Open-access Rua na Rede: um dispositivo para cuidado no âmbito do Consultório na Rua

Calle en la red: un dispositivo para el cuidado en el ámbito del consultorio en la calle

Resumos

O presente relato de experiência objetiva apresentar o dispositivo Rua na Rede, criado pela equipe de Consultório na Rua (eCR) de Florianópolis, SC , como estratégia de construção da integralidade e longitudinalidade do cuidado do usuário da eCR, especialmente no momento de internação hospitalar e pós-alta. Para isso, analisou-se a experiência vivida pelos autores, operando o dispositivo por meio do diário de campo e em diálogo com a literatura científica sobre o tema. O relato aponta que o Rua na Rede é orientado pelo paradigma da redução de danos e enfrenta um importante desafio para o Sistema Único de Saúde: a articulação entre Atenção Básica e atenção hospitalar, ponto nodal para a integralidade e a longitudinalidade do cuidado da pessoa em situação de rua.

Palavras-chave Dispositivo; Consultório na Rua; Integralidade; Cuidado; Redução de danos


El presente relato de experiencia tiene como objetivo presentar el dispositivo Calle en la Red, creado por el equipo de Consultorio en la Calle (Consultório na Rua - eCR) de Florianópolis (Estado de Santa Catarina), como estrategia de construcción de la integralidad y la longitudinalidad del cuidado del usuario de las eCR, especialmente en el momento del ingreso hospitalario y después del alta. Para tanto, se analizó la experiencia vivida por los autores, operando el dispositivo por medio del diario de campo y en diálogo con la literatura científica sobre el tema. El relato señala que el Calle en la Red está orientado por el paradigma de la Reducción de Daños y constituye un importante desafío para el Sistema Brasileño de Salud: la articulación entre la Atención Básica y la Atención Hospitalaria, punto nodal para la integralidad y la longitudinalidad del cuidado de la persona sin hogar.

Palabras clave Dispositivo; Consultorio en la calle; Integralidad; Cuidado; Reducción de daños


The aim of this experience report is to present the Rua na Rede (Street in the Network) device, created by the Consultório na Rua (eCR) team in Florianópolis - SC, as a strategy for building integrality and longitudinal care for eCR users during hospitalization and after discharge. The authors’ experience of building the device was analyzed through their field diary, in dialogue with the scientific literature on the subject. The report underlines that Rua na Rede is guided by the Harm Reduction paradigm and faces an important challenge for the Brazilian National Health System: the link between Primary Care and Hospital Care. A nodal point for integrality and longitudinal care for homeless people.

Keywords Device; Street Clinic; Comprehensiveness; Care; Harm Reduction


Introdução

Neste artigo, apresentamos um dispositivo para o cuidado no âmbito das equipes de Consultório na Rua (eCR), criado pela eCR de Florianópolis, SC: o Rua na Rede. Tal dispositivo tem a potência de ser, ao mesmo tempo, um dispositivo de atenção, de gestão da clínica e de construção de rede, afirmando uma diretriz importante do Consultório na Rua (CnaR): cuidar do usuário e das redes de políticas públicas. De acordo com a portaria GM MS n. 2488/2011, este é um serviço que integra o componente Atenção Básica da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e desenvolve ações de atenção básica e atenção psicossocial direcionada a pessoas em situação de rua.

Pela complexidade das situações de saúde com as quais atua, o CnaR tem a potencialidade de desenvolver novas tecnologias de cuidado que podem tanto responder a realidades locais quanto construir referências técnicas para outros serviços e âmbitos de atuação. Entendemos que o potencial criativo do serviço depende da relação que este constrói com o território da rua. Partimos do pressuposto de que a dinâmica da rua exige uma flexibilidade da atuação técnica do CnaR, colocando desafios aos saberes do campo da saúde e exigindo a radicalização dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), em especial, da integralidade do cuidado, já que os agenciamentos entre determinantes sociais, subjetivos e biológicos nas questões de saúde da população em situação de rua (PSR) estão especialmente evidentes1.

O dispositivo Rua na Rede surgiu em 2018 como ferramenta de acompanhamento dos usuários do CnaR de Florianópolis nos serviços das redes de saúde e intersetoriais, especificamente nas internações hospitalares. Seu acompanhamento consiste no apoio à adaptação do usuário à instituição e vice-versa, buscando garantir que a alta hospitalar não constitua uma quebra na continuidade do cuidado. A descontinuidade do cuidado no pós-alta é um fenômeno muito comum2. No caso da pessoa em situação de rua, essa descontinuidade é potencializada, devido à fragilidade de sua rede de suporte comunitário. O dispositivo, assim, é um organizador do fluxo da rede, mas também um dispositivo de cuidado proximal, que inclui a singularidade do caso no cuidado dentro do hospital e no pós-alta. Além de cuidar do usuário, podemos dizer que o Rua na Rede auxilia no cuidado entre a rede: do vínculo e fluxo entre serviços e equipes.

O objetivo deste relato é afirmar que o Rua na Rede, enquanto dispositivo técnico, é orientado pelo paradigma da redução de danos (RD) e articula atenção básica e atenção hospitalar, fomentando e ampliando a rede de apoio das PSR. Além disso, pretende-se declarar que o Rua na Rede é instrumento de educação permanente tanto dos profissionais que trabalham no hospital quanto da própria eCR, pois aqueles tornam-se capazes de atender às especificidades do usuário em situação de rua, e esta passa a ter competência para articular suas ações com a instituição hospitalar. Assim, o Rua na Rede teria múltiplas valências: atenção, gestão da clínica e educação permanente. Para demonstrar essa afirmação, realizamos uma análise da experiência de um dos autores enquanto trabalhador da eCR por meio da análise do diário de campo do período de um ano. Selecionamos dois analisadores3 que subsidiam a afirmação do Rua na Rede como estratégia para o enfrentamento da problemática da internação no âmbito do cuidado da eCR.

Internação hospitalar e Atenção Básica: interrupção e oportunidade

O SUS é composto por uma ampla rede e abrange diversas ações e serviços de saúde, que atendem diversos níveis de complexidade: da Atenção Básica à atenção hospitalar. Para abarcar esse amplo espectro, é fundamental que os serviços estejam articulados e integrados em rede, para melhor funcionalidade do SUS. Um dos maiores desafios é a relação entre hospitais e Atenção Básica, de modo a potencializar e agregar resolubilidade, contribuindo estrategicamente para a integralidade do cuidado em seus diferentes níveis de complexidade4.

Em muitos casos, essa relação é frágil ou até mesmo inexistente, criando um problema que não se restringe à atenção individualizada, uma vez que o não agravamento das situações de saúde dos usuários e a consequente sobrecarga da alta complexidade dependem dessa boa articulação e integração4. Encontramos uma escassez de artigos científicos que tematizam essa problemática da relação entre Atenção Básica e hospitalar, especialmente no que diz respeito à PSR. Isso aponta um ponto cego da rede, no âmbito tanto da atenção quanto da produção de conhecimento em saúde. Os hospitais fazem parte das redes que são instituídas por sistemas regulatórios, por meio de fluxos hierarquizados, fragmentados e que acabam por não priorizar a demanda dos usuários2. Se a atenção hospitalar é operada de forma demasiadamente rígida, ela pode fragilizar a rede e produzir descontinuidade do cuidado2.

Uma das problemáticas enfrentadas durante o período de internação é a da não consideração da singularidade dos modos de vida das pessoas em situação de rua, sendo que este é um dos principais aspectos a ser valorizados no cuidado. É importante que o profissional de saúde esteja engajado a ponto de se sensibilizar com o usuário, mas também se responsabilizar e possibilitar intervenções a partir dessa relação2. Haddad e Jorge2 ressaltam que a manutenção da confiança e o vínculo entre profissional e usuário são fundamentais para que se sustente a continuidade do cuidado e para que as demandas específicas dos sujeitos sejam contempladas de maneira integral.

Nossa experiência mostra que o período de internação, como momento crítico, pode ser um ponto de virada no caso, uma oportunidade de pensar e planejar novas possibilidades, caso esteja inserida em um processo maior de acompanhamento. Se houver continuidade do cuidado, o momento da internação pode funcionar como um momento de respiro, no qual o cuidado pode ser repensado. Assim, a longitudinalidade do cuidado é central, pois possibilita não só ações curativas, mas também ações de promoção, prevenção e reabilitação por meio do acompanhamento multiprofissional e da articulação em rede2.

A atenção integral ao usuário implica disponibilizar e garantir uma diversidade de tecnologias de saúde disponíveis, que podem melhorar a qualidade de vida e criar um espaço seguro e confortável para a hospitalização, devendo ser tema e interesse da gestão hospitalar5. O cuidado nesse contexto é necessariamente multidisciplinar, ou seja, é preciso articulação do trabalho de diversos profissionais, mas também de diferentes serviços, em especial, da Atenção Básica.

A demasiada centralização na instituição hospitalar contribui para que a integralidade do cuidado não seja obtida. Esta só é possível de ser alcançada por meio do trabalho em rede. Quando um saber ou um serviço está centralizando demasiadamente o processo, possuindo o monopólio dos diagnósticos e tratamentos, essa relação verticalizada compromete o olhar integral e a intervenção que leva em conta a complexidade e a multideterminação da situação de saúde. Pensar a gestão da clínica a partir da integralidade do cuidado é primordial para que os usuários sejam menos particionados por divisões próprias da formação dos saberes da saúde e que vão contra o funcionamento vital, em que as dimensões biológicas, socioculturais, institucionais e subjetivas são inseparáveis e exigem um olhar integral.

De acordo com Cecilio e Merhy5, coordenar de forma adequada um conjunto diverso de saberes e ações de cuidado é uma das maiores sobrecargas do processo gerencial hospitalar e deve ser aspecto central nas discussões sobre integralidade e gestão. A linha de cuidado deve ser uma transversal que atravessa diversos serviços de saúde. O hospital deve ser considerado um dos componentes para a integralidade do cuidado, uma vez que esse período de parada hospitalar pode ser uma porta para obter-se a integralidade necessária, reconhecendo que os serviços de urgência e emergência (como é o caso dos hospitais) também são portas de entrada da população que precisa acessar o SUS5. É neste contexto que entendemos a relevância do Rua na Rede. É importante democratizar e descentralizar saberes e ações de saúde no âmbito da internação hospitalar, viabilizando um sistema público de saúde universal e integral para que os atos de cuidado aconteçam a partir de uma relação não verticalizada tanto entre profissionais quanto entre profissional e usuário5.

As equipes de eCR são multiprofissionais e desempenham atividades in loco, de forma itinerante, desenvolvendo ações compartilhadas e integradas com as Unidades Básicas de Saúde, os Centros de Atenção Psicossocial, os serviços de urgência e emergência e os demais pontos das redes intra e intersetorial6. O dispositivo Rua na Rede é uma estratégia de compartilhamento e integração das ações do CnaR, uma vez que faz com que o CnaR esteja dentro do hospital, realizando busca ativa dos usuários que ainda não acessaram o serviço por algum motivo, bem como acompanhando aqueles internados já usuários do CnaR.

De acordo com uma pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde com pessoas em situação de rua, 43,8% dos entrevistados afirmaram que procuram em primeiro lugar os hospitais e serviços de emergência quando estão doentes7. Nesse sentido, o dispositivo atua de forma estratégica, respondendo às diretrizes do CnaR de operar um cuidado longitudinal em saúde, promovendo o acesso aos serviços; a garantia de direitos; e a articulação de rede e trabalho intersetorial, alinhado às diretrizes da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Decreto n. 7.053)8. O momento de internação, por ser um período de fixação, é oportuno para que o usuário e os serviços construam novas possibilidades e planos de reorganização, tais como a aquisição de documentação civil, o acesso a benefícios socioassistenciais – como Bolsa Família e/ou Benefício de Prestação Continuada (BPC) – e o resgate de vínculos familiares.

O Rua na Rede

Embora o dispositivo Rua na Rede tenha se iniciado anteriormente, para fins deste relato, tomamos este recorte espaço-temporal: o ano de 2023, com início no Hospital Nereu Ramos (HNR) em Florianopolis, hospital de referência para tratamento de doenças infectocontagiosas e pneumológicas, no qual grande parte dos usuários são internados para tratamento de tuberculose, mas também HIV/Aids, pneumonia e outras doenças que podem ser agravadas pelas condições sociais e dinâmicas de vida do paciente.

Antes de começar a visitar os leitos, é feita uma passagem no setor de serviço social do hospital para coleta de informações dos usuários, no qual são buscadas as respostas para as seguintes perguntas: O usuário ainda se encontra internado? Se teve alta, para onde foi? Algum familiar foi buscar? Saiu com alguma medicação? Evadiu? Além dessas indagações, são investigados quais os pedidos foram feitos para a equipe do serviço social, quais informações foram repassadas, etc. Nesse momento, também é discutido o que pode ser articulado entre eCR, HNR e demais serviços da rede. Assim, é feita a localização dos leitos em que os usuários estão e, a partir disso, são realizadas as visitas. É nesse momento que a clínica se transdisciplinariza: há encontro e mútua afetação das diversas perspectivas profissionais e serviços, que atuam em conjunto em uma mesma situação9.

As visitas foram realizadas às segundas-feiras a partir das 14h pela eCR, composta, em geral, pela psicóloga e estagiária de Psicologia, podendo contar também com a presença dos demais profissionais da equipe. Feita a identificação dos usuários (alguns já conhecidos previamente, outros não), pergunta-se sobre seus estados de saúde; como têm se sentido; como têm passado os dias; o que aconteceu para estarem ali; se existe uma previsão de alta; e quais os planos pós-tratamento e alta. A partir desses encontros, o trabalho em rede fica mais direcionado e iniciam-se as movimentações para providenciar o que for necessário no momento. No início das visitas, no período analisado, o CnaR contava com 16 usuários internados. Número considerável, que foi oscilando ao longo do tempo. Desse grupo, 15 eram homens, sendo apenas uma mulher, sendo possível encontrá-la apenas duas vezes. Logo em seguida, ela teve alta e obteve-se a informação de que havia conseguido uma casa e saído da condição de rua.

Além do mapeamento de necessidades dos usuários internados, esses primeiros encontros são momentos de fortalecimento de vínculo e também de demonstrar aos usuários que eles não estão sozinhos nesse momento de muita fragilidade. A maioria deles perderam contato com a família ou vieram de outro estado, cidade e até país. Esse ato de se mostrar presente é o que Macerata et al.10 chamaram da metodologia da criação da referência, que tem um sentido múltiplo: o serviço se constitui como um ponto de referência para o usuário, estando ele na rua ou em uma internação, e torna-se referência para a rede no que diz respeito à pessoa em situação de rua. Vínculo e referenciação mostram ao usuário que há ali um profissional que se corresponsabiliza por seu cuidado, em conjunto com ele. Essa aproximação também é positiva em relação à adesão ao tratamento proposto, a partir do respeito do direito de escolha e da autonomia do sujeito.

O vínculo se constrói por um processo de sintonização com os usuários e seu momento no processo de cuidado. O que viabiliza essa construção é o acolhimento, que se faz em um duplo movimento: legitimar a situação vivida pela pessoa, seja ela qual for, e advogar em favor do modo singular por meio do qual o indivíduo lida com sua situação. Ou seja, se o sujeito está em determinada situação considerada difícil, esse estado de coisas teve sua razão de ser, e há, na maneira específica com a qual se lida com isso, uma singularidade que marca aquela existência e que deve ser afirmada. É por meio do modo singular que as estratégias de cuidado poderão ser construídas. Isso não significa aceitar determinada condição de violação de direitos, mas legitimar e defender a experiência singular da pessoa.

Com essas direções, visa-se combater as respostas e soluções modelares e idealistas que vêm de fora e que não dialogam com a sua realidade e seu território de vida. O vínculo é a base para a continuidade e o acompanhamento. O acompanhamento diz respeito a estar junto do processo de cada usuário na relação com sua paisagem existencial. O processo é feito de idas e vindas; diferenças; e repetições e está em constante abertura para o novo, mesmo quando parecem ser só repetição do mesmo. As ditas “recaídas’’, os retornos, as regressões fazem parte do processo de transformação. Acompanhar é, portanto, estar ao lado e evitar soluções demasiadamente rápidas, podendo sustentar a presença na duração do encontro. Tal aproximação permite construir intervenções que realmente façam sentido para o usuário em seu contexto, ponderando o fato de que se lida com temas sensíveis, como o abuso de drogas, isolamento, saúde e vínculos familiares fragilizados.

Aqui, será exemplificado o caso do usuário JB, acompanhado pelo Rua na Rede. JB era um homem de 49 anos, branco, natural de João Pessoa, PB, e que se encontrava em situação de rua em Florianópolis. Foi internado no HNR por aspergilose pulmonar, doença em que o tratamento consiste em uso de medicamentos e procedimento cirúrgico. O usuário encontrava-se internado, aguardando a cirurgia. JB tinha seus vínculos familiares bastante fragilizados, não mantinha contato com parentes mais próximos ou até mesmo distantes, de forma que a eCR era seu vínculo mais forte. Durante esse período de internação, ele manifestava a vontade de deixar o hospital caso sua cirurgia não fosse realizada em breve. Estava internado há mais de um mês aguardando o procedimento. A partir de tal desejo, começou a ser articulada na rede uma vaga de acolhimento para o usuário, para que ele não voltasse para rua quando saísse do hospital. Após muito trabalho e articulação entre a eCR e o serviço assistência social (Centro Pop), foi contemplada uma vaga para JB no albergue municipal de Florianópolis, no qual foi acolhido após deixar o HNR e acompanhado pela eCR fora do hospital. Ainda em acolhimento no albergue, JB retornou ao HNR e realizou a cirurgia esperada, que, a princípio, consistiria apenas na retirada de parte do pulmão. Contudo, ela se tornou uma retirada total de um lado do órgão, procedimento de alta morbidade e mortalidade. Nesse momento de pré e pós-operatório, JB continuou sendo assistido pela eCR; porém, o usuário teve algumas complicações após a cirurgia e precisou ser entubado, o que deixou seu estado de saúde ainda mais delicado e infelizmente veio a óbito, após uma parada cardiorrespiratória. Até o presente momento, não se sabe exatamente a causa dessa parada, pois o usuário não apresentava nenhum problema cardíaco. A última informação repassada para a eCR é de que a causa da morte seria investigada.

No Hospital Governador Celso Ramos (HGCR), é realizado o mesmo passo a passo citado no HNR antes de visitar os leitos. O HGCR é um serviço de pronto atendimento (urgência e emergência), o que resulta em um número menor de pessoas internadas, pois geralmente a internação é de curta permanência. Isso dificulta o processo do vínculo, pois não é possível obter uma continuidade nas visitas. Contudo, o Rua na Rede responde a essa particularidade, buscando potencializar o cuidado mesmo em um período mais curto, no qual os processos de cuidado podem ser muito impessoais. Além da fragilidade do vínculo com o usuário, o vínculo com o serviço nesses casos também fica fragilizado, pois as demandas precisam ser resolvidas e feitas de forma rápida, considerando o contexto das pessoas em situação de rua.

O usuário aqui identificado como PR, homem de quarenta anos, branco, natural de Florianópolis, SC, era usuário cadastrado do CnaR, foi identificado em uma das visitas feitas ao HGCR (onde ficou internado por um curto período até ser transferido para o HNR) e é acompanhado pelo eCR por meio do Rua na Rede. Seu estado de saúde era bastante frágil e delicado, assim como seus vínculos comunitários, mas foi melhorando ao longo do tempo, a partir dos cuidados hospitalares, das condições de tratamento que esse ambiente pode proporcionar e do vínculo que pudemos trabalhar no espaço de internação.

Por meio da articulação em rede, foram viabilizadas visitas semanais ao usuário, nas quais suas demandas e planos futuros foram ouvidos, sendo que trabalhou-se para torná-los viáveis. Por exemplo, PR tinha vontade de terminar seu tratamento no Hospital Santa Teresa (HST), que possui uma unidade de retaguarda, atendendo pacientes de média e baixa complexidade transferidos de outras unidades hospitalares. A retaguarda é um local onde é possível receber um tratamento a longo prazo e de forma personalizada, fora de um hospital comum. O HST é um lugar com mais espaço e que possibilita/fornece outras atividades diárias, como local para exercício físico, espaço verde com hortas e atividades, que o usuário acreditava que poderiam auxiliá-lo no processo de recuperação e de aquisição de novos hábitos. Por meio da articulação entre a eCR, o serviço social e a Medicina do HNR, essa vontade do usuário foi atendida. Hoje, ele se encontra no HST terminando seu tratamento. A partir desse trabalho, PR teve seus vínculos familiares retomados e fortalecidos. Seu irmão e namorada o visitam e ele restabeleceu contato com a mãe, pelo celular. Hoje aguarda pela alta e conta com ajuda dos familiares e da namorada nesse processo, evidenciando a potência que tem a construção de rede em um sentido amplo: rede de políticas públicas, comunitária, de vida e de afeto.

Outro ponto importante a ser destacado no que diz respeito ao Rua na Rede é que a maioria das pessoas acompanhadas fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas. Assim, esse momento de internação também pode ser visto como um momento de pausa necessária para uma situação de abuso de drogas, com descanso para o corpo, fortalecimento, alimentação, hidratação e abrigo. Além disso, é um período voltado para uma possível organização: fazer planos para o futuro, compartilhar seus projetos de vida e discutir sua viabilidade. Considerando a gravidade de alguns casos, essa interrupção abrupta do uso de alguma substância possibilitada pela internação pode ser vista como uma estratégia de RD. Contudo, não se pode deixar de problematizar e reiterar que a compulsoriedade da internação não pode ser o fundamento do tratamento11.

É sobre uma perspectiva da RD que a eCR trabalha a questão do álcool e de outras drogas. Ou seja, o foco não é a abstinência de determinada substância, mas sim a mudança da relação do sujeito com ela. A RD entende que a substância não é um problema em si. Torossian et al.12 afirmam: “somos nós seres humanos vivos, desejosos e pensantes que significamos e atuamos em cima das substâncias.” (p. 84). É a partir desses fatores que o sujeito estabelece e cria sua relação com o álcool e outras drogas. No momento em que uma pessoa usuária de drogas é hospitalizada, é também colocada em abstinência compulsória e as substâncias utilizadas pelo sujeito são substituídas por remédios com grande potencial de dependência, como forma de amenizar os sintomas de abstinência, criando outros problemas. Diante disso, é necessário que esses medicamentos sejam administrados de forma responsável e alinhados com outras atividades que sejam de interesse do indivíduo e que promovam uma relação de bem-estar com outras práticas não medicamentosas. O foco não deve ser a abstinência da droga ou a vontade de usá-la, pois o isolamento pode contribuir significativamente para a centralidade da substância.

O paradigma da RD não é contra a abstinência, mas defende a importância de trilhar e pensar outros caminhos para além da desintoxicação/abstinência, considerando a relação singular que cada vivente estabelece com a droga enquanto artefato social, histórico, cultural e químico, visando ao favorecimento da qualidade de vida, reconhecendo a droga também enquanto substância que pode ampliar prazeres e buscando entender a forma como o indivíduo se relaciona com essas valências em um determinado contexto13.

PR fazia uso intenso de álcool e de outras drogas. O período de internação também foi um momento de pausa importante desse abuso e consequentemente de abstinência (com uso de medicação), tendo exceção apenas para o cigarro, que é permitido no HNR, o que pode ser considerada uma estratégia de RD, pois o fato de poder fumar durante a internação influenciou na adesão do usuário ao tratamento e é importante durante certo tempo. Porém, posteriormente, fumar deixou de fazer parte dos hábitos do usuário, por escolha própria.

A autonomia do sujeito é objeto central da RD e precisa ser legitimada, pois, além de ser o protagonista de sua história, ele possui um conhecimento fundamental: o conhecimento sobre sua própria vida e sobre o que a substância operou nele naquele momento14. O paradigma da RD instrumentaliza o cuidado para que esse saber empírico/da experiência possa ser incluído no tratamento. É importante que os profissionais de saúde não assumam um lugar de saber sobre a vida do outro, dizendo o que se deve ou não fazer, mas sim tentem promover uma reflexão para que a atenção à relação consigo mesmo desperte o desejo de cuidado, tanto de si quanto do coletivo11.

A experiência da droga no contemporâneo não está separada do modo de produção capitalista15. Lancetti11 aponta que “é a geração constante da falta, uma experiência em sintonia com a sociedade de consumo, do imperativo do gozo e é também um recado para a sociedade mostrar ‘veja como estamos fracassando’” (p. 75). A luta não deve ser contra às drogas, mas sim pelas pessoas, pela sua liberdade e por outros aspectos importantes da vida. Lutar contra uma substância não contribui em nada para as noções de cuidado; pelo contrário: prejudica o sujeito, em especial aqueles que estão em contexto de vulnerabilidade social extrema, como é o caso das pessoas em situação de rua11. Sabemos que a guerra às drogas não é sobre drogas: é sobre corpos específicos – os considerados perigosos, degradados e inimigos da “ordem’’, como a PSR.

O conhecimento do território que o sujeito ocupa para além do hospital também faz parte da estratégia de cuidado e aumenta a possibilidade de continuidade do tratamento, acompanhamento e vínculo. É a partir de uma lógica territorial que se pode pensar em ativar os recursos que aquela comunidade oferece, para somar as estratégias de cuidado e planejar novas possibilidades16. O território vai além do um espaço geográfico e ultrapassa a referenciação domiciliar, na qual apenas domiciliados pertenceriam a determinado território. O território é espaço de recursos, dinâmicas, ações e produção de subjetividade17.

É na relação com e a partir do território que o “cuidado se faz como prática coletiva, democrática e inclusiva, seguindo a diretriz de uma clínica ampliada”17 (p. 2). O hospital, como instituição biomédica, tende a isolar sujeito e território, o que faz com que se perca suas especificidades e singularidades. Daí a necessidade de que as equipes de CnaR e de outros serviços da rua tenham como objetivo essa aproximação do território. Não se objetiva que o hospital vá à rua propriamente, mas sim que a lógica da rua possa ser entendida no hospital, em uma gestão do cuidado que é construída com, no e para o território, respeitando sua singularidade e seus aspectos subjetivos e objetivos17.

A rua enquanto território de vida das pessoas tem suas particularidades, como circulação de pessoas – que podemos encontrar com mais frequência ou que são vistas apenas uma vez ou esporadicamente –, presença da polícia e presença de comércios. Assim, são várias as formas de relação com a rua. É imprescindível que o CnaR viva o território da rua que essas pessoas habitam para possuírem a sensibilidade e a capacidade de compreender que o período de internação hospitalar também é um momento de desestabilização: ela gera uma suspensão desse território de vida, de tudo o que ele marca e significa para o usuário, o que produz grandes impactos na experiência subjetiva17. O Rua na Rede é um dispositivo que ajuda o usuário a se sustentar nessa desestabilização, mas também traz as especificidades do território da rua para dentro do território hospitalar, de modo a contribuir para a singularização do cuidado. Observamos isso nesse período de experiência no dispositivo. Conta-se com a potencialidade de que, ao entrar em contato com o dispositivo, os profissionais tornem-se mais sensíveis e receptivos aos usuários do CnaR, impondo menos barreiras para seu acesso e ajudando a tornar o ambiente hospitalar um ambiente ao qual o usuário pode, por um breve período, pertencer.

Conclusão

O dispositivo Rua na Rede surge justamente por entender que as práticas do CnaR vão para além do que é feito na rua e dentro dos centros de saúde; e permite enxergar os serviços da rede como espaços de cuidado, que precisam ser construídos, aos seus usuários. É essencial que o CnaR esteja presente para as PSR nos hospitais. O modo como é vivido o momento da internação influencia diretamente em como será o período pós-alta, momento importante para a garantia da integralidade do cuidado, na compreensão de que a internação hospitalar – de curta duração e não manicomial – pode ser vista como um período “privilegiado para pensar e produzir de forma coletiva a continuidade do cuidado e o acesso a outros serviços do sistema de saúde”5 (p. 6). Compreende-se que um espaço de cuidado é formado por diversos aspectos, e um deles diz sobre a forma como os processos e o fluxo de trabalho são organizados, pensando a realidade do sujeito e do seu território. Ou seja, é preciso ocupar os espaços institucionais buscando ultrapassar as barreiras que as pessoas em situação de rua encontram nos serviços de saúde17.

É possível pensar que o surgimento do dispositivo do Rua na Rede nasce do questionamento acerca do modo como os espaços de acolhimento/atendimento podem acolher a lógica da rua, no sentido da equidade, e como os modos de intervir, escutar, encaminhar e articular a rede podem incluir as demandas das PSR. A construção da equidade parece apontar para um processo de facilitação da relação entre usuários do CnaR e profissionais de saúde da rede mais ampla, assim como das regras institucionais. Essas relações, em geral e de início, são conflituosas e permeadas por preconceitos e estereótipos acerca da situação de rua e pelo não reconhecimento dos direitos dos usuários. Isso prejudica este usuário, já que historicamente ele acaba sendo a parte mais frágil, aquele que sofre diretamente com as consequências da gestão desse espaço.

Assim, podemos dizer que o Rua na Rede é um dispositivo para a integralidade do cuidado, mas também para a promoção da equidade, que funciona como uma “presença próxima”; e como mediador e promotor da saúde, tanto dos usuários quanto das instituições. A partir do momento em que essas atividades de articulação são desenvolvidas, a chance de êxito no caso é maior, pois o Rua na Rede, além de operar o cuidado, também gerencia a busca ativa e mais uma vez direciona o recurso e o serviço ao que realmente é necessário, otimizando os resultados. Tudo isso passa por um trabalho micropolítico16 que o Rua na Rede pode fazer, envolvendo alteração das sensibilidades, inclusão da singularidade dos casos nos processos de cuidado nas internações e apoio ao próprio pessoal do hospital nesse processo, que envolve também a transformação de sua perspectiva em relação à PSR.

Referências

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Editado por

  • Editor
    Tiago Rocha Pinto
    Editora associada
    Mariana Hasse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2024
  • Aceito
    24 Jul 2024
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