Resumos
A violência contra a mulher ganhou espaço impulsionado, na agenda política, pelo movimento de mulheres com diversas políticas públicas voltadas para a assistência às mulheres. Analisam-se resultados de uma pesquisa no município de São Paulo, Brasil, com profissionais da rede de serviços intersetoriais especializados em relação às mudanças ocorridas com a Lei Maria da Penha. Os dados mostram que, apesar da ampliação dos serviços de assistência, defesa e proteção da mulher, há dificuldades para um trabalho integrado nas ações e na interação dos profissionais a fim de buscarem um projeto assistencial comum, fundamento considerado principal para atuação em rede. Conclui-se que a superação dessas dificuldades é um desafio no contexto político atual de sucateamento dos serviços e enfraquecimento das políticas públicas voltadas para os direitos das mulheres.
Violência contra a mulher; Rede intersetorial de serviços; Lei Maria da Penha
Violence against women has gained space in the political agenda, driven by the women’s movement, with the making of public policies targeted at assistance for women. We analyze the results of a study carried out in the city of São Paulo, Brazil, with professionals from the specialized intersectoral services network, focusing on the changes that have occurred due to the Maria da Penha Law. Data show that, in spite of the expansion of the services that provide assistance, defense and protection for women, there are difficulties concerning integrated work in professionals’ actions and interaction, which hinders the outline of a common assistance project - the most important principle for a networked action. The conclusion is that overcoming these difficulties is a challenge in the current political context of degeneration of the services and weakening of public policies targeted at women’s rights.
Violence against women; Intersectoral services network; Maria da Penha Law
La violencia contra la mujer ganó espacio impulsado, en la agenda política, por el movimiento de mujeres con diversas políticas públicas enfocadas en la asistencia a las mujeres. Se analizan resultados de una investigación en el municipio de São Paulo, Brasil, con profesionales de la red de servicios intersectoriales especializados en relación con los cambios habidos en función de la Ley Maria da Penha. Los datos muestran que, a pesar de la ampliación de los servicios de asistencia, defensa y protección de la mujer, hay dificultades para un trabajo integrado en las acciones y en la interacción de los profesionales para que busquen un proyecto asistencial común, fundamento considerado principal para la actuación en red. Se concluyó que la superación de estas dificultades constituye un desafío en el contexto político actual de desmantelamiento de los servicios y debilitación de las políticas públicas enfocadas en los derechos de las mujeres.
Violencia contra la mujer; Red intersectorial de servicios; Ley Maria da Penha
Introdução
Os últimos quarenta anos no Brasil foram marcados por importantes mudanças na produção de assistência a mulheres em situação de violência, tanto no campo da saúde quanto no da assistência social, jurídica e segurança pública, conformando o que se denomina de rede intersetorial de serviços. Tais mudanças foram impulsionadas pelas reivindicações do movimento feminista nacional e internacional, levando para o debate sobre os direitos humanos a questão dos direitos das mulheres e especialmente o direito à saúde e a uma vida sem violência, incluindo outras modalidades de atenção além da saúde 11. Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência – da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Digital. 2012; 12(3):1-19. .
Na década de 1980, assistimos à redemocratização do país e a violência contra a mulher ganha espaço na agenda política. Entre suas importantes conquistas estão: a criação do primeiro serviço voltado para o atendimento a mulheres vítimas de violência, o SOS-Mulher, por meio de uma Organização Não Governamental feminista 22. Pinto CRJ. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; 2003. ; a criação, na cidade de São Paulo, em 1985, da primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) 33. Saffiotti HIB. Violência doméstica: questão de polícia e da sociedade. In: Corrêa M, organizador. Gênero e cidadania. Campinas: Pagu/Núcleo de Estudos de Gênero-Unicamp; 2002. p. 59-69. (Coleção Encontros). ; a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, com status de ministério e importante atuação na conquista de diversos direitos para as mulheres na Constituição de 1988 22. Pinto CRJ. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; 2003. ; e a criação, em 1989, do primeiro programa público de aborto legal no Hospital Municipal Arthur Ribeiro Saboya 44. Drezett J. Aspectos biopsicossociais da violência sexual. In: Seminário Nacional de Intercâmbio e Formação sobre Questões Ético-Religiosas para Técnicos/as dos Programas de Aborto Legal. Aborto Legal: implicações religiosas. São Paulo: Publicação CDD; 2002, p. 115-123. , em São Paulo.
Na década de 1990, foram criadas as primeiras Casas Abrigo 55. Grossi PK, Tavares FA, Oliveira SB. A rede de proteção à mulher em situação de violência doméstica: avanços e desafios. Athenea Digital. 2008; 14:267-80. e a primeira instituição governamental especializada no atendimento a mulheres em situação de violência, a Casa Eliane de Grammont, vinculada à prefeitura de São Paulo 66. Kiss LB, Schraiber LB, D’Oliveira AFPL. Possibilidades de uma rede intersetorial de atendimento a mulheres em situação de violência. Interface (Botucatu). 2007; 11(23):485-501. . No campo jurídico, entra em vigor a Lei 9.099/1995, que cria os Juizados Especiais nas áreas cível e criminal (JECRIM), com a competência para conciliação e julgamento de infrações penais de menor potencial ofensivo (penas menores de dois anos) e que, assim, recebe também casos de mulheres em situação de violência doméstica 77. Rifiotis T. Judiciarização das relações sociais e estratégias de reconhecimento: repensando a ‘violência conjugal’ e a ‘violência intrafamiliar’. Rev Katálysis. 2008; 11(2):225-36. .
Com a virada do milênio, o Ministério da Saúde inclui em suas normativas orientações voltadas para violência intrafamiliar. Além disso, passa a ser compulsória em todo país a notificação para vigilância epidemiológica dos casos de violência contra a mulher, atendidos nos serviços de saúde 88. Brasil. Presidência da República. Lei nº 10.778, de 24 de Novembro de 2003. Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Diário Oficial da União. 25 Nov 2003. ; e o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher é transformado em Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM), incorporando em suas ações a atenção a mulheres em situação de violência 99. Brasil. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. .
Em 2003 foi constituída a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), voltada para assessoria direta da Presidência da República na elaboração, coordenação e articulação de políticas para as mulheres 55. Grossi PK, Tavares FA, Oliveira SB. A rede de proteção à mulher em situação de violência doméstica: avanços e desafios. Athenea Digital. 2008; 14:267-80. . Já em 2006, foi sancionada a Lei 11.340 1010. Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.340, de 7 de Agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Coíbe a violência doméstica e familiar contra a mulher. Imprensa Nacional. Brasília: Presidência da República; 2006. , também conhecida como Lei Maria da Penha (LMP), que tipifica a violência doméstica como uma violação dos direitos humanos; estabelece suas formas; altera o Código Penal, possibilitando a prisão do agressor em flagrante ou preventivamente; prevê novas medidas de proteção à mulher, incluindo a rede de serviços; e determina a criação de Juizados e Varas Especializados em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com atuação no âmbito cível e criminal, em defensorias especializadas 1010. Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.340, de 7 de Agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Coíbe a violência doméstica e familiar contra a mulher. Imprensa Nacional. Brasília: Presidência da República; 2006. .
Com todas essas mudanças em termos dos equipamentos disponíveis para a atenção às mulheres em situação de violência, ao longo do período foram realizadas mudanças nas modalidades assistenciais ofertadas, bem como em seus possíveis encadeamentos, o que ocorreu no plano nacional e, com variações importantes, no âmbito regional e local dos estados e municípios brasileiros.
Em relação ao município de São Paulo, mapeamentos anteriores sobre o conjunto de serviços 11. Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência – da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Digital. 2012; 12(3):1-19. , 66. Kiss LB, Schraiber LB, D’Oliveira AFPL. Possibilidades de uma rede intersetorial de atendimento a mulheres em situação de violência. Interface (Botucatu). 2007; 11(23):485-501. analisados a partir das vocações assistenciais – definidas com base nos tipos de ações efetivamente realizadas por cada serviço – identificaram obstáculos relacionados às diferenças nas propostas e finalidades das ações e a uma assistência integrada entre os serviços. Schraiber et al. 11. Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência – da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Digital. 2012; 12(3):1-19. discutem o modo de funcionamento do conjunto desses serviços que se daria muito mais como uma espécie de “trama” do que como uma “rede” propriamente dita, apontando uma distinção entre essas duas noções.
Para as autoras, o funcionamento em rede não apenas implica na articulação das ações entre os serviços, mas também deve incluir necessariamente uma interação entre agentes de práticas desses serviços, sendo que essa interação é voltada para a construção consensual de um projeto assistencial em comum. Ressalta-se que essa construção pode ser realizada em fóruns intersetoriais, em âmbito municipal ou mesmo estadual, enquanto instâncias do provimento assistencial que pode congregar representações dos diferentes setores e/ou tipos de serviços que são disponibilizados às mulheres em situação de violência.
Já o funcionamento como trama, por sua vez, pode satisfazer apenas a determinadas formas de articulações entre as ações assistenciais, como os encaminhamentos ou a melhoria dos acessos, sem que necessariamente isso também represente a constituição de modos de assistência em comum entre os serviços. Vale dizer que a rede que busca uma atenção integral requer o compartilhamento de modelos assistenciais determinados, tal como compartilhar a melhor forma de não se fazer julgamento moral da vítima, ou não revitimizar a mulher que sofreu violência, em todos os tipos de serviços pelos quais ela pode passar. Já uma trama pode resultar da justaposição de intervenções particulares de cada serviço sem uma integração entre as ações. Dessa forma, o funcionamento em rede não se dá simplesmente pela existência de um conjunto de serviços em determinada região, ainda que estes façam encaminhamentos dos casos entre si. É preciso que haja uma articulação das ações e dos profissionais no sentido de uma assistência que seja compartilhada e acordada entre os atores envolvidos a partir das necessidades particulares de cada caso 11. Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência – da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Digital. 2012; 12(3):1-19. .
Tendo em vista as mudanças históricas mencionadas e essas distinções conceituais, o presente artigo tem por objetivo identificar e analisar mudanças ocorridas nos serviços e nas vocações assistenciais (psicossocial, policial e jurídica) que constituem hoje referência significativa para a Atenção Primária do setor Saúde, examinando as condições facilitadoras ou obstaculizadoras de possível funcionamento em rede.
Metodologia
A produção dos dados empíricos realizada no período de abril a outubro de 2017 centrou-se em duas regiões do município de São Paulo, identificando os principais serviços referidos pela Atenção Primária à Saúde (APS) dessas regiões. Foi baseada na técnica de entrevista semiestruturada com profissionais identificados como informantes-chaves das equipes existentes nesses serviços. Considerou-se informante-chave aquele profissional com inserção direta no atendimento às mulheres.
As entrevistas foram gravadas e seguiram um roteiro pré-testado que levasse os profissionais a refletir sobre organização e estruturação dos serviços; seu funcionamento cotidiano; acesso e acolhimento das mulheres; práticas assistenciais; e os desafios encontrados na articulação com outros serviços da rede. Os dados gerados pelas entrevistas foram submetidos à análise temática e foram agrupados e analisados no interior de cada uma das vocações assistenciais.
Além disso, foi realizada observação participante de reuniões das redes intersetoriais de cada região e de uma audiência pública sobre o tema na Câmara Municipal de São Paulo. Os dados coletados foram registrados em diário de campo e analisados em triangulação com os dados das entrevistas.
É importante destacar que, em razão do fato de que a maioria dos profissionais dos diferentes serviços designa o conjunto de serviços existentes como uma atuação em rede e acaba se referindo a estes como uma rede, não fazendo a distinção conceitual antes apontada, na apresentação dos resultados será mantida essa designação. Na análise, o exame dos relatos apontará a ocorrência ou não da atuação em rede e, em caso negativo, os elementos responsáveis por essa possível atuação, apontando-se para futuras intervenções no sentido de alcançar e aprimorar a atuação em rede.
A presente pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, respeitando normas e diretrizes regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos (Cappesq nº 2.079.832; Pós-doutorado CNPq nº 2017-864). O anonimato das instituições, bem como dos entrevistados, fez parte do consentimento pré-informado da pesquisa.
Resultados
Em termos dos serviços que mais se relacionaram com a APS das regiões estudadas, encontram-se: Vocação Psicossocial Especializada – Centro de Defesa e Convivência da Mulher (CDCM) –, Vocação Policial (DDM) e Vocação Jurídica (Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Defensoria Pública e Ministério Público).
No total, foram realizadas 16 entrevistas com profissionais, todas mulheres e assim distribuídas: DDM – duas delegadas e uma escrivã; CDCM – duas gerentes, duas psicólogas, duas assistentes sociais e uma advogada; Defensoria Pública do Estado – uma defensora pública, uma psicóloga do Centro de Atendimento Multidisciplinar que atua junto com a Defensoria e uma agente de Defensoria d d A formação acadêmica desta profissional foi suprimida em favor da proteção de seu anonimato. do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem); Ministério Público – uma promotora da Promotoria Especializada de Violência Doméstica (Gevid); e Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – uma juíza titular e uma assistente social. Observou-se a recusa de um dos serviços contatados da vocação jurídica. Seguem os dados separados por vocação assistencial.
Assistência psicossocial
De acordo com relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) de 2013, que buscou investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil, até 2012, o serviço especializado que mais aumentou no país, facilitando o acesso das mulheres, foram os Centros de Referência para a Mulher, tornando-se na última década uma importante política pública voltada para a assistência a mulheres e enfrentamento da violência 1111. Brasil. Senado Federal. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito-CPMI com a finalidade de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil. Brasília: Senado Federal; 2013. (Relatório final). . Entretanto, politicamente configurou-se uma situação atípica no município de São Paulo 1212. Santos CM. Curto-circuito, falta de linha ou na linha? Redes de enfrentamento à violência contra mulheres em São Paulo. Estud Fem. 2015; 23(2):577-600. , na qual os serviços de assistência psicossocial ficaram divididos em duas secretarias: os Centros de Referência da Mulher (CRM) de administração direta da prefeitura pela Secretaria de Direitos Humanos (após a extinção da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres) e os CDCM e as Casas Abrigo, de administração indireta pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), supervisionados pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), gerenciados via organizações sociais (OS). Assim, entre as dificuldades relatadas pelas entrevistadas, estão tensões na relação entre OS e SMADS, que parecem impactar no trabalho das profissionais, sendo consideradas como um obstáculo.
Às vezes é um pouco complicada, a relação, porque eles [profissionais do CRAS] são da Prefeitura, concursados, e nós somos uma organização. Então parece que eles, às vezes, não veem como uma parceria e sim como concorrência, o que dificulta bastante. (Advogada)
[...] é uma fiscalização, onde muitas coisas são questionadas [...] eu sinto muita tristeza, muita frustração, por causa disso [...] porque somos terceirizados, acham que podem definir o que nós temos que fazer e tudo mais. E aí não percebem que a gente tem experiência também, que pode talvez melhorar o serviço, né? Acho que falta muito diálogo, no fundo. (Gerente)
Neste estudo, os dois CDCMs incluídos seguem um modelo voltado para o apoio e fortalecimento da mulher. Eles atuam compreendendo a resolução da violência sofrida como um processo que demandará sempre tempos singulares, e não apenas restrito ao momento da decisão pela ruptura na relação com o agressor 66. Kiss LB, Schraiber LB, D’Oliveira AFPL. Possibilidades de uma rede intersetorial de atendimento a mulheres em situação de violência. Interface (Botucatu). 2007; 11(23):485-501. . Dessa forma, as questões de gênero, classe e direitos humanos permeiam a compreensão e o discurso das profissionais entrevistadas sobre a violência contra a mulher. Esse aspecto constitui poderoso facilitador da atenção em termos de garantir homogeneidade e maior qualidade à atenção.
Contudo, apesar da ampliação de dispositivos e recursos para assistência e proteção a mulheres em situação de violência, nos últimos anos, mudanças no cenário político impactaram nas redes intersetoriais com a diminuição de recursos materiais e humanos, como também apontado por uma agente da Defensoria:
Por exemplo, Casa Eliane de Grammont. Tem uma psicóloga e uma assistente social, só. É o primeiro serviço especializado do país a atender de forma integral às mulheres vítimas de violência doméstica, e se uma está doente, está de licença, só fica uma [...] Elas não dão conta da demanda [...] outros CDCM [...] estão com a demanda muito lotada e estão tentando fechar o atendimento só para as mulheres de sua região, por mal dar conta de atender essas mulheres [...] A gente sabe que o atendimento à violência não pode ser territorializado. É onde a mulher consegue ir, onde ela se sente mais segura. (Agente de Defensoria, Nudem)
As profissionais entrevistadas dos CDCMs ressaltaram ainda o desconhecimento por parte de alguns dos serviços da rede sobre o próprio CDCM, não só quanto a seu papel, mas também quanto à sua existência, resultando na falta de encaminhamentos quando necessários ou em encaminhamentos equivocados.
Essa semana mesmo veio uma mulher encaminhada de uma UBS, eu não lembro qual, e ela achou que aqui fosse um abrigo. Tem muitos encaminhamentos equivocados. (Advogada)
Permanecem também os obstáculos de articulação com as DDM, como apontado por outros estudos 11. Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência – da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Digital. 2012; 12(3):1-19. , seja pela precariedade de recursos enfrentada pelas delegacias, seja pela falta de interesse ou capacitação/treinamento dos profissionais.
Já cheguei a atender mulheres, por exemplo, que foi na Delegacia, e a Delegacia falou que ela precisava estar roxa para fazer o boletim de ocorrência contra uma violência. (Assistente social)
Assistência policial
Atualmente, há pelo menos uma Delegacia da Mulher em cada estado do país. O estado de São Paulo possui 129 unidades, das quais nove estão na capital 1111. Brasil. Senado Federal. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito-CPMI com a finalidade de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil. Brasília: Senado Federal; 2013. (Relatório final). . Com a LMP, as DDM ganharam maior poder de atuação e são vistas pelas entrevistadas como um serviço especializado importante na rede por seu caráter denunciante. Entretanto, parece permanecer dentro da corporação policial a discriminação e desvalorização do trabalho dessas delegacias e de seus profissionais 66. Kiss LB, Schraiber LB, D’Oliveira AFPL. Possibilidades de uma rede intersetorial de atendimento a mulheres em situação de violência. Interface (Botucatu). 2007; 11(23):485-501. . Assim, se o aumento dos serviços é um facilitador na consolidação da rede, isso não resolveu o estatuto de valor menor desses serviços frente às delegacias comuns.
[...] ainda hoje, a DDM é vista como algo menor, uma delegacia sucateada, para onde vão funcionários reabilitados e a pessoa, acho que chega lá, removida, ela chega com raiva. Ela não quer estar ali. Ela foi punida, remetida, enviada para aquela delegacia. Você não vai trabalhar direito, já partindo dessa concepção. Esses profissionais têm que ser voluntários, querer trabalhar nesse lugar. E, para isso, você tem que ter incentivo. (Promotora)
A demanda do movimento de mulheres, na criação das DDMs, para a capacitação dos profissionais a partir de uma abordagem de gênero da perspectiva feminista não se efetivou e permanece encontrando resistência.
[...] eu acho que as pessoas, quando vêm para cá, têm um certo perfil. Porque senão, ou elas pedem para sair, ou elas são retiradas. E mesmo que você não tenha esse treinamento, as que trabalham aqui acabam te ensinando. Porque as coisas funcionam dessa forma. Então, a pessoa tem que trabalhar dessa forma. Se não trabalhar, ela não está no perfil. (Delegada 1)
Nesse sentido, a escuta do sofrimento da mulher para além dos fatos concretos relevantes do ponto de vista criminal permanece como uma ação de caráter pessoal, de cunho solidário e restrito a alguns profissionais, não sendo, necessariamente, entendido como parte do trabalho policial em si, como apontado por estudos anteriores 66. Kiss LB, Schraiber LB, D’Oliveira AFPL. Possibilidades de uma rede intersetorial de atendimento a mulheres em situação de violência. Interface (Botucatu). 2007; 11(23):485-501. .
Apesar da ampla divulgação da LMP, permanece, como obstáculo, o desencontro nas expectativas das mulheres e oferta de assistência das delegacias 66. Kiss LB, Schraiber LB, D’Oliveira AFPL. Possibilidades de uma rede intersetorial de atendimento a mulheres em situação de violência. Interface (Botucatu). 2007; 11(23):485-501. . Da mesma forma, o recuo da mulher quanto ao desejo de punição do agressor e rompimento da relação continua a ser visto pelo profissional como obstáculo ao seu trabalho, ao mesmo tempo deslegitimando o sofrimento da mulher e sua queixa.
Porque elas vêm no momento da raiva. E depois chega em casa e se entende. Só que aqui já está feito o registro. E eu não posso falar “não vem instaurar”. Isso elas não têm noção. Elas conhecem bem a Maria da Penha. Porém, essa parte, que não depende delas, elas não conhecem, mas é falado toda vez [...] é diferente daquela que, realmente, sofreu uma agressão séria e não quer mais ver, ou não pode nem ver o ex-marido, ou o ex-companheiro, o que for. Porque muitas voltam. Diria que cinquenta por cento. Se não for mais. (Delegada 1)
A violência sexual por estranhos permanece como um crime que mobiliza mais as profissionais, sobretudo quando ocorre com crianças e adolescentes. Kiss et al. 66. Kiss LB, Schraiber LB, D’Oliveira AFPL. Possibilidades de uma rede intersetorial de atendimento a mulheres em situação de violência. Interface (Botucatu). 2007; 11(23):485-501. consideraram que nos casos de violência sexual por estranhos haveria uma legitimidade histórico-social já reconhecida do crime, tornando mais fácil a identificação do caráter de vítima da mulher. A fala das entrevistadas revela que há na atualidade maior reconhecimento de que todo ato sexual sem consentimento seria igualmente um crime, reconhecido por lei.
Olha, veja bem, o Código Penal define o estupro como sendo todo ato libidinoso, ou conjunção carnal, contrário à vontade da mulher. Não importa se é na rua, no ambiente de trabalho, com o marido, com o noivo, o namorado, ou com o amante. Ela teve relação sexual contra a vontade dela, é caracterizado o estupro. Se isso aconteceu, ela tem direito ao aborto. Nós não definimos o estupro dentro da violência doméstica ou fora da violência, ou no trabalho, ou por desconhecido, ou por conhecido. Não, nós seguimos a Lei. (Delegada 2)
Diferentemente do que foi encontrado por Kiss et al. 66. Kiss LB, Schraiber LB, D’Oliveira AFPL. Possibilidades de uma rede intersetorial de atendimento a mulheres em situação de violência. Interface (Botucatu). 2007; 11(23):485-501. , as entrevistadas das DDMs consideram que há um caráter pedagógico na sua atuação: elas precisam ajudar a mulher a enxergar aquilo que sofrem como violência, ou seja, romper com a barreira da invisibilidade. Questões de gênero e de saúde permeiam a compreensão do trabalho com a violência doméstica, que passa a ser entendida como resultado da desigualdade de gênero na sociedade, uma violação de direitos e que tem grande impacto na saúde da mulher. Por essa razão, as três entrevistadas reconheceram a importância de um acompanhamento multiprofissional para os casos na rede intersetorial de serviços, com prioridade para as demandas de saúde mental. Esse é um potente facilitador apontado.
Assistência jurídica
Com a LMP, ampliaram-se os dispositivos jurídicos governamentais especificamente voltados para atendimento, orientação e defesa das mulheres vítimas de violência doméstica. O município de São Paulo conta com sete Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher 1111. Brasil. Senado Federal. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito-CPMI com a finalidade de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil. Brasília: Senado Federal; 2013. (Relatório final). . A primeira vara foi criada no Fórum Criminal da Barra Funda, em 2009, porém, não sem antes enfrentar resistência dentro do próprio Judiciário.
[...] o tribunal tinha uma resistência inicial de criar a Vara. Segundo o que se falava, tinha sido feito um estudo e não tinha demanda suficiente para criação de uma vara de violência doméstica na época [...] então, surgiu esse anexo de violência doméstica, que ficou atrelado à oitava Vara criminal [...] a hora em que o tribunal implementou, a demanda de oitocentos feitos virou muito mais, então em um ano a gente já tinha quase quatro mil, cinco mil feitos, e a gente tinha audiências de segunda a sexta, era uma vara muito pesada, não era uma vara que muitos juízes tinham interesse. (Juíza)
De acordo com a entrevistada, a resistência com a temática permanece até hoje por uma falta de capacitação sobre o conceito de gênero, apesar da atuação da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário (Comesp). Tal coordenadoria foi criada por determinação do Conselho Nacional de Justiça para todos os tribunais de justiça do país, devendo ser formada por um desembargador e juízes, com foco no desenvolvimento de políticas públicas internas para melhoria da atuação jurisdicional nas questões relacionadas ao tema.
[...] na verdade, as varas de violência doméstica, elas são um pouco assim, ainda, dentro da magistratura: ou as pessoas amam trabalhar com isso, ou os colegas odeiam. Né? Então ainda é uma temática que é ame ou deixe. (Juiza)
Com a 1ª Vara de Violência Doméstica, o Ministério Público criou um Núcleo de Combate à Violência, que, em 2012, por meio do Ato Normativo 736/2012 – PGJ-CPJ, da Procuradoria Geral de Justiça do estado de São Paulo, tornou-se o Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid) 1313. Ato Normativo 736/2012PGJ-CPJ, de 17 de Maio de 2012 (Protocolados 163.397/11). Cria o Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica – GEVID. São Paulo: Subprocuradoria Geral de Justiça Jurídica; 2012. . O grupo foi criado para atuação na defesa e proteção dos direitos das mulheres, para responsabilização do(a)s autore(a)s de violência e para efetivação da LMP. Entre suas ações estão: atendimento à demanda espontânea; participação na articulação e integração com a rede de serviços especializados e não especializados de atendimento às mulheres; investigação voltada para elaboração de um diagnóstico sobre as condições e efetividade dos serviços a partir de demandas públicas; desenvolvimento de projetos voltados ao combate das causas sociais relacionadas com a violência doméstica e que envolvem ações de conscientização da população; capacitação para profissionais da rede; e parceria com a guarda civil metropolitana para acompanhamento dos casos em medida protetiva.
Eu acho que o grande feito do Gevid, se dá para falar assim, é ter mostrado a possibilidade de uma atuação criminal, mas ampla. Né? Uma visão criminal, mas que enxerga as raízes do problema. Que não se preocupa em resolver o processo, mas em solucionar o conflito. (Promotora)
Em 2015, o Gevid assumiu o status de Promotoria Especializada (embora mantenha a sigla), por decreto da Lei Complementar nº 1268, que permitiu a criação da Promotoria de Justiça de Combate à Violência Doméstica contra a Mulher, ampliando o contingente de promotores da justiça na capital do estado 1414. Brasil. Assembléia Legistativa do Estado de São Paulo. Lei Complementar nº 1.268, de 21 de Julho de 2015. Altera a Lei Complementar nº 734, de 1993, que institui a Lei Orgânica do Ministério Público, e dá outras providências. São Paulo: Assembléia Legistativa do Estado de São Paulo; 2015. .
Quando é criada a Promotoria, ela é criada por lei. Os cargos são criados por lei, providos através de concurso de promoção à antiguidade, merecimento. Então, na verdade, você dá um caráter definitivo para uma atuação. Então foi um ganho, uma conquista para nós, essa atuação ser reconhecida no Ministério Público como uma atuação relevante. (Promotora)
No que se refere à Defensoria Pública, instituição do Estado voltada para a garantia do acesso gratuito à justiça daqueles que são juridicamente considerados necessitados 1515. Lewin APOCM, Prata ARS. Da atuação da Defensoria Pública para promoção e defesa dos direitos da mulher. Rev Digital Direito Admin. 2016; 3(3):525-41. , é importante ressaltar que com a LMP, a assistência para a mulher em situação de violência doméstica deixa de depender da comprovação de insuficiência de recursos, uma vez que a lei entende a mulher em situação de violência de gênero como vulnerável e, portanto, “um necessitado jurídico” 1515. Lewin APOCM, Prata ARS. Da atuação da Defensoria Pública para promoção e defesa dos direitos da mulher. Rev Digital Direito Admin. 2016; 3(3):525-41. . Entretanto, embora haja a compreensão pela maioria das entrevistadas de que a violência de gênero não se restringe a determinado recorte de classe, nem acontece exclusivamente por conta da condição socioeconômica, vigora a percepção de um agravamento da violência nesses casos pela falta de recursos da mulher para sua proteção.
Nesse sentido, a Defensoria Pública de São Paulo, por meio da Deliberação nº 138, em 2009, tornou prioritário o atendimento a mulheres em situação de violência em todas as unidades da Defensoria, assim como a tramitação dos procedimentos administrativos dos casos, por considerá-los urgentes 1515. Lewin APOCM, Prata ARS. Da atuação da Defensoria Pública para promoção e defesa dos direitos da mulher. Rev Digital Direito Admin. 2016; 3(3):525-41. . Tal determinação visou não apenas à agilidade no atendimento e no processo, mas também à garantia de um atendimento humanizado às vítimas.
Da mesma forma, respondendo à demanda da sociedade civil, a Defensoria criou em 2008 o Nudem, voltado para a assessoria dos defensores públicos, bem como para ações de informação da população e articulação com outros Núcleos Especiais, entre outras atribuições a favor dos direitos das mulheres 1515. Lewin APOCM, Prata ARS. Da atuação da Defensoria Pública para promoção e defesa dos direitos da mulher. Rev Digital Direito Admin. 2016; 3(3):525-41. . Além de, na prática, atuar pontualmente no acolhimento e orientação de mulheres que procuram espontaneamente o núcleo, o Nudem desempenha, em todo o estado, um importante papel no fomento e articulação das redes intersetoriais de serviços especializados.
[...] um suporte especializado no tema acaba sendo a nossa maior atuação, e aí a gente tem contato com os casos individuais através dessa rede, tanto interna quanto a rede de fora da Defensoria [...] entendendo a importância da rede, sempre procura estimular e fomentar que essas redes existam, pela própria potência que tem esse espaço de discussão das políticas públicas. (Agente de Defensoria – Nudem)
Principalmente no município de São Paulo, o Nudem se apresenta com forte atuação na promoção e incentivo de encontros das redes intersetoriais regionais de serviços, facilitando sua consolidação. Tais encontros têm possibilitado o debate a respeito dos principais obstáculos e desafios enfrentados, bem como a elaboração conjunta de estratégias resolutivas e demandas.
Além disso, observa-se a ampliação na comunicação de todos os serviços de assistência jurídica com os demais serviços da rede, diferente do que foi apontado por estudos anteriores 66. Kiss LB, Schraiber LB, D’Oliveira AFPL. Possibilidades de uma rede intersetorial de atendimento a mulheres em situação de violência. Interface (Botucatu). 2007; 11(23):485-501. . Contudo, prevalece uma comunicação voltada para as demandas específicas da assistência jurídica com pouco conhecimento sobre os limites e possibilidades das outras vocações assistenciais, sobretudo a da Saúde.
É falta de conversa entre as instituições. Eu faço uma mea culpa também da minha instituição, que pouco se aproxima, muitas vezes, da Saúde, e acaba trabalhando muito isoladamente. Cada instituição na sua caixinha, né? [...] eu acho que todas as instituições têm culpa nisso, nessa falta de articulação. Se uma trabalhar entendendo o olhar do outro... então, eu entendo que, para os psicólogos, é difícil produzir provas. Eles têm essa questão [...] eu entendo. Então, como a gente vai superar isso? Ah! Vai ser no prontuário, vai ser no atendimento, vai só relatar o que aconteceu. Por outro lado, o que os profissionais têm que fazer? Aí eu entendo que o Judiciário precisa dessa informação de alguma forma. Porque senão, a gente não consegue sequer responsabilizar o autor de violência. (Promotora)
Discussão
À medida que a violência doméstica contra a mulher ganha maior visibilidade na sociedade com a popularização da LMP, o trabalho dos profissionais envolvidos na assistência a essa população também conquista maior reconhecimento e respaldo. Aqui se situa um importante facilitador de consolidação da rede intersetorial de serviços. Isso parece fazer com que os profissionais desses serviços sintam-se responsáveis por romper com a invisibilidade desse tipo de violência para muitas vítimas, incluindo-se nessa ação a esfera pedagógica de ampliar o reconhecimento das situações vividas como uma violência, combatendo desse modo o fato de que muitas mulheres permanecem na relação com o agressor.
Embora as questões de gênero relacionadas à violência já tenham sido absorvidas também no discurso dos profissionais da assistência jurídica e policial – com uma crítica à desigualdade de gênero na sociedade, o que poderia facilitar a compreensão do fenômeno para melhor assistir à mulher –, esse reconhecimento ainda parece distante da realidade concreta e simbólica vivida pelas mulheres que buscam assistência. Isso faz com que esses profissionais permaneçam, muitas vezes, no plano da idealização de uma autoridade do Estado sobre o comportamento dos indivíduos, como se a informação e a recomendação de condutas bastassem para provocar a mudança de vida. Essa situação, que tende a um agir profissional mais instrumental do que dialógico, torna-se com isso um obstáculo à melhor qualidade da atenção e à construção da rede.
Nesse sentido, Santos 1616. Santos CM. Da Delegacia da Mulher à Lei Maria da Penha: absorção/tradução de demandas feministas pelo Estado. Rev Critica Cienc Soc. 2010; 89:153-70. chama a atenção para o que considera uma tradução/traição das demandas feministas na criação da DDM. Segundo a autora, se, por um lado, o Estado absorveu em parte as propostas feministas, traduzindo-as na criação de um serviço que se tornou central nas políticas públicas de combate a esse tipo de violência no Brasil, por outro, traiu a perspectiva feminista ao restringi-la à criminalização sem incluir a institucionalização de uma capacitação dessa mesma perspectiva para a(o)s profissionais. O mesmo parece acontecer no judiciário diante da resistência dos seus agentes na incorporação de uma perspectiva de gênero em sua prática, como apontado pela juíza entrevistada. Tal resistência vai ao encontro da própria dificuldade de incorporação do novo marco legal proposto pela LMP, como descrito pelo relatório da Comissão Parlamentar Mista 1111. Brasil. Senado Federal. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito-CPMI com a finalidade de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil. Brasília: Senado Federal; 2013. (Relatório final). , com o descumprimento de diversas determinações da lei em inúmeras varas em todo o país.
No que se refere à articulação entre os serviços, há maior perspectiva de trabalho intersetorial, e até mesmo de atuação em rede, na medida em que há um maior conhecimento por parte dos profissionais da existência de outros serviços dentro da rede especializada. Ao mesmo tempo, há uma maior percepção das dificuldades no entrosamento entre os serviços, sem muita definição do que seria tal entrosamento. Nesse sentido, o maior reconhecimento dos distintos serviços não se traduz por maior articulação e comunicação entre eles, que muitas vezes permanecem ainda voltados apenas para o seu âmbito específico de atuação de forma mais segmentar, como uma trama, tal como o verificado em estudos anteriores 11. Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência – da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Digital. 2012; 12(3):1-19. , 66. Kiss LB, Schraiber LB, D’Oliveira AFPL. Possibilidades de uma rede intersetorial de atendimento a mulheres em situação de violência. Interface (Botucatu). 2007; 11(23):485-501. .
Quanto aos serviços de assistência psicossocial, seu aumento se deu sob duas supervisões distintas e em ambas sem a formalização de uma capacitação continuada das profissionais para a abordagem da violência contra a mulher da perspectiva de gênero. Além disso, o viés familista predominante na abordagem proposta pela SMADS e nas OSs oriundas de fundações religiosas 1212. Santos CM. Curto-circuito, falta de linha ou na linha? Redes de enfrentamento à violência contra mulheres em São Paulo. Estud Fem. 2015; 23(2):577-600. , por sua vez, pode dificultar a comunicação quando as profissionais dos CDCMs partem de uma perspectiva mais voltada para os direitos da mulher. Apesar da falta de estudos nesse campo sobre as relações entre as organizações não governamentais e as governamentais 1212. Santos CM. Curto-circuito, falta de linha ou na linha? Redes de enfrentamento à violência contra mulheres em São Paulo. Estud Fem. 2015; 23(2):577-600. , os dados mostram significativas tensões pela subordinação das profissionais dos CDCMs às normas da supervisão sem considerar a contribuição que podem trazer a partir de sua experiência na assistência a mulheres em situação de violência e na militância pelos seus direitos. Tal tensionamento sugere que divergências ideológicas sobre a violência doméstica que fundamenta essas diferentes instituições – CDCM, CRAS e SMADS – resultam em obstáculos para uma comunicação mais efetiva e uma atuação integrada em rede.
Importante considerar que as recentes mudanças do cenário político, na última década, contribuíram não apenas para a perda de espaço conquistado como também para um aumento da discriminação em torno do conceito de gênero. Marques e Silva 1717. Marques EEA, Silva SAM. Programa mulher, viver sem violência: uma análise de sua implementação a partir da casa da mulher brasileira e de entidades parceiras. Estud Admin Soc. 2017; 3(2):32-45. chamam a atenção para essas mudanças e seu significado simbólico e prático, com a redução não apenas da estrutura, de seu alcance e de sua autoridade, como também do orçamento, com a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e a transferência das competências da SPM para a estrutura da Secretaria de Governo da Presidência da República, como Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres.
Em todo o país, os serviços especializados sofrem um processo de sucateamento com precariedade de recursos materiais e humanos, que tem se agravado nos últimos anos, sobretudo nas Delegacias Especializadas e nos serviços de assistência psicossocial 1111. Brasil. Senado Federal. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito-CPMI com a finalidade de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil. Brasília: Senado Federal; 2013. (Relatório final). . Em São Paulo, no início de 2019, o prefeito anunciou a possibilidade de mudança dos CDCMs e Casas Abrigo da SMADS para a SDH, o que na prática resultaria em um impacto orçamentário que inviabilizaria a continuidade desses serviços. As redes intersetoriais de serviços, junto com a Defensoria Pública (representada pelo Nudem), o Ministério Público (representado pelo Gevid) e representantes da sociedade civil se articularam para exigir do governo a garantia de continuidade desses serviços. Até a elaboração final deste artigo, seguiam-se as tratativas entre esses órgãos e a prefeitura e e Diário de campo de 6 de junho de 2019, Câmara Municipal de São Paulo, Audiência Pública sobre “Políticas de Enfrentamento a Violência contra as Mulheres na Cidade de São Paulo: Não aos Desmontes e as Precarizações!”. .
Considerações finais
Em que pese o recente movimento de marginalização do termo “ideologia de gênero”, expressão que usamos referente às tentativas de reduzir a teoria feminista de gênero a mero discurso ideológico e sem fundamentação teórica e científica, a LMP, resultante da luta do movimento de mulheres, trouxe uma importante contribuição para mudanças na compreensão e no discurso sobre a violência contra a mulher na sociedade como um todo e mais particularmente nos profissionais envolvidos na assistência. Ao romper com uma visão jurídica tradicional sobre violência, essa lei deixa clara sua tipificação como um crime, não podendo mais ser aceita ou justificada na sociedade.
Além disso, pela sua grande popularidade e por prever medidas de cunho extrapenal voltadas para prevenção da violência, assistência e promoção dos direitos da mulher, tal lei é referida por diversos profissionais de diferentes vocações assistenciais como uma espécie de política intersetorial, ainda que sua implementação fique a cargo apenas do próprio Judiciário.
Tanto o texto legal quanto a ampliação da atuação do Judiciário e implementação de outros dispositivos e serviços que respondam às exigências da Lei, além de reuniões regionalizadas dos serviços especializados, falam a favor da construção da rede intersetorial de assistência. Contudo, tais avanços não se reverteram necessariamente em maior articulação dos serviços no sentido de um funcionamento muito mais em rede do que em trama, ainda que no imaginário social essa distinção entre rede e trama não seja feita. A resistência de uma parte dos profissionais da assistência tanto policial quanto da jurídica e até mesmo da assistência psicossocial, como apontado por alguns estudos, em adotar uma abordagem da perspectiva de gênero para os casos de violência doméstica e o processo de sucateamento dos serviços, agravado pela crise política e econômica, dificultam o funcionamento dos serviços em si e obstaculizam sua articulação com os demais serviços. O desconhecimento dos protocolos, normas, legislação e funcionamento dos outros serviços também dificulta a possibilidade de interação e construção de projetos assistenciais comuns. Além disso, historicamente, o fato de haver uma grande independência dos setores, em termos de formulações de políticas autônomas, por vezes até conflituosas entre os setores, gerou uma segmentação importante nas conexões intersetoriais e estabeleceu certa ligação mais estrutural entre diferentes serviços quando pertencentes a um mesmo setor, como é o caso de serviços internos à saúde ou ao judiciário, por exemplo.
Um grande facilitador a ser destacado de modo geral é a ampliação ocorrida do número de serviços. Não obstante, de um lado, tal facilitação restringe-se à dimensão do acesso a estes. Dessa forma, esse facilitador não impede a coexistência de obstáculos no que tange à efetividade dos serviços e à qualidade da assistência e na forma de serem garantidos os direitos das mulheres. Por outro lado, a ausência de maior reflexão quanto a diferenciar acesso de qualidade da atenção prestada também constrói a compreensão de uma rede baseada apenas em complementaridade de ações e não na discussão conjunta de modelos assistencias mais democráticos e estimuladores da autonomia das mulheres.
A superação dos obstáculos, por sua vez, como apontado neste estudo, permanece como um desafio para a efetiva implementação das políticas públicas a favor, de um lado, de uma assistência integral horizontalizada entre os setores e humanizada no acolhimento e cuidado às mulheres em situação de violência, o que se agrava no atual contexto histórico-político de sucateamento dos serviços e enfraquecimento das políticas públicas, e, de outro, de sua longitudinalidade temporal e do desafio de políticas púlbicas que se revelem mais como ação de estado do que ações temporárias de governos individualizados.
Por fim, cumpre destacar o fato de que, ao ter a grande maioria das entrevistadas trazido em seus depoimentos muito mais obstáculos do que facilitadores, isso também representa o modo segundo o qual essas profissionais situam a si próprias nas mudanças pretendidas.
Agradecimento
Os autores agradecem a Stephanie Pereira, Renata G. Bonin e Cecília G. V. Graglia, pela colaboração nas discussões do material, e ao Medical Research Council of the United Kingdom, pelo financiamento da pesquisa.
Referências
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1Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, Hanada H, Kiss L. Assistência a mulheres em situação de violência – da trama de serviços à rede intersetorial. Athenea Digital. 2012; 12(3):1-19.
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2Pinto CRJ. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; 2003.
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3Saffiotti HIB. Violência doméstica: questão de polícia e da sociedade. In: Corrêa M, organizador. Gênero e cidadania. Campinas: Pagu/Núcleo de Estudos de Gênero-Unicamp; 2002. p. 59-69. (Coleção Encontros).
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4Drezett J. Aspectos biopsicossociais da violência sexual. In: Seminário Nacional de Intercâmbio e Formação sobre Questões Ético-Religiosas para Técnicos/as dos Programas de Aborto Legal. Aborto Legal: implicações religiosas. São Paulo: Publicação CDD; 2002, p. 115-123.
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5Grossi PK, Tavares FA, Oliveira SB. A rede de proteção à mulher em situação de violência doméstica: avanços e desafios. Athenea Digital. 2008; 14:267-80.
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6Kiss LB, Schraiber LB, D’Oliveira AFPL. Possibilidades de uma rede intersetorial de atendimento a mulheres em situação de violência. Interface (Botucatu). 2007; 11(23):485-501.
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7Rifiotis T. Judiciarização das relações sociais e estratégias de reconhecimento: repensando a ‘violência conjugal’ e a ‘violência intrafamiliar’. Rev Katálysis. 2008; 11(2):225-36.
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8Brasil. Presidência da República. Lei nº 10.778, de 24 de Novembro de 2003. Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Diário Oficial da União. 25 Nov 2003.
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9Brasil. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Brasília: Ministério da Saúde; 2004.
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10Brasil. Presidência da República. Lei nº 11.340, de 7 de Agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Coíbe a violência doméstica e familiar contra a mulher. Imprensa Nacional. Brasília: Presidência da República; 2006.
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11Brasil. Senado Federal. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito-CPMI com a finalidade de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil. Brasília: Senado Federal; 2013. (Relatório final).
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12Santos CM. Curto-circuito, falta de linha ou na linha? Redes de enfrentamento à violência contra mulheres em São Paulo. Estud Fem. 2015; 23(2):577-600.
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13Ato Normativo 736/2012PGJ-CPJ, de 17 de Maio de 2012 (Protocolados 163.397/11). Cria o Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica – GEVID. São Paulo: Subprocuradoria Geral de Justiça Jurídica; 2012.
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14Brasil. Assembléia Legistativa do Estado de São Paulo. Lei Complementar nº 1.268, de 21 de Julho de 2015. Altera a Lei Complementar nº 734, de 1993, que institui a Lei Orgânica do Ministério Público, e dá outras providências. São Paulo: Assembléia Legistativa do Estado de São Paulo; 2015.
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15Lewin APOCM, Prata ARS. Da atuação da Defensoria Pública para promoção e defesa dos direitos da mulher. Rev Digital Direito Admin. 2016; 3(3):525-41.
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16Santos CM. Da Delegacia da Mulher à Lei Maria da Penha: absorção/tradução de demandas feministas pelo Estado. Rev Critica Cienc Soc. 2010; 89:153-70.
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17Marques EEA, Silva SAM. Programa mulher, viver sem violência: uma análise de sua implementação a partir da casa da mulher brasileira e de entidades parceiras. Estud Admin Soc. 2017; 3(2):32-45.
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Este artigo resulta da pesquisa de pós-doutorado “Atenção Primária à Saúde e Rede Intersetorial: avaliação de modelo de intervenção para aprimoramento da resposta dos serviços à violência contra a mulher em São Paulo, que corresponde à parte de uma pesquisa maior do braço brasileiro em “Improving the primary health care response to violence against women in low and middle income countries”, coordenada pela University of Bristol e pela London School of Hygiene and Tropical Medicine, em parceria com o Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, sob financiamento de Medical Research Council of the United Kingdom.
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A formação acadêmica desta profissional foi suprimida em favor da proteção de seu anonimato.
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Diário de campo de 6 de junho de 2019, Câmara Municipal de São Paulo, Audiência Pública sobre “Políticas de Enfrentamento a Violência contra as Mulheres na Cidade de São Paulo: Não aos Desmontes e as Precarizações!”.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Mar 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
12 Ago 2019 -
Aceito
27 Jan 2020