Resumos
Movidos pelo desejo de arriscar a invenção com o que se tinha à mão, realizamos um projeto de pesquisa e extensão universitária denominado Metodologias da Presença para estudantes em formação da área da Saúde. Tratou-se de uma plataforma remota de criação para encorajar os participantes a produzir e compartilhar exercícios artísticos por meio de três ativações de presença. Esta experiência contou com a participação de uma comunidade provisória. Impulsionados pela prática limiar pedagógica e artística, seguimos indagando como foi possível a instauração desse estado sensível e vitalizador no grupo? Que tipos de composição impulsionaram as transformações singulares e coletivas mediante a materialização das produções artísticas? Quais as distintas qualidades de presença que puderam ser ali mobilizadas? A produção artística, a presença comum e a construção de grupalidade podem existir em comunicações tecnomediadas na formação em Saúde?
Palavras-chave
Presença; Saúde; Imagem; Comum; Arte comunitária
Driven by the desire to take the risk of inventing with what is at hand, we conducted a research and university outreach project for health students called “Methodologies of Presence”. We developed a remote content creation platform to encourage participants to produce and share artistic exercises from three presence activations. The experience included the participation of a temporary community. Propelled by threshold pedagogical and artistic practice, we inquired how was it possible to establish this sensitive and vitalizing state within the group. What types of composition drove the singular and collective transformations spurred by the materialization of artistic productions? Which different qualities of presence were mobilized? Can artistic production, common presence, and the construction of groupality exist within techno-mediated communications in health education and training?
Keywords
Presence; Health; Image; Common; Community art
Movidos por el deseo de arriesgar la invención con lo que estaba a mano, realizamos un proyecto de investigación y extensión universitaria denominado “Metodologías de la presencia” para estudiantes en formación del área de la salud. Se trató de una plataforma remota de creación para alentar a los participantes a producir y compartir ejercicios artísticos a partir de tres activaciones de presencia. Esta experiencia contó con la participación de una comunidad provisional. Impulsados por la práctica inicial pedagógica y artística, continuamos indagando: ¿Cómo fue posible la instauración de ese estado sensible y vitalizador en el grupo? ¿Qué tipos de composición impulsaron las transformaciones singulares y colectivas a partir de la materialización de las producciones artísticas? ¿Cuáles fueron las distintas cualidades de presencia que pudieron movilizarse? ¿La producción artística, la presencia común y la construcción de grupalidad pueden existir en comunicaciones tecnomediadas en la formación en salud?
Palabras clave
Presencia; Salud; Imagen; Común; Arte comunitario
Introdução
Como forjar presença comum para tempos tão estranhos? Como imaginar partilhas inventivas na formação em Saúde? Movidos pelo desejo de arriscar a invenção com o que se tinha à mão, no cotidiano, em tempos de confinamento, realizamos de novembro/2020 a fevereiro/2021 um projeto de pesquisa e extensão universitária denominado Metodologias da Presença, em um instituto interdisciplinar de formação em Saúde. Tratou-se de uma plataforma remota de criação e invenção para encorajar os participantes a produzir e compartilhar exercícios artísticos por meio de três proposições/ativações de presença. Diante do acontecimento Covid-19 e seus efeitos nos corpos, nos saberes e nas vidas individual e coletiva, a proposta de extensão universitária teve interface com uma disciplina de Pós-Graduação do Programa Interdisciplinar em Ciências da Saúde, e foi desenvolvida por um trio de docentes-pesquisadores-artistas do Laboratório Corpo e Arte da Unifesp - Campus Baixada Santista, contando com a participação de uma comunidade provisória acionada por meio de um processo de convocatória.
Em um momento de maior visibilidade e agudização de desigualdades de toda ordem (econômica, social, política, ambiental, tecnológica, relacional, de condições e oportunidades, entre tantas que já se apresentavam antes mesmo da pandemia de coronavírus), percebemos diariamente um achatamento da experiência sensível e da presença que também se evidenciava nos processos formativos e pedagógicos da formação em Saúde. Diante do problema da frieza, da ausência e do desencanto, mas principalmente das incertezas em relação ao futuro, a plataforma propôs um exercício de imaginação e invenção de mundos, instaurado por estados e efeitos de presença comum, acalorado por alianças “com sujeitos que não pensam como nós, com sujeitos que não pensam como humanos, e com sujeitos que não pensam”11 Taddei R. Habitar um futuro que não repetirá o passado [Internet]. Belo Horizonte: Piseagrama; 2020 [citado 16 Jul 2021]. p. 118-127. Disponível em: https://piseagrama.org/habitar-um-futuro-que-nao-repetira-o-passado/
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. Arriscamos alianças que se construíram por sensações, afetos e outras formas corpóreas de existência.
O começo, o convite
A condição de pandemia impulsionou de forma geral um imenso movimento de atividades on-line na educação, incluindo a área da formação em Saúde, dadas as exigências dos cuidados impostos para evitar a transmissão e o contágio do vírus Sars-cov2. Desde reuniões, aulas e cursos completos, apresentações artísticas domésticas e profissionais, até novos grupos de estudos e encontros acadêmicos proliferaram de um modo bastante positivo durante essa época, consolando-nos e preenchendo as necessidades de relação social e profissional, ao menos daqueles que dispunham de acesso à internet. Novos formatos e sentidos foram produzidos para esse tipo de encontro, que possibilitaram a aproximação tecnomediada de pessoas em locais geográficos distantes.
A modalidade de atividade virtual multiplicou-se a ponto de, após um período de euforia pela aparente oferta infinita, causar uma sensação de saturação. O sonho emergente de poder estar em dois ou mais “lugares” distintos ao mesmo tempo foi justificado pelas exigências do isolamento e sintetizou, nos dispositivos eletrônicos, a ingênua tarefa de realizá-lo, independentemente da pessoa, de sua vida, em seu espaço doméstico. Era possível e, mais que isso, aceitável estar logado em reuniões virtuais sucessivas e ininterruptas, ou simultâneas, apesar dos limites da capacidade de atenção e presença humanas. A pandemia acabou por franquear, além de uma pretensiosa onipresença, novas formas de uma ausência ilimitada, legitimada e também compartilhada.
O tempo de exposição à frieza das telas e os formatos protocolares e artificiais de encontro foram por vezes excessivos, dando-nos indícios de esgotamento. Fizeram surgir as fronteiras mais severas nas relações entre, de um lado, os desejos de estar junto e, de outro, a imposição do retiro forçado causado pela pandemia, ambos mediados pelas plataformas virtuais de encontro.
A presença, que já caminhava a passos errantes com o advento de tecnologias diversas de conexão, foi intensificada e colocada em xeque.
Pois bem, no contexto descrito, como ofertar ainda mais uma atividade on-line? Como compartilhar e fazer chegar às pessoas possibilidades mais claras de escolha no infinito cardápio em que se transformou o “estar só diante de um computador ligado à internet”?
Nossos desejos de experimentação estimularam, desde o início da proposta, um movimento de busca de clareza e assertividade nas formas e etapas de divulgação. Isso ocorreu a fim de que o recíproco processo de “seleção natural” entre os interesses, os interessados e a produção de uma plataforma - com pilares virtuais - se sustentasse com a singularidade que algumas qualidades de presença específicas exigiam. Por exemplo: compromisso com os encontros previamente marcados, pontualidade, organização mínima possível do ambiente particular para os encontros, implicação com as tarefas, disponibilidade de diálogo por meio de câmera e microfone, dedicação à realização das tarefas, abertura a um processo novo e experimental.
Em meio àquele fluxo-macro de encontros virtuais que ocorria, em que, exatamente, nossa proposta possibilitava, a todos nós, acolhimento e potência de afirmação criativa? Era possível afirmar que não se trataria de uma live coletiva a ser assistida passivamente, tampouco de manuais de conduta ou dinâmicas de como manejar e incrementar as presenças individuais em situações análogas. Ansiávamos por compartilhar caminhos possíveis e sensíveis de sentido à vida nos tempos instáveis em que estávamos e continuamos. Certamente, apontávamos no sentido oposto ao modelo live, de transmissão ao vivo via internet de debate entre poucas pessoas ou apresentação artística com interação possível somente via mensagens curtas de chat, que acabou hiperdifundido e popularizado como recurso de convivência remota durante o período pandêmico.
Como primeiro passo, acompanhamos a grande onda da difusão inespecífica da notícia sobre a plataforma Metodologias da Presença nas redes sociais virtuais como forma de espraiamento do nosso desejo. Criamos um evento na página do Laboratório Corpo e Arte no Facebook com as informações gerais a respeito de datas, horários e duração dos encontros. Foi um primeiro semear amplo e generoso, buscando alcançar indistintamente todo e qualquer público conectado à internet.
Mediante a contemporânea e aparente suficiência dessa criação de evento virtual sem a necessidade de comparecimento real nas datas e horários propostos, começamos a ter uma noção quantitativa da reverberação da iniciativa. Já tínhamos experiências anteriores que indicavam maior chance de encontro e formação de grupo com um máximo de vinte pessoas, e pensávamos que esse seria o teto do número de vagas/participantes. As respostas via likes do Facebook e também do Instagram apontavam a necessidade, prevista, de uma seleção dada a boa repercussão.
Uma semana depois, como um recurso de formação de um vínculo inicial, lançamos o link de uma planilha GoogleDocs contendo perguntas básicas (nome, telefone, e-mail) e um prazo para o preenchimento. A inclusão dos dados no tempo solicitado já nos indicaria um grau maior de intenção na participação. O diálogo então começou a se dar de forma mais delineada. O envolvimento foi incentivado por meio de uma confirmação nominal por e-mail enviado pelo laboratório. Buscávamos de fato acompanhar cada participante e seu desejo de presença.
Fizemos a solicitação nesse e-mail de um vídeo de intenção em participar prenunciando o tipo de implicação que pretendíamos: o exercício de fluidez das vontades criativas singulares, represadas pela situação pandêmica, a ser realizado em linguagens artísticas diversas e compartilhado com uma coletividade. Expor-se ao gravar um vídeo de si mesmo manifestando intenções parece que nunca será algo trivial de se fazer, e a mera realização dessa tarefa comum para inscrição na plataforma se mostrou um acontecimento especial. Houve um interessante investimento no gesto de se filmar, e as primeiras ativações de presença foram deflagradas antes mesmo da possibilidade do primeiro encontro virtual.
A disposição para participar propiciada pela instigação a elaborar os vídeos iniciais revelou uma escolha decisiva a todos: a presença seria produzida sempre na relação entre as pessoas e a grupalidade em gestação. Começávamos a apostar na formação de um comum. Um engajamento. As respostas implicadas e os desejos já ativados, e com contornos mais nítidos, balizaram a formação de um grupo com intenções aproximadas; enfim, aquilo que vislumbrávamos inicialmente como presença comum.
Esse processo compassado de afinação e harmonização dos ímpetos nos ajudou a todos a regular o tempo e o espaço que habitávamos na rede virtual. Identificar os lances necessários para se destacar da infinitude possível em um computador ou celular conectado vem sendo valioso para os desafios de seleção e escolha do que fazer com a vida que ainda nos pulsa, aquecendo-a. As etapas propostas para a inscrição nutriram um tempo de decantação imanente a qualidades específicas de presença. Esse tempo parece ter se constituído como uma ruptura no ritmo acelerado de respostas automáticas aos impulsos dos inúmeros eventos virtuais possíveis e disponíveis diariamente. O contraste pode ter configurado aos participantes a demanda de uma certa convivência aberta com a proposta, durante mais de vinte dias, antes do “contrato” de um encontro síncrono confirmatório. Um namoro, com seus riscos e delícias.
A plataforma foi respirando e se alimentando por mútua afetação, ganhando, de um lado, maior confiança e, de outro, adeptos de que eleger um tempo/espaço para metodologias da presença em suas vidas era algo digno de se fazer.
É possível pensar que a ativação e a produção de uma presença comum tem a ver, antes, com a nitidez das escolhas possíveis de serem feitas. Enfim, um pressuposto para determinadas qualidades de presença que estaria calcado na sua chance de escolha e afirmação, uma certeza volátil e provisória, alta e continuamente dependente do outro e das relações a serem construídas conjuntamente.
A incerteza, marca maior desta época, com toda a sua eloquência amplificada pela pandemia, sempre esteve presente. E sempre estará. Apesar dela, um propósito comum foi deflagrado e insuflado como brasa, recordando-nos da perenidade da vida, sempre fugidia, nas coisas à mão.
Os encontros, as tarefas
A cada encontro síncrono mensal, foram lançadas tarefas e, para cada uma delas, houve um mês para sua realização assíncrona. As tarefas foram pensadas com base em campos de ativação de presença ou ativações de desejos: criança, planta e animal. A escolha das tarefas não se deu ao acaso. Esses campos emergiram de uma discussão das duas professoras-artistas-pesquisadoras e de um professor-artista-pesquisador que têm se dedicado a pensar e inventar dispositivos relacionados ao tema da presença e suas interfaces. O termo “presença” encontra abrigo teórico com maior enraizamento naquilo que é denominado Estudos da Presença22 Icle G. Estudos da presença: prolegômenos para a pesquisa das práticas performativas. Rev Bras Estud Presença. 2011; 1(1):9-27.. Trata-se de um campo constituído de pesquisa dentro das Performing Arts, conhecidas no Brasil como Artes Presenciais (teatro, dança, performance e música). Apesar de tangenciarmos essa área, não a adentramos, experimentando seus limites. Tratamos especificamente da miscigenação entre os saberes dos Estudos da Presença e a vida comum.
Em nosso primeiro encontro síncrono, com o objetivo de intensificar as produções artísticas e produzir vibração para exercitar as nossas presenças, foram enviadas “inspirações” ou “afetações” que consistiam em todo tipo de material que pudesse impulsionar ou dar contorno aos exercícios. Eram lives, entrevistas, trabalhos artísticos com temáticas relacionadas aos campos, música, poemas, performances, material imagético, textual e conceitual. Cada participante poderia (ou não!) acessar esse cardápio de possibilidades em qualquer momento do processo e se deixar afetar pelas produções do grupo que, pouco a pouco, eram compartilhadas na plataforma.
Tomamos a criança (que brinca e, portanto, está bem) como um primeiro campo a ser explorado (tarefa 1), por compreendermos que a sua corporeidade na relação com o mundo se encontra em estado de abertura, suficientemente poroso para os encontros. Seu corpo em estado de descoberta, curiosidade e invenção se encontra em devir.
Em relação à criança, não se tratava apenas de ativar nos participantes uma memória cronológica ou histórica de suas infâncias, mas de atiçar a chama da infância como condição da experiência, como acontecimento, como resistência, como revolução e como criação. Pensar a infância como aquela que justamente interrompe a história e que resiste aos movimentos totalizantes: “a criança autista, o “aluno nota dez” etc. A criança que está (e é) presente no presente, situada no intensivo do mundo, saindo sempre de “seu lugar” para se situar em outros lugares, inusitados, desconhecidos e inesperados33 Kohan WO. A infância da educação: o conceito devir-criança. Rev Educ Publica [Intrernet]. 2004 [citado 16 Jul 2021]:1-5. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/2/1/a-infancia-da-educacao-o-conceito-devir-crianca
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Com as plantas (tarefa 2), foi possível tensionar as relações (tomadas usualmente como dicotômicas) entre a natureza e a cultura. Estávamos provocados principalmente por Airton Krenak e Emanuelle Coccia44 IIC Rio. Conversa SELVAGEM Ciclo de estudos sobre a vida - com Ailton Krenak e Emanuele Coccia [Internet]. Youtube. 16 de Setembro de 2020 [citado 23 Jun 2021]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=v6L35uG4F6c
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, que nos fazem pensar o humano e a nossa vida no planeta Terra por meio de outras visões. Na aproximação com as plantas e seus ambientes, os participantes puderam olhar para si e ao redor, para as suas ações, saberes e poderes, redimensionando seu lugar no planeta e se reconhecerem como parte da natureza e não hierarquicamente “superior” a ela. Nessas provocações se criaram inquietudes, desacomodações e esperanças, afirmando a vida que nunca deixa de existir55 Krenak A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia das Letras; 2019. no seu sentido transformador, problematizando a gestão humana na Terra e suas implicações frequentemente destrutivas do planeta.
Por fim e com o animal (tarefa 3), foi possível dar corpo e expressividade a um campo que colocou em jogo o selvagem, o familiar, as normas, leis e liberdades, as visibilidades aos bichos de pequeno, médio e grande portes, ao animal da terra, do mar e das águas, produzindo aproximações e afastamentos entre corpos humanos e outros corpos.
O resultado de cada tarefa mobilizou diferentes ações e experiências narradas em diversas linguagens artísticas, tais como desenhos, textos, áudios, fotografias, performances, danças, poemas, tramas com fios ou mesmo passeios e caminhadas em diferentes ambientes, que, registrados em pequenos vídeos, foram compartilhados em uma plataforma virtual.
A cada encontro síncrono, os diferentes processos de realização podiam ser também expostos, conversados, buscando permanentemente uma presença comum que pudesse nos conectar uns com os outros, com as criações, seus processos e suas camadas. Algumas ferramentas virtuais (principalmente o uso do vídeo para dar imagem aos processos que poderiam ser partilhados via plataforma visual) puderam ser arriscadamente experimentadas de modo possível e singular por cada um dos participantes. Os campos desejantes nos impulsionaram a aprender, reconhecer, produzir e aquecer processos de diferenciação, cuidado e construção de intimidade.
Na apreciação das produções artísticas, perguntas e problematizações puderam ser tecidas, produzindo sensações, ideias, coragens, hesitações, incômodos, percepções e, mais que tudo, um contágio do belo, por suas potências poética, política e estética presentes nessa ação coletiva em tempos pandêmicos.
A presença comum, a partilha sensível
“Entende-se por presença a capacidade movida pelo desejo de se estar simultaneamente no mesmo tempo e espaço em que se está. No presente, com atenção e vontade”66 Federici CAG, Guzzo MSL. Experimentos práticos para presença e alegria em reuniões virtuais com verdades fictícias [Internet]. Tramadora.net; 2020 [citado 24 Jun 2021]. Disponível em: https://www.tramadora.net/2020/06/03/experimentos-praticos-para-presenca-e-alegria-em-reunioes-virtuais-com-verdades-ficticias/
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(p. 1). Pensar o presente com atenção e desejo, estar junto e produzir algo junto foi um desafio imposto pelo Google Meet e, também, pelo estado de ausência em que muitos de nós nos encontramos diante das notícias sobre mortes, doenças e sobre a catástrofe política que assola o Brasil. Nesse contexto, entendemos a importância dos exercícios de “ativação” de presença, que foram propostos para criar uma incandescência comum, essa linha invisível de conexão entre os participantes.
As “tarefas”, como foram nomeadas, vieram inspiradas pela metodologia de trabalho do grupo ou movimento Fluxus, que de acordo com Dick Higgins (1938-1998) “É um modo de fazer coisas [...], uma forma de viver e morrer”77 Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. Fluxus [Internet]. São Paulo: Itaú Cultural; 2021 [citado 22 Jun 2021]. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3652/fluxus
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. Criado em um Festival na Alemanha em 1962 por vários artistas de diversos países, como Yoko Ono, Joseph Beuys, John Cage, entre muitos outros, o grupo interdisciplinar pode ser pensado mediante um conjunto de procedimentos, um grupo específico ou uma coleção de objetos, que traduz uma atitude diante do mundo, do fazer artístico e da cultura que se manifesta nas mais diversas formas de arte: música, dança, teatro, artes visuais, poesia, vídeo, fotografia e outras. O movimento criou uma comunidade que queria não só que a arte estivesse disponível para toda a gente, mas pretendia também que toda a gente produzisse arte constantemente.
Atravessados por esses procedimentos colaborativos, propusemos a formação de uma comunidade provisória virtual, trabalhamos as tarefas já descritas também com o fazer artístico e inventivo dentro da casa, pois muitos de nós estavam confinados, impedidos de sair por medidas de proteção. Uma plataforma virtual permitia que assistíssemos uns aos outros enquanto íamos produzindo, provocando também outras ativações pelo olhar e pela experiência do outro. O percurso foi nos mobilizando e esquentando os intervalos entre os encontros, misturando os tempos entre arte, vida, saúde e cotidiano.
Essa não separação da arte e da vida foi tecendo uma rede de afetos na experiência e pela arte, uma promessa de espaço comum88 Ranciére J. Política da arte. Urdimento. 2010; 2(15):45-59. Doi: https://doi.org/10.5965/1414573102152010045.
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. Mesmo com tantas demandas emocionais e práticas que a pandemia nos impôs, conseguimos experimentar algo inútil, frágil e não produtivo, que pertencia a um tempo-espaço próprio dentro da vida cotidiana e dos dispositivos de mediação (computador, celular). Estabeleceu-se uma experiência sensível distante das hierarquias impostas às reuniões virtuais. Acontecia ali uma promessa também de manifestação coletiva, onde a arte não existia como categoria separada da vida. A não separação da arte e da vida é algo que nos interessa como uma outra racionalidade e outra potência para pensar/criar o corpo.
Essa relação entre arte, vida e corpo pode ser aproximada aqui pela partilha sensível que Rancière88 Ranciére J. Política da arte. Urdimento. 2010; 2(15):45-59. Doi: https://doi.org/10.5965/1414573102152010045.
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apresenta. Essa concepção entende que um sistema de evidências sensíveis revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Isto é, compartilhamos um comum e temos nisso partes exclusivas: essas divisões se partem ainda em divisões de tempos, espaços e tipos de atividades sensíveis, como em uma trama de um tecido. As tarefas eram nosso comum: criança, animal, planta. Mas cada participante se organizou dentro disso, criando, por meio da materialidade artística a ser compartilhada, tempos e espaços outros, modos de criação e relação com as tarefas.
A organização singular desse comum proporcionou a partilha sensível que aconteceu nesse projeto. Foi feita por recortes de tempos e espaços expostos nas telas, do visível e do invisível compartilhado pelo Google Meet, da palavra e do ruído dos microfones que se abriam e fechavam, ou das conexões que se perdiam, definindo, assim, o lugar da experiência. Essa experiência foi também entendida por nós como a possibilidade de estarmos presentes, juntos, realizando uma investigação de possibilidades de vida e organização no cotidiano da pandemia, aproximando, recuperando e trazendo de volta algum calor para nossas relações. No recorte desse contexto, o que mais poderia significar saúde?
Essa organização das formas, o olhar distinto para a casa, para as plantas, para os animais ou para o corpo que brinca, é uma organização estética. Uma emancipação de uma vida esfriada e homogeneizada pelas experiências de isolamento e contato virtual. Rancière88 Ranciére J. Política da arte. Urdimento. 2010; 2(15):45-59. Doi: https://doi.org/10.5965/1414573102152010045.
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afirma que é no campo estético que se trava uma batalha de emancipação política:
A experiência estética deve realizar sua promessa suprimindo sua particularidade, construindo as formas de uma vida comum indiferenciada, onde arte e política, trabalho e lazer, vida pública e existência privada se confundam. Ela define portanto uma metapolítica, isto é, o projeto de realizar realmente aquilo que a política realiza apenas aparentemente: transformar as formas da vida concreta, enquanto a política se limita a mudar as leis e as formas estatais88 Ranciére J. Política da arte. Urdimento. 2010; 2(15):45-59. Doi: https://doi.org/10.5965/1414573102152010045.
(p. 50)
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A experiência do comum, de emancipação sensível, torna-se um caminho possível e viável para seguir pensando a vida em sua potência. É importante não romantizar esse comum como algo fácil, idílico e, necessariamente, melhor. O comum é um processo que exige constante implicação, prática corporal, escuta, imaginação. A criação dessa presença comum, pensada como processo, demanda cuidado e atenção constante, necessários para pensar: que comum é esse?
Um comum que pressupõe práticas de colaboração e coexistência no tecimento de vínculos de sustentação orientados por valores democráticos, comunitários, e do poder partilhado - inclusive do poder do artista. Uma arte que se aproxima desse conceito como exercício de contorno e definição significa que criar (em suas diferentes formas e maneiras) não separa o mundo entre nós (os artistas, professores, produtores que investigam, pensam e fazem arte) e os outros (alunos, público, curadores ou espectadores). Ou, como sugere Cohen-Cruz99 Cohen-Cruz J. Beyond the “other”: seeking commonality in a divided world. In: Cruz C, Cruz H, Bezelga I, Falcão M, Aguiar R, organizadores. A busca do comum - práticas artísticas para outros futuros possíveis. Porto: Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade - i2ADS; 2020. p. 16-20., perante o contexto atual de desafios sociopolíticos exigentes, precisamos pensar como artistas e suas proposições podem revelar as nuances que temos em comum, procurando mais pessoas para gerar ideias de como manifestar as mais diversificadas experiências do mundo.
Uma arte comum funda uma relação de copertencimento e interdependência. Uma comunidade que faz e é feita por aquilo que é comum enquanto criamos juntos ou separados. O comum parte, então, do reconhecimento de que “existimos pelas coisas que nos sustentam, assim como sustentamos as coisas que existem através de nós, numa edificação ou numa instauração mútua”1010 Moraes A, Parra HZM. Laboratórios do comum: experimentações políticas de uma ciência implicada. Rev Cent Pesqui Form. 2020; (10):113-139. (p. 115).
A experiência da Plataforma Metodologias da Presença arriscou essa instauração ou fabricação do comum como conceito condutor da insurgência de novas coletividades, definindo “[fazer o comum] como expressão de ação, de vontade de gerar o coletivo”1111 Llano CRM, Subirats J. Los (bienes) comunes: ¿oportunidad o espejismo? Madri: Icaria; 2016. p. 104. apud Silveira SA, Savazoni R. O conceito do comum: apontamentos introdutórios. Liinc Rev. 2018; 14(1):5-18. Doi: https://doi.org/10.18617/liinc.v14i1.4150. (p. 11).
É uma ativação, uma ideia de construir juntos possibilidades e sentidos para a vida, que não são dados apenas pelo poder público ou por grandes instituições, mas que podem ser pensados por meio de organizações, encontros, artistas, pesquisadores, educadores e ativistas.
Conclusivamente, a experiência notabilizou uma presença comum forjada pela experiência estética partilhada e sustentada por práticas de cuidado e atenção com um grupo diverso e implicado. Observamos que, mesmo estando fisicamente longe uns dos outros e acoplados a ferramentas virtuais, foi possível produzir encontros que aqueceram afetivamente e mobilizaram o grupo, propiciando o estar juntos mesmo em tempos adversos e despontecializadores.
Foi distintivo nesta proposta o exercício da presença indissociado da formação em Saúde. O saber-fazer corpo em expressão não estaria, portanto, restrito aos contextos hegemonicamente compreendidos e circunscritos da arte, ou do palco, outrossim permeável em seu caráter estético misturado com a vida. Admitimos a impossibilidade de separação dos aspectos estéticos da produção de cuidado, ainda que em fase formativa, em sua harmonia e sua plástica, com seus ritmos diversos, suas proporções, aparências, seus contrastes, suas nuances, dissonâncias e belezas, e a presença seria a sua própria ética de sentir, pensar, imaginar e agir.
Essa presença tem relação com a sensação de que um corpo ou, nesse caso, vários corpos estão presentes - corpos vivos, não só de pessoas, mas também de outros viventes, como as plantas e animais ou objetos utilizados nas criações. A presença decorrente da sensação produz o que Josette Féral chamou de um “efeito de presença”1212 Féral J. How to define presence effects: the work of Janet Cardiff. In: Giannachi G, Kaye N, Shanks M, organizers. Archaeologies of presence: art, performance and the persistence of being. London: Routledge; 2012. Chap. 2, p. 29-49..
O efeito de presença tem a ver com a percepção. É uma sensação mais do que representação. De fato, o próprio ser do homem é definido pela sua presença, pela sensação da sua presença. Nessa busca, o mundo permanece mais como percepção do que como representação. Trata-se de uma experimentação desse efeito. O efeito da presença já não reside no ato da aparição, mas sim na percepção dessa aparição. É a própria percepção que cria a síntese dessa multiplicidade de seres que constituem um ser. Antes de analisar qualquer relação com outras pessoas, o próprio corpo percebe toda a situação paradoxal que pertence à percepção. O corpo é simultaneamente um obstáculo e um elemento necessário para essa percepção1212 Féral J. How to define presence effects: the work of Janet Cardiff. In: Giannachi G, Kaye N, Shanks M, organizers. Archaeologies of presence: art, performance and the persistence of being. London: Routledge; 2012. Chap. 2, p. 29-49..
(p. 34, tradução nossa)
Estar presente e produzir efeitos de presença para uma comunidade, mesmo que provisória, colocou-nos em estado de jogo e pudemos experimentar a nossa própria existência no mundo. A realização dos processos artísticos, além de lidar com as subjetividades singulares existenciais, tinha um endereçamento coletivo voltado para fora, para a permuta.
Essa experiência, conduzida pelo efeito da presença e do jogo, “envolve o pensamento e a memória ao mesmo tempo”1212 Féral J. How to define presence effects: the work of Janet Cardiff. In: Giannachi G, Kaye N, Shanks M, organizers. Archaeologies of presence: art, performance and the persistence of being. London: Routledge; 2012. Chap. 2, p. 29-49. (p. 44 - tradução nossa), mas se apresenta no tempo presente. Tem espaço, tempo e potência de presente! De presença! De chama da vida! De nós e dos outros - entendendo esses outros como uma rede espessa de ecologias, de viventes humanos e não humanos e de matérias que nos habitam. Crianças, animais, plantas. Outros mundos possíveis.
Por um lado, ela [a presença] apela a uma ressonância dentro do nosso ser e, por outro, a uma ressonância do nosso ser sobre o mundo.[...] evocam a sensação de que existe uma verdadeira partilha de um espaço e de um tempo comuns1212 Féral J. How to define presence effects: the work of Janet Cardiff. In: Giannachi G, Kaye N, Shanks M, organizers. Archaeologies of presence: art, performance and the persistence of being. London: Routledge; 2012. Chap. 2, p. 29-49..
(p. 44 - tradução nossa)
Essa presença, esse tempo comum, não é nada que acontece por algo extraordinário. Ao contrário: é justamente pela construção contínua e constante de práticas ordinárias, mundanas e corpóreas. São semelhantes à presença das crianças, plantas e animais...
Começam com um convite, quase uma sugestão, uma semente, com o jeito que se faz o chamado, com a preparação da terra, com a possibilidade de se engajar, de responder, de regar, de brincar e de estar disponível para o jogo que se apresenta, de se apresentar a tempo e no tempo comum em relação com os outros à nossa volta. De regar, cultivar e alimentar. Sustenta-se pela escuta e pela troca contínua, com delicadeza e cuidado. Foi uma proposta outra de formação em Saúde que também estivesse conectada com a ideia de comum, de presença. Com escolhas de recortes e temáticas que fizessem sentido para os participantes e para o tempo em que vivemos, diretamente relacionados aos desafios da área da Saúde no meio de uma pandemia. Essa proposta/ação aconteceu pelo desejo de atravessar um tempo de incertezas e riscos, inventando modos de ser e estar diante de tanto adoecimento, medo e grandes perdas. Do desejo de poder nos conectar com outros tipos de presença como das crianças, das plantas e dos animais. Tão necessárias e emergentes para um mundo que se apresenta em colapso. De imaginários que nos impulsionam também nessa construção de vitalidade e de presente. E de caminhos que apontam futuros, brechas, saídas. Visíveis e invisíveis. De sentir, pensar e inventar. Juntos.
Agradecimentos
A todas as pessoas que participaram diretamente das ações e ao coletivo da disciplina de Pós-Graduação Utópicos Avançados em Pesquisa, por nutrirem comunitária e continuamente o pensamento.
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Federici CAG, Guzzo MSL, Liberman F. Presença comum: dispositivos para invenção na formação em Saúde. Interface (Botucatu). 2022; 26: e210757 https://doi.org/10.1590/interface.210757
Referências
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Editado por
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Set 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
26 Nov 2021 -
Aceito
18 Jun 2022