Resumo
Esta pesquisa tem por objetivo analisar a representação da cidade de Rio Preto no Album Illustrado da Comarca de Rio Preto (1927-1929), obra organizada pelo jornalista Abílio Abrunhosa Cavalheiro no contexto de ocupação frenética do espaço e fundação de cidades vivenciado pelo interior paulista no início do século passado. Publicações comuns desde fins do XIX, os almanaques de cidades transformam-se, no século seguinte, em álbuns ilustrados, artigos de luxo que constituíam verdadeiras propagandas das florescentes cidades sertanejas. Tais obras buscavam ressaltar o estágio de desenvolvimento econômico e social das cidades, marcas do progresso e civilização, rompendo de forma radical com o passado, que deveria ser esquecido. Naquele contexto, destaca-se o álbum de Cavalheiro, que tinha a difícil missão de reverter a péssima imagem da cidade existente até então. Com uma hábil narrativa e utilizando as mais modernas técnicas de imagem e impressão do período, Cavalheiro organiza uma obra de peso, com mais de mil páginas e duas mil fotografias, através das quais busca, a partir de um estudo crítico, articular, num processo histórico único, um passado de barbárie e um presente civilizado, imaginando um futuro de glorias para a cidade, num horizonte de expectativas proporcionado pelo turbilhão de transformações vivenciados pelos habitantes de Rio Preto.
Palavras-chave:
almanaques; civilização; barbárie; passado; presente; futuro
Abstract
This research aims to analyze the representation of the city Rio Preto, Brasil, in the Album Illustrado da Comarca de Rio Preto (1927-1929), a work organized by the journalist Abílio Abrunhosa Cavalheiro in the context of the frenetic occupation of space and the founding of cities experienced by the western backwoods of São Paulo at the beginning of the last century. Common publications since the end of the 19th century, city almanacs became illustrated albums in the following century, luxury items that constituted true advertisements for the flourishing hinterland cities. Such works sought to highlight the stage of economic and social development of the cities, marks of progress and civilization, radically breaking with the past, which should be forgotten. In that context, Cavalheiro’s album stands out, which had the difficult mission of reversing the poor image of the city that existed until then. With a skillful narrative and using the most modern imaging and printing techniques of the period, Cavalheiro organizes a weighty work, with more than a thousand pages and two thousand photographs, where he seeks, from a critical study, to articulate, in a unique historical process, a barbaric past to a civilized present, imagining a future of glory for the city, in a horizon of expectations provided by the whirlwind of transformations experienced by the inhabitants of Rio Preto.
Keywords:
almanacs; civilization; barbarism; past; present; future
A passagem do século XIX ao XX foi de intensas transformações na paisagem do sertão paulista; o desenvolvimento da economia cafeeira, articulada à expansão dos meios de transporte e à chegada maciça de imigrantes, promove um rápido processo de ocupação e urbanização das áreas interioranas de São Paulo (CAMARGO, 1952CAMARGO, J. F. Crescimento da população no Estado de São Paulo e seus aspectos econômicos. 1952. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1952. 2 volumes.; MONBEIG, 1984MONBEIG, P. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec, Polis, 1984.). Aquele contexto fora marcado também pelo crescimento da população alfabetizada do Estado, e consequentemente do público leitor; mais plural e diversificado, exigiu uma adequação da imprensa aos interesses dos novos consumidores que surgiam na dinâmica sociedade paulista (JORGE, 2002JORGE, J. A imprensa paulistana: entre as demandas do povo e os interesses oligárquicos (1890-1920). Revista Histórica, São Paulo, n. 7, 2002., p. 11). Além dos jornais, publicados em número crescente e alcançando um público cada vez mais diversificado na capital e também nas cidades do interior, as tipografias fabricavam os mais variados artigos impressos, como calendários, cartões postais, “folhinhas” e almanaques (CRUZ, 2000CRUZ, H. F. São Paulo de papel e tinta: periodismo e vida urbana - 1890/1915. São Paulo: Educ/FAPESP, 2000., p. 56).
Adaptados para o mercado brasileiro, os almanaques adquiriram os mais diversos formatos (MEYER, 2001MEYER, M. (org). Do Almanak aos Almanaques. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.), alcançando diferentes setores sociais, inclusive as camadas populares (PARK, 1999PARK, M. B. Histórias e leituras de almanaques no Brasil. São Paulo: Mercado das Letras, 1999.). Interessa-nos, em especial, os almanaques de cidades, obras que surgiram primeiro nas capitais, alcançando posteriormente os municípios do interior; em São Paulo, tais publicações foram comuns desde fins do século XIX, apresentando mudanças substanciais nas primeiras décadas do século seguinte, quando transformam-se em álbuns ilustrados.
Incorporando as novidades advindas do processo de modernização da indústria gráfica nacional no início do século XX (SODRÉ, 1983SODRÉ, N. W. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1983.), bem como a generalização da fotografia nas regiões do interior do Estado (KOSSOY, 2002KOSSOY, B. Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910). São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002.), os álbuns ilustrados transformaram-se em artigos de luxo; impressos em papel de qualidade, com tamanho superior aos seus congêneres do passado, tais obras eram carregadas de clichês daquilo que os organizadores entendiam ser a representação daquelas cidades.
Adquirindo o perfil de propaganda oficial das municipalidades, davam destaque aos prédios, instituições, empresas de serviços públicos, listas de estabelecimentos comerciais e fazendas, em sua maioria produtoras de café; deste modo, buscavam imprimir a perspectiva de cidades desenvolvidas, que seriam marcadas pelo signo do progresso que caracterizava todo o interior paulista. Deixando para traz as primitivas feições de vilas sertanejas, teriam se transformado em verdadeiras metrópoles, exemplos de civilização, nos moldes pretendidos por aqueles que tinham interesse na atração de trabalhadores e de investidores para seus negócios.
Aquele contexto marcara a publicação do Album Illustrado da Comarca de Rio Preto (1927-1929), obra monumental organizada pelo jornalista Abílio Abrunhosa Cavalheiro. Elaborado em um ambiente impregnado pelo ritmo frenético de ocupação do solo e criação de cidades, o álbum tinha a difícil missão de reverter uma representação bastante negativa sobre a cidade, fruto do passado de banditismo, grilagens e conflitos por terras que caracterizaram a região nos primeiros anos de ocupação, e que ainda resistia na memória de todos.
Fazendo uso das mais modernas técnicas de imagem e impressão, Cavalheiro teve como estratégia imprimir uma perspectiva de processo histórico de desenvolvimento da cidade. Articulando o passado de barbárie, que deveria ser esquecido, a um tempo presente de realizações e conquistas civilizatórias, de que seu álbum era prova cabal, imprimiu Cavalheiro também a representação de um futuro glorioso, imaginado dentro do horizonte de expectativas (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuições à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006., p. 310), possível a partir das transformações vivenciadas pelos habitantes do sertão naquele período.
A obra traz as marcas do contexto de rápida ocupação do solo e desenvolvimento da economia da região verificados na década de 1920, reflexo da expansão das linhas férreas, da economia cafeeira, e também do agressivo processo de derrubada das matas e venda de terras nas regiões a oeste da comarca, em direção ao rio Paraná. A dimensão daquele conjunto de transformações impressionava a todos que visitavam o sertão paulista naquele período, especialmente os estrangeiros, como Pierre Monbeig, que em suas viagens à fronteira percebia naquele processo uma intensidade poucas vezes vista:
Tudo se passa como se este país conheceste em setenta e cinco anos, um século no máximo, o que se levou milênios para fazer na Europa. E certamente é isso: nascimento e formação da paisagem rural, fundação e crescimento das cidades, construção duma rede de comunicações, mistura de raças, elaboração de uma mentalidade regional, tal o imenso trabalho que ainda prosseguia, aos nossos olhos (MONBEIG, 1984MONBEIG, P. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec, Polis, 1984., p. 23).
Aquele turbilhão de mudanças, refletidas na obra de Cavalheiro, alterava a experiência sobre o passado, intensificando a percepção da modernidade como um tempo novo, quando “as expectativas passam a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas anteriormente” (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuições à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006., p. 314). Deste modo, impregnada do otimismo que marcava o contexto de fins da década de 1920, a obra de Cavalheiro encarnava as aspirações daqueles habitantes do sertão, que apresentavam uma consciência bastante específica quanto ao processo histórico em que estavam inseridos.
DOS ALMANAQUES AOS ALBUNS ILLUSTRADOS: A COMEMORAÇÃO DA CIDADE
Acompanhando o ritmo de desenvolvimento urbano da capital paulista e das cidades do interior em fins do século XIX, observa-se o movimento de crescimento e circulação dos materiais impressos em São Paulo. A partir da generalização e da modernização das tipografias, uma grande diversidade de publicações, das mais variadas modalidades, passa a marcar o ambiente dos citadinos; além dos jornais, que se multiplicavam, alcançando setores cada vez mais diversos da sociedade, eram elaboradas nas tipografias uma gama variada de artigos, tais como cartões postais, calendários, “folhinhas” e, em especial, os almanaques (CRUZ, 2000CRUZ, H. F. São Paulo de papel e tinta: periodismo e vida urbana - 1890/1915. São Paulo: Educ/FAPESP, 2000., p. 56).
Naquele contexto, os almanaques representaram um segmento especial da indústria gráfica nascente; para Sodré, tais obras foram a primeira manifestação do esforço para ampliar a ainda incipiente cultura impressa no país, ainda na primeira metade do século XIX. Surgindo na Corte e em todas as províncias, constituíam os livros de uso e consulta generalizados, numa sociedade marcada pela oralidade (SODRÉ, 1983SODRÉ, N. W. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1983., p. 241).
Importantes para as editoras, os almanaques passaram a representar um segmento especial para seus negócios; elaborados com materiais de qualidade inferior, em nível rudimentar, eram a alternativa comercial possível diante das precárias técnicas de impressão à disposição no país (SODRÉ, 1983SODRÉ, N. W. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1983., p. 242). Nesse sentido, a única opção para a aquisição de livros era a importação, condição que transformara aqueles materiais em produtos de luxo; a expansão da cultura letrada no país dar-se-ia então pela generalização da imprensa, e pelo verdadeiro boom de almanaques surgidos no período. (CRUZ, 2000CRUZ, H. F. São Paulo de papel e tinta: periodismo e vida urbana - 1890/1915. São Paulo: Educ/FAPESP, 2000., p. 54)
Em formato de anuário, tais almanaques eram ligados às atividades mercantis, trazendo informações variadas sobre negócios, tais como cambio, transportes, impostos, repartições públicas e índice de profissões. O mais conhecido, que servia de modelo para seus congêneres, era o Almanack Laemert, que, surgido em meados do século XIX, foi publicado anualmente até a década de 1930.
Em fins do século XIX, em sintonia com o crescimento dos centros urbanos, a incorporação de tecnologia gráfica e o crescimento do público leitor, os almanaques renovam sua linguagem e seu estilo, incorporando temas diversificados, conteúdos lúdicos e de entretenimento. Assumindo paulatinamente uma feição mais generalizada e amena, os almanaques caem no gosto popular.
Durante as três últimas décadas do século XIX, saíram das tipografias inúmeros almanaques culturais e literários. No período, as casas livreiras, jornais da grande imprensa e alguns importantes estabelecimentos do comércio paulistano buscaram, com maior ou menor sucesso, organizar seus almanaques anuais [...] nas listas de publicações das casas livreiras, eram cada vez mais frequentes os almanaques literários paulistas, cariocas, portugueses ou franceses (CRUZ, 2000CRUZ, H. F. São Paulo de papel e tinta: periodismo e vida urbana - 1890/1915. São Paulo: Educ/FAPESP, 2000., p. 58).
Naquele processo, os almanaques, que antes tomavam como modelo seus congêneres importados da Europa, ganham um perfil adaptado às necessidades da sociedade brasileira, que passou a encontrá-los em modelos cada vez mais diversos, relativos de início às capitais, “e logo mais de esta ou aquela cidade, como Rio, São Paulo ou Campinas” (MEYER, 2001MEYER, M. (org). Do Almanak aos Almanaques. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001., p. 18).
Os almanaques de cidade constituíram-se em segmento especial em meio ao variado rol de modelos publicados no período, especialmente entre fins do século XIX e início do XX (Figuras 1 e 2). Transformados em verdadeiros guias da cidade, os materiais incorporaram de forma crescente informações sobre suas instituições, seus hábitos e espaços de cultura e entretenimento, trazendo como novidade indicadores comerciais e de profissões (CRUZ, 2000CRUZ, H. F. São Paulo de papel e tinta: periodismo e vida urbana - 1890/1915. São Paulo: Educ/FAPESP, 2000., p. 58).
Os almanaques de cidades de fins do século XIX eram publicações simples, geralmente impressos na própria localidade, com tamanhos que raramente ultrapassavam 16cm de largura e 22,5 de altura (MEYER, 2001MEYER, M. (org). Do Almanak aos Almanaques. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001., p. 29-99). Os conteúdos mesclavam calendário, cultura popular e literatura, com informações úteis sobre as cidades, tais como ordenamento político e jurídico, organizações sociais, listas e propagandas de profissionais urbanos, estabelecimentos comerciais e produtores rurais.
Sebastião Penna da Camara anunciava, na capa do seu Almanach de São José dos Campos para 1905 (Figura 3), que sua publicação continha “importantes informações uteis, de todo o município, annuncios das principaes casas da cidade, do Rio de Janeiro, São Paulo, Jacarehy, Caçapava, Taubaté, Mogy das Cruzes, etc” (CAMARA, 1905CAMARA, S. P. Almanach de São José dos Campos para 1905. Jacarehy: Typographia da “Casa Minerva”, 1905.). Tinham a pretensão de se caracterizar como anuários, característica que acompanharia tais materiais até a segunda década do século XX.
Acompanhando o desenvolvimento urbano das cidades do interior paulista, os almanaques surgem em regiões cada vez mais distantes da capital, em sintonia com a expansão das ferrovias, e a presença das cada vez mais comuns tipografias. Cidades importantes como Rio Claro, São Carlos, Araraquara, Ribeirão Preto e São José do Rio Preto, e também outras de menor expressão, são representadas em almanaques que se tornam publicações conhecidas no sertão paulista.
O Almanach de São Carlos de 1894 fornece o modelo que, com pequenas alterações, marcou o perfil daquelas publicações no interior paulista. Empreendimento organizado por Joaquim Augusto, proprietário de uma tipografia local, o almanaque trazia uma miscelânia de conteúdos, que abarcavam o histórico do Município, informações sobre a administração política local, o funcionamento do judiciário, organizações sociais, empresas de serviço público, meios de transporte com ramais ferroviários e horários, informações sobre instrução pública, saúde, jurados eleitos para o ano, além das tradicionais listas de lavradores e “commercio, indústria, artes e officios” (AUGUSTO, 1894AUGUSTO, J. Almanach de 1894. São Carlos: Typografia de O Popular, 1894., p. 95-114). Tudo entremeado de poemas, contos e propagandas.
A mesma disposição encontramos no Almanach do Rio Claro - 1906, organizado por Conrado Krettlis (Figura 4), também proprietário de uma tipografia na cidade. Iniciando com fotografias de líderes políticos, seguido de um capítulo dedicado à história local, oferece, posteriormente, informações sobre a administração municipal, os serviços públicos (energia elétrica), correio, organizações sociais, lista de profissões e de fazendeiros. Junto às informações, o almanaque trazia uma grande quantidade de textos, poemas, charadas e exercícios de lógica, que ocupavam quase a metade de suas páginas (KRETTLIS, 1906KRETTLIS, C. Album do Rio Claro de 1906. Rio Claro: Typ. Conrado, 1906.).
No entanto, a partir da segunda década do século passado, os almanaques de cidades ganharam novo perfil. Acompanhando o movimento de modernização da indústria gráfica na capital, que também alcançava as grandes cidades do interior, aqueles materiais, de formato pequeno e impressão comum, transformam-se completamente, tendo aumentado seu tamanho, melhorada a qualidade de suas impressões e apresentando mudanças na formatação dos capítulos.
Além disso, a inserção de modernas técnicas que permitiam imagens coloridas, além das fotografias, promoveram uma revolução naquele material, que se transforma em artigo de luxo. Como explica Cruz (2000CRUZ, H. F. São Paulo de papel e tinta: periodismo e vida urbana - 1890/1915. São Paulo: Educ/FAPESP, 2000.), naquele contexto, o almanaque aparece como um espaço pioneiro de experimentação na indústria tipográfica, funcionando como campo de aprendizado para tipógrafos e editores paulistas.
Publicações hibridas, nem livro, nem jornal, nem revista, os almanaques desenvolvem-se como espaço de renovação desta cultura. Em suas páginas foram testados novos conteúdos e formas de contar [...] experimentando tipos, colunas, vinhetas, combinações de textos e ilustrações, números crescentes de anúncios e reclames comerciais, os almanaques também funcionaram como um campo de aprendizado para tipógrafos e editores paulistas (CRUZ, 2000CRUZ, H. F. São Paulo de papel e tinta: periodismo e vida urbana - 1890/1915. São Paulo: Educ/FAPESP, 2000., p. 58).
O caso de São Carlos é exemplar e permite compreender o processo de transformação dos almanaques em álbuns ilustrados no período. Na cidade foram elaboradas cinco obras do gênero; além do exemplar de 1894 de Joaquim Augusto, foram publicados o Almanáque de São Carlos - 1905 (Figura 5), organizado pelo seu filho e impresso na tipografia da família, o Almanach de São Carlos para 1915 (Figura 6), organizado por Sebastião Camargo, o Almanach-Album de São Carlos 1916-1917, de Franklin Castro, o Almanak de São Carlos - 1927, organizado por Antônio Dias Mello, e o Almanack-Annuario de São Carlos - 1928, de José Ferraz Camargo (FONSECA, 2019FONSECA, A. L. Almanaques de São Carlos (SP), um caleidoscópio de imagens da cidade (1894-1928). 2019. 235 f. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.).
Os dois primeiros seguem o modelo já consagrado pelos almanaques do início do século XX, com conteúdos históricos e oficiais da cidade, informações sobre os setores sociais, negócios e profissões, entremeados com contribuições literárias e lúdicas. No entanto, a partir do exemplar de 1915, podemos observar importantes alterações em sua composição.
Ainda com formato pequeno, (21cm de altura e 13 cm de largura), apresenta as informações tradicionais do modelo que se generalizou na cidade, articulados com contribuições literárias diversas. No entanto, a quantidade e a qualidade das fotografias inseridas no almanaque são seu maior destaque. Contando com uma série de fotografias dos líderes políticos locais, a obra também apresenta, dispostas aparentemente sem lógica em meio aos artigos, um número considerável de fotografias que registravam aspectos da cidade.
Acompanhando a modernização gráfica, que consequentemente aumentava substancialmente os custos de produção, outro aspecto diferenciava o Almanach de 1915 de seus congêneres anteriores, característica que pode ser verificada em diversos materiais do tipo produzidos no interior do Estado no período: a sua relação com os poderes públicos.
Valeram-nos, entretanto, nessa empresa de responsabilidade, o valioso estimulo da exma. Câmara municipal, bem como o encorajamento de todos os sancarlenses.
As paginas que o leitor vae folhear e que são, á medida do possível, o reflexo do nosso progresso (CAMARGO, 1915CAMARGO, S. Almanach de São Carlos - 1915. São Carlos: Typographia "Joaquim Augusto", 1915., p. 1).
Sendo iniciativas eminentemente privadas, organizados por elementos presentes na indústria tipográfica e constituindo um tradicional segmento dos empreendimentos gráficos, os almanaques passam a ser financiados pelas elites políticas, da capital e do interior. Prefeituras, câmaras de vereadores e também os governos federal e estadual, apoiavam a realização das obras com claro cunho de propaganda política.
Tais características podem ser observadas também em outros álbuns ilustrados de cidades daquele período, tais como o Almanach Illustrado de Ribeirão Preto - 1913 (Figura 7), o Album de Araraquara de 1915 (Figura 8), o Almanach-Album de São Carlos (1916-1917) (Figura 9), o Album de Rio Preto - 1918-1919 (Figura 10) e o Album Illustrado da Comarca de Rio Preto (1927-1929). Deste modo, surgira no interior paulista um novo modelo de almanaque, e que desempenhava também uma função diferente da de seus anteriores; apoiados pelo poder público e incorporando as modernas técnicas de impressão e imagens, possíveis especialmente a partir da generalização da fotografia pelo interior paulista (KOSSOY, 2002KOSSOY, B. Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910). São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002.), passaram a ser ilustrados, transformando-se em edições de luxo.
Mantendo em parte o padrão estabelecido pelos almanaques surgidos anteriormente, os Albuns Illustrados traziam como novidade a quantidade elevada de clichês, que ofereciam ao leitor imagens das principais edificações da cidade, especialmente aquelas que representassem o desenvolvimento da sociedade, tais como os prédios da administração pública, escolas, hospitais, serviços públicos e meios de transporte (Figuras 11 e 12).
Ao darem relevo aos novos traçados das ruas e avenidas recém surgidas, aos jardins públicos e aos novos contornos do espaço urbano, os almanaques buscavam imprimir uma imagem de cidade adequada àquele novo contexto de desenvolvimento e progresso, civilizada, ao passo em que buscavam também definir o que deveria ser descartado (Figuras 13 e 14).
Tendo o urbano como cenário privilegiado de sua narrativa, os almanaques destacavam pouca coisa além dos limites da cidade. A realidade do campo surgia apenas a partir daquilo que estava integrado ao “processo civilizatório” em curso, ou seja, pelos clichês das fazendas produtoras de café, gado e outros gêneros agrícolas, que constituíam parte importante da riqueza das urbes interioranas e também segmento fundamental na propaganda almejada pelas elites locais, que, além de investimentos urbanos, buscava também atrair trabalhadores e lucrativos negócios para as suas propriedades (Figuras 15 e 16).
Servindo de “documentos refundadores” das novas “metrópoles” interioranas, tais obras buscavam ressaltar o estágio de desenvolvimento econômico e social das cidades, marcas do progresso e civilização, instância última para a qual caminhavam as urbes sertanejas. Transformando-se em monumentos de comemoração da cidade, os almanaques imprimem uma nova percepção do tempo; sua intenção era demarcar a diferença entre passado e presente, projetando para o futuro o sentimento dos habitantes do sertão.
UM COLOSSO DO SERTÃO: A ORGANIZAÇÃO DO ALBUM ILLUSTRADO DA COMARCA DE RIO PRETO 1927-1929
Realmente, Rio Preto precisa ser conhecido melhor, precisa ser conhecido tal qual elle se apresenta na grandesa do seu commercio, na grande produção do seu solo, e, na belleza de sua cidade cujas ruas alinhadas impacavelmente se ostentam na construção artística dos seus prédios.
E Rio Preto precisa ser também conhecido pela cultura e pelo instincto ordeiro e pacato de povo.
Rio Preto de hoje, não deve mais atemorizar aos forasteiros, que julgavam-no um antro de assassinos e de grilleiros.
E é assim que vão crescendo por fora umma ma fama para Rio Preto.
É preciso pois que se faça a propaganda criteriosa de Rio Preto para que a nossa terra seja conhecida como realmente ella se apresenta pelo seu progresso, pela sua civilização e pela cultura de seu povo (A NOTICIA, n. 998, p. 1, 08 fev. 1929A NOTICIA. [S. l.], n. 998, p. 1, 08 fev. 1929.).
O artigo do jornal rio-pretense A Noticia de 1929 é elucidativo quanto à necessidade de uma propaganda oficial da cidade, sentida especialmente por aqueles com interesses em negócios locais; o motivo seria a representação negativa em torno de Rio Preto, oriunda das contradições e conflitos existentes nos primórdios de sua formação. Surgida em meados do XIX no extremo oeste dos “Sertões de Araraquara”, a pequena vila de Rio Preto permaneceu durante muito tempo como um ponto remoto de habitação em meio ao sertão paulista.
Emancipada politicamente em 1894, a cidade funcionava como “boca do sertão” da região compreendida por seu gigantesco município que, limitando-se a leste com os territórios de Jaboticabal e Barretos, estendia-se para oeste entre os rios Grande e Tietê, até as barrancas do rio Paraná, na divisa com o então Estado de Mato Grosso (SILVA, 2009SILVA, H. M. M. Conflitos na elite: a transformação dos grupos de poder em São José do Rio Preto (1894-1930). 2009. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual Paulista, Franca, 2009.). Isolada no sertão, a cidade enfrentava a ausência do poder público, fazendo com que a região fosse local de estada de bandidos fugitivos, com crimes que alcançavam a imprensa da capital.
Além disso, eram famosos os casos de grilagem de terras na região, motivo de diversos conflitos entre proprietários e negociantes de terras (MONBEIG, 1984MONBEIG, P. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec, Polis, 1984., p. 145), que somados aos embates com a população indígena, especialmente nas regiões próximas à margem esquerda do rio Tietê (GHIRARDELLO, 2002GHIRARDELLO, N. À beira da linha: formações urbanas da Noroeste paulista. São Paulo: Ed. Unesp, 2002., p. 41-43), completavam o cenário de horror que conformava a imagem negativa tida por Rio Preto naquele período.
A partir da década de 1910, com a inauguração do transporte ferroviário e a incorporação de seu território ao complexo exportador cafeeiro, a cidade vivenciou um período de grandes transformações. Ao passo que se tornava a capital da maior zona produtora de café do Estado na década de 1930, a Araraquarense, Rio Preto atraia para si um considerável número de trabalhadores, constituindo-se em um dos grandes polos de concentração de imigrante de São Paulo (CAMARGO, 1952CAMARGO, J. F. Crescimento da população no Estado de São Paulo e seus aspectos econômicos. 1952. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1952. 2 volumes.). Naquele contexto de vertiginoso crescimento urbano, eram vários os interesses na atração de capitais e trabalhadores para a cidade, e a imagem negativa adquirida no passado atrapalhava os negócios; Rio Preto se transformara, e era necessário propagar a todos o perfil moderno e civilizado adquirido pela nova “metrópole sertaneja”.
Os movimentos para a elaboração de um Álbum da cidade naquele contexto datam ainda de 1926, a partir da proposta de Frederico Corinaldesi, agente consular da Itália no município, e que havia organizado, no ano anterior, o álbum “Eli Italiani dell´Araraquarenze” (O MUNICIPIO, n. 679, p. 1, 29 jan. 1926O MUNICIPIO. [S. l.], n. 679, p. 1, 29 jan. 1926.); amplamente anunciado pela imprensa local, o empreendimento contava com o apoio da prefeitura e a participação já anunciada de grandes estabelecimentos comerciais e fazendeiros da comarca.
Rio Preto, o nosso prospero Municipio, que debaixo do impulso de seus actuaes governadores está sendo transformado no mais acreditado município do Estado, não é conhecido, ou pelo menos não tem o credito que merece.
Para torna-lo conhecido, a Camara Municipal autorizou com decreto privilegiado a publicação de um ALBUM illustrando a lavoura, o commercio, as industrias em geral, o movimento estatístico de todos os municípios, etc.
Sabemos que esse útil trabalho a ser elaborado já teve o apoio de diversos bancos desta cidade, assim como muitos fazendeiros e negociantes (O MUNICIPIO, n. 694, p. 4, 18 fev. 1926O MUNICIPIO. [S. l.], n. 694, p. 4, 18 fev. 1926.).
Com a mudança de residência de Corinaldesi, a empreitada parecia ter desaparecido, até que em meados do ano seguinte os jornais locais noticiam a organização do Album Artistico e Historico da Comarca de Rio Preto; o empreendimento era agora organizado por Abilio Abrunhosa Cavalheiro, imigrante português que atuava como jornalista na capital e interior do Estado.
Brevemente
Album Artistico e Historico da Comarca de Rio Preto
Por ABILIO CAVALHEIRO
Uma obra monumental que enfeixa em 600 paginas illustradas, todo o resumo histórico da Comarca de Rio Preto e seus respectivos municipios.
O seu valor define-se desde já, pelo conjunto artistico que harmoniza todos os aspectos da vida politica - social - collectiva, desde o periodo embrionario até a efervescente evolução dos nossos dias.
O Album Artistico e Historico é uma perfeita alegoria consagrada ao povo e aos seus homens mais notaveis.
Nella encontrareis; arte, literatura, critica, humorismo e tudo o que vos possa interessar em Politica, sociedade, commercio, indústria, intellectualidade, typos, costumes e curiosidades. (O MUNICIPIO, n. 1146, p. 1, 07 jul. 1927O MUNICIPIO. [S. l.], n. 1146, p. 1, 07 jul. 1927.).
Cavalheiro chega à região no início da década de 1920, fundando um jornal na cidade vizinha de Catanduva e contribuindo também com a imprensa rio-pretense (O MUNICIPIO, n. 1011, p. 1, 20 mar. 1927O MUNICIPIO. [S. l.], n. 1011, p. 1, 20 mar. 1927.). Como parceiros dessa grandiosa empreitada, Cavalheiro contara com a participação de Paulo Laurito, comerciante local que atuava no mercado gráfico e que financiaria a impressão da obra, além da colaboração dos irmãos Demonte, conhecidos fotógrafos da cidade que também se aventuravam como cinematógrafos, realizando diversos trabalhos em cidades de toda a região (O MUNICIPIO, n. 851, p. 1, 01 set. 1926O MUNICIPIO. [S. l.], n. 851, p. 1, 01 set. 1926.).
Em agosto, em nova rodada de propagandas nos jornais locais, Cavalheiro descreve mais detalhadamente os aspectos do futuro Álbum Artístico e Histórico, que já se planejava grandioso: 600 páginas ornamentadas com mais de 200 gravuras. O envolvimento da sociedade local garantiria o sucesso do empreendimento literário e as propagandas do álbum, que incluíam um concurso de fotografia para a escolha da “moça mais bela da Comarca”, conclamavam os cidadãos, proprietários de estabelecimentos e fazendeiros a participar, uma vez que a obra seria a “idea exacta do nosso desenvolvimento econômico-social collectivo” (A NOTICIA, n. 608, p. 3, 19 ago. 1927A NOTICIA. [S. l.], n. 608, p. 3, 19 ago. 1927.).
Os trabalhos para o álbum tomaram proporções muito maiores do que planejado e a inclusão detalhada dos diversos municípios da gigantesca comarca demandou mais tempo e mais custos dos organizadores. A demora na entrega do material despertou ao certo diversos comentários na cidade, e no início de 1928 diversas matérias são publicadas nos jornais locais, dando espaço aos organizadores para explicarem as dificuldades inesperadas do processo de confecção da obra, que já tinha o dobro do tamanho previsto inicialmente (A NOTICIA, n. 754, p. 1, 15 mar. 1928A NOTICIA. [S. l.], n. 754, p. 1, 15 mar. 1928.).
Mas o resultado do grandioso esforço não tardaria em aparecer, e foi com grande pompa que os jornais locais anunciavam o contrato dos organizadores com a gráfica da capital responsável pela luxuosa impressão; ao custo de 120:000$000, a Casa Duprat & Cia se comprometia a entregar, até fevereiro de 1929, mil exemplares da obra, confeccionada em “[...] formato de 23 centimetros de largura, por 32 de altura, com mil páginas de papel glacé, com o peso máximo de 36 kilos, com a composição de typos 10 e 12 e de outros, sendo a impressão em cores variadas por fascículo” (O MUNICIPIO, nº 1439, p. 1, 30 set. 1928O MUNICIPIO. [S. l.], n. 1439, p. 1, 30 set. 1928.).
O lançamento deu-se efetivamente em outubro do ano seguinte, ganhando textos de destaque nos jornais locais e também da capital. Além do tamanho gigantesco, a obra chamava a atenção pelo número de gravuras, mais de duas mil, e pela novidade das trichromias (CORREIO PAULISTANO, n. 23.678, p. 12, 08 out. 1929CORREIO PAULISTANO. São Paulo, n. 23.678, p. 12, 08 out. 1929.).
O “Album da Comarca de Rio Preto”, referente aos annos de 1927 a 1929, que acaba de ser publicado, é duplamente notável. Uma verdadeira obra de cultura e arte. Seu mérito é tanto maior quanto se sabe ser diffícil retratar uma cidade, com todas as suas grandes e pequenas parcellas de vida. Pintar, com a expressão, a physionomia, de povoado ou de capital, é creação artística, do dom de descrever.
Não é tarefa para qualquer, porque nisso vai boa dose de critério, de psychologia.
Através dessa obra, retrato de Rio Preto, Vê-se a cidade opulenta. Cada página, á medida que se vai passando ás outras, mostra um detalhe de aspecto. Quando se chega ao fim do “Album” é como se tivesse percorrido, parte por parte, todo aquelle pittoresco e promissor recanto paulista. Penetra-se na intimidade de sua vida, conhecendo-se as suas ruas praças e jardins; construcções e monumentos, tudo, tudo emfim... até a sua sociedade, com dirigentes e bemfeitores. E. C. (CORREIO PAULISTANO, n. 23.700, p. 2, 02 nov. 1929CORREIO PAULISTANO. São Paulo, n. 23.700, p. 2, 02 nov. 1929.).
Com exatas 1.153 páginas, o Álbum é dividido em 23 capítulos, dos quais os primeiros 14 são dedicados a Rio Preto, sendo os outros relativos aos distritos e os municípios que compunham a grande comarca. Nele, Cavalheiro incluiu tudo o que imaginava ser importante para demonstrar o desenvolvimento da cidade, e se seguiu em grande medida o padrão já estabelecido dos almanaques de cidades, dotou seu álbum de características únicas.
Aproveitando-se do contexto político de 1929, em que as forças do PRP se concentravam no lançamento de Júlio Prestes como candidato à presidência da República, Cavalheiro se aproximou dos políticos paulistas e conseguiu o apoio do partido para sua empreitada. Desse modo, e provavelmente com substanciais quantias de “patrocínio”, dedicou um capítulo inteiro, na parte inicial da obra, para imagens e informações sobre a capital do Estado, além de um grande número fotografias de políticos, que disputariam as eleições que se aproximavam (CAVALHEIRO, 1929CAVALHEIRO, A. A. Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto de 1927-1929. São Paulo: Casa Editora Duprat-Mayença, 1929., p. 19-50).
Assim, o álbum (Figura 17) deixava de ser uma simples propaganda local, que já se mostrava grandiosa pela enorme extensão da comarca, para ganhar a dimensão de “Propaganda regional do Estado de São Paulo” e da zona Araraquarense, como apresentado em sua contracapa (CAVALHEIRO, 1929CAVALHEIRO, A. A. Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto de 1927-1929. São Paulo: Casa Editora Duprat-Mayença, 1929., p. 3).
A disposição dos demais capítulos seguia a ordem já consagrada dos almanaques de cidades (Figura 18). Iniciando com uma parte dedicada à história local, passava a oferecer ao leitor os principais aspectos de sua organização política, social e econômica. No entanto, contando com a colaboração de importantes personalidades e estudiosos, Cavalheiro dotou seu álbum de análises científicas sobre diversos temas, como um “Relatório Geográfico da Comarca”, elaborado pelo engenheiro Eduardo Campoó (Cap. IV), e uma seção dedicada à “Parte Economica de Rio Preto” (Cap. VII).
A sociedade local era retratada também de maneira inovadora (Figura 19). Para além das biografias, acompanhadas de imagens, das personalidades locais, localizadas no capítulo VI “Vida Social de Rio Preto”, Cavalheiro insere seções específicas dedicadas às mais diversas associações da cidade (“Rio Preto Associativo”, Cap. XI), e à população imigrante, com textos e biografias de personalidades das colônias sírio-libanesa, espanhola, portuguesa e italiana (“Galeria das Raças”, Cap. XII).
Os tradicionais capítulos dedicados ao comércio, profissões e produtores rurais, ao invés simples listas (Figuras 20 e 21), são acompanhados de bem elaboradas fotografias, além de estudos e estatísticas, com destaque aos negócios urbanos, na “Parte Commercial e Industrial de Rio Preto” (Cap. XIII), e à lavoura cafeeira, no capítulo “Vida Agricola e Pastoril da Commarca de Rio Preto” (Cap. XIV).
O conjunto de informações trazidas pelo álbum buscava representar a pujança de uma cidade que incorporava a cada dia os padrões tecnológicos, produtivos e de sociabilidade dos países desenvolvidos. Ressaltar a cidade moderna significava indicar o futuro brilhante daquela região do interior paulista e propagar uma nova imagem de sociedade, moderna e civilizada, pois como escrevia um apreciador da obra, os “factos materiais podem symbolizar cousas Moraes” (CAVALHEIRO, 1929CAVALHEIRO, A. A. Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto de 1927-1929. São Paulo: Casa Editora Duprat-Mayença, 1929., p. 10-11).
DEMARCAR O PASSADO, O PRESENTE E O FUTURO: O FLUXO DO TEMPO ENTRE BÁRBÁRIE E CIVILIZAÇÃO
Não era simples a empreitada de Cavalheiro em sua missão de reverter a representação negativa acerca de Rio Preto; e da primeira à última página, organizou, sintetizou e ressaltou de forma pertinente os aspectos que representavam o momento de desenvolvimento por que passava a cidade em fins da década de 1920. A estratégia, distante daquela escolhida por seus congêneres das cidades interioranas, foi evidenciar o passado, mesmo com suas características de barbárie, buscando então ressaltar o presente de progresso e civilidade alcançado por Rio Preto e o horizonte de expectativas sobre seu grande futuro.
Deste modo, inseriu, na parte inicial de seu álbum, um capítulo específico no qual versa sobre a “ignorancia que por ahi afora campeia acerca desta grande e opulenta zona do Estado de São Paulo, gerando lendas malsinantes e contos malsoantes”. Em “Rio Preto atraves da lenda”, Cavalheiro dedica exatas 21 páginas a um “estudo crítico”, no qual procura imprimir uma perspectiva científica, evidenciando a falta de razão daqueles que, baseados em informações equivocadas ou em mentiras propositalmente plantadas, “imaginam que Rio Preto é um sertão no sentido pejorativo do vocabulo, balisando a cultura de seus habitantes pela medida adequada ás cousas de antanho” (CAVALHEIRO, 1929CAVALHEIRO, A. A. Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto de 1927-1929. São Paulo: Casa Editora Duprat-Mayença, 1929., p. 12).
Rio Preto atraves da lenda
(Estudo Critico)
Visões sombrias e Contos da Carochinha.
Apreciações sobre a fantasia burlesca de um barbarismo
imaginário, criado pela alma doentia daquelles que veem
em Rio Preto uma senzala de selvagens.
Qualquer que seja o sentido ou o motivo com que se invoque a historia de Rio Preto, vê-se logo um exercito de sombras a desfilar sinistramente através de um rio de sangue e um montão de ruinas (CAVALHEIRO, 1929CAVALHEIRO, A. A. Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto de 1927-1929. São Paulo: Casa Editora Duprat-Mayença, 1929., p. 68).
Cavalheiro denuncia uma representação equivocada da cidade, baseada em perspectivas de um passado remoto, ou ainda em “fantasias burlescas”, fruto da ignorância que boa parte das pessoas mantinha sobre o sertão paulista, e em especial sobre as terras rio-pretenses. Com narrativas que envolviam onças pintadas prontas a comer os incautos visitantes, indígenas violentos e bandidos promovendo um mar de sangue, Cavalheiro representa a ideia geral sobre a cidade, buscando chamar à razão aqueles que se fiavam em tais perspectivas.
Complementando sua narrativa, Cavalheiro fez uso de interessantes ilustrações coloridas, que buscavam representar em imagens seu discurso sobre o que considerava serem as três diferentes “fases” de desenvolvimento da cidade. Grande novidade à época e publicadas infelizmente sem referência de autoria, as imagens em cores davam grande destaque aos argumentos do autor, e, articuladas ao texto, levavam o leitor a perceber o processo contínuo que tornava Rio Preto tão diferente do que era no passado.
É o caso da Figura 22, localizada no início do capítulo, acompanhada da legenda “Como Rio Preto é visto aos olhos da ignorância”; representando as cenas de terror descritas por Cavalheiro, remete aos primeiros momentos da ocupação local, mostrando um ambiente ainda selvagem, com animais à espreita prontos para atacar a qualquer momento, na mata fechada ainda muito próxima. A imagem trazia, ainda, um acampamento provisório de pioneiros, alojados em barracas e com uma igreja de madeira, em meio às chamas, sendo atacados por indígenas, que não poupavam nem ao menos as mulheres e crianças. Os homens, diferenciados pelas vestimentas e pela cor da pele, traziam todos armas em punho e participavam de alguma ação de violência, que parecia remeter àquelas trazidas pelos filmes norte-americanos ambientados na ocupação do oeste.
Para Cavalheiro, tal imagem distorcida devia-se ao desinteresse de todos em conhecer e divulgar a realidade da cidade e teria como consequência o “afastamento de elementos preciosos” para o desenvolvimento local, que rumavam para outras regiões do Estado com melhor reputação. Tal perspectiva era crucial para a elite rio-pretense, parte significativa daqueles que apoiaram a publicação do álbum; era preciso atrair trabalhadores para as fazendas, capitais para as empresas e compradores para as terras da fronteira sempre em expansão, empreendimentos cujo êxito exigiam a reversão da imagem negativa da cidade.
Tal propaganda pela sua influencia maléfica, tem contribuído grandemente para o afastamento de elementos preciosos que poderiam viver entre nós e collaborar efficazmente para o desenvolvimento da nossa prosperidade.
Entretanto, a sua acção, é desviada para outras regiões novas, onde a sua actividade não encontrará de certo, as mesmas possibilidades de exito que se evidenciam entre nós, mas onde a reputação é mais suave e attrahente (CAVALHEIRO, 1929CAVALHEIRO, A. A. Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto de 1927-1929. São Paulo: Casa Editora Duprat-Mayença, 1929., p. 74).
Àquela imagem distorcida, Cavalheiro contrapôs um raciocínio lógico, e a partir de seu “estudo crítico”, buscou imprimir uma marcha do tempo e dos acontecimentos, de modo a evidenciar o contexto de desenvolvimento por que passava a cidade, uma realidade muito distante daquela criada pela imaginação dos ignorantes. Voltando ao passado, tenta localizar nas condições que conformaram a origem de Rio Preto a justificativa aos acontecimentos que construíram a péssima imagem refletida pela cidade. Era preciso um retorno aos tempos remotos, “uma missão penosíssima”, mas necessária, para “lavar a alma”, e encaminhar a perspectiva desejada aos acontecimentos.
Antes, porém, volvamo-nos para o passado, e vamos por-lhe a alma ao sol, com a mesma sem-cerimonia com que a lavadeira estende no coradouro a roupa suja do freguez. É uma missão penosissima, mas como é necessária á supérflua intelligencia dos nossos causticantes amigos; faça-se (CAVALHEIRO, 1929CAVALHEIRO, A. A. Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto de 1927-1929. São Paulo: Casa Editora Duprat-Mayença, 1929., p. 75).
Reconhecendo que “não deixam de têr alguma razão a despeito de todo o exaggero”, Cavalheiro evidencia a ausência do poder público naquela parte do extremo sertão paulista, fazendo com que fosse uma seara de bandidos e fugitivos da polícia, e ressalta os constantes conflitos pelas grandes extensões de terra da comarca, contexto caracterizado como um período de “terror”, em que a cidade vivenciou “toda uma serie de episódios mesclados de audacia e selvageria” (CAVALHEIRO, 1929CAVALHEIRO, A. A. Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto de 1927-1929. São Paulo: Casa Editora Duprat-Mayença, 1929., p. 72).
Após a installação dos primeiros povoadores, foi surgindo ininterruptamente uma nova corrente de adventícios vindos de toda a parte, e com elles veio o crime e a desordem, provocadas pelo açambarcamento d’aquilo que já estava açambarcado, pondo em actividade toda a sorte de chicanas e instituindo a praga dos “grillos” como meio facil de extorquir direitos já adquiridos, sobre as terras de Rio Preto.
Dahi succederam-se crimes após crimes, ficando Rio Preto por um longo espaço de tempo, reduzido á inanidade e ao terror (CAVALHEIRO, 1929CAVALHEIRO, A. A. Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto de 1927-1929. São Paulo: Casa Editora Duprat-Mayença, 1929., p. 72).
Após justificar a origem da nem tão equivocada má reputação de Rio Preto, localizando-a num passado longínquo, Cavalheiro tratou de evidenciar as transformações pelas quais passou a cidade, que desenvolvida não seria mais retrato da barbárie e sim de uma urbe civilizada. Ressaltando a chegada da ferrovia, a instalação da comarca e o crescimento populacional e econômico apresentado por Rio Preto no período, Cavalheiro caracteriza o tempo presente da cidade, que de maneira alguma poderia ser confundida com a Rio Preto antiga.
Entretanto, Rio Preto, embora lentamente, foi progredindo e recebendo novos elementos.
O antigo terror foi amainado, sendo os crimes mais escassos e os direitos de propriedade mais distinctos e legalmente legitimados.
Rio Preto, embora se modernizasse e se desenvolvesse rapidamente com o advento dessa 2.a phase, não conseguiu entretanto, apagar a nódoa que ensombrava a sua civilização e a deslustrava sensivelmente.
Tudo isso sabemos e dolorosamente o lamentamos, porém, não podemos consentir que alguém confunda o Rio Preto bárbaro de 1860, com o Rio Preto civilizado de 1928 (CAVALHEIRO, 1929CAVALHEIRO, A. A. Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto de 1927-1929. São Paulo: Casa Editora Duprat-Mayença, 1929., p. 73-77).
Cavalheiro reforçava sua tese com uma figura colorida, a segunda do capítulo, representando a Rio Preto do tempo presente (Figura 23). Acompanhada da legenda “Como Rio Preto pode ser visto no seu actual momento, dando-nos o quadro a visão approximada de um dos seus bairros industriaes”, a figura traz em sua parte inferior a ferrovia, principal meio de comunicação e comércio da cidade, com vagões carregados de produtos agrícolas locais, notando-se também a presença de trabalhadores, especificamente engenheiros, portando seus instrumentos de trabalho, que remetem aos estudos para o prolongamento da linha, assunto diretamente relacionado à valorização e comércio das terras da região.
A cidade, representada com prédios modestos, mas que preenchem a paisagem, combinados com o meio rural ainda próximo, apresenta ruas movimentadas, com a presença de carroças, automóveis e caminhões; ao fundo, pavilhões e chaminés esfumaçadas indicam a existência de fábricas, dando um caráter industrial à agora já civilizada urbe sertaneja, conjunto que constituía a prova cabal do desenvolvimento da região.
Vinde ás cidades novas e contemplae a majestade dos seus jardins, o alinhamento das suas ruas, o deslumbramento dos seus predios modernos, o capricho das suas instalações Hygienicas, o critério de sua organização social, a consciencia do seu apparelhamento administrativo, a ordem, a paz e o respeito que impera entre todos como se todos fossem membros de uma só família (CAVALHEIRO, 1929CAVALHEIRO, A. A. Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto de 1927-1929. São Paulo: Casa Editora Duprat-Mayença, 1929., p. 84).
A narrativa de Cavalheiro se apresenta em sintonia com os debates urbanísticos presentes em São Paulo naquele período. Conceitos como os de higiene, alinhamento das vias públicas e criação de espaços de convivência permeavam os debates sobre os destinos das cidades, em grande medida advindos das experiências da capital do Estado, que se transformara rapidamente em metrópole.
Incorporando modelos e soluções urbanísticas de cidades como Paris, Londres e Nova Iorque, o debate sobre as reformas urbanas em São Paulo fora marcado em grande medida pela “questão sanitária”, especialmente a partir das epidemias de febre amarela e de cólera em Santos e em cidades do interior no início da década de 1890 (BRESCIANI, 2010BRESCIANI, M. S. Sanitarismo e configuração do espaço urbano. In: CORDEIRO, S. L. (org). Os cortiços de Santa Ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2010. p. 15-38., p. 15). Desse modo, as obras ligadas ao saneamento norteavam os debates de higienistas e sanitaristas e compreendiam parte significativa dos investimentos do governo, sendo prioridade da Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas até o início do século XX (BERNARDINI, 2007BERNARDINI, S. P. Construindo infraestruturas, planejando territórios: a Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Governo Estadual Paulista (1890-1926). 2007. 548 f. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007., p. 108).
Naquele contexto, surge em São Paulo um ambiente público de debate sobre as necessidades e reformas urbanas (COSTA, 2015COSTA, L. A. M. Nem tudo era europeu: a presença norte-americana no debate de formação do urbanismo Paulista (1886-1919). São Bernardo do Campo: Ed. UFABC, 2015., p. 497) que ultrapassava as discussões teóricas e práticas da medicina higienista e da engenharia sanitária. Como aponta Bresciani, as noções e preceitos sanitários, bem como as concepções estéticas filiadas à teorias arquitetônicas eram amplamente difundidas entre a população com formação acadêmica, e também encontrados em páginas de jornais e em abaixo-assinado de moradores (BRESCIANI, 2010BRESCIANI, M. S. Sanitarismo e configuração do espaço urbano. In: CORDEIRO, S. L. (org). Os cortiços de Santa Ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2010. p. 15-38., p. 17).
Deste modo, a descrição articulada por Cavalheiro para a Rio Preto do presente procurava refletir os modernos conceitos urbanísticos praticados na capital, entendidos como componentes do modelo de “cidade ideal” (BRESCIANI, 2001BRESCIANI, M. S. Melhoramentos entre intervenções e projetos estéticos: São Paulo (1850-1950). In: BRESCIANI, M. S. (org.). Palavras da cidade. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001. p. 343-366., p. 345), e que estavam refletidos no próprio corpo de seu álbum, que em cada capítulo trazia argumentos superlativos relacionados à nova fase de Rio Preto. Deste modo, imprimia a ideia de movimento, ressaltando o ritmo constante e intenso de transformações, construindo um horizonte de expectativas relacionadas ao futuro grandioso da cidade.
Com effeito: se observarmos o extraordinário desenvolvimento que se accentúa em toda a Comarca, surprehendernos-êmos com o que se nos depara em todos os recantos, vendo-os inteiramente cultivados e tomados por uma multidão de homens activos e enérgicos, que vão povoando rapidamente o solo e edificando Aldeias, Villas e Cidades, numa vertigem indescriptivel.
Os pequenos lugarejos de hontem, são hoje grandes cidades, e nos sertões virgens, soberbos e perigosos, la vae a onda humana abrindo picadas e agrupando nucleos, numa avidez de conquistas que tem qualquer cousa de épico e sublime (CAVALHEIRO, 1929CAVALHEIRO, A. A. Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto de 1927-1929. São Paulo: Casa Editora Duprat-Mayença, 1929., p. 83).
Mesclando um passado longínquo a um presente marcado por um ritmo intenso de transformações, Cavalheiro mirava o futuro, imprimindo a perspectiva de um processo histórico próprio da cidade. Se seu passado fora marcado por uma “odysséa de factos deploraveis”, seu futuro, com o tempo, se levantaria “soberbo e majestoso”.
Acabaram-se os crimes, os “grillos”, as arruaças, as chantagens e tudo o que caracterizava a sua vida primitiva, para ressurgir brilhantemente entre as ascintillações fulgidas de uma aurora de civilização, uma nova sociedade nova e progressista.
O seu povo confundido no meio da floresta virgem com os habitantes selvicolas de mil gerações ignoradas, apparecerá impávida e serenamente ante o olhar obliquo da ignorancia, sobre um monumento de trabalho onde refulgem perennemente todas as sublimes características de civilização e do progresso (CAVALHEIRO, 1929CAVALHEIRO, A. A. Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto de 1927-1929. São Paulo: Casa Editora Duprat-Mayença, 1929., p. 86).
Completando seus argumentos, Cavalheiro oferece ao leitor a representação exata de seu horizonte de expectativas sobre o futuro grandioso reservado à cidade, e, ao finalizar seu texto, insere a terceira e última das figuras coloridas do capítulo (Figura 24). Acompanhada da legenda “Como Rio Preto poderá ser visto dentro de meio século, tomando por base o seu actual progresso e as grandes possibilidades da sua expansão econômica”, a imagem traz uma Rio Preto imaginada, no tempo futuro, transformada em metrópole.
Com um perfil urbano muito próximo ao apresentado pela capital do Estado naquele período, ainda que adaptado ao espaço local, a figura retrata uma cidade repleta de construções que, ocupando quase toda a tela, dão a sensação de ultrapassarem o horizonte imaginável pelo observador. Por entre arranha-céus, prédios monumentais e praças arborizadas, transeuntes são retratados preenchendo os espaços públicos, dando a sensação de movimento.
A ferrovia seguia representada como importante fator do desenvolvimento local, mas com o acréscimo de novos meios de transporte que faziam parte apenas da realidade de cidades mais desenvolvidas. Ao lado dos automóveis e caminhões, a Rio Preto do futuro contaria com o serviço de bondes, cujos trilhos se estenderiam pelo menos até a parte central da cidade e com o moderno transporte aéreo, novidade mesmo nas grandes cidades naquele período.
Com effeito: o Rio Preto de ha 10 annos, faria triste figura deante da cidade de hoje, assim, como esta, não terá grande semelhança com o Rio Preto de amanhã, pois tal é a perspectiva dos futurosos destinos que se antevêm dentro da extensão das suas possibilidades econômicas. Esse delirio febricitante que vem agitando todas as energias lançando-as tumultuariamente na conquista de todas as realizações, não é mais que a influencia dessa perspectiva luminosa, onde se distingue a visão phantastica de um Rio Preto maravilhoso.
O povo comprehendeu nitidamente, que o futuro desta cidade não é uma promessa illusoria feitas de esperanças vãs sem possibilidade de êxito, e dahi, a afazama que se observa em todos os departamentos de actividade, incrementando vigorosamente a marcha da nossa evolução. Justamente por isso é que Rio Preto muda de feição todos os dias, com a mesma facilidade com que nós outros, mudamos de camisa. É a febre da perfeição a imperar no senso do povo, que se mantém confiantemente de olhos fitos no futuro. A cada dia que passa surge uma nova transformação (CAVALHEIRO, 1929CAVALHEIRO, A. A. Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto de 1927-1929. São Paulo: Casa Editora Duprat-Mayença, 1929., p. 650).
Inserindo passado, presente e futuro num fluxo temporal único, Cavalheiro tentava imprimir a ideia de um processo histórico do desenvolvimento da cidade, que já não apresentava mais as características de barbárie de outrora, e que, de acordo com o ritmo de crescimento apresentado no período, alcançaria em pouco tempo um futuro de progresso e civilização.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No início do século XX, acompanhando o ritmo de desenvolvimento urbano da capital paulista e das cidades do interior, cresce a circulação de materiais impressos em São Paulo; fruto de um movimento de modernização e generalização das tipografias, aquele processo fora marcado pelo surgimento de uma grande diversidade de publicações, das mais variadas modalidades, que passam a fazer parte do ambiente dos citadinos.
Além dos jornais, que surgiam em grande número representando setores cada vez maiores da sociedade, as tipografias publicavam os mais variados artigos, tais como cartões postais, calendários, opúsculos e almanaques (CRUZ, 2000CRUZ, H. F. São Paulo de papel e tinta: periodismo e vida urbana - 1890/1915. São Paulo: Educ/FAPESP, 2000., p. 56). Naquele contexto, os almanaques transformaram-se em um segmento especial da indústria gráfica nascente, constituindo um dos primeiros esforços para ampliar a ainda incipiente cultura impressa no país (SODRÉ, 1983SODRÉ, N. W. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1983.).
Adquirindo um perfil adaptado às necessidades da sociedade brasileira, os almanaques passam a ser encontrados em modelos cada vez mais diversos. Desses, destacam-se os almanaques de cidades, que, surgindo de início nas capitais, logo se multiplicaram pelas cidades do interior paulista (MEYER, 2001MEYER, M. (org). Do Almanak aos Almanaques. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001., p. 18). Transformados em verdadeiros guias da cidade, os materiais incorporaram de forma crescente informações sobre suas instituições, seus hábitos e espaços de cultura e entretenimento, trazendo como novidade indicadores comerciais e de profissões (CRUZ, 2000CRUZ, H. F. São Paulo de papel e tinta: periodismo e vida urbana - 1890/1915. São Paulo: Educ/FAPESP, 2000., p. 58).
Nas primeiras décadas do século XX, observa-se um movimento de transformação no perfil dos almanaques de cidades; incorporando as novidades técnicas de imagem e impressão, e aproveitando-se da generalização dos estúdios fotográficos pelo interior, os almanaques transformam-se em “álbuns ilustrados”. Adquirindo o perfil de propaganda oficial das municipalidades, e tendo significativas mudanças em seu formato, surgiram em cidades tais como Ribeirão Preto, São Carlos, Araraquara e São José do Rio Preto.
Mantendo em parte a configuração de seus congêneres do passado, os álbuns eram elaborados com materiais de alta qualidade e tinham como maior novidade o fato de comportarem diversos clichês com o que consideravam serem os mais importantes aspectos das cidades. Transformados em artigo de luxo, davam destaque aos prédios, instituições, empresas de serviços públicos, listas de estabelecimentos comerciais e fazendas, em sua maioria produtoras de café.
Deste modo, buscavam imprimir a perspectiva de cidades desenvolvidas, que seriam marcadas pelo signo do progresso, que caracterizava todo o interior paulista. Abandonando as antigas características primitivas de sertão, teriam se transformado em verdadeiras metrópoles sertanejas, exemplos de civilização, nos moldes pretendidos por aqueles que tinham interesse na atração de trabalhadores e de investidores para seus negócios.
Aquele contexto marcara a publicação do Album Illustrado da Comarca de Rio Preto (1927/1929). Elaborado em um ambiente que vivenciava um ritmo frenético de ocupação do solo e criação de cidades, o álbum tinha a difícil missão de reverter uma representação bastante negativa sobre Rio Preto, fruto do passado de banditismo e conflitos por terras que caracterizaram a região nos primeiros anos de ocupação, e que ainda resistia na memória de todos.
Conduzida com habilidade por um escritor que fazia uso das mais modernas técnicas de imagem e impressão, a narrativa buscava imprimir uma perspectiva de processo histórico quanto ao desenvolvimento da cidade, articulando um passado que deveria ser esquecido, um presente de realizações e conquistas, e a perspectiva de um futuro grandioso, imaginável num horizonte de expectativas impregnado com o otimismo daquele final dos anos 1920, pouco antes das crises econômicas e políticas que viriam a abalar o país na década seguinte.
REFERÊNCIAS
- A NOTICIA. [S. l.], n. 608, p. 3, 19 ago. 1927.
- A NOTICIA. [S. l.], n. 754, p. 1, 15 mar. 1928.
- A NOTICIA. [S. l.], n. 998, p. 1, 08 fev. 1929.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
31 Mar 2023 -
Aceito
12 Jul 2023