Acessibilidade / Reportar erro

Tempos da História: Uma Visão Geral dos Estudos acerca do Tempo Relacionados à Teoria da História (Conceitos, Questões e Tendências)

Resumo

Este artigo propõe um diagrama de quatro camadas que exibem os subcampos de investigação como uma visão geral do campo atual dos estudos do tempo histórico: 1) a metafísica do tempo natural, 2) a metafísica do tempo histórico, 3) os regimes de historicidade e 4) os regimes historiográficos. Ao definir esses campos e suas interrelações, apontar os principais conceitos, as questões que abordam e as tendências que se constituíram desde o início dos anos 2000, este artigo aborda a temporalidade histórica como tema teórico e historiográfico. Este quadro, que apresenta o estado da arte dos estudos temporais, permite apresentar e classificar a variedade de contribuições que esta edição especial reúne.

Palavras-chave:
história; tempo; estudos do tempo; filosofia e teoria da história

Abstract

This article proposes a four-layered diagram that displays as an overview of the current field of historical time studies according to the following branches of investigation: 1) the metaphysics of natural time, 2) the metaphysics of historical time, 3) the regimes of historicity, and 4) historiographical regimes. By defining these fields and their connections, identifying essential concepts, revealing the questions they address, and sketching tendencies that have emerged since the 2000s, this article tackles historical temporality as a theoretical and historiographical subject. This framework, which portrays the state of the art in temporal studies, allows for the presentation and classification of the variety of contributions gathered in this special edition.

Keywords:
history; time; time studies; philosophy and theory of history

O número especial “Tempos de História” apresenta uma amostra representativa dos estudos do tempo na teoria da história desde os anos 2000. Portanto, a apresentação dos ensaios que este volume reúne/inclui começa com uma visão geral do campo relacionado aos estudos temporais de acordo com seus limites, principais tendências e questões atuais.

Estudos do Tempo relacionados à Teoria da História

Um consenso disciplinar de longa data reconhece o papel primordial que o tempo desempenha para praticar e pensar a história. No entanto, o tempo só chamou atenção acadêmica significativa (BEVERNAGE et al., 2019BEVERNAGE, Berber et. al. Philosophy of History After 1945: A Bibliometric Study. History and Theory, v. 58, n. 3, p. 406-436, 2019., p. 420) tanto de historiadores (LORENZ, 2017LORENZ, Chris. The Times They Are a-Changin’ On Time, Space and Periodization in History. In: CARRETERO, Mario; BERGER, Stefan; GREVER, Maria (ed.). Palgrave Handbook of Research in Historical Culture and Education. London: Palgrave Macmillan, 2017. p. 109-131., p. 109) quanto de teóricos da história (GORMAN, 2013GORMAN, Jonathan, The Limits of Historiographical Choice in Temporal Distinctions. In: LORENZ, Chris; BEVERNAGE, Berber (ed.). Breaking up Time: Negotiating the Borders between Present, Past and Future. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2013. p. 155-175., p. 156) a partir dos anos 1990. O crescente interesse pelo “‘material fundamental’ dos historiadores” (LE GOFF, 1988LE GOFF, Jacques. Histoire et mémoire. Paris: Gallimard, 1988., p. 24) promove uma “uma crítica radical ao conceito dominante de tempo histórico e aos pressupostos metafísicos e compromissos ontológicos que o acompanham” (BEVERNAGE, 2008BEVERNAGE, Berber. Time, Presence, and Historical Injustice. History and Theory, v. 47, p. 149-167, 2008., p. 151) O foco no tempo introduziu historiadores e teóricos da história no amplo campo dos “estudos do tempo”, que envolve uma indagação transdisciplinar - das humanidades às artes - sobre “nossas concepções de tempo (...) em contextos sociais específicos” (BRUGES; ELIAS, 2016BRUGES, Joel; ELIAS, Amy J. Introduction: Time Studies Today. In: BRUGES, Joel; ELIAS, Amy J. (ed.). Time: A Vocabulary of the Present. New York: New York University Press, 2016. p. 1-32., p. 2, tradução nossa).

No entanto, a crescente atenção de historiadores e teóricos não pode transformar o tempo em entidade que se comporto como um agente histórico, como advertiu Ankersmit: “nos textos atuais que celebram o tempo histórico, a sugestão muitas vezes é que o tempo, e não as coisas que acontecem no tempo, faz o trabalho real” (ANKERSMIT, 2021ANKERSMIT, Frank R. Koselleck On “Histories” Versus “History”; Or, Historical Ontology Versus Historical Epistemology. History and Theory, v. 60, n. 4, p. 36-58, 2021., p. 55, grifos do autor). Entre o bem-vindo renascimento da ontologia do tempo e a nociva entificação do tempo, os estudos do tempo constroem uma unidade epistêmica relacionada a diferentes posições teóricas.

Visando dar conta da “pluralidade de pontos de vista e contextos disciplinares” (HELLERMA, 2020HELLERMA, Juhan. Mapping Time: Analysis of Contemporary Theories of Historical Temporality. 2020. (PhD Thesis) - University of Tartu Press, Tartu, 2020., p. 9) que a investigação da temporalidade engloba como tema da teoria da história, apresentamos um panorama dos estudos do tempo na teoria recente da história por meio da Figura 1:

Figura 1.
Diagrama de Estudos do Tempo Relacionados à Teoria da História.

A Figura 1 é um diagrama dividido por quatro linhas paralelas que definem os temas dos estudos do tempo relacionados à teoria da história: a) tempo natural; b) tempo histórico; c) experiência do tempo histórico; e d) o tempo histórico tal como é gerido por práticas historiográficas e representado na escrita histórica. Nos espaços entre as linhas “a”, “b”, “c” e “d”, encontram-se as áreas 1, 2, 3 e 4, que representam os diferentes subcampos dos estudos do tempo histórico:

1) Metafísica do tempo natural (DENG, 2018DENG, Natalja. Time, metaphysics of. In: Routledge Encyclopedia of Philosophy. London: Routledge, 2018.): localiza-se acima da linha “a”, que fulgura como a fronteira última e nebulosa em que tanto as práticas da história disciplinar quanto os esforços teóricos se encontram com o tempo natural.

2) Metafísica do tempo histórico (KLEINBERG, 2012KLEINBERG, Ethan. Introduction: The New Metaphysics of Time. History and Theory, n. 1, p. 1-7, 2012.): localiza-se entre as linhas “a” e “b”, encontrando o tempo natural na parte superior e as experiências do tempo histórico na parte inferior.

3) Regimes de historicidade (HARTOG, 2015HARTOG, François. Regimes of Historicity: Presentism and Experiences of Time. Translated by Saskya Brown. New York: Columbia University Press, 2015.): situa-se entre as linhas “b” e “c” e envolve os modos que a experiência do tempo pode assumir, encontrando o tempo histórico no topo e a representação do tempo na historiografia e na escrita histórica na parte inferior.

4) Regimes historiográficos (MUDROVCIC, 2013MUDROVCIC, María Inés. Regímenes de historicidad y regímenes historiográficos: del pasado histórico al pasado presente. Historiografías, v. 5, p. 11-31, 2013.): localiza-se abaixo da linha “d” e representa não só o manejo do tempo pelas práticas historiográficas relacionadas ao tempo (cronologia, crônica, horários, periodização), como também a representação do tempo histórico na escrita histórica.

As áreas do diagrama têm entre si uma relação muito próxima, já que “A distância entre a escrita da história e a prática e suas análises filosóficas e teóricas é relativamente curta” (KUUKKANEN, 2021KUUKKANEN, Jouni-Matti. A Conceptual Map for Twenty-First-Century Philosophy of History. In: KUUKKANEN, Jouni-Matti (ed.). Philosophy of History: Twenty-First-Century Perspectives. London/ New York: Bloomsbury Publishing Plc, 2021. p. 1-20., p. 6, tradução nossa)

Metafísica do Tempo Histórico

Como o termo metafísica é semântica e filosoficamente inflacionado adotamos neste artigo uma definição simplificada para este termo, a qual possui a vantagem, para nossos propósitos, de relacionar metafísica essencialmente com tempo. De fato, como declara Whitehead em 1929, “o esclarecimento do sentido envolvido na frase ‘tudo flui’ é uma tarefa central da metafísica” (WHITEHEAD, 1978WHITEHEAD, Alfred N. Process and Reality. New York: The Free Press, 1978 [1929]., p. 208, tradução nossa). A definição whiteheadiana, que confere ao termo metafísica um sentido lato, pode incluir o que denominamos, neste artigo, de metafísica do tempo histórico, pois esta conduz uma reflexão sobre o significado dos usos conceituais ou práticos do tempo no campo da teoria da história e da historiografia.

O trabalho classificatório sobre a metafísica do tempo histórico, ao qual se relaciona a importante contribuição desta edição, parte de um quase-hiato geracional entre a filosofia clássica ou substantiva da história de Kant, Hegel, Marx, Nietzsche ou Heidegger - à qual historiadores como Oswald A. G. Spengler (1880-1936) e Arnold Toynbee (1889-1975), por exemplo, ainda alimentam - e a “nova metafísica do tempo” (KLEINBERG, 2012KLEINBERG, Ethan. Introduction: The New Metaphysics of Time. History and Theory, n. 1, p. 1-7, 2012.) - que teóricos fundamentais, como Hans U. Gumbrecht, Reinhart Koselleck (1923-2006) e Frank Ankersmit desenvolveram a partir da década de 1980.

Em primeiro lugar, as abordagens da metafísica clássica e da nova metafísica do tempo histórico dependem principalmente da atenção que dedicam às fronteiras entre a ordem do tempo histórico e a ordem do tempo natural (I). Em segundo lugar, é relevante distinguir a maneira como cada lado lida com a relação entre passado, presente e futuro (II). Em terceiro lugar, o padrão potencial dessa relação define a mudança temporal na história (III).

A metafísica clássica do tempo está interessada na questão substantiva sobre o sentido da história: a história deve levar as sociedades a um progressivo aperfeiçoamento, apesar do caos que a visão do presente atesta? Essa é a questão de Hegel.

Para responder à questão do sentido histórico, as metafísicas clássicas do tempo histórico “aspiram a compreender de uma vez por todas [d’amblée] todo o curso [...] da história, do devir ou do tempo” (POMIAN, 1984POMIAN, Krzysztof. L’Ordre du temps. Paris: Gallimard, 1984., p. 5, tradução nossa), conhecendo de antemão o sentido final da “relação entre o presente, o passado e o futuro” (POMIAN, 1984POMIAN, Krzysztof. L’Ordre du temps. Paris: Gallimard, 1984., p. 6, tradução nossa). Para tanto, em primeiro lugar, a metafísica clássica do tempo histórico deve considerar a separação do tempo histórico e do tempo natural. Em segundo lugar, para os filósofos clássicos da história, a relação entre passado, presente e futuro é historicamente especificada de acordo com o domínio de uma dimensão sobre as outras. O sentido da história, que se manifesta na mudança temporal, por sua vez, depende da dimensão dominante do tempo. Por exemplo, para Nietzsche a dimensão predominante do tempo histórico é o presente, o presente sem espessura do instante, o piscar de olhos, pois só o presente põe o homem em contato com o “elemento ahistórico” que envolve a história, a qual torna possível o esquecimento e, portanto, a mudança na história (NIETZSCHE, 1954NIETZSCHE, Friedrich. ‘Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben’. Karl Schlechta (Herausgegeben). Friedrich Nietzsche Werke in drei Bänden, erster Band. München: Carl Hanser, 1954. p. 209-287., p. 214). Para Heidegger, a dimensão mais importante é a do futuro, já que nela está implicada o ser para a morte como temporalização mais importante no horizonte do Dasein, de modo que o futuro é “o fenômeno primário da temporalidade primordial e autêntica” (HEIDEGGER, 1977HEIDEGGER, Martin. Sein Und Zeit. Klostermann: Frankfurt am Main, 1977., p. 436, tradução nossa).

A partir dos anos 1970, o mergulho da teoria da história em preocupações de ordem narrativista eclipsou a preocupação com a temporalidade, salvo a importante exceção de Koselleck. Esse relativo abandono das questões temporais era justificado pelo fato de que o tempo ensejava a busca por uma substância ou realidade histórica à qual a narrativa como construto mental não dava acesso. Em 2011, Jordheim considerava a “teoria dos tempos históricos [...] no momento, seja contestada seja simplesmente ignorada” (JORDHEIM, 2011JORDHEIM, Helge. Does Conceptual History Really Need a Theory of Historical Times?. Contributions to the History of Concepts, v. 6, n. 2, p. 21-41, 2011., p. 21, tradução nossa). Em contraste, apenas um ano depois, em 2012, Kleinberg apontou o surgimento de uma “nova metafísica do tempo”. Então, cabe a pergunta: o que fez uma nova metafísica do tempo emergir?

Anos de narrativismo tornaram os novos metafísicos do tempo histórico imunes aos riscos especulativos que a metafísica clássica do tempo assumiu ao conceber o sentido geral da história. Alternativamente, eles não abandonaram algumas das questões substantivas e ontológicas a respeito do tempo histórico, tais como continuidade/descontinuidade da história, tempo linear/não-linear, tempo síncrono/assíncrono e mudança temporal. De fato, há uma conexão que faz a ponte entre a metafísica clássica e a nova metafísica do tempo histórico superar o desprezo narrativista pelas aventuras especulativas sobre o caráter ontológico do tempo. Segundo Simon, as novas teorias do tempo histórico reabilitam as teorias temporais ao lançar uma “filosofia quase-substantiva da história” (SIMON, 2019SIMON, Zoltán B. The Transformation of Historical Time: Processual and Evental Temporalities. In: TAMM, Marek; OLIVER, Laurent (ed.). Rethinking Historical Time: New Approaches to Presentism. London/New York: Bloomsbury Publishing, 2019b. p. 71-84.a).

O que a metafísica quase-substantiva do tempo fornece que os filósofos clássicos e substantivos da história não conseguiram?

O novo empreendimento é diferente da filosofia clássica da história em dois sentidos principais. Em primeiro lugar, a nova metafísica do tempo histórico não lida com o descolamento do tempo histórico em relação ao tempo natural como tal, como fizeram Nietzsche ou Heidegger, pois, em geral, toma como pressuposto a existência do tempo histórico separado do tempo natural. De fato, a nova metafísica do tempo histórico parte contra “um tipo de pensamento que transborda os limites do cognoscível, [...] [dentro dos quais] a história dos historiadores se confina” (RICŒUR, 2004RICŒUR, Paul. Memory, history, forgetting. Translated by Kathleen Blamey and David Pellauer. Chicago: University of Chicago Press, 2004., p. 155, tradução nossa). Na melhor das hipóteses, considera, ou, melhor, considerava o tempo natural superficialmente, como uma fronteira distante que desconhece a história humana. No entanto, como veremos, se a metafisica do tempo se inicia considerando a separação do tempo humano com relação ao tempo natural, como em Ricoeur ou Koselleck, diante das consequências da interferência humana no mundo natural, as teorias do tempo histórico cada vez mais admitem que o tempo histórico e o tempo natural constituem um contínuo temporal em que as duas temporalidades se tornam indistintas e se interferem mutuamente. Em segundo lugar, ao contrário da metafísica clássica do tempo histórico, a ênfase na relação entre passado, presente e futuro se altera para a nova metafísica do tempo. Para esta, o significado da relação temporal está na maneira como o passado chega ao presente e como o presente se abre para o futuro de modo a fazer com que a história mude, e não para revelar o sentido da história como o segredo da passagem temporal, como fazia a metafísica clássica do tempo histórico.

Sendo assim, como vimos, a nova metafísica do tempo (b.2) se preocupa com o tempo natural (a.1). Além disso, para os novos metafísicos do tempo, as relações temporais estabelecem as condições sob as quais passado, presente e futuro se tornam epistemologicamente apreensíveis pelas ferramentas teóricas e pelas tarefas práticas dos historiadores. Esta última característica pede uma conexão entre a metafísica do tempo histórico (b.2) e as camadas inferiores do diagrama dos estudos do tempo (Figura 1), sendo elas os regimes de historicidade (c.3), e os regimes historiográficos (d.4).

As tarefas quase substantivas da metafísica do tempo histórico renovada, portanto, reúnem uma investigação epistemológica que depende de compromissos ontológicos: (I) desprendimento do tempo natural, (II) relação entre passado, presente e futuro e (III) mudança temporal. Sendo assim, os padrões epistemontológicos que a nova metafísica do tempo histórico assume podem ser classificados em três tendências: presença, temporalidades múltiplas e tempo histórico analítico (KLEINBERG, 2012KLEINBERG, Ethan. Introduction: The New Metaphysics of Time. History and Theory, n. 1, p. 1-7, 2012., p. 2).

De um modo geral, segundo Kleinberg, estas tendências procuram reexaminar “nossa relação com o passado e a própria natureza do passado” e, por isso, se coadunam com um movimento recente da teoria e a da filosofia da história que procura “ir além da ênfase na linguagem e representação” KLEINBERG, 2012KLEINBERG, Ethan. Introduction: The New Metaphysics of Time. History and Theory, n. 1, p. 1-7, 2012., p. 2), ou seja, as novas teorias do tempo histórico indicam exaustão da filosofia narrativista da história. Além disso, estas novas teorias têm como motivo apresentar alternativas às formas tradicionais de temporalidade histórica que balizavam a percepção historiadora: o tempo linear, o tempo circular e o tempo dialético. A partir daí, cada uma das tendências da nova metafísica do tempo histórico apresenta um esquema temporal próprio para relacionar passado, presente e futuro. Estes esquemas serão resumidos a seguir.

A) (Paradigma da) Presença

Em geral, o conceito de presença histórica busca compreender como é possível vivenciar e representar a característica aporética do passado que está presente em seus remanescentes (objetos, documentos ou memoriais) e, ao mesmo tempo, ausente por estar irremediavelmente perdido, por ser passado. O ponto de ausência-presença do passado, segundo o paradigma temporal da presença, situa-se no contato sem espessura entre o passado e o presente.

A teoria recente da história afasta-se, relativamente, dá ênfase na linguagem e na representação para recolocar o problema da experiência histórica em termos da presença do ausente, o passado. Portanto, o narrativismo é hoje censurado por ter ido longe demais, a ponto de dispensar o “passado em si” (BENTLEY, 2006BENTLEY, Michael. Past and ‘Presence’: Revisiting Historical Ontology. History and Theory, v. 45, n. 3, p. 349-361, 2006., p. 349), o “passado real” (DOMANSKA, 2006DOMANSKA, Ewa. The Material Presence of the Past. History and Theory, v. 45, n. 3, p. 337-348, 2006., p. 348), ou a experiência sublime do passado (ANKERSMIT, 2005ANKERSMIT, Frank. Sublime Historical Experience. Stanford: Stanford University Press, 2005., p. 318). Em primeiro lugar, a ideia de presença responde a esse deslocamento teórico fazendo uma “tentativa pós-linguística ou pós-discursiva de retornar ao real, a objetos e condições materiais” (KLEINBERG, 2013KLEINBERG, Ethan. Prologue. In: GHOSH, Ranjan; KLEINBERG, Ethan (ed.). Presence: Philosophy, History, and Cultural Theory for the Twenty-First Century. Ithaca and London: Cornell University Press, 2013. p. 1-7., p. 7, tradução nossa). Assim, a presença pretende superar o narrativismo, sendo, por isso, “uma alternativa ao significado, à representação, à hermenêutica e ao pós-modernismo” (PETERS, 2006PETERS, Rik. Actes de Presence: Presence in Fascist Political Culture. History and Theory, Middletown, v. 45, n. 3, p. 362-374, 2006., p. 362). Consequentemente, a presença desconecta historiadores e teóricos da história dos “mantras deste lingualismo tão opressivo e sufocante [que ameaça] a saúde intelectual de nossa disciplina” (ANKERSMIT, 2006ANKERSMIT, Frank R. ‘Presence’ and Myth. History and Theory, v. 45, n. 3, p. 328-336, 2006., p. 336, tradução nossa).

Na teoria da história, desde os anos 2000, observa-se um notável esforço coletivo para criar conceitos de tempo histórico com a marca da teoria da presença. Tal esforço se diversifica em diferentes démarches que desenvolveram variedades de conceitos de tempo histórico segundo a matriz conceitual da presença histórica. De fato, algumas das principais subdivisões da presença histórica como matriz de conceitos históricos são devidas a Hans U. Gumbrecht, Ewa Domanska, Anthon Froeyman, Frank Ankersmit, Eelco Runia, Beber Bevernage e Ethan Kleinberg. Dois teóricos brasileiros têm se dedicado a rever a matriz heideggeriana que diz respeito ao esquema temporal da presença. Matheus Pereira e Valdei Araújo procuram rever o presentismo contemporâneo, a partir da “temporalização imprópria” de Heidegger, como forma de enquadrar suas brechas e fornecer uma genealogia apta a caracterizar o “atualismo” (CARDOSO JR., 2023CARDOSO JR., H. R. O “Atualismo” de Pereira & Araújo: Entre metafísica do tempo histórico e regime de historicidade. Revista de Teoria da História, Goiânia, v. 25, n. 2, p. 131-147, 2023., p. 31-32) como “dimensão temporal que emerge nessas sociedades aprisionadas pelas estruturas de expansão infinita” (PEREIRA; ARAÚJO, 2019PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; ARAUJO, Valdei Lopes de. Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI. 2. ed. Vitória, Mariana: Editora Milfontes, Editora da SBTHH, 2019., p. 18).

B) Temporalidades Múltiplas

Múltiplas temporalidades é a tendência da nova metafísica do tempo histórico que decorre da prolífica teoria temporal de Reinhart Koselleck. Múltiplas temporalidades encorajam historiadores e teóricos da história a reconhecer a existência não apenas de “um tempo histórico, mas [...] muitas formas de tempo sobrepostas umas sobre as outras” (KOSELLECK, 2004KOSELLECK, Reinhart. Futures Past: On the Semantics of Historical Time. Tradução de Keith Tribe. New York: Columbia University Press, 2004., p. 2, tradução nossa). A metafísica koselleckiana do tempo é ilustrada por uma metáfora geológica segundo a qual a relação entre passado, presente e futuro reúne um feixe mutável de “‘sedimentos ou camadas de tempo’ [...] que diferem em idade e profundidade e que mudaram e se diferenciam um do outro em velocidades diferentes ao longo da chamada história da Terra” (KOSELLECK, 2018KOSELLECK, Reinhart. Sediments of Time: On Possible Histories. Stanford, California: Stanford University Press, 2018., p. 3, tradução nossa). Mas, a imagem de tempos em camadas superpostas é apenas um esquema aproximado da relação entre passado, presente, e futuro requerida pelas múltiplas temporalidades como matriz de conceitos de tempo histórico, já que, de fato, para que fosse mais fiel, cada camada temporal teria de ser animada a fim de que se pudesse observar os deslocamentos e superposições de cada uma relativamente às outras.

Além do fator de dinâmica multitemporal, os sedimentos do tempo compreendem “estruturas temporais” (KOSELLECK, 2018KOSELLECK, Reinhart. Sediments of Time: On Possible Histories. Stanford, California: Stanford University Press, 2018., p. 94). Em primeiro lugar, a estrutura temporal revela que passado e presente não se alinham como instantes antecedentes e subsequentes em uma linha temporal, uma vez que a distância diacrônica que os diferencia ao mesmo tempo os torna contíguos e síncronos como tempos dispostos em camadas que interagem. Em segundo lugar, e consequentemente, a ordem do tempo histórico apresenta-se como a “contemporaneidade do não contemporâneo” (KOSELLECK, 2018KOSELLECK, Reinhart. Sediments of Time: On Possible Histories. Stanford, California: Stanford University Press, 2018., p. 94), já que “qualquer sincronia é eo ipso ao mesmo tempo diacrônica” (KOSELLECK, 2018KOSELLECK, Reinhart. Sediments of Time: On Possible Histories. Stanford, California: Stanford University Press, 2018., p. 94), pois “In actu, todas as dimensões temporais estão sempre entrelaçadas” (KOSELLECK, 2002KOSELLECK, Reinhart. The Practice of Conceptual History: Timing History, Spacing Concepts. Stanford: Stanford University Press, 2002., p. 30) de acordo com seus ritmos dissonantes de mudança temporal. Em terceiro lugar, Koselleck examina o tempo histórico de acordo com estruturas do tempo que moldam diferentes sentidos que a experiência do tempo histórico pode assumir, pois essas podem ser periodizadas de acordo com duas marcas temporais: “O espaço de experiência [que] é o passado organizado para um determinado presente, e o horizonte de expectativa [que] é a vanguarda das possibilidades futuras para qualquer presente” (ZAMMITO, 2004ZAMMITO, John. Koselleck’s Philosophy of Historical Time(s) and the Practice of History. History and Theory, v. 43, p. 124-135, 2004., p. 128-129).

Algumas das principais subdivisões da matriz koselleckiana das múltiplas temporalidades podem ser nomeadas na nova metafísica do tempo histórico: Helge Jordheim, Stefan Helgesson, Achim Landwehr, Zoltán B. Simon & Marek Tamm, Elías Pauti, Rodrigo Turin e Inclan & Valero, cujas teses serão descritas sumariamente a seguir.

Jordheim mostra que a teoria das temporalidades múltiplas de Koselleck supera a dicotomia extralingüístico-intralinguístico porque representa uma “teoria geral, uma metateoria, dos tempos históricos” (JORDHEIM, 2012JORDHEIM, Helge. Against Periodization: Koselleck’s Theory of Multiple Temporalities. History and Theory, Middletown, v. 51, n. 2, p. 151-171, 2012., p. 152). De fato, Jordheim impulsiona ainda mais o desenvolvimento da contemporaneidade do não-contemporâneo de Koselleck, reformulando a “sincronicidade do não-síncrono” (JORDHEIM, 2014JORDHEIM, Helge. Introduction: multiple times and the work of synchronization. History and Theory, Middletown, v. 53, n. 4, p. 498-518, 2014., p. 66).

A contribuição de Stefan Helgesson radicaliza “a noção de temporalidades múltiplas” para iniciar uma “necessária revisão do quadro eurocêntrico de Koselleck” (HELGESSON, 2014HELGESSON, Stefan. Radicalizing Temporal Difference: Anthropology, Postcolonial Theory, and Literary Time. History and Theory, Middletown, v. 53, n. 4, p. 545-562, 2014., p. 556). Nesse sentido, ele extrai uma lição do debate pós-colonial pois mostra enfaticamente que a sincronização global tende a sustentar as temporalidades locais e homogeneizá-las de acordo com uma linha do tempo linear. Em suma, Helgesson promove a “heterocronia” (HELGESSON, 2014HELGESSON, Stefan. Radicalizing Temporal Difference: Anthropology, Postcolonial Theory, and Literary Time. History and Theory, Middletown, v. 53, n. 4, p. 545-562, 2014., p. 547) do tempo histórico, de modo que historiadores e teóricos devem escapar da “força homogeneizadora da modernidade” (HELGESSON, 2014HELGESSON, Stefan. Radicalizing Temporal Difference: Anthropology, Postcolonial Theory, and Literary Time. History and Theory, Middletown, v. 53, n. 4, p. 545-562, 2014., p. 548).

Para Achim Landwehr, a sincronização koselleckiana do caráter plural do tempo histórico recupera a indesejável “dissonância diacrônica” (LANDWEHR, 2012LANDWEHR, Achim. Von der ‘Gleichzeitigkeit des Ungleichzeitigen. Historische Zeitschrift, Leipzig, v. 295, n. 1, p. 1-34, 2012., p. 20), que encarna o paradigma eurocêntrico da modernização ao impor o “cronocentrismo [Chronozentrismus]” (LANDWEHR, 2012LANDWEHR, Achim. Von der ‘Gleichzeitigkeit des Ungleichzeitigen. Historische Zeitschrift, Leipzig, v. 295, n. 1, p. 1-34, 2012., p. 22) sobre dissonâncias temporais. Além disso, Landwehr lançou a ideia de “cronoferência” para reforçar uma “ciência da simultaneidade [Gleichzeitigkeitswissenschaft]”, segundo a qual o presente inclui um equilíbrio inquieto de “simultaneidades [Gleichzeitigkeiten]” que perturbam a relação anterior com o passado e renovam as cronoferências que tendem a estabilizar o tempo histórico (LANDWEHR, 2016LANDWEHR, Achim. Die anwesende Abwesenheit der Vergangenheit: Essay zur Geschichtstheorie. S. Fischer: Frankfurt, 2016., p. 28).

Simon e Tamm denominaram “futuros históricos” a teoria mais recente do tempo histórico relacionada às múltiplas temporalidades de Koselleck. De fato, “futuros históricos” convida historiadores e teóricos a encarar o futuro, porque “o que chamamos de ‘histórico’ não se limita às relações com o passado, mas também com o futuro” (SIMON; TAMM, 2021SIMON, Zoltán B; TAMM, Marek. Historical Futures. History and Theory. v. 60, n. 1, p. 3-23, 2021., p. 131), especificamente porque o futuro adquiriu uma importância seminal para o pensamento e o conhecimento históricos devido a uma nova experiência do tempo que coexiste e se mistura com a temporalidade moderna, como Koselleck a definiu. Consequentemente, “futuros históricos” parece propor uma metafísica do tempo histórico cujo recorte temporal “claramente se afasta da estrutura de Koselleck” (SIMON; TAMM, 2021SIMON, Zoltán B; TAMM, Marek. Historical Futures. History and Theory. v. 60, n. 1, p. 3-23, 2021., p. 11), pois o futuro, na crise da modernidade, acaba por ser disruptivo em vez de um tempo contínuo em relação ao passado. Em segundo lugar, o progresso técnico empurrou o tempo histórico para o tempo natural, na medida em que iniciou uma historicização do tempo natural, invertendo a tendência modernista de desnaturalização da história. Portanto, o tempo natural e histórico entrelaçados incluem as “mudanças no mundo emaranhado humano/não humano” (SIMON, 2019bSIMON, Zoltán B. The Transformation of Historical Time: Processual and Evental Temporalities. In: TAMM, Marek; OLIVER, Laurent (ed.). Rethinking Historical Time: New Approaches to Presentism. London/New York: Bloomsbury Publishing, 2019b. p. 71-84., p. 80). Em terceiro lugar, os futuros históricos acrescentam múltiplas temporalidades com um novo conceito de mudança histórica denominado “temporalidade evental” (SIMON, 2019bSIMON, Zoltán B. The Transformation of Historical Time: Processual and Evental Temporalities. In: TAMM, Marek; OLIVER, Laurent (ed.). Rethinking Historical Time: New Approaches to Presentism. London/New York: Bloomsbury Publishing, 2019b. p. 71-84., p. 75). Este último articula uma “filosofia renovada da história” (SIMON, 2019aSIMON, Zoltán B. History in Times of Unprecedented Change: A Theory for the 21st Century. London: Bloomsbury, 2019a.; 2019bSIMON, Zoltán B. The Transformation of Historical Time: Processual and Evental Temporalities. In: TAMM, Marek; OLIVER, Laurent (ed.). Rethinking Historical Time: New Approaches to Presentism. London/New York: Bloomsbury Publishing, 2019b. p. 71-84.) que reorganiza a relação entre passado, presente e futuro.

C) Tempo Histórico Analítico

A filosofia analítica da história aborda diretamente os hábitos linguísticos dos historiadores e das pessoas comuns a respeito do tempo. Arthur C. Danto é a principal fonte do tempo histórico analítico como tendência marcante da nova metafísica do tempo. Ele rejeitou a filosofia substantiva da história a fim de evitar os riscos especulativos e metafísicos que os filósofos da história assumem, já que estes pretendem escrever “a história dos eventos antes dos próprios eventos terem acontecido” (DANTO, 1985DANTO, Arthur C. Narration and Knowledge. New York: Columbia University Press, 1985., p. 14). A filosofia analítica da história também rejeita outras formas de filosofia da história que, embora não substantivas, em sentido estrito, reintroduzem cláusulas metafísicas que mancham o trabalho do historiador, como o empirismo realista dos positivistas ou a compreensão empática dos historicistas. Neste sentido, os filósofos analíticos da história se voltam para o resultado do trabalho historiográfico, ou seja, para a linguagem a partir da qual o historiador apresenta o resultado de sua pesquisa e fornece explicações históricas, sejam elas baseadas em leis gerais, como em G. Hempel, em atos coligatórios, como em W. Walsh, ou em simples atos de narrar, como em Danto.

Os indivíduos, assim como os historiadores, segundo Danto e a filosofia analítica, de um modo geral, estão isolados na prisão da linguagem e não podem ter acesso à experiência histórica como tal, pois não existe um estoque de fatos passados, lá fora, a serem descobertos pelo historiador. Ao contrário, este fornece explicações históricas acerca do passado através de recursos que dependem da linguagem. Por isso, a tarefa do historiador é, basicamente, de acordo com a perspectiva temporal das chamadas “frases narrativas”, organizar a explicação dos eventos a partir de marcos temporais de que toda a linguagem dispõe, pois com estas os “Historiadores têm o privilégio único de ver ações na perspectiva temporal” (DANTO, 1985DANTO, Arthur C. Narration and Knowledge. New York: Columbia University Press, 1985., p. 183).

De acordo com o diagnóstico de Danto, um eclipse ofuscou a filosofia analítica da história a partir de meados da década de 1960 (DANTO, 1995DANTO, Arthur C. The Decline and Fall of the Analytical Philosophy of History. In: ANKERSMIT, F.; KELLNER, H. (ed.). New Philosophy of History. London: Reaktion Books Ltd, 1995. p. 70-85., p. 72), principalmente devido ao narrativismo de H. White, que, segundo Roth, “varreu todas as discussões sobre normas explicativas ou epistêmicas” (ROTH, 2020ROTH, Paul A. The philosophical structure of historical explanation. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 2020., p. XII, tradução nossa) relacionadas a frases narrativas e outras questões analíticas, como direcionalidade do tempo e causalidade histórica. No entanto, em 2016, após um período inativo, observa-se uma renovação da filosofia analítica da história (BRZECHCZYN, 2018BRZECHCZYN, Krzysztof. Introduction. In: BRZECHCZYN, Krzysztof. (ed.). Towards a Revival of Analytical Philosophy of History Around Paul A. Roth’s Vision of Historical Sciences. Leiden, Boston: Brill-Rodopi, 2018. p. 1-8.). Para a filosofia analítica renovada da história, o princípio de Danto ainda se mantém, ou seja, a explicação histórica não pode transcender a linguagem. No entanto, para os novos filósofos analíticos da história, se coloca a questão sobre se os eventos contados de dentro da prisão linguística da explicação histórica (filosofia analítica da história) ou de escritos históricos (narrativismo de H. White) poderiam ser, por sua vez, sensíveis à mudança histórica. Esta questão supõe que a passagem temporal pressiona o ambiente engarrafado onde frases narrativas são proferidas, do lado de fora da linguagem.

A resposta a esse dilema teórico divide-se em, pelo menos, duas epistemologias que qualificam a recente filosofia analítica da história como matriz de conceitos de tempo histórico relativamente ao desenvolvimento de uma metafísica do tempo histórico: Paul Roth e Jonathan Gorman.

Baseando-se em Danto e Louis O. Mink, Paul Roth afirma que o passado está aberto às narrativas dos historiadores, já que os historiadores praticam um “nominalismo dinâmico” (ROTH, 2020ROTH, Paul A. The philosophical structure of historical explanation. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 2020., p. 39) que reconstrói o passado. No entanto, se o nominalismo rejeita a solução realista, ele não aprisiona as práticas dos historiadores, porque estas dependem das categorizações que a explicação histórica implica (ROTH, 2020ROTH, Paul A. The philosophical structure of historical explanation. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 2020.). Em suma, os hábitos provisórios envolvem as categorias epistêmicas de explicação na mudança histórica. De fato, as novas categorias que o quadro disciplinar da comunidade aplica para reconceituar o passado são “negociações socialmente mediadas de um ajuste entre descrições e experiência” (ROTH, 2012ROTH, Paul A. The Pasts. History and Theory. v. 51, n. 3, p. 313-339, 2012., p. 319, tradução nossa; ROTH, 2020ROTH, Paul A. The philosophical structure of historical explanation. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 2020., p. 57-59).

Jonathan Gorman defende o renascimento da filosofia analítica da história. Sua proposta trata da disposição temporal dos acontecimentos. De fato, ele acredita que a reunião dos pontos de vista temporais parciais sobre um objeto histórico fixa a mudança das explicações históricas, cujas estruturas temporais são sustentadas provisoriamente por “pressupostos absolutos” (GORMAN, 2013GORMAN, Jonathan, The Limits of Historiographical Choice in Temporal Distinctions. In: LORENZ, Chris; BEVERNAGE, Berber (ed.). Breaking up Time: Negotiating the Borders between Present, Past and Future. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2013. p. 155-175., p. 174) compartilhadas em qualquer momento. Portanto, para seu entendimento, a mudança histórica só se torna perceptível quando um pressuposto absoluto posterior substitui um anterior.

Regimes de Historicidade e Regimes Historiográficos

O modo como a metafísica do tempo (b.2) focaliza a experiência histórica para levar em consideração os regimes de historicidade (c.3) decorre das posições diferenciais que Koselleck e Hartog têm sobre a relação entre b.2 e c.3.

Em primeiro lugar, Koselleck afirma que a distância entre o “espaço da experiência” e o “horizonte da expectativa” (KOSELLECK, 2004KOSELLECK, Reinhart. Futures Past: On the Semantics of Historical Time. Tradução de Keith Tribe. New York: Columbia University Press, 2004.) altera a percepção da relação entre passado, presente e futuro. Em segundo lugar, diferentes experiências de tempo se manifestam na “organização linguística da experiência temporal” (KOSELLECK, 2004, p. 4), que mostra um deslocamento a partir de 1780. Em terceiro lugar, ao longo do tempo, “a aceleração induzida pela tecnologia dos ritmos temporais” (EWING, 2016EWING, Alexander Blake. Conceptions of Reinhart Koselleck’s Theory of Historical Time in the Thinking of Michael Oakeshott, History of European Ideas, v. 42, n. 3, p. 412-429, 2016., p. 420; KOSELLECK, 2002KOSELLECK, Reinhart. The Practice of Conceptual History: Timing History, Spacing Concepts. Stanford: Stanford University Press, 2002., p. 113-114) amplia-se a partir de uma distância menor entre o espaço da experiência e o horizonte de expectativa, que caracteriza a Historia Magistra Vitae, centrada no passado (KOSELLECK, 2004KOSELLECK, Reinhart. Futures Past: On the Semantics of Historical Time. Tradução de Keith Tribe. New York: Columbia University Press, 2004., p. 28), para uma maior distância, que caracteriza experiência histórica da modernidade centrada no futuro, o Neuzeit (KOSELLECK, 2004KOSELLECK, Reinhart. Futures Past: On the Semantics of Historical Time. Tradução de Keith Tribe. New York: Columbia University Press, 2004., p. 225, p. 263).

Historia Magistra Vitae e Neuzeit são, para Koselleck, o que podemos chamar atualmente de regimes de historicidade, visto que são percepções do tempo - centradas no passado e no futuro, respectivamente - que demarcam uma mudança na experiência histórica do tempo. Em contraste com os regimes de historicidade de Hartog, a caracterização destes, de acordo com uma chave de leitura koselleckiana, derivam de estruturas temporais que balizam a caracterização de qualquer experiência do tempo histórico com base em três variáveis: (a) o espaço de experiência, (b) o horizonte de expectativa e (c) a relação entre a e b tendo em vista uma variável independente, ou seja, a aceleração devido ao vetor tecnológico que regula as distâncias temporais entre passado e futuro. Em suma, podemos dizer que há uma metafísica koselleckiana do tempo baseada nas três variáveis descritas, a partir das quais os regimes de historicidade podem ser reinterpretados de acordo à maneira koselleckiana.

Ainda que a abordagem da metafísica do tempo e da experiência histórica se mostrem convergentes (JORDHEIM, 2011JORDHEIM, Helge. Does Conceptual History Really Need a Theory of Historical Times?. Contributions to the History of Concepts, v. 6, n. 2, p. 21-41, 2011., p. 22-23), Koselleck nunca os conectou claramente (OLSEN, 2013OLSEN, Niklas. History in the Plural: An Introduction to the Work of Reinhart Koselleck. New York: Berghahn Books, 2013., p. 230-231). Por um lado, ele reconhece o tempo histórico como o “tempo histórico propriamente dito” (ESCUDIER, 2011ESCUDIER, Alexandre. Temporalization and Political Modernity. In: SEBASTIÁN, Javier Fernández (ed.). Political Concepts and Time: New Approaches to Conceptual History. Santander: Cantabria University Press, 2011. p. 131-163., p. 137). Por outro lado, ele mostra que a experiência do tempo histórico contém a ordem multifacetada do tempo histórico, realizando o “tempo existencial” (ESCUDIER, 2011ESCUDIER, Alexandre. Temporalization and Political Modernity. In: SEBASTIÁN, Javier Fernández (ed.). Political Concepts and Time: New Approaches to Conceptual History. Santander: Cantabria University Press, 2011. p. 131-163., p. 137) como uma estrutura temporal que toma diferentes arranjos e cujas variedades se revelam através da semântica dos conceitos de tempo histórico.

A semântica do tempo histórico, através da história dos conceitos, revela a implicação mútua entre a metafísica do tempo e os regimes de historicidade em Koselleck.

A experiência histórica de sociedades passadas antes da modernidade é ordenada de acordo com referências encontradas fora dos eventos históricos (exoreferências), pois são projetadas em uma escala natural, cosmológica ou teológica. A experiência moderna do tempo histórico, ao contrário, devido à maior distância entre passado e futuro, e à aceleração do tempo, permite que o tempo histórico encontre suas referências nos próprios eventos históricos (endorreferências). Em suma, as estruturas historicamente determinadas do tempo, cuja experiência e expectativa se afastam cada vez mais uma da outra, revelam o caso especial em que a própria experiência histórica determina o tempo histórico como uma variedade de experiência histórica. Eventualmente, a sobreposição entre a experiência histórica moderna do tempo (Neuzeit) e a estrutura temporal da história realiza a “temporalização da história” (KOSELLECK, 2004KOSELLECK, Reinhart. Futures Past: On the Semantics of Historical Time. Tradução de Keith Tribe. New York: Columbia University Press, 2004., p. 37, p. 245-246), se desligando da naturalização do tempo histórico, característica da Historia Magistra Vitae.

Além disso, a coincidência entre a estrutura do tempo histórico e a experiência moderna do tempo histórico ocasionalmente fornece uma ferramenta heurística para historiadores e teóricos. Permite que as práticas disciplinares se desvinculem do ponto de vista de nossa experiência histórica moderna: “a questão da estrutura temporal [...] revela um meio de examinar adequadamente todo o domínio da investigação histórica, sem ser limitado pelo [...] limiar semântico para nossa experiência [desde cerca de 1780]” (KOSELLECK, 2004KOSELLECK, Reinhart. Futures Past: On the Semantics of Historical Time. Tradução de Keith Tribe. New York: Columbia University Press, 2004., p. 94).

Essas suposições metafísicas koselleckianas relativas aos regimes de historicidade separam os relatos do tempo histórico de Koselleck e Hartog.

Mesmo que François Hartog (2015HARTOG, François. Regimes of Historicity: Presentism and Experiences of Time. Translated by Saskya Brown. New York: Columbia University Press, 2015., p. 9, p. 17) parta declaradamente da semântica koselleckiana da experiência histórica, seu empreendimento não envolve uma metafísica do tempo histórico como tal. Koselleck define o tempo histórico como a estrutura multicamadas que reúne passado, presente e futuro e entrelaça sedimentos sincrônico-diacrônicos, nos quais o não contemporâneo se torna contemporâneo, enquanto Hartog não está interessado na ordem do tempo histórico. Ele prefere falar apenas de regimes de historicidade, em vez de falar, como Koselleck em “regimes de temporalidade”, por que estes últimos tratam do tempo histórico como tal e têm “a desvantagem de se referir [a] tempo ‘exógeno’, matemático ou astronômico” (HARTOG, 2015HARTOG, François. Regimes of Historicity: Presentism and Experiences of Time. Translated by Saskya Brown. New York: Columbia University Press, 2015., p. XVI). De fato, Hartog coloca o tempo histórico e os regimes de historicidade em pé de igualdade, dispensando o complexo jogo entre estruturas temporais e experiências históricas, a fim de realçar a função heurística dos regimes:

Um regime de historicidade nunca foi uma entidade metafísica universalmente aplicável enviada do céu. Expressa apenas uma ordem dominante de tempo […] é, em última análise, uma forma de expressar e organizar experiências de tempo - isto é, formas articular o passado, o presente e o futuro - e investi-los de sentido. (HARTOG, 2015HARTOG, François. Regimes of Historicity: Presentism and Experiences of Time. Translated by Saskya Brown. New York: Columbia University Press, 2015., p. 106, tradução nossa).

O tempo histórico torna-se demonstrável apenas em termos de experiências temporais (HARTOG, 2015HARTOG, François. Regimes of Historicity: Presentism and Experiences of Time. Translated by Saskya Brown. New York: Columbia University Press, 2015., p. 38). Suas variedades dependem apenas de que dimensão do tempo - passado, futuro ou presente - é dominante em relação às demais (HARTOG, 2015, p. XVI). Por fim, o domínio de uma dimensão temporal sobre as demais determina a experiência histórica “em seus três modos de memória (a presença do passado), atenção (a presença do presente) e expectativa (a presença do futuro)” (HARTOG, 2015HARTOG, François. Regimes of Historicity: Presentism and Experiences of Time. Translated by Saskya Brown. New York: Columbia University Press, 2015., p. XVI). Os três modos de experiência histórica podem ser datados, tão somente, de acordo com a crise que o confronto entre a experiência anterior e a experiência posterior do tempo histórico expõe: o antigo regime de historicidade centrado no passado com o moderno futuro dominante por volta de 1789, e este último com o presentismo, o atual regime dominante de historicidade, a partir de 1989 (HARTOG, 2015HARTOG, François. Regimes of Historicity: Presentism and Experiences of Time. Translated by Saskya Brown. New York: Columbia University Press, 2015., p. 98, p. 104).

Quanto à nova metafísica do tempo histórico, também se aplicam diferenças e semelhanças em relação aos regimes de historicidade. Para Gumbrecht, por exemplo, o “presente amplo”, que é o “cronotropo” do início do século XXI, “dita as condições sob as quais o comportamento humano encontra suas estruturas e experiências constitutivas” (GUMBRECHT, 2014GUMBRECHT, Hans Ulrich, Our Broad Present: Time and Contemporary Culture. New York, Columbia University Press, 2014., p. 73, tradução nossa). Assim, o presente amplo como experiência histórica datada explora o tempo histórico para corromper e rebaixar a presença do passado como experiência histórica autêntica. Para Gumbrecht, então, há uma configuração própria da relação entre presente e passado caracterizada pela metafísica da presença histórica que pode ser desorientada pelo regime de historicidade corrente, no caso, o presentismo.

Elias Paltí afirma que, após 1800, o caráter heterogêneo do tempo histórico impõe a criação de temporalidades que não podem “ser consideradas igualmente ‘modernas’” (PALTÍ, 2018, p. 414). Segundo Rodrigo Turin e María Inès Mudrovcic (MUDROVCIC, 2019TURIN, Rodrigo. Tempos de transição: aceleração e dessincronização social. In: VÁSQUEZ, Georgiane Garabely Heil; DENIPOTI, Cláudio (ed.). Tempos de Transição. Porto Alegre: Editora Fi, 2019. p. 19-37.), os regimes de historicidade, devido a seu caráter trans-histórico, carecem de uma análise fina que seja capaz de detalhar historiograficamente o atual regime neoliberal de historicidade (TURIN, 2019TURIN, Rodrigo. Tempos de transição: aceleração e dessincronização social. In: VÁSQUEZ, Georgiane Garabely Heil; DENIPOTI, Cláudio (ed.). Tempos de Transição. Porto Alegre: Editora Fi, 2019. p. 19-37.), conhecido como presentismo. Da mesma forma, segundo Fernando Nicolazzi, o presentismo e os regimes de historicidade são, em geral, historiograficamente fracos para especificar a o caráter multitemporal do tempo histórico, uma vez que a experiência temporal permite “‘violações’ que tornam os regimes de historicidade plurais e dinâmicos” (NICOLAZZI, 2010NICOLAZZI, Fernando. História entre Tempos: François Hartog e A Conjuntura Historiográfica Contemporânea. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 53, p. 229-257, 2010., p. 255). Em suma, é importante, segundo Daniel Inclán e Aurelia Valero (2017INCLÁN, Daniel; VALERO, Aurelia. Reporte del tiempo: presente e historia. Desacatos, Mexico, n. 55, p. 60-73, 2017.), que os historiadores não mimetizem o presentismo narrativamente, a fim de desmontar a sincronicidade homogeneizante do tempo histórico que o presentismo impõe aos regimes historiográficos.

Contribuição dos Artigos desta Edição Especial para os Estudos do Tempo Histórico

Tendo em vista o quadro geral descrito nas partes precedentes, podemos a partir de agora apresentar os artigos que participam desta edição especial acerca dos “Tempos da História” e destacar a contribuição que estes trazem para os estudos acerca do tempo histórico.

O artigo “Entre Kant e Gadamer. Metafísica clássica do tempo entre uma temporalidade vazia e uma temporalidade corporificada” (original em inglês), de Harry Jansen, abre a edição especial “Tempos da História” porque questiona a estrita separação entre a metafísica clássica do tempo histórico e a nova metafísica do tempo histórico baseada na distinção entre “tempo vazio” e “tempo vivido” [embodied time]. Para Jansen, a distinção entre tempo vazio e tempo vivido está estruturada em torno das concepções de tempo de Kant e Gadamer.

O artigo, “Sobre o papel metafísico da historicidade” (original em inglês), de Augusto de Carvalho Dias Leite, também retorna à metafísica clássica do tempo histórico, colocando em foco o conceito heideggeriano de historicidade a fim de fazer uma indagação acerca do fundamento temporal da história, seja esta entendida como realidade, seja como historiografia. O autor retorna à Schelling para definir o caráter contraditório do passado que caracteriza a historicidade com a marca metafísica da presença. O artigo recua ainda mais na história da filosofia para fazer uma rápida visita à filosofia da história de Hegel, a qual estaria na raiz de todo desenvolvimento posterior do conceito de historicidade. Por fim, Heidegger reaparece para reafirmar o caráter independente da reflexão filosófica acerca da historicidade, que se acrescenta ao trabalho historiográfico de narrar.

Walderez Ramalho, no artigo “Sobre os Limites do Tempo: História do Tempo Presente, Policronia e Performatividade”, dedica-se a questionar os limites entre presente e passado, já que este define, dependendo da distância ou proximidade do passado, o caráter do conhecimento histórico. Em especial, os limites do tempo histórico permitem qualificar a reflexão temporal e a historiografia produzidas pela chamada “história do presente”. Para tanto, o autor faz uma incursão às teorias temporais que denominamos de temporalidades múltiplas, já que se, e somente se, as fronteiras entre passado e presente forem fluidas e/ou porosas, tornando indiscerníveis as duas dimensões, a delimitação do campo disciplinar da história do tempo presente se justifica. Por isso, a reflexão sobre o presente multitemporal é a garantia que o historiador do presente não almejaria tornar-se o cronista de um tempo imediato e pontual.

Rosa Belvedresi, em “Reflexões sobre a relação entre passado e futuro em tempos de urgência” (original em espanhol), trata dos questionamentos que a tese koselleckiana sobre o regime de historicidade moderno vem recebendo. A fundação da história como disciplina dependeu, ao longo do século XIX, da emergência de uma experiência histórica relacionada um futuro aberto. No artigo, dois questionamentos são feitos. Em primeiro lugar, a ideia de um futuro aberto entrou em crise devido ao fato da persistência do passado que se recusa a passar. Em segundo lugar, questiona-se o futuro moderno como um tempo humano que não envolvia outras espécies e o destino do próprio planeta. Este último questionamento, como vimos, se insere no tipo de indagações que a tendência dos estudos do tempo histórico denominada futuros históricos.

Em torno do Antropoceno, no artigo “O Antropoceno e o desafio de uma premissa: tempo natural e tempo humano nos debates sobre o tempo histórico” (original em espanhol), María Emilia Arabarco põe em foco a relação entre tempo natural e tempo humano, na medida em que a dicotomia entre ambos vem sendo questionada. Trata-se de um debate interdisciplinar, colocando de um lado as geociências e a história. O importante é entender de que forma os historiadores e teóricos entendem, tendo em vista as práticas disciplinares, a relação entre natureza e história. Para tanto, começa por expor as posições comuns de importantes historiadores e teóricos da história do século XX (Koselleck, Pomian, Le Goff e Hartog) que partilham o então insuspeito pressuposto da separação entre o tempo natural e o tempo histórico, em suas várias versões. Em seguida, o artigo não deixa de assinalar que as contribuições dos cientistas quanto ao Antropoceno precisam ser criticadas em termos das generalizações históricas em que aqueles incorrem. Em todo caso, o desafio, uma vez que o tempo natural e o tempo histórico estão inevitavelmente conectados, é como abordar historiograficamente a interferência entre duas escalas temporais diversas.

O artigo “Os tempos do Antropoceno - reflexões sobre limites, intensidade e duração”, de Alice Freyesleben, também se dedica a estudos temporais que focalizam a relação entre natureza e história. Neste caso, no entanto, a autora põe em primeiro plano o confronto entre a história, de um lado, e as geociências, de outro, como campos disciplinares que se colocam em posições diversas acerca da definição, conceituação e periodização do Antropoceno. A questão é que os historiadores não podem reivindicar para si o monopólio do pensamento histórico, já que outros campos do conhecimento, em particular a estratigrafia, pensam historicamente. A partir daí, o artigo apresenta e discute as diversas hipóteses que procuram periodizar historicamente o Antropoceno.

Em “História mais do que humana: descrevendo o futuro como atualização repetidora da Inteligência Artificial”, Rodrigo Bragio Bonaldo aborda questões temporais relacionadas aos “futuros históricos”. Ao contrário de outros artigos deste volume que enfocam o futuro do meio ambiente planetário, Bonaldo explora a questão da inteligência artificial e suas interações com os humanos. Esta abordagem envolve tanto aspectos metafísicos relacionados à ontologia do futuro como dimensão histórica quanto as consequências desta metafísica do tempo para o regime de historicidade, ou seja, para a experiência do tempo histórico. No que diz respeito à metafísica do tempo histórico, as máquinas envolvidas nesta relação tornam-se “agentes temporalizadores” com os quais a historiografia e a teoria histórica devem lidar para conceituar uma nova forma de temporalidade que se afasta da aceleração dos processos sociais que, segundo Koselleck, caracterizaram a regime moderno de historicidade. O autor desenvolve um argumento sofisticado que revela um nível incomum de conhecimento técnico sobre inteligência artificial e máquinas-aprendizes baseadas em algoritmos.

O artigo “Os Tempos da Cidade: Barbárie e Civilização no Album Illustrado da Comarca De Rio Preto (1927-1929)”, de Henry Marcelo Silva, diferentemente dos anteriores, realiza uma reflexão teórica sobre as temporalidades. O autor investiga o processo de intensa transformação da paisagem urbana ocorrido na cidade de São José do Rio Preto, noroeste do Estado de São Paulo, na virada do século XIX para o XX. Para tanto, utiliza o Album Illustrado da Comarca De Rio Preto (1927-1929), cujo objetivo é fazer a propaganda dessa cidade que, entre outras, na região, se destacou pela modernização e por isso abandonou um passado de atraso econômico e sem lei. O tratamento metodológico do objeto se destaca devido ao conhecimento técnico acerca da indústria gráfica do período. Através da análise historiográfica de imagens e textos do Album Illustrado, o artigo demonstra como um “espaço de experiência” é transformado em passado remoto e algo mítico, em função de um “horizonte de expectativa” que faz do presente da cidade em foco uma pista de decolagem para um futuro promissor.

Por fim, o artigo “Auto de fé para o Borba Gato: historicidades públicas e chaves historiográficas”, por Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior, trata da temporalidade histórico a partir de um objeto histórico. Aborda o ataque iconoclasta ao monumento público dedicado ao bandeirante Borba Gato em 2021, descrevendo o acontecimento, repercussão e consequências em nível da história pública, através de narrativa sobre os agentes envolvidos. Esse evento nacional, congênere de surto iconoclasta em outros países, é tomado não só como uma reação que tematiza o racismo e o colonialismos presentes, como também é entendido como um “dispositivo temporalizador” que desestabiliza as relações entre passado, presente e futuro com as quais os historiadores soem lidar. Do ponto de vista dos estudos temporais corrente, temos aí um exercício bem conduzido que envolve a presença histórica, bem como das temporalidades múltiplas que se enovelam no ato de assaltar o passado, além de que o artigo tematiza regimes de historicidade a fim de evidenciar que a experiência histórica vigente também está em xeque nos ataques a monumentos. É dentro desse diapasão que as posições tomadas pelos historiadores que reagiram ao ou analisaram a agressão ao ícone da história nacional são vistas pelo autor. Assim, temos que o artigo articula, em correlação com importante reflexão temporal, um questionamento dos conceitos estabelecidos de memória e patrimônio que evidenciam uma política do tempo.

Os artigos reunidos nesse número especial são representativos dos estudos temporais na teoria da história atual, pois discutem o tempo natural, o tempo histórico, os regimes de historicidade e os regimes historiográficos, além de se dedicarem às três dimensões do tempo: presente, passado e futuro.

References

  • ANKERSMIT, Frank. Sublime Historical Experience Stanford: Stanford University Press, 2005.
  • ANKERSMIT, Frank R. ‘Presence’ and Myth. History and Theory, v. 45, n. 3, p. 328-336, 2006.
  • ANKERSMIT, Frank R. Koselleck On “Histories” Versus “History”; Or, Historical Ontology Versus Historical Epistemology. History and Theory, v. 60, n. 4, p. 36-58, 2021.
  • BENTLEY, Michael. Past and ‘Presence’: Revisiting Historical Ontology. History and Theory, v. 45, n. 3, p. 349-361, 2006.
  • BEVERNAGE, Berber. Time, Presence, and Historical Injustice. History and Theory, v. 47, p. 149-167, 2008.
  • BEVERNAGE, Berber et. al Philosophy of History After 1945: A Bibliometric Study. History and Theory, v. 58, n. 3, p. 406-436, 2019.
  • BRUGES, Joel; ELIAS, Amy J. Introduction: Time Studies Today. In: BRUGES, Joel; ELIAS, Amy J. (ed.). Time: A Vocabulary of the Present. New York: New York University Press, 2016. p. 1-32.
  • BRZECHCZYN, Krzysztof. Introduction. In: BRZECHCZYN, Krzysztof. (ed.). Towards a Revival of Analytical Philosophy of History Around Paul A. Roth’s Vision of Historical Sciences Leiden, Boston: Brill-Rodopi, 2018. p. 1-8.
  • CARDOSO JR., H. R. O “Atualismo” de Pereira & Araújo: Entre metafísica do tempo histórico e regime de historicidade. Revista de Teoria da História, Goiânia, v. 25, n. 2, p. 131-147, 2023.
  • DANTO, Arthur C. Narration and Knowledge New York: Columbia University Press, 1985.
  • DANTO, Arthur C. The Decline and Fall of the Analytical Philosophy of History. In: ANKERSMIT, F.; KELLNER, H. (ed.). New Philosophy of History London: Reaktion Books Ltd, 1995. p. 70-85.
  • DENG, Natalja. Time, metaphysics of. In: Routledge Encyclopedia of Philosophy London: Routledge, 2018.
  • DOMANSKA, Ewa. The Material Presence of the Past. History and Theory, v. 45, n. 3, p. 337-348, 2006.
  • ESCUDIER, Alexandre. Temporalization and Political Modernity. In: SEBASTIÁN, Javier Fernández (ed.). Political Concepts and Time: New Approaches to Conceptual History. Santander: Cantabria University Press, 2011. p. 131-163.
  • EWING, Alexander Blake. Conceptions of Reinhart Koselleck’s Theory of Historical Time in the Thinking of Michael Oakeshott, History of European Ideas, v. 42, n. 3, p. 412-429, 2016.
  • GORMAN, Jonathan, The Limits of Historiographical Choice in Temporal Distinctions. In: LORENZ, Chris; BEVERNAGE, Berber (ed.). Breaking up Time: Negotiating the Borders between Present, Past and Future. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2013. p. 155-175.
  • GUMBRECHT, Hans Ulrich, Our Broad Present: Time and Contemporary Culture. New York, Columbia University Press, 2014.
  • HARTOG, François. Regimes of Historicity: Presentism and Experiences of Time. Translated by Saskya Brown. New York: Columbia University Press, 2015.
  • HEIDEGGER, Martin. Sein Und Zeit Klostermann: Frankfurt am Main, 1977.
  • HELGESSON, Stefan. Radicalizing Temporal Difference: Anthropology, Postcolonial Theory, and Literary Time. History and Theory, Middletown, v. 53, n. 4, p. 545-562, 2014.
  • HELLERMA, Juhan. Mapping Time: Analysis of Contemporary Theories of Historical Temporality. 2020. (PhD Thesis) - University of Tartu Press, Tartu, 2020.
  • INCLÁN, Daniel; VALERO, Aurelia. Reporte del tiempo: presente e historia. Desacatos, Mexico, n. 55, p. 60-73, 2017.
  • JORDHEIM, Helge. Does Conceptual History Really Need a Theory of Historical Times?. Contributions to the History of Concepts, v. 6, n. 2, p. 21-41, 2011.
  • JORDHEIM, Helge. Against Periodization: Koselleck’s Theory of Multiple Temporalities. History and Theory, Middletown, v. 51, n. 2, p. 151-171, 2012.
  • JORDHEIM, Helge. Introduction: multiple times and the work of synchronization. History and Theory, Middletown, v. 53, n. 4, p. 498-518, 2014.
  • KLEINBERG, Ethan. Introduction: The New Metaphysics of Time. History and Theory, n. 1, p. 1-7, 2012.
  • KLEINBERG, Ethan. Prologue. In: GHOSH, Ranjan; KLEINBERG, Ethan (ed.). Presence: Philosophy, History, and Cultural Theory for the Twenty-First Century. Ithaca and London: Cornell University Press, 2013. p. 1-7.
  • KOSELLECK, Reinhart. The Practice of Conceptual History: Timing History, Spacing Concepts. Stanford: Stanford University Press, 2002.
  • KOSELLECK, Reinhart. Futures Past: On the Semantics of Historical Time. Tradução de Keith Tribe. New York: Columbia University Press, 2004.
  • KOSELLECK, Reinhart. Sediments of Time: On Possible Histories. Stanford, California: Stanford University Press, 2018.
  • KUUKKANEN, Jouni-Matti. A Conceptual Map for Twenty-First-Century Philosophy of History. In: KUUKKANEN, Jouni-Matti (ed.). Philosophy of History: Twenty-First-Century Perspectives. London/ New York: Bloomsbury Publishing Plc, 2021. p. 1-20.
  • LANDWEHR, Achim. Von der ‘Gleichzeitigkeit des Ungleichzeitigen. Historische Zeitschrift, Leipzig, v. 295, n. 1, p. 1-34, 2012.
  • LANDWEHR, Achim. Die anwesende Abwesenheit der Vergangenheit: Essay zur Geschichtstheorie. S. Fischer: Frankfurt, 2016.
  • LE GOFF, Jacques. Histoire et mémoire Paris: Gallimard, 1988.
  • LORENZ, Chris. The Times They Are a-Changin’ On Time, Space and Periodization in History. In: CARRETERO, Mario; BERGER, Stefan; GREVER, Maria (ed.). Palgrave Handbook of Research in Historical Culture and Education London: Palgrave Macmillan, 2017. p. 109-131.
  • MUDROVCIC, María Inés. Regímenes de historicidad y regímenes historiográficos: del pasado histórico al pasado presente. Historiografías, v. 5, p. 11-31, 2013.
  • MUDROVCIC, María Inés. Experimentar el Tiempo, Escribir la Historia. In: ARAVENA, Pablo (ed.). Representación histórica y nueva experiência del tempo Valparaíso: Editorial América en Movimiento, 2019. p. 23-35.
  • NICOLAZZI, Fernando. História entre Tempos: François Hartog e A Conjuntura Historiográfica Contemporânea. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 53, p. 229-257, 2010.
  • NIETZSCHE, Friedrich. ‘Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben’. Karl Schlechta (Herausgegeben). Friedrich Nietzsche Werke in drei Bänden, erster Band München: Carl Hanser, 1954. p. 209-287.
  • OLSEN, Niklas. History in the Plural: An Introduction to the Work of Reinhart Koselleck. New York: Berghahn Books, 2013.
  • PALTI, Elías. Koselleck-Foucault: The Birth and Death of Philosophy of History. In: ROLDÁN, Concha; BRAUER, Daniel; ROHBECK, Johannes (ed.). Philosophy of Globalization Berlin: De Gruyter, 2018. p. 409-422.
  • PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; ARAUJO, Valdei Lopes de. Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI. 2. ed. Vitória, Mariana: Editora Milfontes, Editora da SBTHH, 2019.
  • PETERS, Rik. Actes de Presence: Presence in Fascist Political Culture. History and Theory, Middletown, v. 45, n. 3, p. 362-374, 2006.
  • POMIAN, Krzysztof. L’Ordre du temps Paris: Gallimard, 1984.
  • RICŒUR, Paul. Memory, history, forgetting Translated by Kathleen Blamey and David Pellauer. Chicago: University of Chicago Press, 2004.
  • ROTH, Paul A. Ways of pastmaking. History of the Human Sciences 15, n. 4, p. 125-143, 2002.
  • ROTH, Paul A. The Pasts. History and Theory v. 51, n. 3, p. 313-339, 2012.
  • ROTH, Paul A. The philosophical structure of historical explanation. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 2020.
  • SIMON, Zoltán B. History in Times of Unprecedented Change: A Theory for the 21st Century. London: Bloomsbury, 2019a.
  • SIMON, Zoltán B. The Transformation of Historical Time: Processual and Evental Temporalities. In: TAMM, Marek; OLIVER, Laurent (ed.). Rethinking Historical Time: New Approaches to Presentism. London/New York: Bloomsbury Publishing, 2019b. p. 71-84.
  • SIMON, Zoltán B; TAMM, Marek. Historical Futures. History and Theory v. 60, n. 1, p. 3-23, 2021.
  • TURIN, Rodrigo. Tempos de transição: aceleração e dessincronização social. In: VÁSQUEZ, Georgiane Garabely Heil; DENIPOTI, Cláudio (ed.). Tempos de Transição Porto Alegre: Editora Fi, 2019. p. 19-37.
  • WHITEHEAD, Alfred N. Process and Reality New York: The Free Press, 1978 [1929].
  • ZAMMITO, John. Koselleck’s Philosophy of Historical Time(s) and the Practice of History. History and Theory, v. 43, p. 124-135, 2004.

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e Eduardo Romero de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2023
  • Aceito
    21 Out 2023
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Campus de Assis, 19 806-900 - Assis - São Paulo - Brasil, Tel: (55 18) 3302-5861, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP, Campus de Franca, 14409-160 - Franca - São Paulo - Brasil, Tel: (55 16) 3706-8700 - Assis/Franca - SP - Brazil
E-mail: revistahistoria@unesp.br