuler quanto à necessidade de diferenciar as esquizofrenias devido a variações dos sintomas. Para tanto, o psiquiatra brasileiro argumenta que tanto Kraepelin quanto Juliano Moreira não teriam advogado em prol da divisão do conceito de esqui-zofrenia, ancorada no grau de gravidade de seu quadro clínico, como fizera H. Claude - defendido por Henrique Roxo. Essa diferenciação em relação à gravidade do quadro clínico fundamentaria a própria apresentação de Roxo (1929) sobre as terapêuticas e os prognósticos para a demência precoce ou esquizofrenia. Se fosse uma 'verdadeira' demência precoce, com atrofia das células cerebrais, o tratamento não serviria de quase nada: "Se se tratar, porém, de um esquizofrênico, isto é, se se tratar de um demente precoce sem falta de inteligência, sem atrofia de células de cérebro e lesões inflamatórias crônicas, muito se poderá conseguir" (p.90).
A perspectiva apresentada por Campos (1929) sobre o tema do tratamento é diferente. Argumenta que o próprio Kraepelin referiu-se à possibilidade de cura da demência precoce e que, "segundo a doutrina bleuleriana, deve-se acentuar que os casos de 'cura' da demência precoce não são tão raros que permitam estabelecer como princípio a sua incurabilidade" (p.182). No sentido bleuleriano, destaca Campos, trata-se principalmente de 'curas sociais', ou seja, o retorno do doente ao seu meio social e às suas atividades, em vez de 'curas clínicas', que estariam preocupadas com a regressão das características constitucionais dos pacientes. Para esse psiquiatra brasileiro, a própria substituição da categoria demência precoce pela de esquizofrenia demonstraria ser admissível o restabelecimento da ideia de curabilidade dos doentes. Para esses casos, o autor aponta como terapêutica indicada a psíquica, e discorre sobre as modalidades e possibilidades desse tipo de tratamento.
Considerações finais
A análise aqui apresentada partiu do modo como nossos personagens - Henrique Roxo e Murillo de Campos - têm sido lembrados e perpetuados pelo próprio campo médico-psiquiátrico. Desse modo, foi possível situar os atores sociais a partir do lugar que lhes é concedido no e pelo meio especializado em que atuaram e, a partir desses lugares simbólicos, compreender o modo como leram e difundiram as categorias diagnósticas de demência precoce e esquizofrenia. Tais categorias foram lidas e debatidas no contexto de recepção da psicanálise no Brasil, onde, como em outros contextos nacionais, entrou no mundo dos conhecimentos especializados pela via única da medicina, em relação à qual ficou exclusivamente vinculada por várias décadas. As ideias de nossos personagens, aqui apresentadas, expressaram a existência de um embate entre a adesão mais clara e irrestrita a preceitos psicanalíticos freudianos e a defesa e manutenção de uma perspectiva médica mais ancorada no conhecimento anatomopatológico e menos afeito a considerações sobre o caráter psicodinâmico das patologias mentais.
Num primeiro momento, verificou-se que a descrição dos fatores fundamentais relativos à demência precoce e à esquizofrenia pouco diferiu nas versões produzidas por Henrique Roxo e Murillo de Campos, como demonstraram os Quadros apresentados. Entretanto, o modo com valorizaram determinados predicados em relação a outros, e mesmo as consi-derações sobre a menor ou maior possibilidade terapêutica para as perturbações físico-morais designadas como demência precoce e esquizofrenia, demonstraram perspectivas diferenciadas sobre o valor que concediam a uma e outra categoria. Ambos os psiquiatras concordavam sobre a necessidade de relativizar o caráter eminentemente precoce da demência e a afecção da memória que esta causaria, assim como afirmavam a existência de uma origem orgânica da esquizofrenia. Ao mesmo tempo, entretanto, observa-se clara deferência de Henrique Roxo à noção kraepeliniana de demência precoce, ao passo que as considerações de Murillo de Campos apontavam para a pertinência da noção de esquizofrenia.
Parecem ser dois os princípios classificatórios que regem essa diferenciação de posição teórica. O primeiro deles diz respeito ao maior ou menor dinamismo do evento pato-lógico, isto é, às possibilidades de transformação sintomatológica ou de expressão de determinadas características patológicas fixas. Com base nesse mesmo princípio, Henrique Roxo advogava a adesão a um conceito - o de demência precoce - que refletiria muito claramente uma 'entidade clínica', bem definida e circunscrita, cujas características levariam a um enfraquecimento intelectual totalizante (ainda que nem sempre precoce, rápido ou global). Já Murillo de Campos aderia à ideia de uma patologia mental de caráter mais fluido e dinâmico, nem sempre expressa por uma evolução sintomatológica unívoca. O segundo princípio diz respeito à maior ou menor atenção às dimensões físico-orgânica ou moral-psicológica, a ser concedida na análise e no tratamento das patologias mentais. Com relação a esse modo classificatório, como já mencionado, é notável que ambos os psiquiatras não tenham refutado a natureza orgânica da demência precoce e da esqui-zofrenia. Contudo, enquanto Murillo de Campos se deteve nos aspectos psíquicos da esquizofrenia - tanto para a explicação do evento patológico quanto para a proposição de sua terapêutica -, Henrique Roxo privilegiou, na demência precoce, a apresentação dos eventos orgânicos (em geral cerebrais) que incidiriam sobre a inteligência do sujeito, seus afetos e sua vontade, em relação aos quais construiu um prognóstico mais desfavorável de tratamento e cura.
O que se observa é que ambos os princípios classificatórios - dinamismo ou imutabilidade do quadro patológico e atenção diferenciada às dimensões orgânica ou psicológica dos eventos mórbidos - são combinados na tarefa de conceder inteligibilidade à circunscrição das patologias mentais. Do ponto de vista dos dois psiquiatras brasileiros, o maior dinamismo do evento patológico aparece associado à predominância de uma análise dos fatores psíquicos reconhecíveis no referido evento. Já a presença de determinadas características patológicas mais imutáveis, em ambos os autores, é relacionada à ênfase concedida aos aspectos orgânicos.
Ademais, a valorização diferenciada dos termos englobados nesses princípios classificatórios produziu hierarquizações específicas: um valor maior ao dinamismo e à atenção à dimensão psicológico-moral do evento patológico correspondeu a uma desvalorização da imutabilidade dos sintomas, associada a uma ênfase na dimensão físico-orgânica do sujeito; e vice-versa. Com isso, nossos dois personagens atribuíram sentidos diversos ao estatuto da diferença relacionada à doença mental. Do ponto de vista comparativo, Henrique Roxo se ateve a uma visão estática da doença, em que as características físico-orgânicas eram mais determinantes para a qualificação da diferença patológica. Já em Murillo de Campos, a característica dinâmica da morbidade esquizofrênica foi diretamente relacionada a aspectos psíquicos, que, no seu entender, seriam mais cruciais na definição da diferença instituída como patologia mental.
NOTAS
Recebido para publicação em dezembro de 2009.
Aprovado para publicação em agosto de 2010.
N.E. - O presente artigo é uma reflexão crítica baseada em textos de Henrique Roxo, "Conceito atual de demência precoce", e de Murillo de Campos, "O grupo das esquizofrenias ou demência precoce", reproduzidos neste número de História, Ciências, Saúde - Manguinhos.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Fev 2011 -
Data do Fascículo
Dez 2010
Histórico
-
Aceito
Ago 2010 -
Recebido
Dez 2009