O artigo “Construção de diretrizes para orientar ações institucionais em casos de violência de gênero na universidade” traz oportuna e importante contribuição para a urgente construção de formas institucionais para a prevenção e o enfrentamento à violência contra as mulheres nas universidades brasileiras.
Essa particular expressão da violência de gênero tem sido reconhecida como frequente problema nas universidades europeias, dos EUA e do Canadá nas últimas duas décadas, mas no Brasil sua visibilidade é ainda recente.
É importante lembrar da origem predominante das camadas médias e altas da população brasileira que têm acesso à universidade, apesar do aumento nas últimas décadas do acesso à educação superior com base nas políticas de cotas. Reconhecer a presença da violência entre alunos, funcionários e professores de instituições de ensino superior é também reconhecer que a violência de gênero atravessa transversalmente camadas sociais e não é, de forma alguma, apanágio das camadas populares ou da população negra, como aparece muitas vezes em nosso imaginário social.
Definir e medir esta violência de forma comparável entre diferentes estudos não é tarefa simples em termos dos sujeitos envolvidos, tipos e cenários das violências e têm sempre o sub-registro como problema fundamental11. Palmer JE, Perrotti C. Measuring self-reported sexual victimization experiences at one university: a comparison of methods. J Stud Aff Res Pract. 2016; 53(4):403-15. . Os estudos iniciais têm se concentrado em estudantes e demonstrado as altas taxas, mas há denúncias de casos cometidos por professores da graduação e pós-graduação, geralmente mais difíceis de serem formalizadas pela grande diferença de poder e o receio da resposta institucional. As violências cometidas contra funcionárias da universidade e terceirizadas ainda são pouco visíveis, mas a analogia com outras formas de violência de gênero não nos permite ser otimistas em relação às suas prováveis magnitudes. As formas de violência de gênero na universidade têm especificidades, com grande presença de assédio moral, ameaças, humilhações e violência sexual. Os cenários também são diversos e incluem trotes, festas, clubes esportivos, salas de aula, viagens de trabalho de campo e repúblicas.
O Escritório USP Mulheres, criado em 2016 na USP, realizou com o apoio da Rede Não Cala a pesquisa “Interações na USP”b b http://uspmulheres.usp.br/ wp-content/uploads/sites/ 145/2018/07/INTERA%C3% 87%C3%95ES-NA-USP_final_ publica%C3%A7%C3 %A3o2407.pdf , buscando mapear as violências sofridas e considerar as diversas vulnerabilidades (como gênero, raça/cor, camada social e orientação sexual). Foi respondida por meio de questionário on-line e autopreenchido por 17% do corpo discente, sendo aproximadamente 40% dos respondentes da pós-graduação e 60%, da graduação; e aproximadamente dois terços compostos por alunas mulheres. Resultados preliminares indicam que 39% dos respondentes afirmaram ter vivido ou que ainda vivem alguma situação em que se sentiram desrespeitada(o)s, humilhada(o)s, discriminada(o)s e/ou intimidada(o). Quando esses números são desagregados entre mulheres, homens ou não binários, vemos o claro caráter de gênero dessas formas de violência: enquanto a violência sexual foi referida por 2% dos respondentes que se declararam homens, 11% das mulheres e 18% dos não binários também a referiram. Para violência moral, essas taxas foram respectivamente 20%, 33% e 48%. A mesma pesquisa mostra também uma maior ocorrência de violência entre estudantes negros e pardos e com menor renda. Este estudo, assim como outros realizados internacionalmente, chamam a atenção para a importância de uma abordagem interseccional para a violência de gênero, articulando gênero com outras formas de opressão.
O impacto na saúde das vítimas de violência sexual, bastante estudado em violências sexuais tanto dentro quanto fora de relações de intimidade, não pode ser desconsiderado22. Kaufman MR, Tsang SW, Sabri B, Budhathoki C, Campbell J. Health and academic consequences of sexual victimization experiences among students in a university setting. Psychol Sex. 2019; 10(1):56-68. . A violência de gênero está associada a depressão, tentativas de suicídio, problemas de saúde reprodutiva e maior número de queixas aos serviços de saúde. As testemunhas também podem sofrer consequências traumáticas e serem afetadas em sua saúde. Além disso, o desempenho escolar das envolvidas pode ser prejudicado, o que precisa ser considerado nas estratégias a serem adotadas para prevenção e cuidado das alunas em situação de violência.
Nesses diversos tipos de violência, com agressores e cenários diversos, são necessárias estratégias de prevenção da violência, cuidado com a vítima e responsabilização dos agressores a partir de um referencial comprometido com a garantia de direitos humanos, interseccionalidade e ética nas relações interpessoais. Nesse sentido, o documento produzido como resultado da investigação reportada no artigo condensa tais fatores de forma muito acertada.
Em revisão sistemática sobre a produção de violência contra as mulheres na universidade, Bellini33. Bellini DMG. Violência contra mulheres nas universidades: contribuições da produção científica para sua superação (Scielo e Web of Science 2016 e 2017) [dissertação] [Internet]. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos; 2018 [citado 2 Out 2018]. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/9942
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encontra poucos estudos brasileiros; entre esses poucos, a grande maioria afere quantitativamente o fenômeno e é publicado em periódicos da área da saúde. A autora classifica os estudos como tendo um enfoque predominantemente “paliativo” (recomendando o cuidado às vítimas depois dos episódios) e “preventivo” (recomendando educação da comunidade universitária no sentido de evitar novos casos). Chamou nossa atenção a ausência de documentos que instruam ou avaliem procedimentos a serem adotados pelas universidades para prevenir novos casos; acolher e cuidar das vítimas; e especialmente responsabilizar os autores das violências cotidianas.
Relatório realizado pela comissãoc c https://edisciplinas.usp.br/ pluginfile.php/4106113/ mod_resource/content/1/ relatorio-da-%20comissao- de-%20violencia-de-%20 genero-no-crusp.pdf que analisou os casos da moradia universitária da USP demonstra aproximadamente oito casos de violência de gênero por ano relatados diretamente às assistentes sociais, sendo que 24 casos foram relatados diretamente às professoras da comissão e apenas 17 denúncias (três das quais coincidentes com os casos recebidos pelas professoras) foram formalizadas nos últimos dez anos. Desses casos formalmente denunciados à instituição, apenas três foram investigados.
A falta de canais confiáveis de acolhimento, denúncia e responsabilização e as experiências anteriores de denúncia com resultado desfavoráveis às vítimas acaba por desincentivar novas denúncias e perpetuar a invisibilidade e banalização do problema. Os inúmeros casos acabam tratados como de menor importância, sendo vistos como algo com o qual temos que conviver, ou então como responsabilidade da vítima, que bebeu demais ou não foi clara o suficiente em sua vontade.
A universidade não está, obviamente, em um mundo à parte daquele no qual ela se constitue, e seus alunos, professores e funcionários compartilham os valores desta mesma cultura na qual estão imersos. Há alguns anos, em conversa com um grupo de alunos homens na graduação de medicina, fui perguntada se os casos de estupro dos quais se falava em nossa instituição eram mesmo reais. Respondi que eu mesma havia lido dez relatos anônimos, todos parecendo bastante consistentes e reais. Então o aluno respondeu: “Mas, professora, se a gente não forçar um pouquinho a gente não pega ninguém.” Nessa frase está sintetizada a cultura que encoraja os homens a serem agressores, predadores sexuais, sempre “forçando um pouquinho” ao mesmo tempo em que mulheres são estimuladas a resistirem às investidas sexuais para “se valorizarem”. Chama também a atenção, culturalmente, a noção de “forçar um pouquinho”, uma vez que no indefinido “pouquinho”, cabe ideia desde falas insistentes à coerção física. Um certo ocultamento comunicativo aqui se complementa, estimulando atitudes coercitivas, com a exclusão da colocação clara e explícita dos desejos nas relações afetivo-sexuais e sua possibilidade de aceitação ou rejeição. Esse mascaramento também incentiva e encobre a própria hierarquia das atuais relações afetivo-sexuais.
A clara desigualdade de gênero em relação às escolhas (ou falta delas) sexuais está presente fora e dentro dos invisíveis “muros”, ainda que aluno(a)s singulares relacionem-se com esta norma geral de diferentes maneiras. Essas desigualdades estão expressas também na menor ocupação de professoras nos postos de poder da universidade e conselhos científicos, nas piadas de conteúdo misógino ou machista em salas de aula – como aquelas que afirmam a menor capacidade intelectual das mulheres (ilustradas na fala “estou repetindo porque têm mulheres na sala”, por exemplo) – e no medo internalizado de investidas sexuais indesejadas, que regula a vida de mulheres jovens de formas muitas vezes quase naturalizada e banalizada.
Foi contra essa banalização e invisibilidade da violência contra as mulheres e de gênero que se insurgiu o movimento de alunas, professoras e pesquisadoras organizadas em um coletivo: a Rede Não Cala. Criado para pressionar a instituição a cumprir suas obrigações éticas, pedagógicas e legais, o movimento social busca atuar promovendo marchas, debates, discussões em classe, campanhas e reflexões, buscando tanto a prevenção de novos casos quanto o cuidado efetivo aos casos existentes e a responsabilização dos agressores. São exemplos dessa atuação as discussões anuais no início do ano letivo, que envolvem professoras e alunas de diversas unidades de ensino.
Nesse sentido, a contribuição trazida pelo estudo “Diretrizes gerais para as ações institucionais de intervenção diante de situações de violência ou discriminação de gênero ou orientação sexual”d d http://www.prefeiturarp. usp.br/cav-mulheres/ diretrizes-2018.pdf é inestimável em dois sentidos: em primeiro lugar, aponta parâmetros normativos para a ação das novas Comissões de Direitos Humanos e assemelhadas que surgiram na maioria das unidades da USP na esteira da visibilidade causada pelo movimento social, além de comissões ou núcleos semelhantes em outras instituições de ensino. O documento baseia-se na observância de direitos fundamentais explicitados em conferências internacionais e ratificados pelo Brasil. Em segundo lugar, inova epistemologicamente na forma de produzir o material de forma rigorosa, baseando-se no conhecimento já produzido internacionalmente e na experiência dos grupos locais, por meio de observação participante, dando uma contribuição interdisciplinar ao campo da saúde, do direito e das ciências socias. A operacionalização da perspectiva de gênero e direitos humanos em claras diretrizes, na atual conjuntura, é preciso, correto e necessário para enfrentar o recrudescimento da banalização e invisibilidade, encorajado por movimentos anti-igualitários, tanto na educação quanto na saúde44. Miskolci R, Pereira PPG, Miskolci R, Pereira PPG. Educação e saúde em disputa: movimentos anti-igualitários e políticas públicas. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180353. . Apesar de todos os ataques, a garantia dos direitos das mulheres e de todos será cada vez mais fortalecida, pois o que foi visto não poderá mais ser negado, e a universidade é um local especialmente importante para resistir à obscuridade com clareza.
Referências
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1Palmer JE, Perrotti C. Measuring self-reported sexual victimization experiences at one university: a comparison of methods. J Stud Aff Res Pract. 2016; 53(4):403-15.
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2Kaufman MR, Tsang SW, Sabri B, Budhathoki C, Campbell J. Health and academic consequences of sexual victimization experiences among students in a university setting. Psychol Sex. 2019; 10(1):56-68.
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3Bellini DMG. Violência contra mulheres nas universidades: contribuições da produção científica para sua superação (Scielo e Web of Science 2016 e 2017) [dissertação] [Internet]. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos; 2018 [citado 2 Out 2018]. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/9942
» https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/9942 -
4Miskolci R, Pereira PPG, Miskolci R, Pereira PPG. Educação e saúde em disputa: movimentos anti-igualitários e políticas públicas. Interface (Botucatu). 2019; 23:e180353.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
14 Nov 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
03 Set 2019 -
Aceito
05 Set 2019