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Meninos sem Pátria: ditadura, literatura e os trabalhos da memória entre ficção e realidade (1981/2018)

Meninos sem Pátria: dictatorship, literature and the works of memory between fiction and reality (1981/2018)

RESUMO

Sob a perspectiva preponderante do conceito de “trabalhos da memória”, de Elizabeth Jelin, em diálogo com “lugares de memória”, de Pierre Nora, e levantando questões sobre a pertinência ou não da categoria “memória coletiva”, de Maurice Halbwachs, este artigo problematiza os desafios de analisarmos e compreendermos um episódio recente que envolveu o livro infantojuvenil Meninos sem Pátria, de Luiz Puntel, obra acusada, em 2018, por pais de alunos de um tradicional colégio do Rio de Janeiro, de fazer apologia ao comunismo e de tentar doutrinar as crianças. Nesse sentido, temos como principal objetivo analisar criticamente o conteúdo da obra - como fonte e objeto -, tanto no campo da literatura de ficção, de testemunho e sua relação com as memórias e a história. Como resultado, constata-se na referida narrativa a presença recorrente de “veículos de memória” e, questiona-se, se os protestos ideológicos contra o livro estavam ancorados em alguma análise crítica.

PALAVRAS-CHAVE
História; Memória Coletiva; Lugares de Memória

ABSTRACT

Under the prevailing perspective of Elizabeth Jelin’s “works of memory” concept, in dialogue with Pierre Nora’s “memory places” and raising questions about the relevance or not of Maurice Halbwachs’ “collective memory” category, the article problematizes the challenges of analyzing and understanding a recent episode involving the children’s book “Meninos sem Pátria”, by Luiz Puntel, whose work was accused, in 2018, by parents of students from a traditional school in Rio de Janeiro, of making an apology for communism and trying to indoctrinate children. In this sense, our main objective is to critically analyze the content of the work - as source and object - both in the field of fiction literature, testimony and its relationship with memories and history. As a result, the recurrent presence of “vehicles of memory” can be seen in the aforementioned narrative, and it is questioned whether the ideological protests against the book were anchored in any critical analysis.

KEYWORDS
History; Collective Memory; Places of Memory

Introdução

Estávamos a apenas cinco dias do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018. Todas as pesquisas indicavam que a disputa no segundo turno seria travada pelo candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Fernando Haddad, no campo das esquerdas mais próximas ao centro, e o capitão reformado do Exército Brasileiro, deputado federal por vários mandatos e partidos, Jair Messias Bolsonaro, que naquele momento estava alojado no até então insignificante Partido Social Liberal (PSL), uma das poucas legendas que, no período pré-campanha, aceitou a filiação do candidato facilmente identificado - por suas ações, palavras e desejos - no campo de extremadireita. Ressalta-se que Haddad havia conquistado dentro do PT o direito de disputar a faixa presidencial após a proibição, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da candidatura de Luís Inácio Lula da Silva, que estava preso em Curitiba em decorrência da “Operação Lava-Jato”, comandada pelo controverso juiz federal Sérgio Fernando Moro, cuja imagem era a associada a um herói pela grande parcela de simpatizantes que o idolatravam naquele difícil contexto.

O Instituto de Pesquisas Datafolha, vinculado ao jornal Folha de São Paulo, divulgou no dia 4 de outubro que Jair Bolsonaro abrira uma margem aproximada de 13% para o seu principal adversário. Os números divulgados anunciavam 35% (Bolsonaro) contra 22% (Haddad). Na terceira colocação, estava o candidato do Partido Democrático Trabalhista (PDT), Ciro Gomes, com 11%, seguido por Geraldo Alckmin, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), e Marina Silva, que concorria pela Rede Sustentabilidade (REDE) (PESQUISA...2018PESQUISA Datafolha para presidente [...]. Rio de Janeiro, 04 out. 2018. Site G1. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/10/04/pesquisa-datafolha-para-presidente-bolsonaro-35-haddad-22-ciro-11-alckmin-8-marina-4.ghtml. Acesso em: 16 jul. 2021.
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, n. p).

A eleição seria realizada no dia 7 de outubro e, no dia 2, uma segunda-feira, o jornal carioca O Globo deu repercussão nacional em suas plataformas digitais a uma polêmica que envolvia pais, alunos e dirigentes do tradicional Colégio Santo Agostinho, localizado no Leblon, famoso bairro da elite econômica carioca. Sob o título “Colégio Santo Agostinho, do Rio, suspende uso de livro considerado ‘comunista’ por grupo de pais”, a matéria, assinada por Ana Paula Blower e Renato Grandelle, mergulhava em águas turvas na busca de compreender o que ali se passara há alguns dias (BLOWER; GRANDELLE, 2018BLOWER, Ana Paula; GRANDELLE, Renato. Colégio Santo Agostinho, do Rio, suspende uso de livro considerado ‘comunista’ por grupo de pais. O Globo, Rio de Janeiro, 03 out. 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/colegio-santo-agostinho-do-rio-suspende-uso-de-livro-considerado-comunista-por-grupo-de-pais-23122273. Acesso em: 16 jul. 2021.
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, n. p.).

Meninos sem Pátria foi o livro acusado de ser comunista. Classificado como literatura infantojuvenil, integra a prestigiada Série Vaga-lume, da editora Ática, de São Paulo. Lançado em 1981, em plena transição autoritária, a obra tem a assinatura de Luiz Puntel e, em 2018, já estava em sua 23ª edição, o que demonstra seu inegável sucesso editorial. De acordo com a reportagem:

Pais de estudantes do 6º ano alegaram à escola que o livro “doutrina crianças com ideologia comunista”. Em uma página do Facebook, a obra é acusada de promover um “discurso esquerdopata”. No entanto, a decisão também foi alvo de críticas por internautas que se queixaram de ver o colégio se render a um “faniquito”. [...] Alguns alunos criaram seu próprio grupo de WhatsApp para discutir o livro e o comportamento dos pais e professores. Mais uma vez, a obra gerou controvérsia. Um grupo defendeu que não há nada demais na leitura. Outro, porém, reproduziu o discurso dos pais e criticou o seu suposto teor “comunista” (BLOWER; GRANDELLE, 2018BLOWER, Ana Paula; GRANDELLE, Renato. Colégio Santo Agostinho, do Rio, suspende uso de livro considerado ‘comunista’ por grupo de pais. O Globo, Rio de Janeiro, 03 out. 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/colegio-santo-agostinho-do-rio-suspende-uso-de-livro-considerado-comunista-por-grupo-de-pais-23122273. Acesso em: 16 jul. 2021.
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, n. p.).

A matéria não trazia grandes detalhes, como nomes e profissões dos reclamantes, por exemplo, mas conseguiu contato com Puntel que destacou o contexto no qual sua trama foi escrita, dois anos após a Lei da Anistia de 1979 (BRASIL, 1979BRASIL. Lei 6.683 de 28 de agosto de 1979 concede Anistia e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm. Acesso em: 27 ago. 2021.
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, n. p.), e o seu foco era o drama da volta dos exilados e não uma suposta apologia ao comunismo.

Falo sobre algo que aconteceu no final da ditadura militar. E agora, mais de 30 anos depois, um pai vê o filho lendo o livro e o interpreta como uma apologia ao comunismo — critica —. Lamento a existência da censura quando vemos como o país precisa da democracia. Quero pensar um pouco e ver com a editora se alguma coisa precisa ser feita (PUNTEL apud BLOWER; GRANDELLE, 2018BLOWER, Ana Paula; GRANDELLE, Renato. Colégio Santo Agostinho, do Rio, suspende uso de livro considerado ‘comunista’ por grupo de pais. O Globo, Rio de Janeiro, 03 out. 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/colegio-santo-agostinho-do-rio-suspende-uso-de-livro-considerado-comunista-por-grupo-de-pais-23122273. Acesso em: 16 jul. 2021.
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, n. p.).

No texto jornalístico aparece, ainda, a voz de uma mãe de aluno que não concordou com a proibição. Na assertiva da entrevistada Roberta Machado, expressões como, “instituição conservadora”, “interferência”, “currículo”, “ideológica”, “marxista”, “verdade”, “história” e “prova”, mesmo em alguns casos com outros sentidos semânticos, ajudam-nos a perceber o vocabulário que dominava o debate político naquela véspera de eleições:

Suspender o livro foi um absurdo [...]. A escola deve promover, e não esconder, o debate. É uma instituição muito conservadora e que não costuma ceder à pressão sobre qualquer interferência em seu currículo. Agora, porém, atendeu aos pais que disseram que a obra é ideológica e marxista, quando na verdade se trata apenas do drama de uma família que viveu no exílio. Meu filho vai ler a história, mesmo que ela não caia na prova (BLOWER; GRANDELLE, 2018BLOWER, Ana Paula; GRANDELLE, Renato. Colégio Santo Agostinho, do Rio, suspende uso de livro considerado ‘comunista’ por grupo de pais. O Globo, Rio de Janeiro, 03 out. 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/colegio-santo-agostinho-do-rio-suspende-uso-de-livro-considerado-comunista-por-grupo-de-pais-23122273. Acesso em: 16 jul. 2021.
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, n. p.).

Como uma espécie de confissão, a direção do Santo Agostinho optou por se silenciar. Evitou manifestar-se sobre a contenda ideológica que deliberada e conscientemente se envolvera. O caso em tela é um exemplo gritante sobre o que nos alertou Elizabeth Jelin:

los procesos de democratización que suceden a los regímenes dictatoriales militares no son sencillos ni fáciles. Una vez instalados los mecanismos democráticos en el nível de los procedimientos formales, el desafío se traslada a su desarrollo y profundización (JELIN, 2002, p. 4JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Buenos Aires/Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 2002.).

Ou seja, mesmo passados mais de trinta anos do marco final da ditadura civil-militar no Brasil – ao menos para quem trabalha com a baliza temporal de 1984/1985 – o aprofundamento dos valores democráticos no País ainda está longe de acontecer.

O objetivo deste artigo é buscar respostas para as seguintes questões: o que há no texto de Meninos sem Pátria que tenha levado aqueles pais a identificarem-no como uma obra de doutrinação comunista? O que se pode apontar na obra de “ficção” que tenha levado os reclamantes a tratá-la como realidade? É possível aplicarmos o conceito de “trabalhos da memória”, de Elizabeth Jelin, a um livro ficcional? O livro de Luiz Puntel poderia ser classificado, também, como um texto de história, uma narrativa memorial ou um texto híbrido, que dialogaria com a ideia de literatura de testemunho?

Os trabalhos da memória de Luiz Puntel e Elizabeth Jelin

Elizabeth Jelin, autora responsável por trazer a categoria “trabalho” para o campo das memórias, assim explica sua proposta:

Por qué hablar de trabajos de la memoria? El trabajo como rasgo distintivo de la condición humana pone a la persona y a la sociedad en un lugar activo y productivo. [...] Referirse entonces a que la memoria implica ‘trabajo’ es incorporarla al que hacer que genera y transforma el mundo social (JELIN, 2002, p. 14JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Buenos Aires/Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 2002.).

Retomando a obra que provocou a polêmica em 2018, no prólogo escrito por Luiz Puntel, temos o primeiro sinal de como suas recordações da Ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985) – principalmente a partir de 1979, com a publicação da Lei da Anistia – influenciaram a construção das personagens que protagonizam Meninos sem pátria. Puntel, nascido em Guaxupé, Minas Gerais, e radicado em Ribeirão Preto, São Paulo, alerta aos leitores que sua inspiração veio a partir de uma experiência quando lecionava numa escola da Educação Básica e conheceu um garoto chamado José Pedro, que fugira com os pais angolanos da “revolução de Agostinho Neto” (PUNTEL, 1995, p. 7PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Contudo, não é apenas esse fato que aparece em suas memórias. Ao relembrar o que traziam os noticiários televisivos naquela época, registrou que os veículos de imprensa “anunciavam a chegada dos exilados brasileiros e de seus familiares, via anistia. Nem bem os meninos desceram dos aviões lotados, encaminharam-se para as escolas”. Aqueles meninos, segundo o autor, ao entrarem nas salas de aula, perguntavam em diversas línguas estrangeiras, tais como o francês, inglês, sueco, castelhano e até dinamarquês, se haviam nascido mesmo no Brasil (PUNTEL, 1995, p. 8PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Ao rememorar outros acontecimentos que influenciaram a escrita do texto, falou de garotos de outras nacionalidades que fugiram “de golpes de esquerda e de direita, indistintamente. E é para esses garotos, para esses meninos sem pátria que o livro é oferecido” (PUNTEL, 1995, p. 9PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Também é curioso perceber que o escritor mineiro assimilou o principal conceito que os civis e militares que golpearam a democracia em 1964 tentaram tornar hegemônico no debate político daquelas décadas (1960-1980), qual seja, a ideia de que ocorrera uma Revolução, pois é assim que ele se refere ao período que contextualiza sua narrativa. “[...] para todos os brasileiros exilados, banidos e deportados, não só pela revolução de 1964, mas por todas as revoluções brasileiras” (PUNTEL, 1995, p. 9PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].).

Esses exemplos de operações memoriais nos remetem, mais uma vez, ao que diz Jelin, agora em diálogo com Paul Ricoeur:

Hablar de trabajos de memoria requiere establecer algunas distinciones analíticas. Sin duda, algunos hechos vividos en el pasado tienen efectos en tiempos posteriores, independientemente de la voluntad, la consciencia, la agencia o la estrategia de los actores. Esto se manifesta desde los planos más ‘objectivos’ y sociales [...] hasta los procesos más personales e inconscientes ligados a traumas y huecos. Su presencia puede irrumpir, penetrar, invadir el presente como un sinsentido, como huellas mnésicas (Ricoeur, 2000), como silencios, como compulsiones o repeticiones. En estas situaciones, la memoria del pasado invade, pero no es objeto de trabajo. La contracara de esta presencia sin agencia es la de los seres humanos activos en los procesos de transformación simbólica y la elaboración de sentidos del pasado. Seres humanos que ‘trabajan’ sobre y con las memorias del pasado (JELIN, 2002, p. 14JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Buenos Aires/Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 2002.).

No preâmbulo de Meninos sem pátria, o que foi apresentado pode ser analisado como camadas de memórias, lembranças e recordações do autor que o influenciaram na construção de sua obra infantojuvenil. Os trabalhos da memória em plena atividade, em fagrante operação.

Figura 1
Capa de Meninos sem Pátria, 1995

Em entrevista prestada recentemente como parte da polêmica de 2018 (PIRES, 2018PIRES, Breiler. Entrevista/ Luiz Puntel. El País. 05 out. 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/04/cultura/1538677664_945391.html. Acesso em: 27 ago. 2021.
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, n.p), Puntel esclareceu que o livro em tela foi inspirado, ainda, pela publicação de Memórias das Mulheres do Exílio, obra coletiva lançada pela editora Paz e Terra, em 1980, sob as assinaturas de Albertina de Oliveira Costa, Maria Teresa P. Moraes, Norma Marzola e Valentina da Rocha Lima. É a partir das recordações e silêncios “enunciados” nesse trabalho que o professor nomeou e construiu, inventivamente, seu narrador, escolheu seu protagonista e fabricou coadjuvantes que percorrem os labirintos do Brasil e do exílio, entre histórias e memórias; realidade e ficção; silêncios e ressentimentos, num complexo jogo que envolve camadas e estratos temporais e memoriais do passado e do presente, tanto do autor quanto de seus personagens.

Marcão, o filho mais velho do casal Zé Maria e Teresa, é o narrador. O cenário inicial da trama é a cidade de Canaviápolis, interior de São Paulo, onde Zé Maria exerce a atividade de jornalista, escrevendo para O Binóculo. O irmão mais novo de Marcão, Ricardo – apelidado de Rico - ajuda a compor o núcleo familiar inicial da trama. Todo o enredo é desenvolvido num recorte temporal de aproximadamente uma década, entre 1970 e 1979. No início da obra, o narrador tem apenas 10 anos de idade. As complicações aparecem quando Zé Maria escreve um artigo denunciando torturas sofridas por um padre local. Após essa publicação, o jornal foi invadido e suas instalações depredadas (PUNTEL, 1995, p. 14PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Entre um diálogo e outro, o autor insere o contexto da Copa do Mundo de futebol masculino de 1970, quando os meninos, entre uma e outra jogada do futebol de botão, aparecem criticando a escalação do técnico Zagalo, substituto de João Saldanha, treinador comunista que classificou o time para o torneio, mas foi afastado antes do início da competição no México (ALMEIDA, 2020, p. 20-24ALMEIDA, Anderson da S. A Copa de 1970 nos folhetos de cordel: poesia, futebol e política em tempos de ditadura. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 12, n. 30, p. e0208, 2020. Disponível em: https://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180312302020e0208. Acesso em: 27 ago. 2021.
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).

Para mostrar que nem tudo na sociedade civil era oposição à Ditadura, questão que vem sendo levantada por uma historiografia crítica (AARÃO REIS, 2000AARÃO, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.; QUADRAT; ROLLEMBERG, 2010ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz. Apresentação. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (org.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 11-32. v. 2.; ROLLEMBERG; CORDEIRO, 2021ROLLEMBERG, Denise; CORDEIRO, Janaina M. Apresentação. In: ROLLEMBERG, Denise; CORDEIRO, Janaina M. (org.). Por uma revisão crítica: ditadura e sociedade no Brasil. Salvador: Sagga, 2021. p. 7-49.) o autor indica a existência de um jornal situacionista sob o título A cidade de Canaviápolis (PUNTEL, 1995, p. 16PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Percebe-se, com esse exemplo, que Puntel já mostrava, em 1981, o consenso e a adesão de parcelas significativas da sociedade aos valores autoritários. Por outro lado, a face mais visível da ditadura em Canaviápolis, aquela que “ameaçava arrebentar tudo” era a de um militar de alta patente, chamado pela família pela alcunha pejorativa de “Cabo Cirilo”. Tererê, o apelido da matriarca, é a principal interlocutora de Zé Maria. Em alguns diálogos, o tempo presente dos personagens salta aos olhos e ouvidos dos leitores:

Agora eles podem tudo, mulher! Com esse monte de atos institucionais, com essas medidas de exceção, não há mais garantia para nenhum cidadão. Para alguém que seja preso, basta um telefonema, basta que apontem o dedo na direção de alguém, e pronto! Isto não sai na grande imprensa e nem na televisão, mas estou sabendo que a situação está ficando insustentável (PUNTEL, 1995, p. 17PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].).

A partir de uma frenética engrenagem que envolve presente, passado, futuro, realidade e ficção, os trabalhos das memórias – individuais, coletivas ou partilhadas – são apresentados aos jovens leitores. Contudo, como já mencionado, a História não foi esquecida. A perseguição a professores aparece no livro com a publicação de outro artigo de Zé Maria em O Binóculo. Ao preparar uma matéria sobre a ofensiva da ditadura contra o professor Karr e explicitar a ofensiva contra docentes universitários, Zé Maria e família percebem o aumento das intimidações policiais, com ligações telefônicas não identificadas e homens estranhos rondando sua residência. Nesse momento, mais uma vez, o clima político do País ganha destaque. O diálogo é entre o jornalista e sua esposa:

Devemos ficar prevenidos, Tererê. O clima, na verdade, é de guerrilha urbana. Nesses dois anos, só para você ter uma idéia, sumiram com um monte de gente, mataram dois líderes comunistas e decretaram até a pena de morte. Em contrapartida, os guerrilheiros sequestraram dois embaixadores e um cônsul (PUNTEL, 1995, p. 20PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].).

A partir desse momento, ocorre o grande fato que vai desencadear todas as engrenagens subsequentes. Com o título de “Vai gás aí, dona”? Puntel descreve, alternando a voz do seu narrador com diálogos curtos, uma escapada espetacular de Zé Maria – inclusive utilizando um revólver que começou a portar após as ameaças – momentos antes de ter seu apartamento invadido pela equipe do “Cabo Cirilo”. Enquanto permanece a dúvida se o entregador de botijão seria um policial disfarçado ou não, o tempo fica em suspenso. Revela-se, na sequência, que o jornalista conseguiu escapar, literalmente fazendo uso da ameaça bélica, após ter usurpado o uniforme do entregador da empresa de gás. Para ter sucesso na fuga, contou com a solidariedade do zelador do prédio, Seu Valdemar. O fugitivo contará com o afeto de religiosos que darão guarida a toda família até a saída definitiva do Brasil, pela fronteira com a Bolívia, com destino ao Chile, na época sob o governo socialista de Salvador Allende.

Antes da partida para o exílio, algumas passagens que envolvem diálogos entre Marcão e um padre do convento onde ficaram sob proteção nos levam a um tempo quase imóvel, na longa duração (BRAUDEL, 1995BRAUDEL, Fernand. O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995.), situado na fronteira que envolve história, fé e memória a partir da perspectiva religiosa. Algo muito distante do que se pode associar ao comunismo agnóstico ou ateu, mas muito próximo da Teologia da libertação. Nesse momento, fiquei a perguntar-me se os pais de alunos do Colégio Santo Agostinho que protestaram em 2018 contra o livro, tinham realmente lido esses trechos:

Na verdade, seu pai está defendendo as ideias dele. E está sendo perseguido porque tem gente que não concorda com suas opiniões. Cristo também foi mal interpretado [...]. O crime dele foi estar sempre ao lado dos pobres e resumir toda a sua filosofia em uma única frase: “Amai-vos uns aos outros” (PUNTEL, 1995, p. 31PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].).

Agora a palavra está com o, ainda garoto, Marcão:

[...] enquanto estivemos no convento, foi muito bom ter o padre como amigo. Ele me apresentou um Deus diferente daquele que eu tinha na cabeça. Até ali, Deus era um chato de galochas, como diria o Arthur. Um Deus de temor, que vivia de dedo duro, apontando meus pecados, meus erros, meus maus pensamentos. Nas conversas com o padre, eu pude conhecer um Deus de amor, que não me condenava, mas que estendia sua mão para me amparar (PUNTEL, 1995, p. 31-32PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].).

De volta ao tempo presente da narrativa, mais uma vez aparece o contexto da Copa de 1970, com a música Pra frente Brasil embalando os jogos da seleção brasileira de futebol masculino e o primeiro jogo do torneio vencido contra a Tchecoslováquia pelo placar de 4x1 nos gramados do México (PUNTEL, 1995, p. 33PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Esse vaivém temporal é uma constante em Meninos sem Pátria e as diversas temporalidades – tanto de forma sincrônica, como diacrônica - são trabalhadas com maestria pelo autor.

Os lugares e veículos de memória: entre a saudade e o trauma

Aos poucos, no enredo de Puntel, Canaviápolis deixa de ser o cenário do tempo presente e vai se tornar um “lugar de memória” (NORA, 1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28, dez. 1993.), principalmente para Marcão, o que será evidenciado nos passos seguintes da jornada familiar no exílio. Entretanto, não é apenas o lugar físico que aparecerá nas recordações do narrador. Os sons, sabores, uma paixão na infância por Ana Rosa, as lembranças escolares, tudo no exílio passa a ser apresentado aos leitores como memória e/ou como expectativa. Em diálogo com a categoria “lugares de memória” de Pierre Nora (1993)NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28, dez. 1993., que considera não apenas os objetos concretos ou “lugares topográficos” - como mencionou Paul Ricoeur (2007, p. 415)RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007. - mas também os artefatos simbólicos, trago aqui a proposta de, no corpo dessa ampla categoria, testarmos a partir das evidências, a utilidade do conceito de “veículos de memória” (JELIN; LANGLAND, 2003JELIN, Elizabeth; LANGLAND, Victoria. Introducción. In: JELIN, Elizabeth e LANGLAND, Victoria. Monumentos, memoriales y marcas territoriales. Buenos Aires/Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 2003. p. 3-18.) no sentido de trazermos a dimensão dos movimentos, fuxos e interações que envolvem os suportes responsáveis por ativar as lembranças, recordações e reminiscências, mas que também silenciam. Entendo que imagens, sentimentos, sons, odores e sabores são mais bem inteligíveis e cognoscíveis no campo híbrido da intersecção entre história e memória, se partirmos da ideia de “veículo” e não apenas de “lugar”.1 1 Importantes autoras e autores têm contribuído para a divulgação do conceito de “veículos de memória”. Para os objetivos deste artigo, destacamos as abordagens de Elizabeth Jelin e Victoria Langland (2003), como também Gustavo Souza e Fábio D. Camargo (2020). Para um artigo em língua inglesa, cf. Waterson (2007). Nessa proposta, o veículo não deixa de ser um lugar de memória, porém evidencia melhor aqueles lugares não topográficos, ou seja, não apenas marcas territoriais. É o que farei a seguir ao percorrer os passos dos Meninos sem Pátria a partir do momento em que se tornam exilados.

Ao tempo em que deixava o Brasil, Marcão seguiu conduzindo a narrativa, mas influenciado pelas recordações: “Passado o susto, cessando o burburinho dos passageiros sobre a truculenta batida policial, comecei a me lembrar dos amigos que ia deixando para trás. E, de repente, tropecei em um nome muito querido: Ana Rosa. [...] Sim, porque nos meus dez anos completos, eu amava Ana Rosa”. E relembrou o primeiro beijo que tinham trocado na matinê de domingo no Cine São Jorge: “Não sei se foi ela quem me beijou ou se fui eu que a beijei [...]. Sei que foi um beijo novinho, mais gostoso que morango com chantilly” (PUNTEL, 1995, p. 34-35PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Aqui temos uma típica memória juvenil, com suas paixões e imagens carregadas de sentimentos.

O que temos de original nas tintas de Puntel é a presença do que podemos chamar de “memórias de crianças”. Fazendo uso da liberdade literária, do fecundo exercício de criação ficcional e uma espécie de literatura de testemunho com diversas vozes, o autor conduz seu leitor por percursos da história recente do Brasil, do Chile e passeia pela França da segunda metade dos anos 1970. Nessa engrenagem, surge, a partir desse instante, os sinais de trauma. Sobre essa relação de literatura de testemunho e eventos traumáticos, refetiu Selligmann-Silva:

Na literatura de testemunho não se trata mais de imitação da realidade, mas sim de uma espécie de “manifestação” do “real” para a literatura: mas a passagem para o literário, o trabalho do estilo e com a delicada trama de som e sentido das palavras que constitui a literatura é marcada pelo “real” que resiste à simbolização. Daí a categoria de o trauma ser central para compreender a modalidade de o “real” que se trata aqui. Se compreendermos o “real” como trauma – como uma ‘perfuração’ na nossa mente e como uma ferida que não se fecha – então fica mais fácil de compreender o porquê do redimensionamento da literatura diante do evento da literatura de testemunho (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 382-383SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, Memória, Literatura. Campinas: Ed. da Unicamp, 2003., grifos do original).

No Chile, Zé Maria se ocupa mais uma vez como jornalista, gozando da liberdade em um governo de esquerda, quando exilados brasileiros eram recepcionados com todo calor humano que envolvia los hermanos da América Latina. Foi no país de Pablo Neruda que nasceu o mais novo membro da família, Pablito, que justamente recebeu esse nome em homenagem ao poeta chileno (PUNTEL, 1995, p. 36PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). O clima parecia de felicidade e realização até o “paro de camioneros”, uma grande greve de caminhoneiros ocorrida no Chile, organizada pelo patronato, também conhecida como lockout. O desabastecimento que esse movimento causou trouxe graves problemas para a política econômica de Allende, que três anos depois de assumir o governo, não contava com o mesmo apoio que o levara à vitória em 1970 (WINN, 2010WINN, Peter. A Revolução Chilena. São Paulo: Editora da Unesp, 2010.). Assim registrou Marcão: “Não demorou muito tempo; quando as pressões políticas, contrárias ao governo aumentaram para valer, sabíamos que nossos dias no Chile estavam contados. [...] Quando o presidente Allende caiu mortalmente ferido, naquele setembro de 1973, ficamos em casa, já que não tínhamos para onde fugir” (PUNTEL, 1995, p. 37PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Mais uma vez Zé Maria precisou escapar, como numa metáfora que envolve os silêncios e esquecimentos das memórias – sempre em fuga – e Teresa ficara com a responsabilidade sobre os três filhos. “Tererê, meus filhos, eu estou indo. Já arrumei onde ficar, com alguns amigos. Não digo onde para evitar problemas para vocês. Mas eu dou notícia. Marcão, cuide do Rico, do Pablito e de sua mãe” (PUNTEL, 1995, p. 38PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].).

A família recebeu a visita dos carabineiros chilenos e imediatamente, ao fixar sua retina no olhar de um dos militares que vestia capote, a recordação do narrador visualizada na frase “[...] o mesmo olhar de ódio dos policiais brasileiros de Canaviápolis” (PUNTEL, 1995, p. 39PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Memórias traumáticas. Mais uma vez vale uma pausa para refetirmos sobre o que diz Jelin:

Los hechos del pasado y la ligazón del sujeto con ese pasado, especialmente en caso traumáticos, pueden implicar una fijación, un permanente retorno: la compulsión a la repetición, la actuación, (acting-out), la imposibilidad de separarse del objecto perdido. La repetición implica un pasaje al acto. No se vive la distancia con el pasado, que reaparece y se mete, como un intruso en el presente (JELIN, 2002, p. 14JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Buenos Aires/Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 2002.).

A expressão “o mesmo olhar de ódio dos policiais brasileiros” que reproduzi no parágrafo anterior, demonstra, a meu ver, essa intromissão constante do passado, no tempo presente do menino Marcos.

A família de Tererê e Zé Maria recebeu asilo da embaixada da França, após a ousadia de Teresa e seus filhos de driblar os policiais chilenos, mesmo com esses disparando suas carabinas para o alto. O patriarca já estava naquela representação diplomática à espera do trio inseparável. Após alguns meses, conseguiram, enfim, o salvo conduto que permitiu que deixassem o Chile com destino à França. Os traumas que foram se acumulando nas fugas, aparecem dessa maneira nas recordações do primogênito: “[...] uma coisa que iria nos marcar, a mim e ao Ricardo, para sempre, era a presença dos soldados. Até hoje, quando passo por um comando de trânsito, em alguma batida policial de rotina, suo frio, minhas pernas tremem sem parar. Não só eu, mas o Ricardo também ficou com esse trauma” (PUNTEL,1995, p. 47PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Na sequência, após chegarem a Paris em pleno contexto do desfile do 14 de Julho em comemoração à Revolução Francesa – data que também pode ser visualizada como um “veículo de memória” na França – o trauma de Ricardo, quando observava os uniformes militares: “[...] ao perceber os soldados desflando, Ricardo, demonstrando pavor, largou a bandeirinha francesa e [...] correu em direção a papai. ‘Estou com medo. O soldado quer me pegar...’ chorando, desesperado, agarrou-se frme no pescoço de papai. Para ele, o desfile havia terminado ali. Para ele e para nós” (PUNTEL, 1995, p. 48PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Sobre a reação do jovem Rico, ao deparar-se com homens de uniformes militares, vale mais uma vez uma reflexão de Jelin inspirada em Caruth (1995):

El evento traumático es reprimido o negado, y sólo se registra tardíamente, después de pasado algún tiempo, con manifestaciones de diversos síntomas. Nuevamente, en este caso con referencia a procesos individuales e intersubjetivos, nos encontramos con evidencias de que a temporalidad de los fenómenos sociales no es lineal o cronológica, sino que presenta grietas, rupturas, en un re-vivir que no se opaca o diluye con el simple paso del tiempo (JELIN, 2002, p. 68JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Buenos Aires/Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 2002.).

Contudo, se temos as memórias traumáticas de Rico, algo diferente aconteceu com o primogênito. Ao presenciar o desfile francês e ouvir um hino estranho – a Marselhesa - considerado por eles como “careta”, Marcão acaba nos lembrando o caráter subjetivo e individual que envolve as memórias, mesmo se acionadas de forma coletiva ou partilhada (HALBWACHS, 2013HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2013.; JELIN, 2002JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Buenos Aires/Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 2002.). No excerto que se segue isso fica evidente:

No 7 de Setembro de Canaviápolis, o desfile não tinha tanta pompa, carros de combate, tantos soldados nas ruas, mas havia o passo cadenciado dos estudantes e, entre eles, Ana Rosa, minha namoradinha, naquele uniforme tão lindo [...]. Quem diria que, quatro anos depois, eu recordaria disso a milhares de quilômetros de distância, empunhando outra bandeira nacional e ouvindo um hino bem diferente do nosso “Ouviram do Ipiranga…” (PUNTEL, 1995, 48-50PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].).

Ao ler esse trecho do livro, acionei minhas memórias recentes sobre o episódio de proibição do Colégio Santo Agostinho e fiquei a questionar-me, ironicamente, o que faz aqui uma lembrança tão cândida sobre um desfile patriótico, inclusive com a recordação da primeira frase do Hino Nacional Brasileiro? Não era para ser o hino da “Internacional Comunista”, pela ótica dos pais que acusavam o livro de fazer apologia ao ‘credo’ vermelho?

Após essa pausa para um momento de boas memórias e lembranças maviosas, o tema do trauma volta a ganhar destaque. A vida em solo francês entra nos trilhos e adquire ares de normalidade. Porém, é na convivência com outros estudantes exilados que as memórias traumáticas emergem de novo, dessa vez de forma partilhada.

Depois de ter caído, literalmente, após um trote do colega francês, Pierre, que usou um dispositivo em formato de livro que emitia uma corrente elétrica e provocava choque na vítima da ocasião, o narrador apresenta outra personagem. Impressionada pela queda sofrida por Marcão – que na França ganhou o apelido de Marc - Sara, exilada brasileira oriunda do estado do Paraná, repreendeu Pierre considerando aquela brincadeira “de muito mau gosto”. Ao dialogar com o amigo francês sobre os motivos da intervenção da colega de classe, Marc apresentou uma possível causa: “Eu não tenho certeza, Pierre. Mas acho que isso deve ter trazido lembranças ruins à Sara. O pai dela, quando preso, andou tomando choque”. A resposta de Pierre foi imediata:

Uau! Sabe que não é fácil lidar com vocês? – Pierre estava chateado, mas procurava não demonstrar isso. – Cada um de vocês tem um trauma: você me contou que não pode ver soldado. A Sara tem esse problema. Contaram-me que a Mariana, uma brasileirinha da troisième, gosta de ir a Orly ficar vendo os aviões brasileiros decolarem (PUNTEL, 1995, p. 56PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].).

O que temos nessa passagem - se fizermos o exercício cognitivo de agruparmos as memórias traumáticas dos três jovens exilados - é a possiblidade, a partir da literatura, de testarmos o conceito de memória coletiva de Maurice Halbwachs.

Não basta reconstituir pedaço por pedaço a imagem de um acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstituição funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre passando destes para aqueles e vice-versa, o que será possível se somente tiverem feito e continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo (HALBWACHS, 2013, p. 39HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2013.).

Dentro das muitas leituras e debates críticos que essa categoria tem suscitado desde sua publicação, considero bem oportuna a intervenção da nossa autora de referência neste artigo, Elizabeth Jelin, em novo diálogo com Paul Ricoeur:

En verdad, la propia noción de “memoria colectiva” tiene serios problemas, en la medida en que se la entienda como algo con entidad propia, como entidad reificada que existe por encima y separada de los individuos. Esta concepción surge de una interpretación durkheimiana extrema (tomar a los hechos sociales como cosa). Sin embargo, se la puede interpretar también en el sentido de memorias compartidas, superpuestas, producto de interacciones múltiples, encuadradas en marcos sociales y en relaciones de poder (JELIN, 2002, p. 22JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Buenos Aires/Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 2002.).

Nesse sentido, registro que, apesar de comporem o mesmo perfil social, qual seja, de crianças e jovens exilados oriundos do mesmo lugar, e participarem das mesmas redes de sociabilidade em outro país, essas memórias coletivas estão envolvidas em múltiplas interações que as pluralizam e dificultam as análises de quem intencione interpretá-las como “coisa” ou um “fato” que tente anular suas subjetividades. Marcão, Sara e Mariana estão unidos pela categoria “trauma”, mas as formas, cores e características como este trauma se manifesta estão envoltas em múltiplas variações e possibilidades. Mais uma vez, nesse momento, fica difícil separar o que venha a ser ficção e realidade. Sobre essa suposta ambiguidade entre o fictício e o “real”, dialogo em concordância com a assertiva de Seligmann-Silva de que “a imaginação não deve ser confundida com a ‘imagem’: o que conta é a capacidade de criar imagens, comparações e sobretudo de evocar o que não pode ser diretamente apresentado e muito menos representado” e que o conceito de ficção não pode ser visto como espelho de mentira: “no campo da estética só existe a ‘verdade estética’” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 380-381SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, Memória, Literatura. Campinas: Ed. da Unicamp, 2003., grifos do original).

Zé Maria, a exemplo do que já tinha feito no Brasil e no Chile, continuou a escrever seus textos de denúncia e crítica à ditadura instalada em seu país. Alguns artigos que integram o enredo a partir desse momento são contextualizados no tempo do general Emílio Garrastazu Médici, conhecidamente o mais popular entre os cinco oficiais que assumiram a presidência no estado de exceção. Inegavelmente, também, seu governo foi um dos mais repressores e responsável por centenas de mortes, torturas e desaparecimentos políticos. O ano era 1974 e, depois da festa do tricampeonato na Copa de México, quatro anos antes, o torneio na Alemanha Ocidental seria, para a ditadura, uma forma de coroamento das conquistas da década (1964-1974), tanto no futebol como em outros setores. Porém, já havia sinais claros de uma grande crise internacional do petróleo iniciada em 1973.

No exílio francês, a família de Teresa foi surpreendida com a cantoria do filho do meio, Rico, a entoar Pra frente Brasil - o grande sucesso de 1970 e que virou um símbolo da “boa” memória da ditadura -, confundindo-a com o Hino Nacional Brasileiro. Entre outras passagens ufanistas, diz a letra: “De repente é aquela corrente pra frente/ Parece que todo o Brasil deu a mão/ Todos ligados na mesma emoção/ Tudo é um só coração”.2 2 Composição de Miguel Gustavo e Raul de Souza. Para mais detalhes sobre a canção, cf. Rodrigues e Menezes (2020). Embora o nome completo do trombonista responsável pela melodia fosse Raul de Souza Barros, o seu nome artístico era Raul de Souza e não Raul de Barros como consta na matéria. Zé Maria demonstrou preocupação, alegando que os filhos e outros jovens exilados conheciam mais “os heróis, os hinos e a geografa dos outros países do que do Brasil” (PUNTEL, 1995, p. 59PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). O incômodo aqui apresentado cairia muito melhor para um nacionalista saudoso do que para a caricatura de comunista atribuída recentemente ao livro de Puntel. Nunca é demais lembrar que a própria canção pode ser considerada um “veículo de memória”, porque transporta as pessoas para um tempo remoto, que não é o seu, sempre a partir do presente. Sem dúvida, ao ouvir letra e a sonoridade enunciadas por seu filho, o jornalista acionou suas memórias traumáticas do ano de 1970 no Brasil, cujos efeitos não são os mesmos para os mais jovens nem para os apoiadores do regime autoritário. Jelin, ao analisar como datas e comemorações também se constituem como ativadores dos trabalhos da memória, assim refetiu:

La esfera pública es ocupada por la conmemoración con manifestaciones explícitas compartidas y con confrontaciones. En términos personales y de la subjetividad, son momentos en que el trabajo de la memoria es arduo para todos, para los distintos bandos, para viejos y jóvenes, con experiencias vividas muy diversas (JELIN, 2002, p. 52JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Buenos Aires/Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 2002.).

Como a Copa do Mundo de 1974 seria realizada em um país vizinho à França, sugere-se que o clima de nacionalismo estava à for da pele e o cheiro de “festa” e comemoração provavelmente ocupava o espaço público em diversos países. No Brasil, certamente. A euforia de quatro anos antes ainda reverberava. O personagem Zé Maria aproveitou o contexto, como também a aproximação do final da gestão Médici, e começou a trabalhar um texto de balanço e análise crítica sobre as “grandes obras” propagandeadas pelo regime. Antes de enviar para publicação, resolveu solicitar a opinião do filho Marcão, mas não ouviu o que esperava:

  • - É... está bom [...].

  • – ‘Só isso? Você fala como se não tivesse gostado... [questionou Zé Maria].

  • - Não é bem isso, pai! Pra ser sincero, não entendi direito esse negócio de uso político da Copa do Mundo de 70, o porquê das críticas à construção da Transamazônica, da assinatura desse projeto hidrelétrico de Itaipu, da construção da ponte Rio-Niterói, do Mobral, da televisão em cores... Para mim, acho que tudo isso é bom, que acabar com o analfabetismo é importante, que vencer o tricampeonato é uma boa, [...] abrir estradas, tudo isso é um avanço... (PUNTEL, 1995, p. 69PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].).

O pai tentou argumentar,

- Tá, filhão! Eu explico: é como se, de repente, acordassem o gigante adormecido nesses séculos todos de subdesenvolvimento. Segundo eles, o Brasil passou ou vai passar, assim, num passe de mágica, a não ter mais analfabetos, a ser, através desses projetos, uma potência mundial. Estão até chamando isso de ‘milagre brasileiro’! (PUNTEL, 1995, p. 69-70PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].).

Independente das múltiplas percepções e contrastes interpretativos entre pai e filho - haja vista a diferença de vinte anos que separa as idades – de uma maneira ou de outra, ambos foram afetados pela ditadura no Brasil. Ocorre que para o garoto de 14 anos e narrador escolhido por Puntel, não era fácil compreender o que estava a ocorrer em sua nação. Os confitos memoriais entre gerações que vivenciaram situações distintas da ditadura civil-militar no Brasil são consequências da pluralidade que envolve as subjetividades que impedem, ainda bem, a arquitetura de memórias homogêneas. Também fica evidente, nesses diversos exemplos que desvelamos até aqui, a incontornável relação entre a memória social e a política. Encerro essa seção, com um exemplo que envolve um veículo de memória e um trauma.

O artigo que gerou as reflexões contrastantes entre pai e filho, enfim, foi publicado. Para não ser incoerente com seu enredo, Puntel nos insere em mais uma perseguição ao jornalista Zé Maria, aquela que seria a última. Após a repercussão no Le Monde, o telefone da residência tocou. Dessa vez quem atendeu foi Pablito, o membro chileno da prole - já com quatro anos de idade a pelejar neste planeta -, que rapidamente passou o telefone para as mãos de Marcão: “Quem fala? – atendi, com um pressentimento ruim” relatou o narrador. A resposta que ouviu foi também uma pergunta: “Quem tá falando?” É na sequência que visualizamos os traumas que foram acionados pelo veículo sonoro de memórias: “uma voz de homem, ríspida, falando português sem sotaque, lembrou-me os telefonemas de Canaviápolis”. Marc, numa espécie de crise de pânico, não consegue se expressar de forma compreensível, um tipo de dispositivo acionado pelo organismo traumatizado, e ouve do seu interlocutor: “Não precisa gaguejar, garoto. Dá um recado para ele. Diz para ele não começar a fazer aqui na França o que estava acostumado a fazer no Brasil e no Chile. Fala para ele deixar de abrir as asas que já está passando da conta” (PUNTEL, 1995, p. 70PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Era o fantasma da ditadura no Brasil, em alto e bom som, a atormentar o tempo presente dos personagens, independente do “lugar” onde estivessem.

Memórias e História: “Os meninos” como possibilidade

O que ficou demonstrado até esse momento, é que a todo instante estamos diante de questões que envolvem memórias e histórias. São inúmeros os exemplos evidenciados que podem ser relacionados com a ditadura no Brasil, com o Golpe que derrubou o presidente Salvador Allende no Chile, e até mesmo pinceladas da história francesa, presente na data mais celebrada naquele país, o 14 de Julho. Nos trechos que analisaremos a seguir, essa característica continuará permanente.

Na sequência de sua narrativa, Puntel (1995, p. 71)PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981]. nos apresenta um fato histórico de grande relevância para os que fizeram oposição ao regime autoritário no Brasil. A morte, sob tortura, do jornalista Vladimir Herzog. O acontecimento provocou grandes turbulências no governo do general Ernesto Geisel, que havia sucedido Emílio Garrastazu Médici.3 3 “O Caso Herzog”, como ficou conhecido, já foi tema de livros, documentários e artigos acadêmicos, tanto nos campos do Cinema como também do Jornalismo e da História. Alguns exemplos são: Markun (2005) e o documentário “Vlado: 30 anos depois”, dirigido por João Batista de Andrade, em 2005. O jornalista exilado resolveu escrever um artigo para a imprensa francesa denunciando a morte de Herzog. No dia em que o texto-denúncia foi publicado, Zé Maria não voltou para casa. O fato novo é que Tererê estava grávida. Era de uma menina que receberia o nome de Nicole (PUNTEL, 1995, p. 84-85PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Na complicação do enredo, o leitor fica sabendo que o exilado tinha sido perseguido por um ex-soldado brasileiro em uma estação de metrô e, ao tentar escapar de seu algoz, acabou provocando um tiroteio entre os policiais parisienses, os gendarmes, e o seu potencial sequestrador (PUNTEL, 1995, p. 80PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].).

O enredo tem uma espécie de aceleração e os fatos vão se desenrolando em um ritmo mais frenético. Em seus diálogos com Claire, Marc percebe o afastamento de sua nova paixão após o episódio da troca de tiros que envolveu seu pai, e ambos dialogam demoradamente sobre “o agora e o depois”. Ou seja, o presente e o futuro de ambos. Contudo, não esqueçamos que esse “agora” também está carregado do “antes”. A reflexão sobre o tempo, entre os dois jovens, foi provocada pela constatação de Claire que chegaria o dia que o brasilién teria que fazer a viagem de volta. “O que eu estou tentando dizer, Claire, é que não dá para viver o agora pensando no depois. Se fosse assim, seu pai não teria se casado com sua mãe, porque depois ele teria de ir para a guerra da Argélia, porque depois você ficaria órfã, porque depois...” (PUNTEL, 1995, p. 94PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Temos aí, as três dimensões do tempo, ou seja, uma problematização da filosofia da história, com o passado de Claire, o presente de ambos e uma indagação sobre o futuro, obviamente numa trama e enredo pensados para o público infantojuvenil. E continuou Marcão: “Imagine se eu, quando saímos do Brasil, ficasse esperando o depois para viver. Sim, porque desde que tenho dez anos que vivo nessa vida de cigano. [...] É certo que posso voltar amanhã, no ano que vem, daqui a dois anos, sei lá... Como posso não voltar nunca mais” (PUNTEL, 1995, p. 96PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Assim refetiu Marcos, sobre o imponderável da vida e, por que não, do tempo e da história.

Os acontecimentos do presente do narrador e do passado do autor continuam a emergir em meio às complicações pertinentes ao contexto. Dessa vez, a visita do general Ernesto Geisel a Paris, em 1976. De fato, entre abril e maio de 1976, Geisel esteve em visita diplomática à França e à Inglaterra, onde assinou acordos bilaterais (COUTINHO; GUIDO, s. d.). Essa viagem trouxe, mais uma vez, veículos de memória ao enredo. Essa constatação pode ser evidenciada a partir da reação emocionada do narrador, ao avistar a bandeira brasileira no carro da comitiva presidencial:

No caminho para Châtelet, nossa estação, uma nova surpresa nos aguardava. Em um dos cruzamentos, o trânsito de carros e pedestres ficou interrompido bruscamente, enquanto vários batedores da polícia abriam caminho. Em um dos carros tremulava a bandeira francesa e uma bandeira que eu conhecia de há muito: a bandeira brasileira. [...] surpreso, eu mal conseguia pensar direito. - Marc, você está bem?’ - Claire preocupava-se, vendo que aquele encontro repentino mexera comigo (PUNTEL, 1995, p. 99-100PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981]., grifos meus).

Outro fato curioso foi que Zé Maria, após conseguir credencial para a coletiva de imprensa do ditador brasileiro, avistou ninguém menos que o “Cabo” Cirilo, agora como um dos assessores presidenciais. Talvez tenha sido uma forma de o autor demonstrar como alguns militares que faziam o jogo sujo das perseguições, torturas e desaparecimentos políticos, a chamada linha-dura da ditadura, alcançaram postos importantes na estrutura burocrática daquele regime autoritário. Mas não era só a ascensão meteórica na carreira castrense do seu perpetrador que incomodava o jornalista. Ao saber que Marcão teria que organizar, junto com os demais jovens exilados brasileiros, uma aula sobre o Brasil, Zé Maria demonstrou, mais uma vez, preocupação por eles até aquele momento, terem estudado “sempre o país dos outros, os heróis dos outros, as fronteiras dos outros. Vocês não sabem nada sobre o Brasil” (PUNTEL, 1995, p. 102-103PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Esse nada, segundo Zé, incluía o Hino Nacional Brasileiro.

O certo é que sob a pena e tintas de Luiz Puntel, a aula ocorreu e, a meu ver, foi um dos momentos mais emocionantes do livro. Os “meninos [e meninas] sem pátria” – Marcos, Ângelo, Juca, Pedro, Sara e Mariana - agora devidamente nomeados e identificados, organizariam uma espécie de exposição performática sob o título “Brasil: país de contrastes”. Foi durante a pesquisa que descobriram a presença do francês Jean-Baptiste Debret como o artista que criou a ideia base de nossa Bandeira Nacional, ainda no Império. Acessaram as continentais dimensões territoriais do Brasil. Investigaram sobre a presença do poema de Gonçalves Dias, Canção do Exílio, na letra do hino brasileiro e mapearam outros gêneros de música e dança, para além do samba, a exemplo da chula. Os problemas não foram omitidos. Levantaram dados sobre as deficientes estradas e rodovias; ausência de ferrovias e, também, da mortalidade infantil (PUNTEL, 1995, p. 112PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). No ápice da apresentação, uma alusão ao 7 de Setembro. Mais uma vez, uma data como veículo de memória, numa intrínseca relação com a história:

  • - Nós queremos comemorar, aqui e agora, a data de nossa independência. É certo que ainda está longe, já que o nosso 14 Juillet acontece dia 7 de setembro, e nós ainda estamos em maio. Mas não faz mal. Há muito tempo nós não temos podido comemorar essa data...

  • - Mas como vocês sabem, estamos proibidos de pisar o solo brasileiro. Muitos de nós, temos vivido sempre fugindo de país em país, como se fôssemos bandidos perigosos [...].

  • - E estamos fugindo, simplesmente porque nossos pais não concordam com o que está acontecendo no Brasil. Por isso, muitos de nós já se acostumaram à ideia de sermos chamados de meninos sem pátria (PUNTEL, 1995, p. 114PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].).

É importante relembrarmos o que registrei no início do artigo: Meninos sem pátria é de 1981; a Lei da Anistia é de 1979, momento histórico que encerrará o livro como veremos nas linhas a seguir. Nesse sentido, podemos inferir que o livro foi escrito no mesmo contexto em que sua parte final se desenrola. Também como já afirmamos, não são apenas as memórias de Zé Maria, Marcão, Teresa e Ricardo, são também lembranças ancoradas em outro livro, coletivo, publicado em 1980 (COSTA et al., 1980COSTA, Albertina de O. et al. Memórias das mulheres do exílio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.). Certamente, aos leitores do século XXI - quando se processa no Brasil nessas duas primeiras décadas uma verdadeira peleja memorial que envolve, inclusive, negacionismos e falsificações do passado ditatorial – o livro de Puntel pode ser visto como uma obra que, de forma magistral, entrelaça história, memória e ficção, compondo um gênero híbrido de inegável valor literário e historiográfico voltado para o público infantojuvenil. Essa é a principal hipótese que levanto, de mãos dadas com Jelin, após sistemática análise do livro:

En síntesis, no hay una manera única de plantear la relación entre historia y memoria. Son múltiples niveles y tipos de relación. Sin duda, la memoria no es idéntica a la historia. La memoria es una fuente crucial para la historia, aun (y especialmente) en sus tergiversaciones, desplazamientos y negaciones, que plantean enigmas y preguntas abiertas a la investigación. En este sentido, la memoria funciona como estímulo en la elaboración de la agenda de la investigación histórica. Por su parte, la historia permite cuestionar y probar críticamente los contenidos de las memorias, y esto ayuda en la tarea de narrar y transmitir memorias críticamente establecidas y probadas (JELIN, 2002, p. 75JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Buenos Aires/Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 2002.).

A última referência apresentada por Luiz Puntel, no sentido mais factual, e que consta como ilustração dessa tríplice conjunção entre memória, história e ficção, é a conciliatória Lei da Anistia. Não é despretensioso o título que abre essa parte final: “Uma notícia de tirar o fôlego”. Arrisco-me a dizer que o autor faz uma espécie de registro memorial imediato, dada a proximidade temporal com que escreveu e publicou seu texto, e os acontecimentos políticos do final da década de 1970 no Brasil.

Abro aspas para Puntel (1995, p. 116)PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].: “No começo de 1979, com a posse de João Baptista Figueiredo, o general que substituiu o presidente Ernesto Geisel, as notícias sobre a anistia eram cada vez mais fortes. Não mais artigos esparsos, mas o comentário constante de todos os jornais brasileiros”. Qualquer autor que estudou, no campo da história, o processo da anistia política no Brasil no processo de transição autoritária, conhecido como “abertura” lenta, gradual e segura, percebe que as informações que constam nessa passagem têm total relação com as evidências empíricas, ou seja, com as fontes, vestígios e rastros que são analisados criticamente pelos historiadores profissionais que se dedicaram ao tema da anistia política.4 4 Ver bibliografa em: Rodeghero (2017) e Lemos (2018). Segue o autor:

No final de agosto, tão logo voltamos das férias, um dia papai chegou da rua com o Le Monde nas mãos. [...] Na página estrategicamente dobrada por papai, li o que aguardávamos há tempos.

- Anistie au Brésil!

Aí eu não aguentei. Empurrando a cadeira para trás, levantei-me, corri em direção à cozinha e, dando um pulo, soquei o ar como o Pelé fazia na comemoração do gol (PUNTEL, 1995, p. 117PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].).

A festa não foi sem angústias, algo que enriquece sobremaneira a dimensão humana nessa narrativa destinada a um público que, em tese, está numa faixa etária de construção de interpretações e na busca de sentido sobre a vida. Escrevo, “em tese”, por compreender que a jornada dos “meninos” pode e deve ser lida por todos, em qualquer idade, inclusive para o público acadêmico. Pablito passou a questionar: “Vocês vão para o Brasil. E eu, que sou chileno? Para onde é que eu vou?” (PUNTEL, 1995, p. 118PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Marcos teria que passar pelo difícil diálogo de despedida com sua namorada, Claire.

Era chegado o momento, também, da despedida de todos do Lycée Marie Curie. Professores, funcionários, colegas de classe... Dessa maneira, temos ideia da ambivalência que gerou a aprovação da anistia em muitos exilados brasileiros, tão bem documentada pela historiadora Denise Rollemberg no clássico Exílio: entre raízes e radares (ROLLEMBERG, 1999ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999.). O momento do retorno ao país de origem do casal Zé Maria e Tererê, mais seus quatro filhos, coincidiria com o início do ano letivo francês, em setembro. Para a surpresa, não apenas de Marc, mas para todos os brasileiros que estudavam no Marie Curie, o Liceu preparou uma despedida. A emoção correu solta, lá e aqui, antes e agora, quando voltei a ler o livro para a escrita deste artigo. Pierre, o amigo francês da trupe, foi o orador:

- Como a grande maioria do pessoal aqui do Lycée Marie Curie está sabendo, foi assinada a anistia no Brasil, possibilitando que os exilados voltem para lá. [...] E nós, como franceses e amigos, gostaríamos que a saída de vocês da França tivesse um significado especial [...]. E eu convido a todos para prestarem bastante atenção nesta música que vamos cantar, eu e o pessoal aqui da frente. Foi a melhor maneira que escolhemos para dizer o quanto nós gostamos deles (PUNTEL, 1995, p. 121PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].).

A música era simplesmente o Hino Nacional Brasileiro. E mais, o professor Monsieur Legrand, hasteou a Bandeira do Brasil. E mais, Marcão e seus parceiros, em lágrimas, acompanharam a cantoria patriótica. Não é estranho ver isso em um livro, que 37 anos depois seria acusado de “esquerdista” – como sinônimo de antipatriota - e seu autor de “agitador” social?

Quanto mais se aproximava o momento da partida, as reflexões sobre “espaços de experiências” e “horizonte de expectativas” (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006.) aparecem nos diálogos. Emergem em Marcão sentimentos ambíguos que transitam entre a saudade que já começara a sentir de sua vivência na França e a saudade-desejo de rever seus familiares, amigos e paixões que ficaram no Brasil uma década antes. “Havia um quê de insônia misturado com as saudades que eu já sentia de Claire, do amigão Pierre, da França, mas também havia um muito de ansiedade e expectativa pela volta. ‘Como estariam todos no Brasil?’, eu pensava” (PUNTEL, 1995, p. 123PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].).

Como nem tudo são fores e os espinhos têm suas funções, um aspecto que salta aos olhos nas páginas finais – e durante toda a narrativa - diz respeito a algo que Luiz Puntel não deixa claro se foi intencional ou não. Machismo e preconceito de gênero. Expressões como “Ainda bem que é com menina. Você queria que ele ficasse pajeando homem, Tererê? (PUNTEL, 1995, p. 63PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].); “Você foi é homem, foi macho toda vida” (PUNTEL, 1995, p. 123PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].), expressam um pouco a predominância das masculinidades que marcam a obra, o que não deixa de ser um contrassenso para um livro que se baseou justamente em memórias de mulheres no exílio. As mulheres e meninas são sempre personagens secundárias, que devem ser protegidas e cuidadas pelos homens e garotos, mesmo sendo Tererê, em algumas aparições, representada como uma matriarca segura de si e decidida politicamente. Machismo e preconceitos de gênero, ainda que de forma sutil e nem tão evidente à primeira vista, são aspectos que também caracterizam o campo das esquerdas no contexto da ditadura, temas já ressaltados pela historiografia (GREEN, 2012GREEN, James. “Quem é o macho que quer me matar?”: Homossexualidade masculina, masculinidade revolucionária e luta armada brasileira dos anos 1960 e 1970. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, n. 8, p. 58-93, jul./dez. 2012.). Nesse sentido, após um diálogo de “homens” entre Zé Maria e seu primogênito, com demonstrações de fragilidades emocionais, pedido de desculpas, carinhos e afetos mútuos, era chegada a hora da partida.

No aeroporto de Orly, “[...] alguns repórteres entrevistavam os exilados que regressavam. Havia em todos os semblantes um misto de alegria pelo reencontro de amigos que não se viam há tempos. Havia a expectativa comum do regresso, da volta à pátria” (PUNTEL, 1995, p. 125PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). O aeroporto já tinha sido cenário da belíssima canção Samba de Orly – que também considero um veículo de memória –, parceria de Chico Buarque, Toquinho e Vinícius de Moraes, por retratar o tema do exílio de forma tão bela. “Vai meu irmão/pega esse avião/você tem razão/ de correr assim/ desse frio [...]/ Pede perdão/ pela omissão/ um tanto forçada/ mas não diga nada que me viu chorando/ e pros da pesada/ diz que vou levando/ Vê como é que anda/ aquela vida à toa/ e se puder me manda/ uma notícia boa”.5 5 A canção “Samba de Orly” foi composta entre 1969 e 1970, com primeira gravação em 1971, no álbum Construção, de Chico Buarque. Folha de São Paulo, 24 nov. 2010. É nessa paisagem que, ao dar entrevista para uma rede de TV, cercado pelos amigos franceses e o silêncio de Claire, o já adulto Marcão afrmou: “Estou vendo essa volta como uma conquista nossa. Vamos deixar de ser meninos sem pátria. Afinal, somos filhos desse solo chamado Brasil, como diz o hino, não?” (PUNTEL, 1995, p. 125PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). Um nacionalismo que, ao meu ver, caracteriza toda a obra. No avião, a batucada dos que entoavam “Tô voltando”, música de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro gravada pela cantora Simone. “Pode ir armando o coreto/Preparando aquele feijão preto/ Que eu tô voltando” (PUNTEL, 1995, p. 127PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].). No meio daquela euforia, o choro contido e camufado no narrador, que prepara o arremate final para o poema de Paulo Freire: “Lembro-me do tempo do exílio, quando a saudade era do Brasil como um todo. O Brasil me faltava [...]. Era preciso reaprender o Brasil” (PUNTEL, 1995, p. 127PUNTEL, Luiz. Meninos sem Pátria. 23. ed. São Paulo: Ática, 1995 [1981].).

Considerações finais

Como já vimos, o livro de Luiz Puntel reapareceu com destaque na grande imprensa a partir da polêmica de 2018. Porém, não foi só a criatura. Seu criador foi entrevistado por programas televisivos de alcance nacional e personagens que aparecem no livro foram “descobertos” e ficamos a saber que eles eram reais. Ricardo Rabelo, o Rico, foi entrevistado pelo jornal O Globo e, na mesma reportagem, soubemos que a trama de Marcão foi a obra mais procurada em um site de vendas de livros no final daquele ano (LIVRO BANIDO DO, 2018LIVRO BANIDO DO Colégio Santo Agostinho lidera lista de mais vendidos da Estante Virtual. O Globo, Rio de Janeiro, 05 nov. 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/livro-banido-do-colegio-santo-agostinho-lidera-lista-de-mais-vendidos-da-estante-virtual-23212154. Acesso em: 26 ago. 2021.
https://oglobo.globo.com/cultura/livros/...
). Também, no debate público que o episódio provocou, soube-se que Tererê realmente existiu. Ela é a Maria Teresa, uma das autoras que assina a obra de memórias coletivas cujo enredo Luiz Puntel teve como base e já nos referimos neste artigo. Essas novas informações que emergiram no calor dos acontecimentos de 2018 reforçam, sem dúvida, a pertinência de compreendermos o livro para além do ficcional, mas em um campo mais elástico que articula literatura, memória e história.

Ao testarmos de forma crítica, a partir da análise criteriosa das evidências históricas e memoriais presentes na narrativa que foi objeto de beligerância e litígio, temos a certeza de que os reclamantes de 2018 pouco conheciam sobre Meninos sem Pátria. Sem dúvida, o livro de Puntel é um texto de denúncia contra a ditadura, mas não necessariamente de apologia ao comunismo. Essa associação automática entre ser contra a ditadura e ser comunista é, aliás, um equívoco muito presente no campo ultraconservador brasileiro atual. O que predomina em Meninos sem Pátria é justamente uma referência amorosa ao Brasil, como um lugar de saudade, tão bem apresentada nas alusões às canções, aos hinos e aos símbolos nacionais, ou seja, no contexto da anistia e da redemocratização, os “brasões” do País eram signos de todas as matizes políticas, mas o tempo se encarrega de promover metamorfoses.

No ano em que a Lei da Anistia de 1979 virou uma jovem quarentona, em 2019, a extrema-direita voltou ao poder através do voto. Sob os lemas “nossa bandeira jamais será vermelha” e ostentando camisas da seleção brasileira de futebol, voltaram às ruas, principalmente no contexto golpista de 2016 que envolveu o impedimento da presidenta Dilma Roussef. Dentro dessa conjuntura, o confito ideológico que envolveu “Meninos sem Pátria” às vésperas das eleições de 2018 não era falso. Pelo contrário, mostrou uma grande articulação de setores da elite econômica brasileira que conseguiu vencer a disputa com um sonoro apoio das camadas médias e grupos populares.

Com a posse do capitão Jair Messias Bolsonaro na Presidência da República, em janeiro de 2019, a última ditadura no Brasil voltou com força ao debate público, não ficando restrita aos setores acadêmicos. Vale a pena lembrar que já em março de 2019, Bolsonaro determinou que as Forças Armadas do País comemorassem o Golpe de 1964 e a Ditadura (BOLSONARO DETERMINA COMEMORAÇÃO, 2019BOLSONARO DETERMINA COMEMORAÇÃO do Golpe de 1964. DW. 26 mar. 2019. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/bolsonaro-determina-comemora%C3%A7%C3%A3o-do-golpe-de-1964/a-48062127. Acesso em: 26 ago. 2021.
https://www.dw.com/pt-br/bolsonaro-deter...
). Durante a votação do processo de impeachment de Roussef – com base em elementos frágeis e insustentáveis juridicamente –, em 2016, o então deputado já havia demonstrado todo seu apreço à tortura e ódio aos diferentes dedicando sua fala ao conhecido torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, considerado herói pelo atual presidente do Brasil.

Nesse sentido, as batalhas, confitos e trabalhos da memória sobre esse tempo estão a pleno vapor. Situar-se nesse debate público é uma tarefa do historiador, principalmente aqueles que se dedicam à chamada “história do tempo presente” (ARÓSTEGUI, 2004ARÓSTEGUI, Julio. La historia vivida: sobre la historia del presente. Madrid: Alianza Editorial, 2004.; DELACROIX, 2018DELACROIX, Christian. A história do tempo presente, uma história (realmente) como as outras? Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 39-79, jan./mar. 2018.; ROUSSO, 2016ROUSSO, Henry. A Última Catástrofe: a história, o presente e o contemporâneo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016.). Esse tempo está cercado de desafios que envolvem a operação com diversas fontes, dentre elas, a literatura, os testemunhos e as memórias, que estão sempre a trabalhar com seus veículos em constante movimento. Talvez, quem sabe, com essas articulações e enfrentamentos, continuemos, sempre, a reaprender o Brasil, como poetizou Paulo Freire e a realidade contemporânea vem nos exigindo. Para isso, a história é ferramenta indispensável no diálogo com as memórias, inclusive romanceadas, sem querer ocultá-las ou apagá-las. Como bem destacou Yosef Yerushalmi, em artigo escrito em outro contexto, mas que muito bem se aplica ao Brasil atual,

Contra esses militantes do esquecimento, traficantes de documentos, os assassinos da memória, os revisores [negacionistas] das enciclopédias e os conspiradores do silêncio, [...] o historiador, apenas o historiador, animado pela paixão austera dos fatos, das provas, dos testemunhos, que são o alimento da sua profissão, pode velar e montar guarda (YERUSHALMI, 1988 apud SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 63SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, Memória, Literatura. Campinas: Ed. da Unicamp, 2003.).

  • 1
    Importantes autoras e autores têm contribuído para a divulgação do conceito de “veículos de memória”. Para os objetivos deste artigo, destacamos as abordagens de Elizabeth Jelin e Victoria Langland (2003)JELIN, Elizabeth; LANGLAND, Victoria. Introducción. In: JELIN, Elizabeth e LANGLAND, Victoria. Monumentos, memoriales y marcas territoriales. Buenos Aires/Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 2003. p. 3-18., como também Gustavo Souza e Fábio D. Camargo (2020). Para um artigo em língua inglesa, cf. Waterson (2007)WATERSON, R. Trajectories of memory: documentary flm and the transmission of testimony. History and Anthropology, London, v. 18, n. 1, p. 51-73, 2007..
  • 2
    Composição de Miguel Gustavo e Raul de Souza. Para mais detalhes sobre a canção, cf. Rodrigues e Menezes (2020). Embora o nome completo do trombonista responsável pela melodia fosse Raul de Souza Barros, o seu nome artístico era Raul de Souza e não Raul de Barros como consta na matéria.
  • 3
    “O Caso Herzog”, como ficou conhecido, já foi tema de livros, documentários e artigos acadêmicos, tanto nos campos do Cinema como também do Jornalismo e da História. Alguns exemplos são: Markun (2005)MARKUN, Paulo. Meu querido Vlado: a história de Vladimir Herzog e do sonho de uma geração. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. e o documentário “Vlado: 30 anos depois”, dirigido por João Batista de Andrade, em 2005.
  • 4
    Ver bibliografa em: Rodeghero (2017)RODEGHERO, Carla S. A anistia de 1979, os crimes conexos e a reciprocidade. In: CARDOSO, Lucileide C.; CARDOSO, Célia C. Ditaduras: memória, violência e silenciamento. Salvador: EdUFBA, 2017. p. 327-344. e Lemos (2018)LEMOS, Renato. Ditadura, Anistia e Transição política no Brasil (1964-1979). Rio de Janeiro: Consequência, 2018..
  • 5
    A canção “Samba de Orly” foi composta entre 1969 e 1970, com primeira gravação em 1971, no álbum Construção, de Chico Buarque. Folha de São Paulo, 24 nov. 2010.
  • FINANCIAMENTO
    Não se aplica.
  • APROVAÇÃO NO COMITÊ DE ÉTICA
    Não se aplica.
  • MODALIDADE DE AVALIAÇÃO
    Duplo-cega por pares.
  • PREPRINT
    O artigo não é um preprint.
  • DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA E OUTROS MATERIAIS
    Os conteúdos subjacentes ao artigo estão nele contidos.
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    Copyright © 2022 Anderson da Silva Almeida.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2021
  • Revisado
    01 Dez 2021
  • Aceito
    10 Jan 2022
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