Resumos
"Historiofotia" foi o termo cunhado por Hayden White para designar a representação da história por meio de imagens visuais. Atualmente o termo é apropriado pelos historiadores para compreender como filmes produzem interpretações do passado. Para fins teóricos e metodológicos da prática histórica, deve-se identificar a gênese do conceito nos escritos de Hayden White. O visual parece ter sido questão menor na obra de White, ainda que jamais ausente, e o conceito de historiofotia faz parte de uma linhagem de noções alternativas, tais quais "aural", "espectral", "fantasmagoria", os quais aparecerem em distintos momentos nos seus escritos. O objetivo deste texto é evidenciar quais são as noções de "imagem" apresentadas por White em suas duas linhagens principais: a da imagem verbal, relacionada com a tropologia e as figuras de linguagem, e a da imagem não verbal, da qual fazem parte os termos mencionados acima. Nossa hipótese é que o esforço teórico de White na montagem de sua teoria dos tropos para explicar a construção do passado no texto histórico encontrou um limite nas imagens visuais. Para transpor este limite propomos uma problematização da historiofotia como uma ferramenta para compreensão dos usos públicos visuais das figurações do passado na cultura histórica das sociedades industriais e pós-industriais.
historiofotia; Hayden White; palavra e imagem; usos públicos da história
"Historiophoty" was the term coined by Hayden White to describe the representation of history in visual images. Currently the term is used by historians to understand how films produce interpretations of the past. For theoretical and methodological purposes of historical practice it should identify the genesis of the concept in the writings of Hayden White. The visual seems to have been a minor issue in the work of White, though it was never absent and the concept of historiophoty is of a lineage of alternative concepts, such as "aural", "spectral", "phantasmagoria", which appear at different times in his writings. The aim of this paper is to show that the notions of "image" presented by White in his two major lineages: the verbal image, related to tropology and figures of speech and the nonverbal image, which is composed by the terms mentioned above. Our assumption is that White's theoretical effort in assembling his theory of tropes to explain the construction of the past in the historical text encountered a limit in visual images. To overcome this limit we propose a questioning of historiophoty as a tool for understanding the public use of visual figurations of the past in the historical culture of the industrial and post-industrial societies.
historiophoty; Hayden White; word and image; public uses of history
Recentemente, o termo historiofotia tem ganhado alguma notoriedade na Academia brasileira graças à tradução da obra de Robert Rosenstone (2010), que discute a interpretação do passado no cinema. O termo apareceu pela primeira vez em 1988, num debate na revista American Historical Review, na qual Rosenstone, que encampava a discussão sobre história e cinema nos EUA, pediu a participação do já famoso autor da obra Meta-história, Hayden White, historiador que montava uma influente teoria narrativista da história, hoje nomeada pelos comentaristas como 'filosofia da história' (ANKERSMIT; KELLNER, 1995), a qual chamou atenção dos historiadores (não muito simpatizantes de tal teoria) para o componente linguístico e narrativo do discurso historiográfico.
Para lidar com esta questão, o autor cunhou o termo historiofotia (historiophoty), palavra de aparição fulgurante em toda sua obra, para problematizar a especificidade da representação do passado por meio de imagens visuais. O termo goza de alguma popularidade no meio acadêmico anglo-saxão, mas no Brasil começa a engatinhar, uma vez que o meio acadêmico brasileiro está acostumado a articular, graças à herança acadêmica francófila, a interpretação do passado nos filmes na continuidade do que Marc Ferro problematizou como "leitura cinematográfica da histórica" (SANTIAGO JÚNIOR, 2012), ou seja, a maneira como filmes contam a história em dado contexto histórico. Apesar da maneira pela qual Rosenstone articulou a questão - uma operação de linguagem diferente na interpretação do passado - o próprio Hayden White não desenvolveu de fato o significado da historiofotia.
De certa forma, o termo se relaciona aos empregos do conceito de imagem nos escritos de White, nos quais predomina uma concepção linguística ligada à teoria dos tropos, a tropologia e a narratividade, devedoras da tradição retórica e dos estudos literários. Contudo, podemos detectar nos trabalhos de White outra linhagem de concepção de imagem, a qual não está vinculada à imagem verbal, mas às diversas tematizações de imagens não verbais, entre elas, o cinema e o vídeo. Esta segunda linhagem conceitual tem sido, até hoje, periférica na prolífica carreira do historiador e teorista e engloba o emprego de termos como "historiofotia", "aural", "espectral", "fantasmagoria", entre outras formas de designar a articulação do passado por meio de imagens não verbais, as quais, para resumir, podemos chamar aqui de imagens visuais.
Para compreender historifotia é necessário entender a relação entre imagem e história na obra de Hayden White, a qual, até onde se pôde verificar, ainda não foi tematizada na fortuna crítica do autor. Por um lado, a maioria dos escritos traduz bem o significado de imaginação e figuração na tropologia whiteana, mas, por outro, a problematização desta de um ponto de vista e da cultura visual ainda espera para ser desenvolvida. No caso específico da representação do passado em imagens fílmicas, analisar essa linhagem alternativa é importante para medir, afinal de contas, qual é a contribuição da tropologia (da qual, como veremos, a historiofotia é tributária) para o estudo dos usos públicos do passado e da história por meio das mídias visuais do século XX e XXI.
Este texto visa a demonstrar três pontos: 1) Hayden White tratou a imagemcomo uma questão periférica na sua investigação, até que foi indagado pelo problema da imagem visual; 2) a problematização da relação do texto com a imagem na teoria trópica, em sua abordagem, se dá apenas no nível da discursividade; 3) a abordagem tropológica de White encontrou um limite quando enfrentou as variações do passado a partir das imagens visuais. Este texto investiga momentos-chaves nos escritos de Hayden White, nos quais a imagem foi tematizada variando entre um emprego trópico (imagem verbal) e um emprego alternativo (imagem visual). Ao final do texto retomaremos a questão da historiofotia na reflexão historiográfica para redimensionar seu emprego.
Tropologia e historiografia: o momento meta-histórico
Podemos dividir o emprego da noção de imagem na obra de Hayden White em dois grandes 'momentos'. Um primeiro, desde o texto O fardo da história (1966) até 1988, aqui chamado de meta-histórico, em que predomina uma concepção verbal de imagem relacionada aos desenvolvimentos da tropologia e do qual a obra/programa Metahistória: a imaginação histórica do século XIX (1973) foi a síntese. O segundo, chamado de aural-espectral, marcadamente na década de 1990, mas avançando nos anos 2000, em que as concepções verbais de imagem dividiram espaço com noções não verbais, quando se passou a tematizar as imagens visuais, em especial, o cinema, o vídeo, a televisão, mas também a fotografia. A inflexão na direção deste segundo momento foi a reflexão sobre historiofotia em 1988.
Em Metahistória,Hayden White, trabalhando a partir da "teoria dos tropos", empreendeu uma investigação do que chamou de "imaginação histórica", em que lançou novas bases de uma abordagem narratológica da história. White, como se sabe, partia do que afirmava ser a manifestação efetiva do conhecimento histórico: discursos verbais em formato narrativo resultantes de atos poéticos de figuração. A começar pelo título do livro, o historiador claramente privilegiava palavras e expressões que aproximavam a história da literatura, tais como "imaginação histórica", "estória da história", tropos, figuras de linguagem, etc. O trabalho de White nivelou o discurso historiográfico do século XIX (focalizado em Michelet, Tocqueville, Ranke e Burckhardt), com as obras dos grandes filósofos da história (via Hegel, Marx, Nietzsche e Croce), concebendo-os como composições verbais que interpretavam a história a partir das informações históricas disponíveis nas fontes. Hans Kellner avisa que White tinha (tem) tendências para encontrar e desenvolver classificações tetraquádruplas nas quais inseriu os historiadores e filósofos da história. Na meta-história, os quatro tipos padrões pelos quais os historiadores classificam o material histórico possuíam, cada um, quatro divisões internas de inserção classificatórias em tipos de tropos (metáfora, metonímia, sinédoque, ironia), modos de enredamento (romance, tragédia, comédia, sátira), modos de argumentação (formalismo, mecanicismo, organicismo, contextualismo) e modos de implicação ideológica (anarquismo, radicalismo, liberalismo, conservadorismo).
As grandes interpretações históricas oitocentistas seriam operações discursivas prefiguradas na linguagem, ou seja, foram modificações de sentido procedidas por meio de dispositivos poéticos básicos chamados tropos, os quais trabalhavam no interior de enredos compostos, as tramas que classificavam, hierarquizavam e organizavam os "fatos". O deslocamento de White não poderia ter parecido mais "perverso": ao evidenciar que a interpretação e análise histórica eram, em sua base, "figuras de linguagem", o estudioso deslocou a história do meio das ciências e evidenciou seu pertencimento às narrativas literárias. De meros recursos retóricos, as figuras de linguagem e os enredos foram transformados em composições estruturantes do discurso histórico.
As interpretações históricas por enredamento, ou seja, por elaboração de enredo (emplotment), antes de ser resultados analíticos da investigação são formas pré-estruturadas. Antes de o historiador aplicar ao campo histórico o aparato conceitual que usará para representá-lo, ele prefigura o campo, "constituindo-o como objeto de percepção mental". (WHITE, 1992, p. 44). A partir dessa prefiguração é que as imagens do passado podem ser montadas, o que significa que a "imaginação histórica" seria o resultado da união dos elementos que compõem a interpretação histórica enredados nos tropos fundamentais. Postula-se assim uma diferença fundamental entre informação histórica, aquilo que se consegue encontrar nas fontes, e a interpretação histórica, a organização desses dados na forma de enredo e argumento.
Presume-se que, para White, ao se falar em "imaginação histórica" ou "imagens do passado", à imagem foi dedicada alguma atenção especial. Ainda que meta-história esteja repleta de decodificações das imagens geradas pelos historiadores e filósofos dos Oitocentos, chamando-se atenção para o uso de figuras como "ondas" e "metástases" (WHITE, 1992, p. 260), nos escritos de Jacob Buckhardt, por exemplo, ou as concepções da história "como ocasião para produção de imagens", em Nietzsche (WHITE, 1992, p. 380), criando o próprio teorista novos tropos para dar conta das operações de sentido dos autores analisados, o que ele chama de "imaginação histórica" é o resultado dessas operações que não são elas próprias imagéticas, embora se possa chamá-las de imaginárias. A imaginação é ativada discursivamente, tem por "estrutura profunda" os recursos dos tropos, os quais permitem que aquilo que está separado no imaginário - "os paradigmas como classes inertes" - possa gerar uma imaginação histórica, uma espécie de "método de produzir imagens". (RICOEUR, 2007, p. 265).
Os tropos na meta-história são as bases estruturais e estruturantes do discurso e da interpretação histórica, não são as próprias imagens geradas. Vindo da retórica, as "figuras", no vocabulário de White, permitem classificar o estranho em ordens, classes, gêneros, espécies distintas de fenômenos, ou seja, são operações do sentido figurado. A operação de giro (tropus, do grego) - desvio do sentido literal (ou anterior) - é o tropo que pre(forma) a imagem. Ou seja, a tropologia é a disciplina que permite entender como os troposprefiguram o campo histórico, que só é apreendido em imagens depois de ter sido pré-moldado, sendo, portanto, os tropos a constante que permite ser formada a meta-história:
A fim de imaginar 'o que realmente aconteceu' no passado, portanto, deve primeiro o historiador prefigurar como objeto possível de conhecimento o conjunto completo de eventos referidos nos documentos. Este ato prefigurativo é poético, visto que é precognitivo e pré-crítico na economia da própria consciência do historiador. É também poético na medida em que é constitutivo da estrutura cuja imagem será subsequentemente formada no modelo verbal oferecido pelo historiador como representação e explicação daquilo 'que realmente aconteceu' no passado. (WHITE, 1992, p. 45).
O trecho é elucidativo ao tratar os tropos como automáticos, uma estrutura da consciência linguística inescapável do historiador, a partir do qual se pode acionar a faculdade da "imaginação" do passado para que este possa ser concebido a partir de imagens. Os tropos servem para realizar operações, para que os conteúdos da experiência que resistem à descrição em representações não ambíguas (próprias das ciências duras) possam ser figurados.
Na introdução aos Trópicos do Discurso, de 1978, White esclareceu que os tropos eram desvios do sentido literal que não são originalmente sancionados pelo senso comum ou pela lógica, a partir dos quais figuras de linguagem ou de pensamento são geradas. Enquanto desvio de um sentido possível dado, o tropo instaura um novo sentido com novas concepções de certeza ou verdades, de maneira a expressar na linguagem o que não poderia ser expresso de outra forma. O discurso é o meio pelo qual o tropo realiza essa operação em plenitude, prefigurando as imagens que seriam formadas na prosa histórica - o tropo é a alma do discurso, afirma White.
A história seria uma exposição em enredo marcado por estilos, conforme o caso, argumentativos e ideológicos com figuras de linguagem dominantes montadas em cima das quatro operações básicas de usos e composição de imagens: metáfora, metonímia, sinédoque e ironia. Estas seriam a base da "imaginação histórica", a capacidade de produzir múltiplas retóricas sobre o passado a partir da articulação dos recursos do discurso para produzir uma diferença de sentido do passado. Obviamente, fica claro que teorizar os "trópicos do discurso" faz parte da preocupação com a imagística histórica, com as mudanças do sentido a partir da produção de imagens que organizam e constroem o campo histórico.
Contudo, uma observação mais atenta da obra do teorista nos permite encontrar detalhes importantes: influenciado pela "virada linguística" e nada interessado num questionamento visual ou imagético, White pensava a estrutura verbal como o núcleo da representação histórica do passado em chave narrativista. As próprias noções de eventos e fatos são conceitos teóricos advindos do uso dos recursos discursivos da narração. Eventos são os dados históricos ainda não narrados e que só se tornam fatos históricos quando inseridos na narrativa. Diferenciando os anais, as crônicas e as narrativas, White (1992) asseverou que o discurso narrativo produz um dado complexo, o fato histórico, na medida em que engendra um tema e conjunto de ações os quais, ao serem inseridos numa ordem temporal e causal, deverão ser explicados na narrativa. Essa invenção de fato só seria possível por meio dos usos de tropos nas narrativas, de maneira a poder alinhar os diferentes eventos: a narrativa cria uma interpretação para eles à medida que os cria na sequência. A imaginação histórica é fruto da combinação entre estruturas trópicas e paradigmas narrativos como o romance, a comédia, a tragédia e a sátira. Interpretar o passado é inventar uma modalidade de história que combine diferentes operações trópicas num enredo reconhecível de estória (romance, comédia, tragédia, sátira) tanto para o historiador como para o leitor.
No contexto teórico de White, o que significa produzir imagem? Aliás, o que seria a "imagem" produzida? Como ela difere do próprio tropo? Aparentemente, o conceito de imagem aqui contido é tributário das concepções de Northorp Frye, de quem White tomou emprestado não apenas a teoria e tipologia dos enredos, mas também a concepção de linguagem, imaginação e imagem. Em dado momento de Anatomia da Crítica, obra muito citada por White, Frye afirma:
[...] o próprio poema não é um espelho. Não reproduz meramente uma imagem da natureza; faz a natureza reproduzir-se de forma abrangente. Quando o crítico formal vem a lidar com símbolos, portanto, as unidades que ele isola são aqueles que mostram uma analogia de proporção entre o poema e a natureza que ele imita. O símbolo, neste aspecto, pode melhor ser chamado de imagem. Estamos acostumados a associar o termo "natureza" primariamente como o mundo físico exterior, e por isso tendemos a pensar numa imagem como precipuamente uma cópia de um objeto natural. Mas obviamente ambas as palavras são muito mais inclusivas: a natureza compreende a ordem conceitual ou inteligível, tanto quanto a espacial, e o que se chama de "ideia" pode ser também uma imagem poética. (FRYE, 1987, p. 88).
Frye elimina a imagem como semelhança ou imitação da natureza e afirma que cada poema possui uma "faixa espectroscópica específica de imagens" (FRYE, 1987, p. 88), sendo que a imagem encontra-se na sinonímia de símbolo, como unidade formal artística, base pela qual é montado o arquétipo. Segundo Frye, a obra literária toma uma configuração simultânea de sentido, apreendida como uma "visão" mental, uma imagem, uma vez que, tão logo o poema esteja na mente do leitor, este "vê" o que ele significa. Percebe-se, portanto, um princípio de iconicidade poética na obra de Frye que é apropriado por White.
Esta noção de ícone é diferente de uma concepção sensorial-visual, uma vez que concebe o ícone verbal como uma fusão do sensível com o sentido dentro da obra literária. Na crítica de Frye (e de White), o texto literário é regido por tensões centrípetas que definem a significação a partir das configurações verbais, e não por um movimento referencial, que seria próprio aos discursos científicos. A significação literária é a fusão do sentido com o fluxo de imagens ativadas pelo texto. O icônico, para este canadense, é uma suspensão da referência, um movimento do texto na direção do imaginário. Esta iconicidade "implica no controle da imagem pelo sentido; em outros termos, é um imaginário implicado na própria linguagem, que faz parte do próprio jogo de linguagem". (RICOEUR, 2005, p. 323). White concebia a imagem como uma ideia-símbolo, tal qual Frye, cuja iconicidade estava na fusão do sentido com o movimento da linguagem. Num texto de 1974, mais tarde republicado em Trópicos do discurso (1978), White explica qual é seu conceito de ícone ao refletir sobre a metáfora na narrativa histórica:
[...] a narrativa histórica não reproduz os eventos que descreve; ela nos diz a direção em que devemos pensar acerca dos acontecimentos e carrega o nosso pensamento sobre os eventos de valências emocionais diferentes. A narrativa histórica não imagina as coisas que indica: ela traz à mente imagens das coisas que indica, tal como o faz a metáfora. (WHITE, 1997, p. 108).
Ou seja, a imaginação histórica não é a narrativa, mas o movimento encadeado pela narrativa que, tal como o tropo, produz uma geração de imagens fundidas com o próprio movimento da linguagem sem, contudo, se resumir a este. Este conceito é de um ícone ou símbolo verbal, pois, como afirma o próprio White:
[...] a metáfora fornece diretrizes que permitem encontrar uma entidade que evocará as imagens associadas [...]. A metáfora não imagina a coisa que ela procura caracterizar; ela fornece diretrizes que facultam encontrar o conjunto de imagens que se pretende associar àquela coisa. Funciona como um símbolo, e não como um signo: vale dizer, ela não nos fornece uma descrição ou um ícone da coisa que representa, porém, nos diz que imagens procurar em nossa experiência culturalmente codificada a fim de determinar de que modo nos devemos sentir em relação à coisa representada. (WHITE, 1997, p. 108).
Haveria assim um aspecto icônico no tropo que condiciona o imaginário em dada direção. Os ecos de Frye correm neste trecho, no qual fica claro a imagem verbal como a matriz pelo qual os textos de White caminharam no decorrer dos anos 1970, não havendo muito espaço para indagações sobre o visual. Os desenvolvimentos plenos da tropologia ensaiada na Meta-história ocuparam a atenção do historiador, e neste sentido este momento meta-histórico da imagem definiu a concepção dominante para o termo na obra de White como um todo. Contudo, arrisca-se afirmar que este conceito só foi absoluto até 1988, quando o cinema surgiu como questão.
A inflexão teórica pelo filme: a historiofotia
Segundo críticas de LaCapra (1983), um dos problemas da teoria da história de White é supor que a tropologia ofereceria um código mestre capaz de decifrar os outros códigos, sendo sua concepção retórica da historiografia um exemplo de estruturalismo. Os analistas (KORHONEN, 2006) da obra de White consideram que após a publicação da compilação dos Trópicos do discurso, o teorista se afastou um pouco da tropologia e entrou numa discussão sobre a narratividade e as implicações ideológicas do texto histórico. A maioria de seus escritos, nos anos 1980, caminhou nessa direção, como fica evidente em The Content of Form, compilação de 1991, na qual muitos textos discutem a relação entre narrativa, história e ideologia no debate intenso com grandes obras de outros estudiosos do período que fizeram contrapontos à análise de White.1
Ainda que sem abandonar a tendência taxionômica tetraquádrupla, a atenção à narratividade e ao posicionamento ideológico nos escritos dos anos 1980 direcionou o debate da representação do passado a uma direção menos trópica e mais diversificada. A emergência da historiofotia ocorreu como um dos aspectos de uma preocupação mais ampla do teorista com a narratividade naquele período.
O periódico americano American Historical Review v. 93, n. 5, de finais de 1988, dedicou um fórum à relação da historiografia com filmes, o qual foi aberto pelo texto, hoje referência no debate americano, History in imagens/history in words, de autoria de Robert Rosenstone, além de intervenções de David Herlihy, Robert Brent Toplin, Hayden White, etc. No primeiro parágrafo de seu comentário, intitulado Historiography and historiophoty, Hayden White retoma o debate de Rosenstone sobre a questão da adequação dos critérios de verdade que governam a historiografia para investigação da maneira como a história é representada por filmes, bem como da necessidade de considerar a diferença entre uma e outra. Historiography and historiophoty foi um texto curto que contrapunha a historiografia à representação visual da história, a historiofotia. A rigor, para White o termo definia "a representação da história e nosso pensamento em imagem visual e discurso fílmico" (WHITE, 1988, p. 1193), a qual deveria ser diferenciada dos critérios da historiografia, que seria "a representação da história em imagens verbais e discurso escrito". (WHITE, 1988, p. 1193). A fórmula famosa que essa distinção tomou foi popularizada por Rosenstone (2010) como a "plasmagem da história em imagem". White, porém, usou o termo plasmagem (shaped) apenas no comentário às considerações de Rosestone, mas não em sua própria reflexão.
Naquele momento, o teorista aplicou o qualificativo visual, usando-o para diferenciar a existência de imagens que não seriam produtos dos trópicos do discurso, enquanto o adjetivo "verbal" conferia um predicado tropológico à imagem na historiografia. O teorista tratava de um tipo de fenômeno e evidência (visual) tão forte quanto a oral ou escrita e considerava que a leitura do visual requeria análises diferentes das aplicadas aos documentos escritos. Foi neste texto algo estranho - para a época - que White afirmou que a evidência imagética (especialmente as fotográficas e cinematográficas) fornecia bases para a reprodução (reproduction) de cenas e atmosfera do passado de maneira muito mais acurada do que o discurso verbal poderia fazê-lo. Apesar do uso da palavra reproduction, o autor afirmava que as imagens visuais, tais como as verbais, não espelhavam o real, uma vez que toda escrita da história condensa, simboliza, qualifica e desloca tudo que é usado para montar a representação. Seria apenas o meio que as diferia, mas este não produz um espelhamento do passado. Por isso mesmo White chega à conclusão de que a presença do discurso verbal nas imagens visuais fundamenta o próprio sentido histórico que estas produzem.
A aparição súbita da historiofotia na obra de White foi como de uma estrela cadente. Logo o teorista deixaria sua discussão sobre imagem e visual de lado, uma vez que lhe importava continuar investindo no questionamento da preponderância do poético na formação do discurso histórico. O autor voltaria ao tema do visual, ainda que em seus escritos o uso do termo "imagem" estaria necessariamente ligado à figuração gerada pela combinação da compreensão dos tropos com o enredamento, como questão fundamental. Contudo, a imagem não verbal/visual seria fonte de perturbações na filosofia da história whiteana. Historiofotia foi o primeiro exemplo de destaque de outra linhagem de concepções imagéticas. Por um lado, sua aparição e desaparição não abalaram a cerrada teoria narrativista; por outro, os desdobramentos da preocupação com o visual tornar-se-iam um problema teórico, como veremos a seguir, com o qual a tropologia só seria capaz de lidar como uma retórica negativa e fantasmática.
Imagem e repetição: o momento aural-espectral e o evento modernista
No final dos anos 1980 e o início dos anos 1990, consolidaram-se no mundo anglófano as discussões do papel da representação narrativa no conhecimento histórico. Com o avanço das polêmicas sobre o revisionismo e as discussões sobre os eventos históricos inolvidáveis como a Shoah, o debate sobre como representar um evento atingiu um ponto culminante na Academia americana. Neste cenário, a obra teórica de Hayden White sofreria uma inflexão, em parte, um desdobramento de suas preocupações nos anos anteriores, mas, por outra mão, consequência de demandas externas do meio acadêmico.
Destaque-se neste cenário o célebre seminário organizado por Saul Friedlander no qual foram convocados historiadores e/ou teoristas para investigar os limites da representação histórica: o próprio Friedlander, Hayden White, Perry Anderson, Martin Jay, Carlo Ginzburg, Dominick LaCapra, Anton Caes refletiram sobre a relação entre representação, história e holocausto, o que deu origem mais tarde, em 1992, à publicação do volume Probing the limits of representations: nazism and 'final solution'. Nesta ocasião, White refletiu sobre a questão do enredamento histórico e à da verdade. Os analistas divergem sobre se o texto Historical emplotment and the problem of truth, elaborado por White, seria ou não uma inflexão na sua teoria. Importa aqui que, a partir daquele momento, o autor iria redimensionar as relações entre as informações históricas, os eventos históricos limites, o acesso e a repetição de imagens na elaboração da representação do passado.
Em 1992 White participou da Patricia Doyle Wise Memorial Lecture no American Film Institute, no qual a base da reflexão do ensaio The modernist eventseria formulada. Este ensaio fora publicado pela primeira vez na coletânea The Persistency of History: cinema, television and the modern event, organizada por Vivian Sobchack, em 1996 e mais tarde reunida no compêndio Figural Realism, publicado em 2000 pelo próprio White. Foi, portanto, no debate sobre eventos limites, imagens visuais e representação que o historiador desenvolveu a linhagem de concepções alternativas para imagens não verbais, as quais passaram a conviver com as concepções icônico-verbais. Este é o momento aural-espectral, no qual as questões tocadas no texto sobre historiofotia foram desenvolvidas.
Neste intervalo entre 1991 e 1996 foi que o autor organizou o uso dos termos aural e espectral, tendo primeiro resolvido os aspectos icônicos da imagem verbal. Em 1991, White publicou o ensaio Ideology and counterideology in Northrop Fryes's Anatomy of Criticism, no qual investigou as bases, contribuições e direções da obra seminal do estudioso canadense. Como chamou atenção Kellner, no decorrer de sua carreira White realizou muitas desleituras de Frye. Neste ensaio, o americano expôs a teoria da história da literatura do canadense, com a qual refuta a ideia de que o passado seja acessível visualmente:
A história realista favorece a ilusão de que a história - que se concebeu com 'o passado' ou como um processo de mudança pelo qual o passado, presente e futuro são ligados juntos em um continuo temporal unitário - possa ser compreendida em termos de uma "visão" [seeing], como se fosse acessível para a percepção visual [visual perception]. Mas nem o passado, ou nestes termos, o presente, muito menos ainda o futuro, nada do processo pelo qual estamos considerando como sendo fases ou períodos, podem ser vistos [seeing]. Se eles pudessem ser apreendidos, seria possível representá-los adequadamente em telas/imagens [pictures] ou outros tipos de imagens visuais. Que gostaríamos de acreditar que a história poderia ser apreendida como se fosse "vista" [seen] é perfeitamente compreensível, dado o fato que, em nossa cultura, a "visão [sight] é o sentido privilegiado como o principal árbitro entre verdade e falsidade, o real e a ilusão. História - o passado ou o processo - renderia seus segredos se pudéssemos "ver" isto: ver é acreditar [seeing is believing]. (WHITE, 2010, p. 253).
Acreditar no uso das metáforas "visuais" do texto histórico ou conferir um ganho epistemológico à ideia de "ver" ou construir uma "vista" do passado, para White, seria cair numa ilusão teórica que advém do enfeitiçamento da própria linguagem. Este "mistério" adviria do fato de que, segundo Frye, que neste texto é a voz do próprio White, a dinâmica da investigação, análise e representação histórica é composta pela disparidade entre nosso desejo de algo equivalente, no discurso, da percepção visual dos objetos e processos que somente são apreensíveis por traços e pelos "ruídos" que aqueles emitiram. Contudo, "ver" como "ouvir" o passado só se tornaria possível na medida em que se desejasse que os restos pudessem responder às interrogações verbais dos historiadores. Ou seja, o historiador só concebe o visto e o ouvido na medida em que o insere no discurso, pela figura (tropo) e pelo enredamento.2
White postula que a distinguibilidade do conhecimento histórico está no fato de que este "é um conhecimento baseado primariamente sobre a avaliação da evidência que é mais aural que visual na natureza". (WHITE, 2010, p. 254). Relendo Frye, White avisa que sobre as evidências pairaria uma "aura", no sentido de que sua apreensão "aural" é realizada como se fosse um equivalente discursivo - mas não uma referenciação - do "visual". Recorrendo a Frye, afirma que os modos de enredamento exploram essa apreensão aural como um "o esforço de 'ouvir' tanto como as evidências 'soam' como o que elas 'dizem'". (WHITE, 2010, p. 254). Isso implicaria traduzir verbalmente o ouvir para o ver, sempre se considerando que ocorrerá alguma perda de sentido.
Na obra do próprio Frye, apesar das diferenças da leitura de White aparecem os termos acima citados. Já observamos que o canadense afirmou que cada poema possui uma "faixa espectroscópica específica de imagens" (FRYE, 1987, p. 88) provocada pelas exigências de seu gênero. As análises formais seriam análises de imagens que, juntas, formariam a "tonalidade" dos poemas. Frye pressupõe seis elementos como componentes da poesia (e da literatura): mythos, ethos, diánoia, melos, léxis, ópsis 3 (espetáculo). Segundo o canadense:
[...] tomada como estrutura verbal, a literatura apresenta uma léxis que combina dois outros elementos: o melos, elemento análogo à música ou ligado a ela de outra forma, e a ópsis, que tem uma conexão semelhante com as artes plásticas. O próprio vocábulo léxis pode ser traduzido como "dicção" quando pensamos nele como uma sequência narrativa e sons captada pelo ouvido, e como "imagens" como formando uma configuração simultânea de sentido, apreendida num ato de "visão" mental. (FRYE, 1987, p. 238).
Frye termina por designar que a ligação entre o visual e o conceptual (ópsis) num poema deve ser compreendida como um "enigma" e, por isso, ressalta que o emprego dos termos musicais e pictóricos pela crítica o são em sentido figurado. Ainda assim as obras literárias se movem no tempo, como a música, e se estendem em imagens, como a pintura. Tão logo o conjunto do poema esteja na mente do leitor, "vê-se" o que ele significa, uma vez que a palavra narrativa (mythos) remete ao que se ouve, e a palavra sentido (diánoia) remete à simultaneidade percebida pela "vista".4
A partir dessas considerações, White elabora sua própria interpretação de que a ilusão epistemológica apontada via Frye ("ver" como um equivalente do pensar o passado) é um tropo e que a própria noção de figuração e dos muitos empregos da palavra imagem ou de "imaginação histórica", em sua obra, encontra-se no reino da figuração: a visão, irredutível ao texto, só sobrevém por metáforas. O texto histórico assim é "feitura de uma imagem verbal, uma 'coisa' discursiva que interfere na nossa percepção de seu referente putativo". (WHITE, 1991, p. 26).
Em The modernist event, Hayden White enfrentou de forma mais detida o problema das imagens visuais. Este ensaio esteve marcado pela maioria dos debates que interessavam ao autor no período. Este reforça sua concepção de que a historiografia produz os fatos (facts). Como visto anteriormente, sua concepção de produção significa que os fatos são distintos dos eventos (events), os quais são sucedidos em um espaço e tempo materiais, enquanto o fato histórico é um enunciado acerca de um evento ao qual foi dada uma predicação. Verônica Tozzi (2003) chamou atenção para que White jamais desenvolveu teoricamente o que quer dizer com os eventos no mundo físico. O autor insistiu nestas distinções até recentemente:
[...] os eventos ocorrem e são atestáveis mais ou menos adequadamente pelos registros documentais e pelos rastros monumentais; os fatos são construídos conceitualmente no pensamento e/ou figurativamente na imaginação e tem uma existência somente no pensamento, na linguagem e no discurso. (WHITE, 2003, p. 53).
Percebe-se a irredutibilidade que o autor cria entre, de um lado, os atos no mundo físico e, de outro, a sua representação no discurso histórico. Os eventos caóticos ainda não figurados servem como evidências de que os fatos históricos são um constructo discursivo sobre o além-discursivo; contudo, paradoxalmente, ao não teorizar sobre o que sejam de fato os eventos (o que se sucede no espaço e no tempo materiais5), garante-se um postulado da existência do passado, o qual torna-se pensável quando dizível.6 O passado pode ser atestado (!) pelos registros documentais, entre os quais estão as imagens visuais e os artefatos, os quais, na argumentação de The modernist event, justificam a ideia de que determinados eventos eliminariam a diferença entre fato e evento na narrativa, solapando-se a capacidade desta de cerrar o que pode ter ocorrido num relato total, o que exige novas formas de enredo para representar estes "novos" sucedidos no espaço e no tempo.
O argumento é complexo e deve ser seguido com cuidado. Na era pós-industrial, uma série de eventos destruiu as distinções entre real e imaginário, sendo que enquanto as narrativas históricas do século XX permanecem apegadas às formas realistas do século XIX, as quais insistiam em separar fato ficcional de fato histórico, muitos filmes e vídeos investem numa zona borrada entre ficção e realidade para dar conta de ocorrências inimagináveis e irrealizáveis em períodos históricos mais recuados.7 Trata-se de um conjunto de eventos que ligam - de maneira inescapável - experiência e relato, são conhecidos por múltiplas experiências de sujeitos e memórias (registros de discursos e imagens) e se tornam opacos à investigação histórica convencional por estarem borradas as fronteiras entre vivência e narrativa. O exemplo paradigmático seria justamente a "Solução Final", a qual destrói os limites entre experiência e relato, legando-se um passado apegado à memória dos sobreviventes e sujeito a disputas intermináveis entre as múltiplas memórias disponíveis.
White elenca também, junto a estes 'eventos', trabalhos como os do cineasta Oliver Stone e retoma a polêmica sobre o filme JFK, lançado em 1992, muito criticado pelos políticos e pelos historiadores do período como fantasioso e moralmente irresponsável ao sugerir teorias conspiratórias sobre o passado americano. O teorista elogia o filme por borrar os limites entre história e ficção, por aceitar que o assassinato do presidente seja um evento que ataca os limites do pensável e sobre o qual não restam possibilidades de narrativizações convencionais, senão aquelas que aceitam que o passado seja reconstruído como um misto de imaginação e realidade e cujo significado deve sempre ser posto em questão.
O assassinato de JFK, as guerras mundiais, a superpopulação da Terra, a pobreza extrema, genocídios como a Shoah e outros tipos de sucedidos seriam eventos modernistas, acontecimentos no tempo e espaço materiais da era industrial e pós-industrial cuja intensidade funcionou, na consciência de certos grupos, como traumas infantis na psique dos neuróticos: não podem ser esquecidos ou expulsos da consciência, recordados de forma clara e inequívoca, significados e contextualizados na memória do grupo. Eles guardam sempre uma carga de ambiguidade extrema, corroem a remissão ao passado. A narração sofreu um desgaste com os eventos extremos, bem como a própria possibilidade de totalizar um sentido para um deles tornou-se uma operação impossível.8
Para o teorista, os meios de comunicação e os documentos modernos atestam a intensidade do evento e o desgaste da narrativa. Tomando-se como exemplo a explosão da Challenger, os filmes de Oliver Stone, as gravações em vídeos dos protestos de Los Angeles de 1992 e outros casos de exibições televisivas, o imediatismo dos eventos demonstrariam uma ampla desorientação cognitiva:
Mas não são só os acidentes pós-industriais modernos mais incompreensíveis que qualquer coisa que as gerações antigas puderam ter imaginado (pensemos em Chernobyl), sim que a documentação fotográfica e em vídeo de tais acidentes é tão completa que é difícil tratá-los como elementos de um único relato objetivo. Mais ainda, em muitos casos, a documentação destes ditos eventos é tão manipulável que chega a desalentar qualquer esforço para derivar explicações a partir dos sucedidos acerca dos quais a documentação supõe que é uma imagem registrada. "Não é acidental", então, que as discussões do evento modernista apontem em direção a uma estética do sublime-e-ao-desagradável mais do que ao belo-e-o-feio. (WHITE, 2000b, p. 72, grifo nosso).
Ou seja, a documentação visual permite pensar o passado em sua irredutibilidade, tanto ao documentá-lo de maneira diversificada como, ao mesmo tempo, por seu falseamento, o que permite duvidar de qualquer relato a partir dela elaborado. White celebra que estes "modernos meios de comunicação" tenham o poder - positivo - de representar os eventos de maneira que permaneçam impenetráveis a qualquer esforço de explicação definitiva e resistentes a qualquer intento de os representar na forma de um relato total. Um elemento central nessa apreciação das mídias é o dado da repetiçãotécnica e sem limite a partir de múltiplas fontes midiáticas. A reprodutibilidade do evento em suportes variados, possibilitando graus variados de falseamento potencial, ou melhor, planos e enquadramentos diversos dos mesmos materiais, quebra qualquer segurança que se tenha sobre o motivo veiculado. A repetição midiática é uma das chaves da própria irredutibilidade do evento.
O historiador toma emprestado considerações de Fredric Jameson, segundo o qual o princípio de existência e desrealização do evento nos textos modernistas despojou tal evento de uma função narrativa que teria que assinalar uma irrupção do destino, graça ou fortuna. As narrativas modernistas de Virginia Woolf, por exemplo, enfrentam a fusão entre evento e fato, não encerram totalizações e constroem um modelo de real aberto às múltiplas interpretações. Esta prática literária forneceria formas de representação que aceitariam a irredutibilidade do evento ao relato e ofereceria o passado por fragmentos, o que responde às demandas de um tipo de evento histórico chamado de "modernista" por White.
Note-se que White passa a usar um termo que remete à palavra "aural", empregada no texto que escrevera sobre Frye citado acima: "espectral". A literatura modernista teria por efeito de representação "dotar a todos os eventos de qualidades espectrais" (WHITE, 2000b, p. 79), com explosão da diferença entre os aspectos externos e fenomenológicos dos eventos e sua semântica. Seu significado não é mais distinguível de sua ocorrência, a qual passa a ser:
[...] instável, fluída, fantasmagórica; tão fantasmagórica como o slow montion, o ângulo inverso, o zoom e a reinteração de representações do vídeo da explosão da Challenger. Isto não significa que os eventos não sejam representáveis, mas sim que pode requerir-se técnicas de representação de algum modo diferentes daquelas desenvolvidas em profundidade pelo realismo fantástico. (WHITE, 2000b, p. 79).
White, ao usar as expressões fantasmais e espectrais, recorreu a um tropo comum, no início do século XX, nos jornais, crônicas, diários e textos em geral que se referiam ao cinematógrafo e ao cinema como uma impressão de fantasmagoria (GUNNING, 1996), modalidade de metáforas visuais com as quais o público do primeiro cinema enfrentava o misto de magia, medo e estranhamento causado pela imagem em movimento. As imagens fantasmagóricas de White são concebidas como imagens verbais ou figuras que atendem às implosões convencionais da linguagem pelo evento modernista. A estética modernista reconstrói o evento representando-o como "espectro", e esse evento tem seu similar na repetição midiática - um traço do caos histórico -, a qual, por sua vez, de maneira quase cíclica, tem seu correlato no princípio de aparição midiática próprio das figuras de qualidades espectrais. O mais inusitado desta solução teórica portanto é que, mais do que metáforas visuais fantasmáticas, há uma recorrência às imagens visuais como sinais (restos) de eventos como sucedidos do tempo e espaço repetidos, aparentes e entes "irredutíveis" ao discurso. O autor usou um conceito de imagem, o qual era ao mesmo tempo uma figura de linguagem e uma designação referencial de formas visuais/materiais, pedra-de-toque por meio da qual o não discursivo seria designado para indicar como a linguagem poderia dizê-lo. Ou seja, a imagem visual funciona numa sintonia algo errática com a concepção whiteana de informação histórica, aquilo que permite conceber a existência do evento modernista.
Este foi um dos únicos momentos que encontramos nos escritos de White em que o emprego de um conceito sensorial de imagem não era resultado da ação dos protocolos da linguagem, mas documentação do que é exógeno ao uso do protocolo, embora só possa ser pensável quando classificado e hierarquizado pelos tropos. Sub-repticiamente percebe-se que a tropologia, concebida como argamassa da representação, encontra uma fresta, pois se as imagens e os "meios de comunicação modernos" - basicamente audiovisuais - são evidências da irredutibilidade do evento, se os filmes e os vídeos apontam para os sucedidos no espaço e no tempo físico, apresentando-os como espectros, emerge na teoria uma noção de ícone/iconicidade baseada na transparência e sensorialidade - noção negada nos textos do Trópicos do Discurso e que se torna fundante de uma forma de percepção histórica que perturba os funcionamentos dos tropos.
A consequência (lógica?) é que talvez isto pudesse significar uma presença das imagens no acesso e na composição do passado. Por meio de imagens, emergiu na teoria de White, pela primeira vez, uma indagação efetiva e material do pensamento sobre o passado e não apenas de sua representação, a qual se somou à imagem como um fora do texto - questão que o autor sempre colocou em primeiro plano em todas as suas considerações quando manteve, durante três décadas, a ponderação de que iria tomar o relato histórico por aquilo que era, ou seja, "uma estrutura verbal". Não por acaso, a epígrafe de The modernist event é a famosa frase de Walter Benjamin: "a história não se fragmenta em relatos, mas em imagens". A frase designa a composição espectral dos eventos limites, reconstruída nas narrativas modernistas que deveriam ser base da escrita da história contemporânea.
Benjamin e o eclipse da "lógica das imagens" na tropologia
O aforismo de Walter Benjamin mencionado acima foi retomado por Hayden White como um desafio a ser domado nos anos 2000. Por um lado, o momento aural-espectral das imagens não verbais ocorreu junto a emergências das suas reflexões sobre as noções da voz média, do figuralismo e do evento modernista. A reflexão sobre este último esteve ligada, no decorrer dos anos 1990, à afirmação da voz média como alternativa aos limites da representação, teorizada pelos gregos e por Roland Barthes; e ao realismo figural, segundo o qual o historiador americano redefiniu o conceito de tradição como um movimento figura-consumação(figure-fulfilment), elaborado a partir da releitura de Erich Auerbach e seu conhecido conceito de figura: o passado da tradição é sempre uma desleitura por sua reconstrução figurativa. Cada um destes conceitos tem sua própria genealogia teórica, que não cumpre aqui apontar, mas que evidenciam uma série de desdobramentos para além da antiga tropologia whiteana.
Porém, isso não implicou um abandono da tropologia ou do formalismo narrativo. Partindo de um ponto de vista linguístico, o teorista identificava o movimento dos tropos como a base lógica do discurso narrativo (e historiográfico). Esta tese foi reafirmada em muitos escritos da virada para o século XXI. No curto texto Construcción histórica, 9 White (2005) voltou ao tema das imagens não verbais e lançou uma hipótese, a qual não ousou seguir: a "lógica da representação narrativa do mundo [...] é uma lógica de figuras e tropos, que não é uma lógica em absoluto, a menos que se possa dizer que um agrupamento de imagens seja uma estrutura de significado do tipo lógico". (WHITE, 2005, p. 57). Primeiro o autor elimina a lógica - no sentido racional do termo - da explicação histórica, a qual deveria ser entendida como o funcionamento dos trópicos convencionais do discurso (lembremos que ele falou em protocolos linguísticos nos anos 1970). Depois evidencia que, a menos que se pense em imagens como uma "estrutura lógica", não se pode considerar que seu agrupamento possa valer como protocolo.
O trecho é ambíguo: seria a 'lógica' dos tropos aquela que se poderia chamar de lógica, ou seu resultado (as figuras ou imagens) é que o são? Situa-se entre os tropos e as imagens o problema sobre o qual White ensaia uma distinção que, novamente, insere uma perturbação na tropologia - e o autor decide explicitamente não investigar. O teorista dedica-se a decifrar a célebre noção de imagem dialética em Walter Benjamin no aforismo "a História não se fragmenta em relatos, se fragmenta em imagens". Ciente das incompatibilidades entre sua teoria discursiva e a perspectiva inicialmente não linguística de imagem em Benjamin, White afirma:
Creio que Walter Bejamin percebeu isso [a existência de um agrupamento de imagens como uma lógica] [...] com o que chamou de "imagem-dialética", que captava a natureza contraditória de todo evento específico "historicamente significativo" do passado. Para ele, as imagens que podemos encontrar "presas" nos registros como uma mosca no âmbar não são aquelas que exibem a figura de uma realidade social inequívoca e internamente consistente, mas aquelas que apreendem, como uma fotografia, um momento de tensão e mudança, uma intermitência entre dois momentos putativos. (WHITE, 2005, p. 57-58).
Nota-se uma inflexão momentânea na teoria whiteana. O autor parte de um conceito que atribui à imagem, a partir de Benjamin, o princípio pelo qual o passado volta a ser pensado e representado. O modelo aqui é a imagem pura indiciária (fotografia), não qualquer simulação mental do que seja produzido no protocolo linguístico dos tropos ou um aspecto icônico da metáfora, como defendera nos Trópicos do Discurso. A fotografia emerge como modelo de uma lógica de imagens indiciária que desafia os trópicos do discurso, presente no próprio texto, pois, segundo Benjamin, a narrativa poderia produzir imagem para além do enredamento e da figuração. As consequências desta ideia para a tropologia seriam, no mínimo, o seu questionamento como princípio organizador da imaginação poética e da imaginação histórica, sempre teorizadas a partir do discurso. O autor hesita:
Não estou seguro disto, mas creio que em seus intentos de teorizar a "imagem dialética", Benjamin denunciou uma intuição expressada na observação que assinalei acima: "a História não se fragmenta em estórias (stories); se fragmenta em imagens". A verdade é - e falo mais figurativamente que literalmente - que todas as imagens do passado são "dialéticas", plenas de aporias (dúvidas) e paradoxos de representação. E somente podem ser "realizadas" por narrativização como estórias (stories). (WHITE, 2005, p. 58).
Que seria a dialética para White? Segundo Hans Kellner,10 ele a definia em meta-história como um modo de transição, um movimento entre as compreensões tropológicas do processo histórico que transitava entre metáfora, metonímia e sinédoque. Se tomarmos essa consideração, a dialética define o trânsito entre diferentes compreensões trópicas que inserem aporias e paradoxos na representação. Ou seja, um historiador só pode pensar o passado "com uma figura, uma imagem verbal, um simulacro de uma coisa que pode ser vista, uma coisa virtual" (WHITE, 2005, 57), que está sempre sujeita a discussão, conforme se parta de outro tropos para elaborá-la a partir dos vestígios.
E a "lógica das imagens"? Toda dialética das imagens verbais geradas se relaciona, portanto, com o vendo, a visão, a vista, como resultados dos questionamentos verbais. A dúvida instaurada em The modernist eventemergiu novamente para ser sufocada, mas fica evidente que a imagem, em sua acepção sensorial/visual, e não apenas metafórica, não é apenas o resultado de tropos, mas uma incentivadora do movimento trópico. Quando a tropologia de White atingiu uma muralha que não conseguiu transpor, o autor recuou e decidiu não investigar o que perturbaria um sujeito-historiador a ponto de se precisar de determinados movimentos trópicos (sempre visuais) e imagéticos. Com este movimento, White garantiu o controle da imagem para que esta não aponte, por si só, para o passado e seja apenas o resultado de sua representação. Frank Ankersmit (2012) chamou atenção para o fato de que White não tem muito a dizer sobre a relação da representação histórica com o passado: uma vez que a imagem apontaria para este, o autor ainda não saberia o que fazer com ela.
A teoria tropológica whiteana tem um limite quando enfrenta o elemento expressivo do filme e das fotografias até mesmo quando usa de metáforas fantasmáticas. A imagem é um problema teórico, algo que deveria ser domesticado pelo alinhamento ao discurso verbal (como na historiofotia) ou na observação da irredutibilidade dos eventos à linguagem, como se estes só pudessem ser enfrentados dentro de certa fantasmagoria aural (como na narrativa modernista), mas nunca numa lógica das imagens, tal como havia ameaçado Benjamin.
Por meio desta conceituação dúbia e não tropológica, evidencia-se outra lógica de percepção do transcorrer que concebe não a existência positiva do fato histórico, mas sua existência extra-discursiva: o evento, como traço da temporalidade. White parecer ter caído - e tentou não cair - na armadilha teórica de apontar um pré-protocolo linguístico; contudo, se o realismo figural almejava restaurar a irredutibilidade do evento ao discurso, ou seja, afirmar discursivamente o transcorrer em sua captura incompleta, concebeu a vivência como dotada de um princípio sensorial não linguístico.11
De volta à historiofotia e aos usos do passado
Como apresentado acima, o termo historiofotia foi periférico na obra de Hayden White. A relação entre palavra e imagem nessa obra valoriza a primeira em detrimento da segunda como estruturante da criação de imagens, defendendo pressupostos típicos da chamada linguistic turn. A obra do historiador americano foi um dos maiores esforços teóricos da virada linguística, e o autor permaneceu neste horizonte teórico até tempos recentes. Respondendo a críticas de George Iggers, o teorista reafirmou a importância e o significado da tropologia para a historiografia:
Tropologia é a compreensão teórica do discurso imaginativo, de todos os meios pelos quais vários tipos figurações [figarations] (como metáfora, metonímia, sinédoque e ironia) produzem os tipos de imagens e conexões entre as imagens [kind of images and connections among images] capazes de servir como sinais de uma realidade que só pode ser imaginada em vez de diretamente percebida. As conexões discursivas entre as figurações (de pessoas, eventos, processos), em um discurso não são conexões lógicas ou dedutivas implicadas umas com as outras, mas metafóricas no sentido geral, isto é, baseadas em técnicas poéticas de condensação, deslocamento, simbolização e revisão. (WHITE, 2000a, p. 392-393).
A tropologia ressurgiu, na abertura do século XX, como o cerne da maneira de "criar imagens de objetos" [create imagens of objects], "dotando-os de uma aura de um tipo de 'realidade'" [aura of a kind os 'reality'] (WHITE, 2000a, p. 394, grifo nosso), de modo que, mesmo que não se possa percebê-los diretamente, podem tornar-se temas sensíveis às técnicas de interpretação. Algo que não mudara desde meta-história era uma concepção hegemônica de imaginação produtiva discursiva deslocada da imagem sensorial, um ordenamento discursivo do campo de ação do imaginário. Curiosamente, na explicação da tropologia para o século XXI, os objetos reordenados pelo discurso têm características auráticas.
Observe-se uma mudança sutil nesta reflexão: a aura era o efeito das figuras de linguagem que constituíam os sentidos dos objetos no discurso histórico em geral. Na reflexão anterior sobre o evento modernista, quando se reivindicaram as noções fantasmagóricas dos eventos como repetições e aparições, as imagens visuais serviam para designar os sucedidos no espaço/tempo. O evento modernista seria tão fantasmático quanto as imagens visuais, e, portanto, a narrativa deveria tentar produzir imaginativamente suas qualidades espectrais. No ano 2000, "aura" já designa o produto da operação tropológica dos diversos textos históricos e o autor retoma a consideração de 1991 sobre Anatomia da Crítica de Frye.12Parece que o termo espectro era mais adequado ao evento modernista, e aura, ao texto histórico em geral. Num caso ou noutro, irrompe outra iconicidade.
Referindo-se à forma de representar o passado por imagens e produzir "atmosferas" (historiofotia) ou à indefinida aderência ao mundo como repetição e aparição nos eventos limites (aura-espectro), a iconicidade sensorial tornou-se um componente incômodo do esforço teórico da tropologia, trazendo problemas que Hayden White não conseguiu transpor. Uma vez que o modelo de iconicidade não sensorial da virada linguística fora montado a partir da retórica, ele revela uma limitação significativa em lidar com os temas visuais ou o que chamamos aqui de iconicidade sensorial. A única fonte de reflexão visual de destaque mencionada por White em seus escritos foi a reflexão de Ernest Gombrich sobre os esquemas representacionais na pintura, no seminal Arte e Ilusão.13 Segundo o historiador da arte, a representação pictórica resultava de esquemas cognitivos tradutores da realidade pela mente humana, mas estas menções eram pontuais nos escritos de White, a quem só interessava encontrar equivalentes visuais da noção de protoloco, "um sistema de tradução que permite ao observador ligar a imagem à coisa representada". (WHITE, 1997, p. 59). No que se refere ao misto de aparição, repetição e índicemarcado por alto grau de reprodutibilidade técnica das imagens fotográficas e em movimento (amálgamas audiovisuais do cinema, documentário e vídeo) do século XX, sua teoria encontra-se um pouco desamparada, marcada pela designação das imagens visuais e verbais por meio de metáforas como aura, espectro e fotia. 14 Ora, o uso de tropos de impressões visuais indica que o discurso se move na direção da imagem. Se os tropos são referenciais visuais, não seria porque os campos discursivos estão respondendo a uma demanda da imagem como forma cognitiva diferenciada de contato/construção do passado e do tempo?15
Estas questões dizem respeito à teoria das imagens. Interessa-nos, contudo, o que o profissional de história pode fazer com elas. Se a aura e o espectro referem-se ao mundo e à imagem que pode ser produzida na representação do texto histórico, a historiofotia trata da própria representação da história como imagem. Esta é a chave de sua diferença dos outros termos. Uma vez que a história existe, segundo White, como um resultado das operações trópicas, é lícito postular que a historiofotia é uma variação da tropologia dedicada aos discursos históricos visuais. Uma vez que White não escreveu nada de conclusivo sobre o assunto por trabalhar com compreensões paradoxais de imagem visual, as quais tenta dirimir, arriscamos postular que o termo compreende o enfrentamento do passado como imagem. Necessariamente, temos de avançar com a tropologia para além dela.
De fato, os responsáveis pela problematização da historiofotia foram os historiadores que refletiram sobre o que Robert Rosenstone tornou famoso como a "plasmagem da história em imagens". Não temos aqui espaço para tratar sobre como o debate se desenvolveu nos EUA, mas Rosenstone (2010) popularizou nos EUA e transformou a historiofotia em uma maneira de dar atenção aos procedimentos de linguagem do cinema na encenação do passado nos filmes. Segundo sua proposta, um filme produziria sua própria forma de narrar o passado por estar sujeito às regras do lugar social, econômico e cultural de sua produção. Uma vez que tais regras são diferentes dos compromissos disciplinares da historiografia, os historiadores devem compreender o que rege a construção da narrativa histórica de uma película, e não julgá-la segundo princípios exógenos de fidelidade documental ou verdade científica, os quais dizem respeito apenas à operação historiográfica. Este debate ocorreu no sentido de valorizar as diferentes formas de interpretar o passado e a história, pelos filmes. Quanto mais variados forem os recursos poéticos usados pelas películas, mais instigantes serão as histórias plasmadas. Ora, sendo a historiofotia uma ramificação da tropologia, ela implica entender como os tropos atuam nas representações do passado nos filmes, originando-se a reflexão de uma poética da representação cinematográfica da história.16
A reflexão sobre as relações entre história e imagem na atualidade tem apontado questões que não estavam no horizonte, na virada linguística:
O ato de inventar uma imagem é muito mais que a formulação de um discurso; seu papel é constitutivo do processo de transmissão do conhecimento; seu domínio é a prática e a técnica ligadas à memorização. Imagens que vêm do passado, algumas de um tempo longínquo, apresentam-se de novo e se instalam como novidade no mundo. Elas misturam passado e presente. Sobrevivem, perpassam sua época de produção, são reapropriadas, ditam crenças e práticas sociais e culturais. São acontecimentos, detentores de pensamento, de memória, de imaginação, sentimento e vida. (FLORES, 2010, p. 7).
Quando se considera que a imagem mistura o passado e o presente, ao mostrar/contar a história e retratar o passado, superpõe-se um novo nível de reflexão. A meditação sobre as formas como o passado e a temporalidade são construídos pelo filme permite ir além das generalizações como aura, espectro ou fantasmagoria, termos que servem para designar a ampla rede de significados das imagens.17 Uma vez que o passado é apresentado por um filme como imagem & tropo, torna-se fundamental refletir sobre como estes dois se relacionam para além do problema das traduções do verbal ao visual, observando-se as formas fílmicas pelas quais a cultura histórica de um meio social é criada.
O que a historiofotia tem de mais interessante é o emprego da tropologia em conexão com as imagens visuais, a tentativa de compreender como são construídos os giros de sentido do passado a partir do emprego dos tropos com/nas imagens não verbais, bem como localizar o surgimento de formas de sentidos históricos próprios ao visual, tema já defendido por historiadores como Antoine De Baecque (2008). Trata-se de uma ferramenta potencialmente rica para os historiadores interessados em entender a pragmática dos diversos usos públicos e privados do passado, a partir dos elementos visuais.
Por tudo mencionado, a historiofotia deve auxiliar no esclarecimento dos processos de significação na imagem fílmica da história, observar como esta articula as composições dos enredos históricos dos filmes bem como a maneira como estes se relacionam com os vestígios do passado. Finalmente, serve como ferramenta para entendercomo se articulam os usos públicos do passado nas mídias dosdiversos contextos sociais dos séculos XX e XXI. Michèle Lagny (2009) e Francisco Santiago Júnior (2012) acenam para a necessidade de uma reflexão teórica mais refinada da relação cinema/história. A representação do passado nos filmes foi (é) um tema muito discutido entre historiadores, mas esta reflexão desenvolveu-se sem se ocupar da teoria da poética histórica fílmica, ou seja, dos meios usados pelos filmes para gerar historicidade no debate com a cultura histórica de seu contexto.
A maior parte dos comentadores e analistas da teoria da história contemporânea aponta que as teorias de Hayden White são, em alguma medida, inescapáveis. Sugere-se aqui um uso heterodoxo da tropologia whiteana pelo viés da historiofotia, uma vez que esta permite pensar as imagens, em geral, e os filmes, em particular, como formas de representar o passado nos debates públicos do mundo contemporâneo. Pensando a historiofotia menos como tradução e plasmagem da história em imagem e mais como uma forma de problematização dos usos do passado no campo cinematográfico, excede-se a tropologia stricto sensu, mas se aproveitam suas contribuições teóricas e metodológicas.
Não são poucos os historiadores e estudiosos que têm demonstrado que as imagens foram (são) fundamentais à persistência do passado na composição dos regimes de tempo, memória e história nos diversos tempos históricos. Segundo Maria Lúcia Kern (2010), as novas análises historiográficas da pintura da Renascença em diante têm demonstrado que telas, esculturas, gravuras, afrescos, etc. constituíram diversas relações de memória e tempo. O patrimônio monumental, como argumentou Françoise Choay (2011), construiu uma pedagogia de múltiplos valores temporais, e este patrimônio, o museu e certa concepção de imagem tornaram-se centrais na formulação da ideia de história do século XIX, como já apontou Manoel Salgado Guimarães (2007). Se a era fotográfica está na raiz da elaboração das noções de verdade, diversidade humana, eventos e da cultura histórica dos oitocentos (MIRZOEFF, 1999), a aproximação do cinema com a história remonta aos anos 1920 com primeiras propostas de arquivos cinematográficos da história do século XX. Antoine De Baecque (2008) afirma que o cinema está na raiz da definição dos eventos históricos e da criação de ferramentas visuais para elaboração de perspectivas sobre o mundo histórico na cultura histórica novecentista. Até os anos 1990, o estudo da representação histórica no cinema preocupava-se com a fidelidade dos filmes históricos em relação à historiografia. Atualmente, busca-se entender os usos do passado produzidos pelo campo social do cinema, e a construção do regime de historicidade do tempo presente por meio do filme histórico emerge como campo de pesquisa. Para compreender estes usos, o historiador precisa tratar dos procedimentos poéticos visuais da imaginação histórica nos séculos XX e XXI.
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- WHITE, Hayden. Construcción histórica. In: CRUZ, Manuel; BRAUER, Daniel. La comprensión del passado: escritos sobre filosofia de la historia. Barcelona: Herder Editorial 2005, p. 43-58.
- WHITE, Hayden. El texto histórico como artefacto literário. Barcelona: Paidós, 2003.
- WHITE, Hayden. Figural realism: studies in the mimesis effect. Baltimore: John Hopkins University Press, 2000b.
- WHITE, Hayden. Hecho y figuración em el discurso histórico. In: WHITE, Hayden. El texto histórico como artefacto literário. Barcelona: Paidós, 2003, p. 43-62.
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WHITE, Hayden. Historiography and historiophoty. The American historical review, Chicago, v. 93, n. 5, dec 1988, p. 1193-1199. Disponível em: http://www.courses.commarts.wisc.edu/955/documents/h-white-historiophoty.pdf. Acesso em: ago. 2013 .
» http://www.courses.commarts.wisc.edu/955/documents/h-white-historiophoty.pdf - WHITE, Hayden. Ideology and counterideology in Northrop Frye's Anatomy of Criticism. In: The fiction of narrative: essays on history literature, and theory (1957-2007). Baltimore: John Hopkins University Press, 2010, p. 247-254.
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» http://www.tulane.edu/~isn/hwkeynote.htm - WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1992.
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- WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios de crítica da cultura. São Paulo: EDUSP, 1997.
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1
Exemplos são os monumentais Tempo e Narrativa, de Paul Ricoeur, e O Inconsciente Político, de Fredric Jameson.
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2
Importante ressaltar que, na justificativa de White para a presença de metáforas visuais no discurso histórico, a centralidade da visão é evocada, embora o autor não defina "visão".
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3
Aspecto especular ou visível do drama. Designa o aspecto pictórico ou visível da literatura.
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4
Uma análise do papel da imagem, da pintura e das figuras visuais em Anatomia da Crítica é um tópico importante a ser pesquisado. Deixamos tal análise aos especialistas em teoria e história da literatura.
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5
O que seriam espaço e tempo materiais? White se refugia numa fenomenologia (ou no mundo físico newtoniano?) para criar conceitos amplos de ocorrência/sucedido, evento e fato histórico.
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6
É a distinção entre informação histórica nos ecos documentais e a interpretação histórica, construída sempre a partir do discurso. A realidade seria um caótico não discursivo.
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7
Determinados eventos são inéditos no sentido de que transgridem os limites da representação convencionais e nunca ocorreram na própria trajetória humana. Dominick LaCapra chamou de evento limite o que White nomeou como evento modernista.
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8
Hayden White cita Walter Bejamin na reflexão sobre o narrador e a quebra da experiência.
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9
Este texto foi composto para uma palestra em 1999, intitulada History as fulfillment. Cf. WHITE, 1999.
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10
Na palestra "Reading Hayden White reading" proferida no seminário Metahistory 40th Anniversary, realizado em Vitória-ES em outubro de 2013.
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White evita cair num desconstrutivismo absurdista ao colocar-se num ponto de vista epistemológico exterior a própria epistemologia, como o acusam seus críticos.
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Cf. acima a seção deste artigo Imagem e repetição: o momento aural-espectral e o evento modernista.
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13
Mais um sinal do que Paul Ricoeur (2007) chamou de usos heterodoxos por White das teorias de outros autores. O historiador americano citou Gombrich nos textos: O fardo da história, de 1966; The future of criticism: Gombrich, Auerbach, Popper, de 1971; Metahistória, de1973; e Teoria literária e escrita da história, de 1988.
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14
Aparentemente, a reflexão sobre o traço indiciário da imagem complicaria mais ainda a proposta tropológica de White. Ressalte-se que as imagens analógicas como índices não devem ser concebidas como decalques do mundo, mas como a montagem deste numa circunstância de tomada (o momento entre o ligar e o desligar da câmera) que captura o transcorrer. Para saber mais, Cf. RAMOS, 2012.
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15
Esta é a dúvida tratada longamente nas reflexões sobre temporalidade de Walter Benjamin e Georges Didi-Huberman. (Cf. KERN, 2010). Frank Ankersmit reflete sobre o tema da imagem no discurso histórico, sugerindo a existência de formações visuais que definem os tropos ao mesmo tempo que são definidos por ele. Cf. ANKERSMIT, 2011.
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16
Foram os estudiosos da história do cinema, primeiro inspirados pelo multiculturalismo e agora pelo pós-colonialismo, aqueles que melhor enfrentam as estratégias trópicas de figuração discursiva nas imagens cinematográficas da história. Para saber mais Cf. STAM, 2005.
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17
Mais do que um desvio do sentido literal, a metáfora possui uma dimensão referencial fundamental. Cf. RICOEUR, 2005.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul-Dec 2014
Histórico
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Recebido
19 Nov 2013 -
Aceito
30 Abr 2014