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A agência dos mortos na teoria ator-rede a partir da descrição do translado da múmia de Ramsés II em Bruno Latour

The agency of the dead in actor-network theory according to the description of the transfer of the mummy of Ramses II by Bruno Latour

RESUMO

O objetivo deste artigo é traduzir a teoria ator-rede para a historiografia com a finalidade de descrever a agência de atores do “passado” no “presente”. Isto será feito a partir do resgate da descrição do translado da múmia de Ramsés II do Museu do Cairo para Paris em 1976, realizada por Bruno Latour em textos nos quais sustenta a sua tese da historicidade dos objetos científicos. A partir da descrição deste fenômeno, neste artigo visa-se a criar ferramentas etnográficas que permitam utilizar a teoria ator-rede na historiografia para traçar as políticas do tempo em redes compostas por agências multitemporais. Essa abordagem tem por justificativa contribuir para a investigação sobre as tanatoagências no “presente” como participantes legítimas que apresentam proposições nas controvérsias políticas. Por fim, neste artigo conclui-se que a teoria ator-rede pode ser uma metodologia eficiente para a descrição da agência dos mortos na coetaneidade desde que sejam consideradas as mediações implicadas nos processos de temporalização e seja assumido um pluralismo ontológico das formas de se fabricar o tempo.

PALAVRAS-CHAVE
Ação; Anacronismo; Temporalidades

ABSTRACT

The aim of this article is to translate the actor-network theory into historiography to describe the agency of actors from the “past” in the “present”. This will be done based on Bruno Lator’s description of the displacement of the mummy of Ramses II from the Cairo Museum to Paris in 1976 , in which the author supports his thesis of the historicity of scientific objects. Based on the description of this phenomenon, this article aims to create ethnographic tools that allow the use of the actor-network theory in historiography to trace the politics of time in networks composed of multitemporal agencies. This approach is justified to contribute to the investigation on the agencies of the dead in the “present” as legitimate participants who present propositions in political controversies. Finally, this article concludes that the actor-network can be an efficient methodology for describing the agency of the dead in coevalness, as long as it considers the mediations involved in temporalization processes and assumes an ontological pluralism of ways of manufacturing time.

KEYWORDS
Action; Anachronism; Temporalities

Introdução

A múmia de Ramsés II pousava na cidade de Paris em 26 de setembro de 1976 com o objetivo de tratar uma infecção fúngica que degradava os restos mortais do faraó. Após ter viajado em um avião militar do Museu Egípcio do Cairo para a base aérea Le Bourget, acompanhado da curadora-chefe do Louvre e egiptologista Christiane Desroche-Noblecourt, a múmia fora recebida pela Guarda Republicana, por um contingente da Aeronáutica francesa e pela secretária de Estado para assuntos universitários, Alice Saunier-Seïté, que definiu Ramsés II como “um dos maiores chefes de Estado da antiguidade” (FARNSWORTH, 1976, p. 5FARNSWORTH, Clyde H. Paris Mounts Honor Guard For a Mummy. The New York Times, Nova York, 28 set. 1976. p. 5., tradução minha).1 1 Sempre que a tradução for de minha responsabilidade, mencionarei. Quando não o for, os créditos constarão nas referências. Em uma breve travessia pelo Mar Mediterrâneo, Ramsés II tem a sua existência alterada de uma condição de monumento-patrimônio para restos mortais depositados dentro de um caixote na aeronave, e, posteriormente, de restos mortais Ramsés II torna-se novamente um chefe de Estado recebido com honrarias oficiais ao chegar à França. Da base aérea, o faraó foi deslocado, então, para o Hospital Val de Grâce, no qual foi submetido aos primeiros procedimentos laboratoriais, com os que se daria início a sua recuperação antes de ser enviado para um laboratório esterilizado no Musée de l’Homme. Transmitido pela televisão, o grande apelo midiático de seu desembarque era seguido de uma exposição a ele dedicada no Grand Palais, inaugurada em maio daquele ano e que, em setembro, já atingiria a marca de 650 mil visitantes. No entanto, como mostra a cobertura do episódio no The New York Times do dia, nem todos estavam contentes com a “vitória diplomática” obtida pelo presidente Valéry Giscard d’Estaing, que chegara a tratar do translado da múmia em uma viagem official ao Egito. Ao jornal, um “parisiense irado” dissera que “é ridículo gastar o nosso dinheiro com alguém morto há 3000 anos enquanto aqueles que ainda respiram não têm o sufficiente, especialmente sob as políticas de austeridade do governo” (FARNSWORTH, 1976, p. 5FARNSWORTH, Clyde H. Paris Mounts Honor Guard For a Mummy. The New York Times, Nova York, 28 set. 1976. p. 5., tradução minha).

Contudo, assim como outras celebridades, Ramsés II estampou as páginas da revista Paris Match, que, com as suas características imagens impactantes, inspiraram, no final dos anos 1990, Bruno Latour a escrever artigos sobre o tema (LATOUR, 2010LATOUR, Bruno. Crónicas de un amante de las ciencias. Traduzido para o espanhol por Lucía Vogelfang. Buenos Aires: Dedalus, 2010.; 2000LATOUR, Bruno. On the partial existence of existing and non-existing objects. In: DASTON, Lorraine (org.). Biographies of scientific objects. Chicago: Chicago University Press, 2000. p. 247-269.). Abaixo da imagem dos restos mortais do faraó sobre uma mesa, cercados por especialistas de jaleco branco e máscaras cirúrgicas, a legenda da foto dizia o seguinte: “nossos cientistas socorrem Ramsés II, que adoeceu 3000 anos após a sua morte” (TARDREW, 1976, p. 74TARDREW, C. Nos savants au secours de Ramses, tombé malade 3000 ans après sa mort. Paris Match, Paris, n. 1435, 26 nov. 1976. p. 74-75., tradução minha). Evidentemente, a legenda referia-se a uma infecção de sua múmia por micro-organismos que passaram a degradá-la. No entanto, curiosamente, o translado da múmia do Cairo para Paris havia sido motivado, inicialmente, pelas investigações do físico francês Maurice Becaille, ainda em 1975, interessado em determinar a causa da morte do faraó em 1213 a. C. (FARNSWORTH, 1976, p. 5FARNSWORTH, Clyde H. Paris Mounts Honor Guard For a Mummy. The New York Times, Nova York, 28 set. 1976. p. 5.). Foi, então, instigado pela legenda da foto e pelo tema da causa da morte do antigo monarca, que Bruno Latour levanta a seguinte hipótese: e se, em vez da degradação de seus restos mortais, tivéssemos descoberto que a causa da morte de Ramsés II havia sido o desenvolvimento de uma tuberculose? Acaso poderíamos afirmar, pergunta-se Latour, que ele morreu de uma doença cuja causa foi demarcada apenas no final do século XIX, com os trabalhos do bacteriologista Robert Koch? Ou seria anacrônico, por outro lado, deslocar o bacilo até o século XIII a.C.? Em outras palavras, o anacronismo é uma política temporal que se aplicaria apenas ao mundo dos humanos e dos objetos técnicos, ou a sua jurisdição se estenderia, também, aos objetos científicos?

A partir da análise da tese da historicidade dos objetos científicos (e, consequentemente, da “natureza”) defendida, neste contexto, por Latour, este artigo tem por objetivo descrever a narração do autor do caso do translado da múmia de Ramsés II do Cairo para Paris em 1976, delineando as políticas do tempo que articulam atores multitemporais em uma mesma rede. Acredito que essa descrição nos permitirá explorar as ferramentas etnográficas da teoria ator-rede na historiografia de uma forma crítica, com ênfase no desenvolvimento de metodologias capazes de traçar as políticas temporais sobre as quais ela se debruça em seus objetos. Traduzir, pois, a teoria ator-rede para a historiografia, assim como as ideias de Bruno Latour, pode contribuir para a investigação da agência dos mortos em outras circunstâncias temporais não sincrônicas àquela de sua existência vivente anterior. Essa prática conferiria, assim, cidadania e representatividade a tanatoagências que participam constantemente das controvérsias políticas juntamente aos vivos, fazendo parte de suas “sociedades”.

A descrição do translado da múmia de Ramsés II do Cairo para Paris

As descrições latourianas do translado da múmia de Ramsés II do Museu Egípcio do Cairo para Paris em 1976 circulam em torno da controvérsia suscitada por um enunciado que pode ser apresentado da seguinte maneira: é anacrônico afirmar que Ramsés II morreu de tuberculose em 1213 a.C.? Esta controvérsia, na verdade, seria apenas a manifestação de uma querela mais ampla, interior à história e à epistemologia das ciências, que dividiria em dois campos aqueles que acreditam na “construção” dos objetos científicos e aqueles que postulam a sua “descoberta”. Desta forma, teríamos dois “programas” contrapostos,2 2 Para a ideia de “programa” e “antiprograma”, ver Latour, 2016. os quais poderiam ser apresentados da seguinte maneira.

De um lado, há um “antiprograma” que questiona o enunciado ao defender que a ciência “descobre” os seus objetos, os quais estariam existindo amplamente no espaço e no tempo mesmo antes de serem percebidos pelo conhecimento dos humanos (LATOUR, 2010, p. 76-77LATOUR, Bruno. Crónicas de un amante de las ciencias. Traduzido para o espanhol por Lucía Vogelfang. Buenos Aires: Dedalus, 2010.). Isto validaria a possibilidade de que Ramsés II se infectasse pelo bacilo de Koch e desenvolvesse uma tuberculose em 1213 a.C. no Egito Antigo, mesmo que o bacilo só tenha sido demarcado na Alemanha em 1882. A partir destas proposições, a história das ciências deveria se consolidar como um campo que investiga a historicidade das descobertas das entidades e do funcionamento da “natureza”, não sendo essa esfera do mundo comum propriamente histórica (LATOUR, 2010, p. 76LATOUR, Bruno. Crónicas de un amante de las ciencias. Traduzido para o espanhol por Lucía Vogelfang. Buenos Aires: Dedalus, 2010.). O bacilo de Koch, por ser uma entidade “natural”, poderia existir e agir mesmo que os humanos ainda não o notassem. O dispositivo do anacronismo não poderia ser aplicado a ele, uma vez que o bacilo não pertenceria ao mundo “social”. Pertencer ao “social” e possuir “historicidade”, portanto, estariam em Latour estreitamente vinculados à admissibilidade ou não de ser submetido ao dispositivo do anacronismo (LATOUR, 2000, p. 253LATOUR, Bruno. On the partial existence of existing and non-existing objects. In: DASTON, Lorraine (org.). Biographies of scientific objects. Chicago: Chicago University Press, 2000. p. 247-269.), e este “antiprograma” advogaria pela a-historicidade da “natureza” (ou dos objetos científicos).

E, de outro lado, há um “programa” defensor da tese de que os objetos científicos são “construídos”, isto é, fabricados, e de que a sua extensão no espaço e no tempo ocorreria a partir de processos sociotécnicos. Isto não quer dizer, todavia, que não haveria algo “agindo” anteriormente à demarcação do bacilo de Koch por Robert Koch em 1882, causando uma doença que, mais tarde, viria a ser chamada de tuberculose. Diferentemente, este “programa” indica que o bacilo e a tuberculose não podem prescindir, para a sua existência, de métodos científicos modernos, do desenvolvimento dos laboratórios como espaços em que humanos se aliam a máquinas altamente tecnológicas para “dar voz” a testemunhas antes não “ouvidas” (STENGERS, 2002, p. 108STENGERS, Isabelle. A invenção das ciências modernas. Traduzido por Max Altman. São Paulo: Editora 34, 2002.), da construção de comunidades científicas e suas publicações especializadas passíveis do escrutínio de especialistas, nem das próprias noções de “bactéria”, “patologia” e “infecção”. Desta perspectiva, para que o bacilo de Koch pudesse chegar até os pulmões de Ramsés II em 1213 a.C., seria preciso que, antes, houvesse uma série de deslocamentos de amonstragens aos laboratórios, de especialistas examinando-as em microscópios, de análises feitas para publicações e de publicações efetivadas para o escrutínio da comunidade científica, processo que culminaria com a consolidação da tuberculose como “fato” científico, como uma articulação de enunciados “verdadeiros” (LATOUR, 1997a, p. 75-83LATOUR, Bruno; WOOLGAR, Steve. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Traduzido por Ângela Ramalho Vianna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997a.). Segundo esta concepção, então, a história das ciências seria a história da fabricação da “natureza”, e a constituição desta, por sua vez, teria, assim, uma historicidade. O bacilo de Koch, nesta perspectiva, seria tratado como um objeto técnico ontologicamente não diverso a uma metralhadora ou a um guarda-chuva e, desta maneira, não poderia ser deslocado até o ano de 1213 a.C. sem, com isso, ser cometido o “pecado cardeal” dos historiadores, o anacronismo (LATOUR, 2010, p. 77LATOUR, Bruno. Crónicas de un amante de las ciencias. Traduzido para o espanhol por Lucía Vogelfang. Buenos Aires: Dedalus, 2010.). Latour mobiliza, portanto, o famoso enunciado de Lucien Febvre, presente em A incredulidade no século XVI (2009, p. 33)FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. Traduzido por Maria Lúcia Machado e José Eduardo dos Santos Lohner. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., como um fato, sem modalização, sem nenhum tipo de esclarecimento ou explicitação como os que poderiam ser introduzidos por enunciados como estes: “segundo Lucien Febvre, o anacronismo seria o pecado dos historiadores”; ou “embora haja uma controvérsia na historiografia, para Febvre, o anacronismo é o pecado dos pecados da disciplina historiográfica”.3 3 As expressões entre aspas são enunciados hipotéticos e não propostos por Latour, que se limita a mencionar o anacronismo como “pecado cardeal”. As modalizações em itálico apontam possibilidades para enunciados sobre o anacronismo que os fariam menos “fáticos” do que aqueles utilizados por Latour em suas declarações sobre o tema. Assumindo o “programa” que advoga pela historicidade dos objetos científicos, Bruno Latour desloca um enunciado historiográfico para a sua teoria ator-rede para, a partir dele, configurar as bases de uma política do tempo, apenas ampliando a sua jurisdição sem questionar a sua legalidade. Assim, se, em Febvre, o anacronismo é apresentado como um dispositivo purificador de um ordenamento temporal no que diz respeito às categorias de pensamento ― a saber, a possibilidade ou impossibilidade de ser ateu na França do século XVI ―, restringindo-se, deste modo, à esfera do social ou dos objetos técnicos, em Latour, o conceito passaria a se aplicar também aos não humanos e aos objetos científicos. Para adequar-se, pois, a uma abordagem sociológica que não distingue o “natural” do “social” e em que todas as entidades se associam sob a forma de agência (LATOUR, 1999, p. 18-19LATOUR, Bruno. On recalling ANT. In: LAW, John; HASSARD, John. (ed.). Actor-network theory and after. Oxford: Blackwell, 1999. p. 15-25.), o dispositivo do anacronismo é deslocado para a ator-rede sem que seja feita uma maior descrição da forma de temporalização das agências a ele submetidas.

O “programa”, então, de Latour em defesa da historicidade dos objetos científicos, segundo o qual seria anacrônico afirmar que Ramsés II morreu de tuberculose em 1213 a.C., trata os objetos das ciências como se eles fossem projetos tecnológicos que não escapam da sua rede de produção. Com isso, a constituição da tuberculose causada pelo bacilo de Koch como um “fato” depende de toda a série de deslocamentos e aproximações citados acima, e, se um “antiprograma” justifica a sua legitimidade epistemológica sobre a noção de “descoberta” de uma natureza eterna e a-histórica, essa justificativa acontece apenas após o apagamento de todos os traços do processo sociotécnico formador desse enunciado. O trabalho de conformação do objeto científico, desta forma, depende de uma grande quantidade de deslocamentos e vinculações entre amostras de bacilos, microscópios, especialistas, publicações e financiamentos, os quais constituem, uma vez estabelecido o fato, um agregado contingente, custoso, frágil e repleto de “história” não apagável pela noção de “descoberta científica” se bem descrito. Assumindo, pois, que os objetos científicos como o bacilo de Koch associado a Ramsés II têm história, Bruno Latour, em seguida, realiza dois questionamentos. Em primeiro lugar, pergunta-se onde estariam os objetos que não existem mais, considerando que eles tiveram uma existência anterior tomada, naquele tempo, como fato. Ou seja, após 1976 e a descoberta hipotética da tuberculose de Ramsés II, onde estaria a causa da morte anterior, de caráter “desconhecido”? E, em segundo lugar, interroga-se sobre onde estariam os objetos que agora existem antes de seu modo de existência como “fato”. Quer dizer, onde estava a causa da morte hipotética atribuída à tuberculose antes do deslocamento da múmia do Cairo para Paris em 1976? (LATOUR, 2000, p. 251LATOUR, Bruno. On the partial existence of existing and non-existing objects. In: DASTON, Lorraine (org.). Biographies of scientific objects. Chicago: Chicago University Press, 2000. p. 247-269.).

Certamente, para Latour, nem a causa da morte hipotética de Ramsés II por tuberculose antes de 1976 estava encoberta pelos véus da natureza desconhecida e nem a causa da morte desconhecida deixa de existir após 1976, mergulhada na falsidade da ignorância e das crenças primitivas. Para explicá-lo, Latour desenvolve, em seguida, a noção de existência relativa como complementar à tese da historicidade dos objetos científicos, abarcando os seus aspectos ontológicos. A existência relativa seria uma existência não marcada pela escolha entre marcadores temporais e espaciais como “nunca” e “em nenhum lugar” ou “sempre” e “em todo lugar”. O conceito serviria, assim, para impedir a extrapolação de objetos como o bacilo de Koch, a tuberculose ou a causa da morte de um faraó para a “natureza” e para a “a-historicidade” (LATOUR, 2000, p. 252LATOUR, Bruno. On the partial existence of existing and non-existing objects. In: DASTON, Lorraine (org.). Biographies of scientific objects. Chicago: Chicago University Press, 2000. p. 247-269.). Seria esta existência demarcada e relativa, portanto, que estabeleceria uma diferença crucial entre o “programa” e o “antiprograma”, entre uma história das ciências que compreende os seus objetos como “fabricados” e uma história da Ciência que os assume como “descobertos” e preexistentes. Deste modo, a transformação do enunciado a respeito da causa hipotética da morte de Ramsés II em 1976, após o seu deslocamento do Cairo para Paris, que substitui uma causa “desconhecida” pela “tuberculose”, não oporia, segundo a ator-rede, um enunciado verdadeiro que foi desvendado e um enunciado falso e fantasioso em essência que foi desmentido. Simetricamente, eles seriam ladeados em “envelopes espaçotemporais” demarcadores das entidades, os quais substituiriam por uma existência relativa qualquer noção perene e onipresente de substância (LATOUR, 2000, p. 259-260LATOUR, Bruno. On the partial existence of existing and non-existing objects. In: DASTON, Lorraine (org.). Biographies of scientific objects. Chicago: Chicago University Press, 2000. p. 247-269.). Com isso, não poderíamos dizer que, se os egípcios chamassem a causa da morte do faraó de algo como “Saodowaoth”, estariam mergulhados em erro e na ignorância por não compreenderem o real funcionamento da natureza. Por ficar tão distante de qualquer noção de “bacilo”, de “patologia”, de “infecção” ou de “laboratório”, a tradução desse significante, para as nossas concepções, seria extremamente limitada (LATOUR, 2000, p. 248-249LATOUR, Bruno. On the partial existence of existing and non-existing objects. In: DASTON, Lorraine (org.). Biographies of scientific objects. Chicago: Chicago University Press, 2000. p. 247-269.). Latour, portanto, ao estabelecer o princípio da simetria entre os enunciados, considerando que a sua “faticidade” é um resultado das associações realizadas entre os atores em questão e não um pressuposto a elas, busca manter-se coerente em relação à ideia de um pluralismo ontológico em que a “natureza” não é um pano de fundo comum que atravessa todos os povos anteriores ou atuais pelo mundo afora, sendo, pelo contrário, o resultado de uma ontologia bastante específica, de matriz europeia, que ele denomina “modernidade” (LATOUR, 2004, p. 88-91LATOUR, Bruno. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Traduzido por Gilson César Cardoso de Souza. Bauru: Edusc, 2004.).

A existência relativa de Ramsés II como agência “morta” na rede descrita por Latour em torno da tese da historicidade dos objetos científicos é bastante perceptível quando traçamos os seus deslocamentos no espaço em 1976. No Museu Egípcio do Cairo, o antigo faraó configura-se como um patrimônio histórico-cultural, um objeto museológico ou mesmo um monumento devido à sua posição na cultura egípcia antiga (e à sua consequente mobilização no Egito atual), de grande destaque no panteão dos líderes da civilização de outrora. Deslocado para a aeronave militar, destitui-se a sua musealidade e modula-se a sua patrimonialidade ao ser reduzido a restos mortais acondicionados em uma caixa. A patrimonialidade, no entanto, não é completamente perdida pelo seu caráter de “carga frágil” e por ser acompanhado pela curadora-chefe do Louvre, Christiane Desroche-Noblecourt. Ao desembarcar na base militar Le Bourget, ser recebido pela Guarda Republicana, por membros da Aeronáutica francesa e pela secretária de Estado, Alice Saunier-Seïté, são restituídas as propriedades do ator, milenarmente adormecidas, de “chefe de Estado” ao receber as honras a ele devidas, embora, talvez, fosse tarde demais para agradecê-las. Em seguida, ao chegar ao Hospital Val de Grâce e, posteriormente, à sala climatizada e esterilizada do Musée de l’Homme, aguardando intervenção para a sua infecção fúngica, Ramsés II adquire também a posição de paciente, de objeto científico e de vestígio arqueológico, condição que contrasta com sua vívida apresentação como celebridade nas telas dos televisores que cobriram o desembarque, nas páginas da revista Paris Match ou na super visitada exposição no Grand Palais. A cada constituição de um novo lugar, no seu deslocamento pelo espaço, a actancialidade de Ramsés II muda. O espaço não abriga, pois, na descrição ator-rede, os atores, e nem os atores transitam sobre espaços diversos e preestabelecidos: ambos se configuram, contingentemente, nas redes. Sendo tudo dotado de agência e tudo participante do social, Ramsés II e o Museu Egípcio do Cairo não são ator e lugar em distinção, respectivamente, mas tanto o faraó é uma espacialidade dotada de várias posições distintas enquanto atravessa o Mediterrâneo, mudando bases aéreas, canais de televisão e frígidos hospitais com a sua presença; quanto o Museu Egípcio do Cairo é um ator que transforma Ramsés II ao se vincular com ele, traduzindo-o para um estado monumental e patrimonial.4 4 Ver Latour (1997b, p. 177-178) sobre as coproduções de actancialidades, espacialidades e temporalidades na ator-rede.

Similar relatividade ontológica também se aplicaria ao nosso ator morto no que concerne aos deslocamentos no tempo. Para Latour, os movimentos nas esferas temporais e espaciais se comportariam de maneira análoga (LATOUR, 2010, p. 77LATOUR, Bruno. Crónicas de un amante de las ciencias. Traduzido para o espanhol por Lucía Vogelfang. Buenos Aires: Dedalus, 2010.). A fim de exemplificar, vejamos um gráfico apresentado por Latour em “Até onde deve ir a história das descobertas científicas?”:

Figura 1
A historicidade da causa da morte hipotética de Ramsés II de acordo com Latour

Este gráfico é um bom exemplo de como ocorre a temporalização de Ramsés II na rede em que é inscrito, mediado pelo enunciado febvreano mobilizado no texto, segundo o qual o anacronismo seria uma espécie de pecado contra o tempo histórico. A partir dele, é formulado um enunciado secundário que postula ser anacrônico afirmar que Ramsés II morreu de tuberculose em 1213 a.C.. Ramsés II é temporalizado neste enunciado a partir de uma série de “pontos de passagem obrigatórios”5 5 Para uma abordagem da noção de “pontos de passagem obrigatórios”, ver Callon (1995, p. 265-266). que modulam as agências multitemporais em uma associação. Estas agências, no entanto, apesar de multitemporais, são coetâneas, uma vez que estão copresentes no texto latouriano de 1998. Aliás, esta haverá de ser uma das orientações metodológicas adotadas por uma historiografia influenciada pela descrição ator-rede com a finalidade de delinear as políticas temporais: se entidades coabitam em rede, associadas, elas são coetâneas. Elas se tornam, assim, multitemporais, uma vez que, em seu agrupamento, operam políticas do tempo que temporalizam as agências em temporalidades distintas para cumprir algum objetivo. Sendo assim, Ramsés II é representado, no gráfico, como inserido em uma lógica de passagem do tempo que o torna dotado de um “avanço irreversível”, o que está longe de ser uma obviedade. Além disso, é preciso que ele seja inserido, em um eixo vertical, em uma temporalidade organizada por uma calendarização cristã, gregoriana, que se apresenta como universal ― embora, em 1213 a.C., para os egípcios, ela fosse completamente desconhecida, possuindo, eles, outras formas de ordenar as cronologias. Aplicando-se, porém, a povos que não a utilizavam, faz-se com que Ramsés II se temporalize em um contínuo que permite, acabando com qualquer perspectiva de um pluriverso, sustentar algo como um tempo que corre unívoco e irreversível. Essa datação como condição obrigatória para que a nossa agência egípcia se temporalize em um texto de 1998 também serve, pois, como precondição para que ela seja inserida em um eixo horizontal no gráfico, de acordo com o qual cada ano, neste calendário, possuiria uma sedimentaridade, indicando que o avanço irreversível do tempo não é um impeditivo para que o “passado” seja constantemente modificado. Desta forma, torna-se visível como Latour equipara, no texto, os deslocamentos no tempo aos deslocamentos no espaço: para que, ao ano aproximado de “1000 a.C.”, pudesse ser deslocada no tempo uma nova causa da morte de Ramsés II determinada por tuberculose, foi necessário que a sua múmia percorresse, em 1976, um deslocamento no espaço da cidade do Cairo para Paris. Assim, o bacilo de Koch, como objeto científico, dotaria-se de uma historicidade que não lhe permitiria viajar aos pulmões do faraó no ano de 1213 a.C. antes de 1976, sob o risco de se cometer um anacronismo. Não é, portanto, que a causa hipotética da morte do faraó estivesse existindo, na “natureza”, de forma oculta, até 1976, à espera de ser descoberta. É o próprio “mundo comum” que muda em 1976, incluindo este novo “fato”.

O enunciado febvreano, pois, constrói “envelopes temporais” que permitem tanto a actancialidade do morto no presente sem que a sua existência burle consensos sobre a vida e a morte, quanto a viagem no tempo de um bacilo sem que exista uma “causalidade retrospectiva”, que Bruno Latour (2010, p. 77)LATOUR, Bruno. Crónicas de un amante de las ciencias. Traduzido para o espanhol por Lucía Vogelfang. Buenos Aires: Dedalus, 2010. interdita. Obrigando o bacilo e o faraó a se temporalizarem de acordo com as regras do dispositivo do anacronismo, de acordo com um calendário gregoriano universalizado e com uma concepção linear e irreversível de tempo, Latour expõe uma cronopolítica como fato ao tentar criar uma reflexão sobre o tempo em sua descrição ator-rede. Esses “envelopes” modulados pelo anacronismo fazem com que os objetos científicos até possam se associar com agências de milhares de anos atrás, mas não sem, contudo, o trabalho de deslocamento e aproximação de entidades no laboratório. O laboratório, portanto, é que desloca o bacilo de Koch no tempo, em vez de descobri-lo de forma retrospectiva. Além disso, tais “envelopes” permitem que Ramsés II estabeleça “sociedades” com entidades que são coetâneas à instância de enunciação de Latour, em seu texto, tais como as science wars dos anos 1990, ao mesmo tempo em que ele é tratado como pertencente ao “passado”, sendo extemporaneizado do “presente” em que atua. Embora extraditados ao “passado”, os mortos são agenciados no agora a todo momento, como percebemos na relevância política, midiática, histórica e científica de Ramsés II para museus, jornais, relações internacionais e especialistas em 1976 ou nas querelas sobre as relações das ciências com as demais esferas sociais no momento em que Latour redige os seus textos em que menciona o antigo faraó. Isso nos leva a crer que esses atuantes da anterioridade seguem, de alguma forma, em ação por meio de uma tanatoagência, trazendo proposições para as assembleias dos coletivos atuais que são endossadas ou contrapostas por outros atores, disputando o que pertence a cada tempo. Em última instância, todo trabalho historiográfico, inclusive, ao articular existências multitemporais em uma inscrição, opera como um porta-voz desses mortos, posicionando-os de determinadas maneiras como agências coetâneas pertencentes a um “passado” tal qual uma instância do mundo comum temporalmente diversa e anterior.6 6 Uma boa referência sobre a “fabricação” do passado como instância anterior e qualitativamente diferente do presente pode ser encontrada em Schiffman (2011).

Análise da temporalização do caso de Ramsés II

A descrição ator-rede de Latour é bastante influenciada pela sociologia de Gabriel Tarde, que trata tudo como agência que se agrega em sociedades. Assim, neste sentido, no caso do translado de Ramsés II, não apenas os componentes humanos seriam “sociais”, como também as especialidades, a instituição da Guarda Republicana que recebe o falecido chefe de Estado ou mesmo a revista Paris Match e o Musée de l’Homme, além do próprio bacilo de Koch como não humano e a causa da morte do faraó como objeto científico. Sendo, portanto, “que toda coisa é uma sociedade, que todo fenômeno é um fato social” (TARDE, 2007, p. 81-82TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia e outros ensaios. Traduzido por Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2007., grifos do autor), a descrição ator-rede teria por objetivo seguir as agências que se agregam tratando-as de forma “simétrica” e estabelecendo que a definição daquilo que pertence ao mundo “social” ou ao “natural”, bem como à esfera dos “fatos” ou da “ficção”, não antecede a formação das associações, mas é algo que delas decorre. Neste sentido, por serem todas as entidades dotadas de agência, desde os humanos aos não humanos e aos objetos técnicos e científicos, por que os mortos ― isto é, as agências da anterioridade ― não o seriam? Isto que dizer, certamente, que Ramsés II ou a causa de sua morte não são “representações” ou “usos do passado” delineados por Latour, situações em que, apesar das controvérsias em que o faraó poderia se encerrar, ele ainda pertenceria ao “passado” como um lugar sob um regime ontológico específico, dotado de “passeidade”7 7 Um exame da noção de “passeidade” pode ser encontrado em Bevernage (2021). embora com certa presença atual. Contrariamente, poderíamos afirmar, de acordo com a ator-rede, que a temporalização também é resultado da associação das agências de modo similar à formação do “natural” e do “social”, o que faz com que a condição de ator do “passado” não seja apriorística. Todos os atores, portanto, haveriam de ser descritos a partir da evidência de sua coetaneidade, uma vez que estão, de alguma maneira, vinculados em um agora ― Ramsés II, o bacilo de Koch, Bruno Latour, o ano de 1213 a.C., o ano de 1976, o Museu Egípcio do Cairo, a Guarda Republicana, entre outros, no caso que nos ocupa. E a ordem do tempo pela qual eles se actancializam em rede, então, será configurada, contingentemente, por procedimentos de tradução que adequam essa existência coletiva e fazem com que o “social” tome forma.

O tempo na ator-rede, com isso, seria uma fabricação sociotécnica capaz de tornar os agregados de atores multitemporais, como no caso do translado de Ramsés II, mais ou menos estáveis. Com isso, Latour trata o espaço e o tempo de forma não objetivista, isto é, como não preexistentes à percepção e à intelecção, e nem subjetivista, ou seja, como categorias não restritas à nossa mente e sensação (LATOUR, 1997b, p. 180LATOUR, Bruno. Trains of thought: Piaget, formalism, and the fifth dimension. Common Knowledge, Durham, v. 6, n. 3, p. 170-191, 1997b.). Textos como “Até onde deve ir a história das descobertas científicas?” ou “Sobre a existência parcial dos objetos existentes e não existentes” nos permitem, então, compreender como as agências da “causa hipotética da morte do faraó”, “Ramsés II” e o próprio “bacilo de Koch”, quando vinculadas, se organizam no tempo dependentes de deslocamentos e aproximações. Submetidos ao dispositivo do anacronismo a partir do enunciado de Febvre que lhe atribui um caráter pecaminoso, fazer com que o bacilo chegasse aos pulmões do faraó em 1213 a.C. no ano de 1976 só se tornou possível graças ao deslocamento do faraó do Egito para a França, do museu para o laboratório, alterando a sua existência relativa de uma condição patrimonial e museal para a de objeto científico. Sem a travessia do Mediterrâneo, portanto, o bacilo de Koch não teria chegado a 1213 a.C.. Sem o translado, permaneceria sendo anacrônico atribuir à tuberculose a causa da morte de Ramsés II em 1213 a.C., mesmo após 1976, segundo Latour. Tal deslocamento, portanto, do museu para o laboratório, alterando a existência relativa de nosso célebre tanatoagente, foi o que possibilitou fabricar temporalidades ao construir “passados”. Cronologicamente, o ano de 1213 a.C. passa a ter, a partir de então, uma nova entidade, um bacilo, anteriormente estrangeiro, e a história do Antigo Egito recebe, a partir de 1976, um novo enunciado a respeito da causa da morte de um de seus mais famosos soberanos.

As sociotécnicas que temporalizam as redes podem ser tão numerosas quanto as redes a serem descritas. Portanto, meus apontamentos partem do caso de Ramsés II para sugerir procedimentos descritivos utilizáveis em outras situações, sem postular, evidentemente, que possam ser usados de modo geral. A seguir, dividirei esses procedimentos descritivos em quatro etapas referentes a: a) o ordenamento das entidades no tempo a partir de “envelopes temporais”; b) a produção da inscrição, ou seja, a articulação da linguagem como instrumento de política temporal; c) a utilização de técnicas de alocação da passagem do tempo; d) o processo necessário para que agências anteriores e atuais se vinculem, demandando novas temporalizações de suas posições no mundo comum.

Os “envelopes temporais” que determinam a existência dos seres no tempo sob um determinado ordenamento político podem ser descritos considerando-se as categorias elencadas por Johannes Fabian no famoso livro O tempo e o outro (2013)FABIAN, Johannes. O tempo e o outro: como a antropologia estabelece o seu objeto. Traduzido por Denise Jardim Duarte. Petrópolis: Editora Vozes, 2013., de 1983. Para investigar como a antropologia, historicamente, constituiu o seu objeto de investigação, Fabian partiu de uma contradição fundamental que marca a discursividade da disciplina: ao mesmo tempo em que ela depende de um “trabalho de campo” que pressupõe a coetaneidade daquele que descreve e os seus descritos, ela, na inscrição acadêmica, acaba por alterizar o seu objeto, situando-o em um outro tempo. A esse procedimento, o autor denomina “negação de coetaneidade”, o que haveria feito, desde o século XIX, com que a disciplina servisse para a legitimação do colonialismo, imperialismo e práticas de dominação que assimetrizam distintas populações de acordo com os usos do tempo da antropologia. Essa “negação de coetaneidade”, que alocroniza os objetos antropológicos, então, aconteceria sobretudo por meio de organizações de temporalidades “físicas”, “mundanas” e “tipológicas”.

O que Fabian chama de um tempo “físico” está ligado à concepção da passagem do tempo como a linearidade irreversível na qual Latour insere Ramsés II e a causa hipotética de sua morte; e à criação de cronologias para descrevê-la, como o calendário gregoriano que enumera eventos como a morte do faraó em 1213 a.C, a demarcação do bacilo de Koch em 1882, o translado de Ramsés II do Cairo para Paris em 1976 e a escrita dos textos de Latour no final dos anos 1990 (FABIAN, 2013, p. 57-58FABIAN, Johannes. O tempo e o outro: como a antropologia estabelece o seu objeto. Traduzido por Denise Jardim Duarte. Petrópolis: Editora Vozes, 2013.). Este tempo “físico” instauraria relações de sincronia e de assincronia, fazendo com que, por exemplo, antes do deslocamento de 1976, fossem assíncronos em 1213 a.C. Ramsés II e o bacilo de Koch. Esta assincronia se altera, evidentemente, a partir do translado da múmia, o que indica como o deslocamento e a aproximação de entidades outrora distantes produzem temporalização por meio de eventos. O que, todavia, de acordo com a mobilização do calendário gregoriano e da noção de irreversibilidade da passagem do tempo, não altera as organizações temporais anteriores a 1976: para sempre, em Latour, antes de 1976, terá sido anacrônico levar o bacilo de Koch até 1213 a.C., constituindo-se, então, no ano de 1213 a.C. uma temporalidade “sedimentar” que estabiliza “envelopes temporais” agregadores de atores pertencentes a uma determinada temporalização. Até 1976, portanto, o bacilo de Koch nos pulmões de Ramsés II não comporia o ano de 1213 a.C., e levá-lo até lá seria anacrônico pois quebraria a sua sincronia; todavia, após 1976, não o seria mais, uma vez que o enunciado a respeito da causa da morte do faraó se alterou com a travessia mediterrânica de seus restos mortais.

Talvez fosse mais apropriado chamar essa temporalização não de “física”, mas de “cronológica”, para desnaturalizá-la e aproximá-la dos procedimentos técnicos necessários para a datação, que são, muitas vezes, esquecidos ao analisarmos a atuação dos mortos na atualidade. Por ora, todavia, creio ser mais importante ressaltarmos como, de modo similar à análise de Jacques Rancière (2011, p. 22)RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon (org.). História, verdade e tempo. Traduzido por Mônica Costa Netto. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-49., o anacronismo se apresenta nesta temporalização como um instrumento poético capaz de estabelecer um elo entre o tempo e a verdade. Por meio do “tempo sedimentar”, portanto, para sempre, antes de 1976, a causa da morte do faraó será indeterminada, assim como a historicidade dessa causa da morte como objeto científico será alterada não pela descoberta da natureza antes oculta, mas por um procedimento de laboratório que estabelece novos vínculos entre entidades anteriormente distantes capazes de constituir um “fato” em sua associação. Ao extemporaneizar a partir de 1976 a causa da morte de Ramsés II como indeterminada no ano de 1213 a.C., tornando viável que o bacilo fosse síncrono ao Antigo Egito, o dispositivo do anacronismo e a cronopolítica cronológica mobilizados por Latour funcionam como fabricantes de “passado”, isto é, produtores da “passeidade” de uma causa da morte indeterminada que só existe relativamente, como uma crença que foi atual até 1976. Deste modo, aliar Ramsés II ao bacilo de Koch só é possível submetendo-os a uma série de procedimentos cronológicos que modulam a agência de ambos definindo quais limites, como morto, Ramsés II pode ter ao se movimentar pelo mundo dos vivos.

Outras duas formas de temporalização em Fabian dizem respeito aos tempos que ele chama de “mundano” e “tipológico”, bastante menos utilizados neste texto de Latour do que as cronologias e datações. A temporalidade “mundana” seria a organização da história em períodos ou etapas, tais como a “Antiguidade”, a “Idade Média”, a “Modernidade” e a “Idade Contemporânea”, ou, no caso brasileiro, em “Colônia”, “Império” e “República”, o que implicaria, certamente, a ideia de um curso universalizante da história, levando à definição da existência das entidades segundo a sua alocação nesses “envelopes”. Neste sentido, ser “medieval” não é apenas algo que situa, por exemplo, as relações feudais em uma determinada databilidade, mas também que as aloca em uma noção do curso da história mais ampla, atribuindo-lhes um caráter “pré-moderno”, “pré-capitalista” e, portanto, “atrasado”, “obsoleto” e “ultrapassado” (FABIAN, 2013, p. 58-59FABIAN, Johannes. O tempo e o outro: como a antropologia estabelece o seu objeto. Traduzido por Denise Jardim Duarte. Petrópolis: Editora Vozes, 2013.). A temporalização “tipológica”, por outro lado, não possuiria esse caráter generalista, mas contraporia agrupamentos que possuem assimetrias temporais, como, por exemplo, “rural” e “urbano”, “periferia” e “centro”, “antigo” e “atual”, “subdesenvolvido” e “desenvolvido”. Estas modalizações são importantes, pois, para descrevermos como entidades que coabitam a coetaneidade são temporalizadas em situações distintas para que possam estar associadas. Assim, o “feudalismo”, por exemplo, não é estranho ao agora, uma vez que é mencionado em inumeráveis trabalhos de especialistas, em jogos ou em flmes que invocam uma medievalidade ou um medievalismo; no entanto, é este aspecto que lhe garante um vínculo com historiadores, consoles e plataformas de streaming sem ser um fenômeno contemporâneo. De modo similar, quando a secretária de Estado para assuntos universitários Alice Saunier-Seïté recebe Ramsés II na base aérea Le Bourget, dedicando a ele todas as honras e a presença da Guarda Republicana, refere-se a ele como “um dos maiores chefes de Estado da antiguidade” (FARNSWORTH, 1976, p. 5FARNSWORTH, Clyde H. Paris Mounts Honor Guard For a Mummy. The New York Times, Nova York, 28 set. 1976. p. 5., tradução minha). Assim, é ambivalente a presença deste tanatoagente: ao mesmo tempo em que ele é recebido como autoridade legítima, ele pertence à “antiguidade”, sendo extemporâneo mas politicamente atuante.

E, nesse caso, é a linguagem de Alice Saunier-Seïté que posiciona Ramsés II, modalizando a sua existência. Desta forma, rumamos para o nosso segundo ponto, o da produção da inscrição e da articulação da linguagem como instrumento das políticas temporais. Chamo o enunciado, aqui, de inscrição uma vez que, para Latour, a sua própria existência o transforma em uma agência, em um objeto, que também se vincula com e traduz outros atores. Assim, para agir após a sua morte, Ramsés II, não podendo mais falar por contra própria, alia-se à revista Paris Match, ao jornal The New York Times, aos textos de Bruno Latour, à cobertura televisiva ou à fala da secretária de Estado francesa para poder expressar-se. A sua tanatoagência, portanto, depende da porta-vocalidade dos humanos vivos para realizar-se, assim como depende dela a atuação de outras entidades não falantes, como é o caso dos não humanos e dos objetos científicos e sociotécnicos.8 8 Lisa Disch (2008) traz um interessante panorama sobre a noção de porta-vocalidade em Latour. Esta ideia se assemelha àquilo que Isabelle Stengers denominou “invenção experimental”, ou seja, o “poder de conferir às coisas o poder de conferir ao experimentador o poder de falar em seu nome” (STENGERS, 2002, p. 108STENGERS, Isabelle. A invenção das ciências modernas. Traduzido por Max Altman. São Paulo: Editora 34, 2002.), estabelecendo uma relação entre as entidades não falantes (como os mortos) e os especialistas que buscam relatar, em inscrições, os testemunhos e proposições de tais entidades. Essa capacidade de falar pelos humanos anteriores, no entanto, estende-se também a outros humanos evidentemente não mediados pela disciplina historiográfica, como jornalistas, fotógrafos, operadores de câmera e secretárias de Estado, o que torna as proposições dos mortos em nossas assembleias ainda mais complexas, plurais e controversas, transformando o “passado” em um constante território instável e disputado. Talvez essa seja a origem do sentimento constante na historiografia de uma “disciplina em crise”.

Rancière percebe muito bem, em Os nomes da história (1994), alguns protocolos da “poética do saber” da disciplina que buscam ocultar essa posição de agência dos mortos por intermédio de um representante humano vivo. Ao configurar-se como disciplina, a história teria ocultado procedimentos miméticos para dar ênfase ao seu caráter diegético. Em outras palavras, a forma de sua discursividade enfatizou o discurso em terceira pessoa, nos moldes do que Benveniste (1991, p. 261-263)BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Traduzido por Maria da Glória Novak e Maria Luíza Neri. Campinas: Pontes; Editora da Unicamp, 1991. chama de “relato”, fazendo com que o narrado seja sempre algo ou alguém ausente da instância do discurso e, por isso mesmo, pertencente a outro tempo. Assim, diegeticamente, frases como a da legenda da Paris Match alegando que “nossos cientistas socorrem Ramsés II, que adoeceu 3000 anos após a sua morte” posicionam o faraó como distante do agora, como o relatado, na forma de uma entidade de três milênios atrás, apesar de ele estar, de algum modo, vinculado aos cientistas e a uma doença coetâneos. Ora, se estivéssemos em um protocolo mimético, de acordo com a distinção de Rancière, teríamos algo como: “Eu, Ramsés II, fui socorrido por cientistas 3000 anos após a minha morte”, formulação inconcebível para o discurso historiográfico ou mesmo para diversas outras sociotécnicas produtoras de “passado”, cabível apenas em um romance histórico ou em uma psicografa. Todavia, a ambivalência das falas que mobilizam os mortos reside em que, se os assumimos como agências no agora representadas nas inscrições por meio de porta-vozes, mesmo quando relatamos Ramsés II em terceira pessoa, ainda não é ele quem fala, e sim aquele que o enuncia, situando o faraó em uma rede de relações e de sentidos que inexistia no Antigo Egito. Portanto, dessa forma, ocorre uma mimetização, em um processo que Latour descreve como tradução. Toda fala é composta por alteridades constitutivas, como afrma Jacqueline Authier-Revuz (2004)AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva: elementos para uma abordagem do outro no discurso. Traduzido por Alda Scher e Elsa Maria Nitsche Ortiz. In: AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 11-80., e essas alteridades que ingressam nos enunciados (no caso dos meus enunciados, Ramsés II, o Egito Antigo, Robert Koch, uma revista de 1976, entre outras) fazem com que a distinção entre o que pertence ao “presente” e o que pertence ao “passado” seja sempre problemática, caracterizando toda inscrição como a estabilização de um agregado multitemporal de atores.

Descrever Ramsés II diegeticamente, situando-o como externo e extemporâneo à instância do discurso, produz o efeito de ele pertencer ao “passado” como instância anterior e qualitativamente diferente do “presente” ao mesmo tempo em que a sua imagem em coexistência aos cientistas reafrma a coetaneidade de todas as agências descritas. Tal processo de transformação de Ramsés II em uma agência coetânea modalizada pela ontologia do passado depende do dispositivo do anacronismo como purificador dos seres no tempo a partir da mobilização do enunciado febvreano em que o anacronismo se configura como um objeto sociotécnico responsável pela alocação das entidades na passagem do tempo. Chegamos, com isso, ao nosso terceiro ponto. O anacronismo opera na descrição latouriana do translado de Ramsés II como uma “caixapreta”, isto é, como um dispositivo cujo funcionamento interno não questionamos ― uma vez que Latour o assume como um “fato” ―, esperando apenas que, a partir de uma série de inputs, obtenhamos outputs com um objetivo predeterminado. (LATOUR, 2000, p. 14LATOUR, Bruno. On the partial existence of existing and non-existing objects. In: DASTON, Lorraine (org.). Biographies of scientific objects. Chicago: Chicago University Press, 2000. p. 247-269.). Ou seja, do mesmo modo como, em uma calculadora, nós inserimos dados de operações (inputs) pelo seu teclado, esperando receber resultados na tela (outputs), sem sabermos nada sobre sua microeletrônica e algoritmos internos, o anacronismo capta em suas “entradas” entidades multitemporais ― Ramsés II, o bacilo de Koch, a matéria da revista Paris Match, os textos de Latour, o Museu do Cairo, a Guarda Republicana… ― e fornece, nas suas “saídas”, uma associação de todos eles razoavelmente estabilizada em uma inscrição segundo uma determinada política do tempo. Desta forma, duas causas hipotéticas da morte de Ramsés II, por exemplo, podem conviver em um mesmo texto, mas apenas sob determinadas circunstâncias: a causa da morte indeterminada se estende até o limite de 1976; a partir de então, a causa passa a ser a tuberculose. Além disso, o anacronismo delimita a existência histórica do bacilo de Koch, estabelecendo que não há problemas em vinculá-lo a Ramsés II após o trabalho de tê-lo levado ao laboratório. Antes disso, tal associação seria anacrônica.

Contudo, se desmontássemos o anacronismo assim como o faríamos com uma calculadora e perscrutássemos o seu “algoritmo”, perceberíamos que ele não prescinde de uma série de outras técnicas a ele anteriores e bastante visíveis no texto latouriano. Primeiramente, para que o anacronismo realize o seu trabalho associativo, é crucial a fabricação do “passado” como instância temporal não apenas anterior ao “presente”, mas também dele qualitativamente diferente. Peter Burke (2013, p. 202-212)BURKE, Peter. O conceito de anacronismo de Petrarca a Poussin. Política e trabalho: revista de ciências sociais, João Pessoa, n. 39, p. 195-220, out. de 2013. bem descreve, por exemplo, como a ideia de que os humanos anteriores teriam sido diferentes de nós em hábitos, crenças e costumes é historicamente situada em um contexto europeu que se configura a partir do século XV. Nele, ocorrem a disseminação cada vez maior da escrita em detrimento de uma cultura oral, a popularização nos círculos intelectuais da ideia de que a língua se transforma com o passar do tempo e o consequente desenvolvimento da crítica documental, as transformações experimentadas pelo cristianismo e as reformas que opõem um cristianismo “primitivo” a um “moderno”, os contatos com os povos ameríndios, africanos e asiáticos posteriores às expedições marítimas e, por fim, a organização desses povos em temporalidades distintas de acordo com uma “história universal”. Além disso, para fixar sincronias que assincronizam enunciados, tornando-os anacrônicos, fazem-se necessários inúmeros desenvolvimentos nas técnicas de datação, calendarização e metrologização, descritas, por exemplo, por Le Gof (1979) com a ascensão dos relógios mecânicos e dos sinos de trabalho no século XIV uniformizando os tempos urbanos; por Whitrow (1993)WHITROW, G. J. O tempo na história: concepções sobre o tempo da pré-história aos nossos dias. Traduzido por Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. e Roth (2013)ROTH, Norman. Calendar. In: GERLI, E. Michael (org.). Medieval Iberia: an encyclopedia. London: Routledge, 2013. p. 190., quando referem o espalhamento da cronologia Anno Domini em detrimento de outras concorrentes, como a Anno Diocletiani e a Era Hispanica; por Poole (1917POOLE, Reginald. Imperial influences on the forms of papal documents. Londres: British Academy, 1917.; 1918POOLE, Reginald. Medieval reckonings of time. Londres: SPCK, 1918.), quando lembra a equiparação dos marcos de referência sobre o início do ano e a adoção do calendário gregoriano com a bula Inter gravissimas em 1582; e por Palmer (2002)PALMER, Allen W. Negotiation and resistance in global networks: the 1884 International Meridian Conference. Mass communication and society, Londres, v. 5, n. 1, p. 7-24, 2002. e Zerubavel (1982)ZERUBAVEL, Eviatar. The standardization of time: a sociohistorical perspective. American Journal of Sociology, Chicago, v. 88, n. 1, p. 1-23, 1982., quando resgatam as negociações da International Meridian Conference de 1884 com o objetivo de introduzir um padrão cronológico mundial. Assim, no exemplo do translado de Ramsés II em Latour, submetê-lo ― como também à causa hipotética de sua morte ― ao dispositivo do anacronismo depende da cronologia expressa no gráfico supracitado, que afixa entidades e enunciados a uma data universalmente assumida (em uma cronologia que era absolutamente estrangeira a Ramsés II em 1213 a.C.), sendo estabelecidos, a partir dessa vinculação, limites de atuação para determinados atores. Sem contar que, para o próprio deslocamento ao laboratório que é relatado, realizado em um avião militar, e para a transmissão televisiva de sua chegada ao aeroporto Le Bourget, foram utilizados instrumentos de navegação aérea e de sincronização no envio e recebimento de dados televisivos dependentes de uma metrologia fina. Somente a partir destes recursos foi possível determinar, em um texto do fim dos anos 90, se Ramsés II e o bacilo passariam ou não por um fltro de anacronismo.

Todas estas técnicas de temporalização estão pressupostas internamente na “caixapreta” que é o anacronismo nos textos de Latour, sem que, por isso, é claro, sejam mencionadas. E a sua não menção fazem a aplicação destas entidades multitemporais nos inputs do anacronismo e a sua resolução temporal nos outputs ser compreendidas como fáceis, simples e lógicas, escondendo todo o trabalho de associação subentendido. Desta maneira, chegamos ao quarto e último ponto da análise da sociotécnica da temporalização de Ramsés II e da causa hipotética de sua morte em Bruno Latour, que trata do processo pelo qual o tempo é fabricado na rede. Para o autor, nas associações de agências multitemporais, a temporalização, assim como a espacialização e a actancialização, são uma questão de intensidade, sendo produzidas com maior ou menor trabalho dependendo da quantidade de mediações às quais os atores precisam ser submetidos para deslocar-se e vincular-se. Em Linhas de pensamento, Latour (1997b, p. 173-178)LATOUR, Bruno. Trains of thought: Piaget, formalism, and the fifth dimension. Common Knowledge, Durham, v. 6, n. 3, p. 170-191, 1997b. utiliza o exemplo de um trem-bala para ilustrar esta questão. Após uma árdua construção, que requereu abrir espaços na mata fechada para os trilhos e as estações mediante o uso de muita força ― e esforço ― humana e mecânica, o trem passa a estabelecer viagens previsíveis e pontuais em cujo trajeto praticamente nada perturba os passageiros, os quais se esquecem de todo o trabalho envolvido na produção desse meio de transporte. Neste caso, o trem-bala configura-se mais como um intermediário do que como um mediador, devido ao fácil transporte de passageiros que viabiliza do ponto A para o ponto B. Mas, sugere o autor, imaginemos que, no caminho do trem-bala, houvesse, em uma pequena cidade, uma manifestação que interrompesse a passagem do veículo, demandando que lá fosse construída uma estação para o embarque e desembarque de passageiros. Isso faria com que a viagem não fosse mais tão fácil e carente de eventos: haveria uma parada para se negociar, uma mediação a se fazer, que alteraria tanto os manifestantes quanto os passageiros do trem-bala. Com isso, o meio de transporte se tornaria menos um intermediário para os passageiros chegarem do ponto A ao ponto B e mais um mediador, devido à existência de um evento importante em seu caminho que gerou atrasos, estresse e negociações com manifestantes, demandando mais trabalho. De forma correlata, para Latour, o tempo se fabrica nessa relação de mais ou menos trabalho que ele chama de processo.

Aqueles que afirmam, pois, que a existência hipotética do bacilo de Koch nos pulmões de Ramsés II constituiria uma descoberta de que ele morreu de tuberculose, fazendo com que a existência do bacilo se estendesse automaticamente até 1213 a.C., tratariam o deslocamento dessa bactéria na cronologia do calendário gregoriano como uma viagem sem negociação, como se esse eixo de datação fosse simplesmente um intermediário. Para Latour, no entanto, tratar os objetos científicos como dotados de historicidade ― o que, para ele, é sinônimo de submeter-se ao dispositivo do anacronismo ― significa delinear as mediações necessárias para que o bacilo causador da tuberculose pudesse chegar até 1213 a.C., requerendo uma série de negociações e aproximações que demandam uma alta carga de trabalho, em um processo intenso. Com efeito, conduzir o bacilo de Koch até o ano de 1213 a.C. demandou negociações intergovernamentais entre a França e o Egito para o translado dos restos mortais do faraó; uma viagem de avião atravessando o Mediterrâneo em companhia da curadora do Museu do Louvre para dar ao objeto museológico o seu devido tratamento em função de sua relevância; uma recepção digna de um chefe de Estado por uma autoridade do Executivo francês e pela Guarda Republicana, que reconhece a legitimidade política do morto em questão; uma ampla cobertura da mídia impressa e televisiva, que suscita o interesse das pessoas não especialistas no assunto, justificando a empreitada; um trabalho de especialistas multidisciplinares que, juntamente a objetos técnicos de alto desempenho, puderam diagnosticar o que estaria no sistema respiratório de Ramsés II. Apenas após todas estas mediações, como se cada uma delas fosse uma manifestação com a qual se precisou negociar no caminho do trem-bala, é que poderíamos levar, segundo Latour, o bacilo encontrado em 1976 nos pulmões do faraó para 1213 a.C. sem incorrermos em anacronismo, evidenciando a historicidade da fabricação da causa de sua morte por tuberculose como “fato”.

A principal questão, para mim, na descrição das tanatoagências segundo a atorrede, é que Latour estabelece o anacronismo como um ponto de passagem obrigatório para determinar a historicidade dos objetos científicos sem levar em conta que esse mesmo dispositivo opera como uma caixa-preta que intermedia a temporalização das agências sem demonstrar as inúmeras e complexas mediações que opera. Assim, ao mobilizar o enunciado febvreano do anacronismo como pecado somente ampliando a sua jurisdição para os não humanos e objetos científicos, sem questionar a sua legalidade, Latour não descreve as mediações necessárias para sustentar um enunciado como “é anacrônico afirmar que Ramsés II morreu de tuberculose em 1213 a.C.”. Isto porque, para que o anacronismo funcione, primeiramente, é preciso vincular o faraó ao calendário gregoriano, que lhe é milenarmente posterior e possui como eixo o nascimento de um Cristo que ele sequer sonhava, o que faz, inclusive, com que a temporalização de Latour module a existência de Ramsés II de acordo com os seus parâmetros. Se ampliarmos a ideia de “pluralidade ontológica” e de “multinaturalismo” para as temporalizações, o próprio ato de circunscrever Ramsés II em uma cronologia exógena ao Antigo Egito não seria, já, uma mediação a ser descrita? Além disso, a “fecha do tempo irreversível” na qual Ramsés II é inserido comprime todos os tempos de todos os povos em uma única passagem, tornando Ramsés II equivalente à Revolução Francesa, às explosões atômicas em Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945 e ao genocídio armênio como entidades pertencentes ao “passado”, essa instância ontológica que se apresenta como um agregador de todos os seres da anterioridade em diferença ao “presente”. Deslocar Ramsés II de sua existência no agora para o “passado”, para uma posição em uma “fecha do tempo irreversível”, para uma morte no ano de “1213 a.C.” não seria, também, uma mediação a ser considerada, sem a qual o anacronismo ou não de sua vinculação ao bacilo de Koch não poderia ser afirmado?

Esta cronologia, em Latour, mediada pela calendário gregoriano é o que permite organizar os “envelopes temporais” que autorizam ou não a existência das entidades humanas, não humanas, técnicas e tanatológicas em determinadas datações. Contudo, ela nada tem de “natural”, e a suposição do anacronismo como “fato” só pode se sustentar se não descrevemos meticulosamente o seu funcionamento. O anacronismo, de fato, gera “entraves” para que os atores se desloquem, determinando, por meio de seu “algoritmo”, políticas do tempo que os circunscrevem em uma temporalização universalista, unívoca, etapista e epocal.

Contribuições da descrição ator-rede diante dos usos do passado e da recepção da Antiguidade

Uma tradução da descrição ator-rede para a historiografia, portanto, pode se basear na metodologia latouriana, embora radicalizando a simetria que ele aplica às oposições entre “fato e ficção” e “natural e cultural” para o tempo. Assim, as distinções entre “passado, presente e futuro”, como as demarcadas entre “épocas”, “períodos”, “etapas” e “classificações” que envelopam os atores multitemporais não haveriam de ser assumidas de forma apriorística, mas como resultado das associações de agentes e das políticas do tempo decorrentes dessas mesmas associações. Questionando o procedimento descritivo latouriano das políticas temporais no caso do translado de Ramsés II, demonstrei como assumir o dispositivo do anacronismo como “fato” faz com que Latour não perceba uma série de mediações implicadas nesse dispositivo mas ocultas pelo seu funcionamento como “caixa-preta”, o que torna a tese da historicidade dos objetos científicos da forma como o autor a defende dependente de procedimentos tipicamente “modernos” que o autor critica, como o “mononaturalismo” universalista que enquadra todos os povos e todas as entidades em um único curso da história (LATOUR, 2004, p. 88-91LATOUR, Bruno. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Traduzido por Gilson César Cardoso de Souza. Bauru: Edusc, 2004.). Neste sentido, relaciono, então, a ideia de “simetria” entre os atores associados de Latour, como uma metodologia para as descrições historiográficas, com a noção de “coetaneidade” de Johannes Fabian, tratando todas as agências históricas como coetâneas, uma vez que estão inseridas em uma mesma rede descrita. No entanto, embora coetâneas, essas agências passam a se actancializar como pertencentes a diferentes “envelopes” temporais a partir das mediações às que são submetidas, sendo remetidas a instâncias como o “passado”, a “Idade Média” ou o “arcaico” a partir de fabricações que são historicamente situadas e contingentes e orientadas por políticas do tempo particulares. Assim, de modo análogo à “negação de coetaneidade” no discurso antropológico, que alocroniza agências remetendo-as a outros tempos concomitantemente a sua presença evidente pelo discurso, defendo que a construção da “passeidade” no discurso historiográfico nega a coetaneidade dos atores mortos a partir de extemporaneizações nas quais o anacronismo como dispositivo pode vir a cumprir um papel fundamental. Restaurar a coetaneidade das tanatoagências na história é, portanto, tratar o passado não como o ponto de chegada da investigação, mas como ponto de partida cuja sociotécnica de fabricação precisa ser delineada.

Isso faz com que uma historiografia ator-rede seja um tanto distinta de outras abordagens de casos similares ao da análise latouriana do translado da múmia de Ramsés II do Cairo para Paris, que poderiam ser compreendidas sob a perspectiva dos “usos do passado” ou da “recepção da Antiguidade”. A expressão “usos do passado” possui origens diversas, que podem remeter a textos de François Hartog e Jacques Revel (2014)HARTOG, François; REVEL, Jacques. Historians and the present conjuncture. In: REVEL, Jacques; LEVI, Giovanni. Political uses of the past: the recent Mediterranean experience. Londres: Routledge, 2014. p. 1-12. ou de Enzo Traverso (2012)TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar: história, memória e política. Traduzido por Tiago Avó. Lisboa: Unipop, 2012. em que os autores investigam interseções entre o discurso historiográfico e a memória coletiva. Neles, é enfatizada a disputa a respeito de atores do “passado” no “presente”, especialmente no que se refere a aspectos públicos dessa anterioridade, em que o passado se transforma em controvérsia ao tratar de episódios traumáticos para a coletividade, de disputas referentes à construção das identidades nacionais e da patrimonialização e monumentalização nos espaços urbanos. Tratar a agência de Ramsés II neste sentido implicaria supor que Latour está deslocando um ator de uma temporalidade para a outra com a finalidade de disputar o evento de 1976 e toda a querela midiática e política em torno do translado da múmia para marcar uma posição diante das science wars dos anos 90 em defesa da tese da historicidade dos objetos científicos que contrapõe dois programas epistemológicos para as ciências nos quais as ideias de “descoberta” ou de “construção” dos fatos científicos são inconciliáveis. Sob a infuência das noções hartoguianas de “regimes de historicidade” (HARTOG, 2013, p. 11-13HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Traduzido por Andréa Souza de Menezes, Bruna Befart, Camila Rocha de Moraes, Maria Cristina de Alencar Silva e Maria Helena Martins. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.) ou da estratificação do tempo e multitemporalidade dos conceitos de Koselleck (2006)KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Traduzido por Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006., acredito, porém, que o trabalho conceitual dos “usos do passado” ainda não delineia, como o faz a ator-rede, o próprio esforço sociotécnico de fabricação de instâncias como o “passado” na associação situacional dos atores, pressupondo, de certa forma, que “passado”, “presente” e “futuro” operam como categorias apriorísticas que se atrelam a agências como Ramsés II de forma substancial. Afinal, em uma descrição ator-rede, Ramsés II seria temporalmente simétrico a Latour, ao avião que o transporta, aos jornalistas que cobrem o acontecimento de sua chegada a Paris e aos instrumentos que o examinam. Pertencer a “1213 a.C.” ou ao “Antigo Egito” não seria, portanto, aquilo que qualifica a narração de Latour como um “uso do passado”, mas o próprio processo a ser descrito com o objetivo de se compreender as políticas do tempo que operam nesta inusitada associação e que acabam, por fim, relegando-o a um “envelope” temporal alocronizado com o objetivo de sustentar a tese da historicidade dos objetos científicos.

No mesmo sentido, considerar as inscrições latourianas que invocam Ramsés II como uma “recepção da Antiguidade” não alcançaria, a meu ver, uma descrição minuciosa das políticas do tempo que operam na rede envolvida no translado da múmia. Sendo um campo consolidado na historiografia antiga sobretudo por Charles Martindale (1993)MARTINDALE, Charles. Redeeming the text: latin poetry and the hermeneutics of reception. Cambridge: Cambridge University Press, 1993., artigos como os de Vargas (2019)VARGAS, Anderson Zalewski. As recepções e as conformações de passado e presente. Heródoto, Guarulhos, v. 4, n. 2, p. 7-17, jul.-dez. de 2019. e de Silva, Funari e Garrafoni (2020)SILVA, Glaydson José da; FUNARI; Pedro Paulo; GARRAFONI, Renata Senna. Recepções da Antiguidade e usos do passado: estabelecimento dos campos e sua presença na realidade brasileira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 40, n. 84, p. 43-66, mai-ago. 2020. remetem às suas infuências nas teorias da recepção desenvolvidas nos anos 60 associadas aos trabalhos de Hans Jauss e Wolfgang Iser, ao desconstrucionismo de Derrida, ao New Criticism e à hermenêutica gadameriana. O problema apontado nas abordagens dos “usos do passado” a respeito da consideração apriorística das instâncias temporais se repete, neste ponto, nas análises da recepção. Nelas, encontraríamos, pois, um diálogo entre elementos “antigos” e “contemporâneos”, novas interpretações e mobilizações de atores como Ramsés II em que os sentidos “original” e “reformulado” não se oporiam sob a lógica do verdadeiro e do falso. No entanto, essas análises também não descrevem simetricamente as agências a nível temporal, o que permitiria entender como, enfim, algumas são relegadas ao “passado” e ao “antigo” e outras não, mediadas por técnicas que muitas vezes permanecem subentendidas às associações. Isto não significa, evidentemente, que tais estudos não tracem importantes contribuições para compreendermos as políticas do tempo que vinculam entidades cujas existências tenham proveniências tão temporalmente distintas. No entanto, creio que a ator-rede pode contribuir avançando alguns passos na compreensão de como as próprias instâncias temporais possuem uma fabricação situada e como os dispositivos subentendidos sob um funcionamento de “caixa-preta” (tais como o anacronismo) reproduzem a estabilização de entidades como Ramsés II em uma ontologia do passado que acaba por produzir o que Chris Lorenz (2014, p. 45)LORENZ, Chris. Blurred lines: history, memory and experience of time. International Journal for History, Culture and Modernity, Amsterdã, v. 2, n. 1, p. 43-63, 2014. chama de um “esfriamento do pretérito”, tratando-as de modo apolitizante e menos controverso no que se refere às suas temporalizações.

Conclusão

A partir da descrição do caso do translado da múmia de Ramsés II do Museu do Cairo para Paris, mobilizado por Bruno Latour para defender a sua tese da historicidade dos objetos científicos segundo uma hipotética controvérsia sobre se a determinação da causa da morte do faraó por tuberculose seria anacrônica ou não, pudemos delinear como entidades mortas se agregam a uma multiplicidade de humanos, não humanos e objetos sociotécnicos sob políticas do tempo. Estas políticas situadas produzem assimetrias temporais entre os atores mesmo que eles estejam coetaneamente associados. Isto nos permite chegar a algumas conclusões específicas do caso assinalado que nos habilitam, por sua vez, a transpor algumas questões teóricas relevantes sobre a aplicação de uma metodologia ator-rede na historiografia que seja alternativa aos tratamentos das entidades anteriores sob a perspectiva dos “usos do passado” ou da “recepção da Antiguidade”.

Primeiramente, pudemos perceber que a tese da historicidade dos objetos científicos nos textos de Latour nos quais o autor descreve o translado da múmia do faraó se sustenta na assunção como “fato” do enunciado febvreano sobre o caráter herético do anacronismo. Não questionando a sua legalidade, o autor apenas amplia a sua jurisdição do horizonte das crenças imagináveis em uma determinada época (como a possibilidade de ser ateu no século XVI) para o das entidades não humanas e dos objetos científicos. Desta forma, para Latour, o bacilo de Koch, entidade delimitada apenas em 1882, não poderia regredir até o ano 1213 a.C. como causa da tuberculose hipotética de Ramsés II sem a descrição do processo de diagnóstico ocorrido em Paris no ano de 1976 sob o risco de se cometer um anacronismo. Para ser conduzido até 1213 a.C., portanto, o bacilo demandaria um trabalho de deslocamento pelo Mediterrâneo que faria parte de uma história da constituição da causa de sua morte, permanecendo, no entanto, o interdito de se pensar que, em qualquer ano até 1976, a causa da morte do faraó fosse outra que não a indeterminada. Com isso, Latour aponta que a instância da “natureza” possui uma história. O fato de Robert Koch ter demarcado o bacilo em 1882 não habilita esta entidade (o bacilo) a livremente retroceder a uma existência no ano de 1213 a.C. até 1976, o que significaria, para Latour, considerar a sua existência a-histórica e apenas desvendada. No entanto, ao mobilizar o enunciado de Febvre como “fato”, ausente de qualquer controvérsia, Latour acaba por não tratá-lo como um dispositivo sociotécnico capaz de produzir assimetrias temporais que agregam entidades coetâneas a partir de determinadas políticas do tempo que se baseiam em uma negação da coetaneidade que não reconhece, de direito, as tanatoagências no agora.

Com isso, em segundo lugar, ao serem mediados pelo enunciado de Febvre no texto de Latour, Ramsés II, o bacilo de Koch e a causa de sua morte são ordenados no tempo por meio de sincronias frmemente enraizadas em uma temporalidade cronológica que Johannes Fabian chamaria de “tempo físico”, o qual, a partir de uma calendarização e universalização metrológica, também é resultado de uma sociotécnica que homogeneíza os seres anteriores em um único fuxo da passagem do tempo que seria irreversível, enquanto, paralelamente, extemporaneíza Ramsés II e a causa da morte indeterminada como “passado”. No entanto, essa homogeneidade, causada pela inserção de Ramsés II e da causa de sua morte em uma cronologia do calendário gregoriano, estrangeira ao Egito Antigo, ao ser construída pela mediação do enunciado febvreano assumido como “fato”, mascara a política do tempo agenciada, não abrindo a caixa-preta do dispositivo do anacronismo e não considerando outras mediações possíveis que pudessem assumir uma pluralidade ontológica na definição da temporalização das entidades.

Em terceiro lugar, a temporalização das inscrições de Latour para sustentar a sua tese da historicidade dos objetos científicos opera, contraditoriamente, não com a noção defendida de existência relativa dos atores com referência ao tempo, mas com uma noção de substância. Isso ocorre uma vez que Latour concebe duas distintas dimensões do tempo, uma “sedimentar” e outra “linear”. As causas hipotéticas da morte de Ramsés II no “tempo sedimentar” seriam duas: uma anterior ao translado da múmia do Cairo para Paris e outra posterior a este deslocamento. Mas ambas, no entanto, permanecem associadas ao mesmo ano de 1213 a.C. em que o faraó faleceu sem contradição, ocupando diferentes “estratos” sedimentares. O tempo “linear” irreversível permitiria, com a sua passagem, a coexistência destes diversos “estratos” possíveis no ano de 1213 a.C. que perenizam, ao seu modo, enunciados não mais necessariamente consensuais ou “atuais”. Ou seja, em 2021, assim como em 1998 ou em 2256, seria anacrônico pensar que, até o deslocamento dos restos mortais ocorrido em 1976, a causa da morte de Ramsés II poderia ser a tuberculose. Assim, Latour temporaliza os atores multitemporais de forma similar à descrita por Rancière, vinculando os seres a “envelopes” temporais externalizados pelo dispositivo do anacronismo de um modo a associar o tempo à verdade, coligando a existência de enunciados sobre a causalidade da morte a datas, sem discriminar os mecanismos sociotécnicos implicados na articulação de tal dispositivo e da cronologia de datação.

Por fim, em quarto lugar, a etnografa aqui traçada da mobilização de Ramsés II em Bruno Latour nos leva a crer que a descrição ator-rede traduzida para a historiografia seria eficaz para delinear as políticas do tempo de redes integradas por tanatoagências como o antigo faraó desde que não se abdique de descrever o funcionamento de dispositivos como o anacronismo. Assim, a noção de “simetria” pode ser estendida aos atores associados ao se tratar de suas temporalizações, compreendendo as instâncias temporais como resultado de mediações sociotécnicas e não como pressupostos sobre os quais se dispõem os atores. Ao se levar em conta Ramsés II, a causa de sua morte, o avião militar que o transporta, o Museu Egípcio do Cairo, Bruno Latour, as science wars, a base aérea Le Bourget, a revista Paris Match e os especialistas que investigam os seus restos mortais como coetâneos, analisando de que modo, na rede, alguns são actancializados como “passados” ou “presentes”, podemos restituir a noção de existência relativa a partir de um pluralismo ontológico, sabendo que enunciados da disciplina historiográfica que mobilizam dispositivos como o anacronismo e as calendarizações não são neutros e temporalizam a partir de políticas do tempo que são historicamente situadas.

  • 1
    Sempre que a tradução for de minha responsabilidade, mencionarei. Quando não o for, os créditos constarão nas referências.
  • 2
    Para a ideia de “programa” e “antiprograma”, ver Latour, 2016LATOUR, Bruno. Cogitamus: seis cartas sobre as humanidades científicas. Traduzido para o português por Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Editora 34, 2016..
  • 3
    As expressões entre aspas são enunciados hipotéticos e não propostos por Latour, que se limita a mencionar o anacronismo como “pecado cardeal”. As modalizações em itálico apontam possibilidades para enunciados sobre o anacronismo que os fariam menos “fáticos” do que aqueles utilizados por Latour em suas declarações sobre o tema.
  • 4
    Ver Latour (1997b, p. 177-178)LATOUR, Bruno. Trains of thought: Piaget, formalism, and the fifth dimension. Common Knowledge, Durham, v. 6, n. 3, p. 170-191, 1997b. sobre as coproduções de actancialidades, espacialidades e temporalidades na ator-rede.
  • 5
    Para uma abordagem da noção de “pontos de passagem obrigatórios”, ver Callon (1995, p. 265-266)CALLON, Michel. Algunos elementos para una sociología de la traducción: la domesticación de las vieiras y los pescadores de la bahía de St. Brieuc. In: PEREIRA, Alberto Cotillo et al. (ed.). Sociología de la ciencia y la tecnología. Madri: CSIC, 1995. p. 259-282..
  • 6
    Uma boa referência sobre a “fabricação” do passado como instância anterior e qualitativamente diferente do presente pode ser encontrada em Schiffman (2011)SCHIFFMAN, Zachary Sayre. The birth of the past. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2011..
  • 7
    Um exame da noção de “passeidade” pode ser encontrado em Bevernage (2021)BEVERNAGE, Berber. “A passeidade do passado”: reflexões sobre a política da historicização e a crise da passividade historicista. Revista de Teoria da História, Goiânia, n. 24, v. 1, p. 21-39, 2021..
  • 8
    Lisa Disch (2008)DISCH, Lisa. Representation as “spokespersonship”: Bruno Latour’s political theory. Parallax, Londres, v. 14, n. 3, p. 88-100, 2008. traz um interessante panorama sobre a noção de porta-vocalidade em Latour.
  • FINANCIAMENTO
    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
  • APROVAÇÃO NO COMITÊ DE ÉTICA
    Não se aplica.
  • MODALIDADE DE AVALIAÇÃO
    Duplo-cega por pares.
  • CONTEXTO DE PESQUISA
    O artigo deriva da tese “Anacronismo e políticas do tempo: uma tradução da teoria ator-rede para a historiograf a a partir dos casos de Ramsés II e da Alegoria da Caverna de Platão em Bruno Latour”, orientada pelo Professor Doutor Anderson Zalewski Vargas, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Programa de Pós-Graduação em História, defendida no ano de 2021. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufrgs.br/da.php?nrb=001130498&loc=2021&l=a8491a841adfc24e.
  • PREPRINT
    O artigo não é um preprint.
  • DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA E OUTROS MATERIAIS
    Os conteúdos subjacentes ao artigo estão nele contidos.
  • DIREITOS AUTORAIS
    Copyright © 2022 Diogo Quirim.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2021
  • Revisado
    10 Jan 2022
  • Aceito
    19 Jan 2022
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