Resumos
O artigo compartilha passos de uma pesquisa que, ao tomar a dança como intercessora, trouxe a clínica em Saúde Mental na Atenção Básica à cena. Em uma Unidade de Saúde da Família, a clínica em Saúde Mental é desestabilizada e convidada a dançar. Uma psicóloga-bailarina-pesquisadora desperta a sensibilidade do corpo para problematizar a clínica a partir de suas experimentações dançantes. Sustentada no método cartográfico, constrói-se a proposta de uma “clínica do chão”, foco deste texto. A aposta, assim, é na transversalidade entre os campos da arte e da clínica para produzir ressonâncias, contágio. Um atendimento conjunto com uma agente comunitária de saúde é chamado a compor com os movimentos de criação da pesquisa que, tomando o chão como aliado, inventa modos de clinicar e de proliferar sentidos.
Clínica ampliada; Saúde mental; Saúde da família; Dança; Cartografia
This article describes a study that, by taking dance as an intercessor, brings clinical practice in Mental Health into play in primary care. In a family health clinic, clinical practice in Mental Health is destabilized and invited to dance. A psychologist-dancer-researcher awakens the sensibility of the body to problematize clinical practice, prompted by dance experimentation. Underpinned by the cartographic method, a proposal for “floor-based clinical practice” is developed, which is the focus of this text. The proposal embraces the transversality of the fields of art and clinical practice to produce resonances, contagion. A joint consultation with a community health agent is called to compose the movements that create the research, which, taking the floor as its ally, invents modes of clinical practice and ways of proliferating feelings.
Extended clinical practice; Mental health; Family health; Dance; Cartographic method
El artículo comparte pasos de una investigación que, al tomar la danza como intercesora, puso en escena la clínica de Salud Mental en atención primária. En una unidad de salud de la familia, la clínica en Salud Mental se desestabiliza y se la invita a danzar. Una psicóloga-bailarina-investigadora despierta la sensibilidad del cuerpo para problematizar la clínica, a partir de sus experimentos danzantes. Sustentada en el método cartográfico, se construye la propuesta de una “clínica del suelo” enfoque de este texto. La apuesta, por lo tanto, se hace por la transversalidad entre los campos del arte y de la clínica para producir resonancias, contagio. Se llama la atención conjunta con una agente comunitaria de la salud para realizar una composición con los movimientos de creación de la investigación que, tomando el suelo como aliado, inventa modos clínicos y de proliferación de los sentidos.
Clínica ampliada; Salud mental; Salud de la familia; Danza; Cartografía
Adentrando territórios
Neste artigo, compartilhamos movimentos de uma pesquisa de doutorado que trouxe a clínica em Saúde Mental na Atenção Básica (AB) à cena, tendo a dança como intercessora. O campo da referida pesquisa foi composto por duas frentes de trabalho: uma que incluiu experiências da primeira autora, como trabalhadora de serviços públicos de saúde (especialmente da AB desde 2009) e também como bailarina em dois grupos de criação em dança; e uma segunda frente compreendendo parte do campo da pesquisa intitulada “Qualificação da Saúde Mental na Atenção Básica: análise das práticas de equipes da Região 10-macrometropolitana/RS a partir do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB)”, realizada pelo grupo de pesquisa Intervires do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na qual a primeira autora foi pesquisadora e a segunda, coordenadora. Esta pesquisa recebeu financiamento do edital PPSUS/FAPERGS/MS/CNPq/SESRS n.002/2013. e aprovação na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa /CONEP/CNS/MS com o número 18859813.7.0000.5334. As inserções nesses diversos campos concomitantes forneceram materiais para produção de diários de campo, nos quais se agenciavam tais experimentações por meio da escrita ensaística e do diálogo com diferentes autores.
Neste texto, priorizamos os diários produzidos a partir da experiência de trabalho na Atenção Básica, em um cotidiano contagiado pelos movimentos dançantes da psicóloga-bailarina-pesquisadora. Percorremos uma linha clínica em uma Unidade de Saúde da Família (USF) de Porto Alegre-RS, serviço da rede da AB do Sistema Único de Saúde (SUS). Nos territórios de saúde descentralizados, acompanhamos usuários e trabalhadores, deparando-nos com linhas endurecidas de uma clínica fatigada, marcada pelo adoecimento, medicalização e burocratização. Somos corpos trabalhadores, saturados por queixas, pelo excesso de organismo, de burocracia e de programação que, muitas vezes, aprisionam-nos junto com os usuários nas tentativas de apacientamento.
Pequenos passos tortos, entretanto, provocam efeitos desestabilizadores, como se abrissem o chão criando instabilidades. Uma linha dançante nos invade, a partir das criações em dança de uma bailarina, também psicóloga da equipe dessa unidade e autora da pesquisa. Esses dois campos de experiências, em princípio desconectados, ressoam um no outro. O convite não sugere qualquer dança. Nos grupos de criação em dança, encontramo-nos com corpos dançantes em busca das desconstruções necessárias para colocar o corpo a se movimentar mais livremente. Isso não é equivalente a trazermos a dança como recurso terapêutico à clínica, já que não se fez a escolha, naquele momento, de realizar uma atividade de dança na unidade de saúde. Não se trata de tomá-la, simplesmente, como mais uma entre tantas “técnicas de intervenção”: apostamos, sim, na potência do corpo, com sua sensibilidade despertada a partir das experimentações dançadas, para pesquisar. Desse modo, a dança aqui assume o lugar de intercessora do pensamento, como sugere Deleuze1 ao conceituar os intercessores, forçando-nos a novos gestos e fazendo dançar o pensamento junto com os corpos.
Somos forçados a produzir desvios clínicos, inventar fugas potentes e ser porta de entrada – mas também de saída – diante dos engessamentos padronizantes e das vidas imprevisíveis que se cruzam. Desaceleramos as correrias cotidianas e o automatismo do trabalho na saúde. Tateamos o espaço e o corpo, que se abre a diversos sons e cheiros a compor o cotidiano da unidade. Despertamos a sensibilidade do corpo e ampliamos possibilidades de escuta. Buscamos desconstruir gestos homogeneizantes da saúde mental na atenção básica, habitando um campo mais aberto às sensibilidades e aos imprevisíveis. Corpos pesados se inclinam em direção ao chão que se abre, desafiando as criações. Acolhemos os pesos, tentando fazer deles impulso.
Acompanhadas por José Gil, Deleuze, Guattari e Adorno, problematizamos a potência da clínica, ensaiando uma escrita cartográfica, a partir dos diários de campo que hibridizam cenas clínicas e dançadas. Um emaranhado de linhas clínicas, dançantes e pesquisantes compõe esse processo, pedindo expressão e forçando-nos a colocar todo corpo em cena. Tentamos expandir invencionices, composições coreográficas. Apostamos nos fragmentos e narrativas, produzindo conhecimento por meio da experiência.
A cartografia ocupou-se de mapear os pesos da clínica em saúde mental na atenção básica, do que não se reformou nas Reformas Psiquiátrica e Sanitária, do corpo orgânico e da mente arrazoada, que são, muitas vezes, dissociados. No encontro com a dança, os movimentos cartografados abrem novos possíveis, buscando linhas de menor esforço por onde os fluxos escorrem, intensificando espaços e permitindo uma nova consciência do corpo, como proposta por Gil2 ao estudar a dança contemporânea. Assim, percebemos a potência das misturas moventes e nos perguntamos sobre o que pode a clínica no encontro com a dança. A busca da consistência, a partir da convivência de linhas heterogêneas, nos encontros que ressoam, contagiam e permitem experimentações no campo da saúde, conduzindo à proposta de uma clínica do chão, foco do presente artigo.
Composições clínicas: movimentos de criação
Em zonas fronteiriças, intensificadas no encontro com a dança, meio vida, meio clínica, mantemos o corpo aberto, sensível, atento ao outro a cada instante que se abre no tempo comumente segmentado. A segmentaridade está em toda parte, dizem Deleuze e Guattari3 ao afirmarem uma compreensão de mundo múltiplo, heterogêneo e também atravessado por linhas e fluxos diversos. O tempo adquire formas duras ou flexíveis, em uma pequenina unidade de saúde de um bairro residencial, sempre assoberbada de usuários. Perambulamos corpos-trabalhadores em meio ao corredor apertado que nos obriga a nos misturarmos, habitarmos zonas comuns ou sairmos para as ruas do território. Várias práticas se entremeiam diante da diversidade de usuários e de estratégias clínicas.
Produzimos três movimentos de criação. Primeiramente, experimentamos compor gestos-caminhantes em equipe, indo e vindo entre a unidade de saúde e uma área dita de risco. Uma família recém-chegada nos confronta com as ditas “não aderências” ao serviço, com as pobrezas e diferentes modos de vida convivendo. O tempo das urgências cotidianas pela sobrevivência mistura-se ao nosso tempo das programações, prevendo acompanhamentos mensais dos bebês. Tentamos encontrar sintonia, tempo comum e convivência. Assumimos uma frequência de encontros clínicos que não dizem nem do tempo diário deles, nem do nosso tempo superprogramado, ambos os movimentos entrando em uma variação mútua. Com as heterogeneidades incrementadas, abrimos possibilidades de agenciamento e percebemos os primeiros passos de Larac, agora a ensaiar gestos caminhantes e falantes. O nosso caminhar, em meio às irregularidades do chão de uma vila, junto com o andar infantil, também cambaleante daquela frágil criança, ganha uma consistência não apenas mecânica dos passos desequilibrados, mas coloca o corpo-pensamento todo a se movimentar, acolhendo virtuais, intensificados em meio às adversidades. O corpo está em movimento total, como afirma Gil2, nessa clínica que se abre, intensificando-se.
Em outro movimento, sentimos as tensões que se criam em um atendimento psicológico de um menino de dez anos que instaura um cabo de guerra cotidianamente, desde a sala de espera, tendo seus pés arrastados pelo chão ao ser acoplado ao corpo do pai. O cenário mistura crises de raiva, resistência às tarefas cotidianas, que atrasam as rotinas da família e escola, e uma exclusividade atribuída aos jogos e ao companheiro tablet. Em meio a tais tensionamentos e aos NÃOs que se apresentam nos convites a brincar, Luan deixa escapar que é tudo perda de tempo. Assim como os adultos, ele também tem pressa. Percebendo a importância do tempo, aceleramos todos os gestos no consultório, carregando uma veia cômica, despretensiosa, em meio aos tensionamentos e seriedades. Caímos em gargalhada, abrindo novas experimentações possíveis.
Buscando dar corpo ao que seria a proposta de uma clínica do chão, transversalizada pela arte, a ênfase, a partir daqui neste artigo, será no outro movimento produzido na pesquisa, o Contato-Improvisação (CI), construído em um atendimento conjunto com uma agente comunitária de saúde (ACS).
Experimentando o Contato-Improvisação
Entre idas e vindas caminhantes da clínica na AB, variamos movimentos já diversos em uma unidade de saúde que também é campo de ensino. Em um cotidiano acostumado a receber estudantes, lotamos o consultório lilás com um grupo de alunos de cursos diversos da saúde. Organizamos as atividades, buscando apresentar a AB de modo mais interessante aos estudantes, tentando instaurar desvios formadores, geralmente direcionados ao campo da saúde privada ou da atenção especializada. Em meio às acelerações que tentam conciliar o ensino em uma rotina sempre demandante de assistência, como preceptora dos graduandos, realizamos pequenas corridas nos corredores da unidade.
Um obstáculo se interpõe no corredor. Uma mão se apoia no ombro da psicóloga da unidade, buscando parceria: “Preciso de ti em uma situação com uma paciente!”, diz baixinho uma ACS visivelmente preocupada, mas evitando ser escutada em meio às finas paredes que separam os coloridos consultórios. O corpo se debate: qual direção tomar?
A psicóloga aqui compõe a equipe, junto com assistente social, equipe mínima e de saúde bucal da Estratégia de Saúde da Família (ESF), assim como apoiadores da nutrição, farmácia e psiquiatria, antes mesmo da criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Familia (Nasf). Ocupa um lugar que mistura assistência direta aos usuários, atividades de ensino e ações de matriciamento que, a todo instante, exigem escolhas e priorizações em ritmos e necessidades diferentes. O apoio matricial configura-se como suporte, retaguarda especializada, às equipes mínimas generalistas, tanto na dimensão clínico-assistencial quanto na técnico-pedagógica, a partir de suas dificuldades, buscando ampliar sua capacidade de cuidado por meio do compartilhamento de problemas, da troca de saberes e práticas entre os diversos profissionais e da articulação pactuada de intervenções4.
Como saber então o quão urgente é uma escuta? Como não cair na lógica dos pronto atendimentos quando muitas situações podem aguardar as continuidades de acompanhar vidas na AB, pautada pelo princípio da longitudinalidade5? Como ofertar um suporte de fato profissional, justificando a tal atribuição técnica que ali o inclui, sem recair nos riscos e demandas de um especialismo tão combatido pelas Reformas Psiquiátrica e Sanitária6? Como profissional matriciadora, alegra um pedido de parceria diante de uma adversidade no trabalho, assim como as pequenas coragens de um profissional de nível médio que se sente autorizado e próximo a um colega de nível superior a ponto de instaurar uma parada. Como preceptora, preocupa “abandonar” os estudantes que dizem de outras urgências de mudanças na formação mais direcionadas ao SUS também essenciais.
Na AB, que se pretende acolhedora, porta de entrada do sistema, quando as aberturas são excessivas às supostas urgências, muitas vezes, vemo-nos tomados por um trabalho automatizado, guiado simplesmente pelas escutas pontuais, restritas, agudas, sem possibilidade de repetir, repetir, repetir, como se a cada dia novos movimentos isolados se iniciassem, diante das muitas situações de fato crônicas e prolongadas que exigem as repetições para se diferenciarem. Cair nessa prática das urgências é um risco nesse momento. Entretanto, diante de um apoio matricial excessivamente burocratizado que marca hora, lugar e modo de apoiar, restringindo acesso aos colegas, sentimos também as consequências do afastamento, da indisponibilidade. O perigo aqui é enrijecer demais.
Como se movimentar nessa dança atravessada por forças diversas e contrastantes? Como não se precipitar excessivamente ou bloquear gestos que tentam fluir? Que critério de escolha utilizar? Em um contato inicial com a ACS, pequeno instante de agonia, a psicóloga busca mais elementos que ajudem a compor um gesto conjunto sem se submeter simplesmente às velocidades do outro corpo, mas tampouco sem se distanciar demais dançando sozinha e seguindo apenas seu tempo. É preciso saber um pouco mais desse outro e desse pedido: “É urgente ou algo que pode esperar? Estou com os estudantes na sala”.
Em uma prática que exercita, em cada pedido de ajuda, a simplicidade do gesto, tomamo-nos por um exercício de CI, que é um modo de dançar criado pelo bailarino-coreógrafo norte-americano Steve Paxton nos anos 1970. Toma o contato entre dois corpos como ponto de partida para o movimento/improvisação.
O contact envolve dois parceiros: a ideia é moverem-se continuamente, apoiando-se um no outro e mantendo sempre um ponto ou um plano de contato. O movimento é inventado, proposto, dado e recebido a partir dessas grandes vagas de apoio recíproco, em uma improvisação em que o sujeito assume toda a iniciativa do deslocamento do seu próprio peso pelo toque gravitacional do corpo do outro7. (p. 109)
A psicóloga tenta dividir os pesos das pequenas escolhas cotidianas, incluindo a ACS na avaliação das urgências e critérios de acolhida imediata. Diante da pergunta, a ACS traz a urgência de uma situação com uma usuária que diz não apenas da necessidade de agir rápido, mas também da sua angústia ao se deparar com um cenário problemático, sem poder esperar. O critério passa a ser não apenas a urgência técnica em saúde mental que faz uma triagem dos riscos, isolando os usuários dos trabalhadores, mas também os afectosd em jogo em um problema que passa a ser compartilhado.
O desvio da rotina exige novas parcerias e reorganizações com os estudantes não abandonados diante do trabalho possível em equipe. O cuidado com o outro, aqui, não se resume ao cuidado equipe-usuário, mas tenta ser exercitado a cada encontro com um ACS ou com estudantes que agora são acompanhados por outro colega de equipe. Esparrama-se uma pequena rede dentro da própria unidade, em ressonância à proposta de Ceccim8 de inventarmos movimentos entre-disciplinares, lugares-meio entre fronteiras disciplinares, dentro dos desenhos multiprofissionais.
A ACS Mirela, ao construir vínculo com os moradores de sua área dita de risco e vulnerabilidade, exercita também o apoio, recebendo uma jovem mulher, Michele, aos prantos e acompanhada por seu filho de três anos. Em um pequeno consultório, ela autoriza-se a escutar, por ser a referência principal dessa moradora. Michele sente uma aproximação não apenas nos nomes, mas também na abertura de uma cena de violência sofrida nesse momento que, junto com as marcas físicas de pontapés e socos, coloca-a em apreensão e medo, exigindo cuidado.
Sem muito preparo formal, nem discussão do dito caso, a psicóloga adentra, junto com Mirela, o estreito consultório verde, imprimindo novas cores e dimensões à clínica compartilhada. Michele é tomada pelos fluidos, que fazem de si somente lágrimas, compondo um cenário de fragilidades junto com sua magreza. A lentidão e a delicadeza tomam a cena clínica, desacelerando gestos apressados, como nos sugere Aragon9. Michele demora-se ao falar. A ACS e a psicóloga se olham pelo canto do olho, tentando encontrar uma sintonia de acolher conjuntamente, sem, entretanto, endurecer os movimentos, nem perder as singularidades nos modos de conversar. Percebendo as dificuldades de as palavras saírem pela boca, a ACS Mirela, em um ato simples, delicadamente, pega no colo o menino. Divide o peso com a mãe e percebe sensivelmente o quanto ela parece precisar distanciar-se parcialmente dele nesse momento de dor inevitavelmente compartilhado com o filho. A ACS Mirela experimenta começar as frases, terminadas por Michele, para juntas irem narrando o problema. Oferece seu corpo, seu colo e suas palavras como suporte para uma jovem mulher-mãe se expressar.
Michele foi gravemente agredida pelo marido, com marcas na cabeça e nas costas mostradas em meio à fala, também interrompida pelas palavras doces do menino: “Não chora, mãe.” Violência e delicadeza se misturam. Não é obviamente a primeira vez. Mas a dor no corpo da violência crescente a impossibilita de esquecer e calar. Entretanto, está com medo. Em um vaivém constante, as descontinuidades ambivalentes carregam palavras entre silêncios. O marido, traficante e com passagens na prisão, ameaça, caso ela se separe, matar sua família que já é distante e quase nenhum suporte lhe dá. Sabe do que ele é capaz, já tendo testemunhado um assassinato de sua autoria. O medo não é simplesmente aprisionamento, mas também proteção diante de uma relação marcada pelas acusações e violências.
As trabalhadoras vão adentrando o sofrimento de Michele e percebem seu entrelaçamento com tantas outras questões e histórias de vida. Sentem o desafio de construir gestos cuidadosos que imprimam outros ritmos sutis às tramas violentas de abandono, dificuldades de cuidado e pobreza, reiteradas desde uma infância marcada por negligência, tráfico, alcoolismo, mortes, separações, privações e fome. Michele mantém-se nessa relação que, apesar de conter aos olhares profissionais protegidos da miséria todas as razões que justificariam uma imediata separação, é o mais próximo de cuidado que ela experimentou ao longo de sua vida precária.
ACS e psicóloga agenciam-se com aquele emaranhado de problemas que, a cada abertura, complexifica-se mais em uma heterogeneidade de elementos. Como não paralisar? Oferecem a possibilidade da escuta, tentando construir movimentos não automatizados, sem repetir as violências ao dizer como e o que fazer diante de tais sofrimentos. Querem compor com as singularidades frágeis de uma jovem violentada também por si mesma. Assumem a lentidão como possibilidade de invenção, tentando criar o máximo de intensidade suportável para aquele corpo todo esfacelado. Os gestos clínicos são simples e quase imperceptíveis diante da grandiosidade da violência, pobreza e desamparo que marcam tantas famílias, não sendo exatamente posse dessa mulher/casal. Pegar no colo uma criança, segurar na mão, escutar, interessar-se e oferecer mais escutas, além de outros cuidados na rede de assistência e da saúde, são alguns dos movimentos possíveis, tentando não paralisar com Michele.
Nesse gesto de cuidado narrado, instauramos outro tempo na rotina acelerada do trabalho e abrimos possibilidade de encontros futuros, nem sempre contínuos, diante das assimetrias e das urgências variantes de cada corpo. Impõe-se uma duração em uma ação que, mesmo que seja o único momento de conversa, não se termina necessariamente ali. Deleuze e Guattari10 desenvolvem a ideia de que a questão não está na diferença entre o efêmero e o duradouro, já que ambos convivem nesse movimento contínuo. A questão passa a ser como fazer do agenciamento um acontecimento que instaura outra temporalidade. O Aion, tempo do acontecimento, coloca-nos diante de um instante em que algo vai sempre se passar e acaba de se passar. Futuro e passado são atravessados por um fluxo transversal que nos conecta de outro modo ao presente, fazendo-os conviver em zonas de variação, de atualização contínua.
Desejamos acessar esse tempo do acontecimento. Queremos deixar marcas do cuidado, da delicadeza e da sutileza em meio às marcas da violência, aumentando os contrastes das experiências e intensificando paradoxos. Fonseca e Costa11 afirmam que a tensão e os paradoxos carregam a densidade da multiplicidade, garantindo consistência imanente e variante.
Em um encontro que coloca o corpo violentado em cena, marcado em sua concretude, tentamos trazer a materialidade necessária nos simples gestos de conversar e segurar a mão junto com os devires e intensidades que abrem possíveis movimentos. É o corpo virtual que dança, diz-nos Gil2, em um movimento total que ali coloca corpo e pensamento, usuários e trabalhadores a dançar em uma clínica que busca ativar passagens virtuais em meio às formas de clinicar na atenção básica. A clínica em saúde mental, desse modo, coloca concretamente todo o corpo em cena, não podendo dissociá-lo da cabeça e compondo trajetos microscópicos em uma comunicação que envolve a conversa e as possibilidades de encaminhamentos psicossociais e medicamentosos, mas também o canto do olho, o colo, o silêncio, a fala da criança, a escuta em uma pequena sala a quatro ouvidos e corpos atentos.
Em uma clínica compartilhada, somos forçados a inventar. Apostamos nos pequenos trajetos penetrantes que colocam corpos em comunicação por entre as burocracias. Fluxos e estabilidades. Paradoxos se acentuam e as diferenças fazem conviver assistência, formação e apoio matricial de modo intenso, indissociável no cotidiano da prática que, em todos esses campos, constitui-se como clínica. Buscamos agenciar, sem cair nas tentativas de dissociação corriqueiras, apoiando e tentando tocar o outro. Como um bailarino que acolhe os pesos, caímos em direção ao chão que nos tira das superioridades e doutoramentos. Ao mesmo tempo, instauramos uma suspensão do tempo-espaço, conforme Gil2 destaca na dança, permitindo pequenas experimentações e lentidões em meio às correrias.
Ensaiando uma clínica do chão
Nesses movimentos, apostamos em uma clínica poética, em que os momentos de criação são pequenos instantes raros. Colocamos o corpo em cena, tomando-o como dispositivo, tornando-o hipersensível, caixa de ressonância que amplifica os movimentos microscópicos, como afirma Gil2 ao pensar o corpo em cena do bailarino. O corpo está em encontro com outros, sendo afetado por seus gestos e tentando compor ao modo spinozano12.
Uma ACS chega pedindo apoio em um momento em princípio não tão oportuno, uma família pobre não adere ao tratamento do bebê, uma criança chega resistindo ao atendimento psicológico. Não continuamos como se nada estivesse acontecendo, usando o gesto do outro como pretexto para seguir repetindo os nossos estereotipadamente. Questionamos as certezas. Tentamos não encerrar a clínica em si mesma, privatizando-a, e sim abri-la às paisagens do bairro, do outro, da multidão que nos compõe, buscando diferir a partir das heterogeneidades e dos agenciamentos que engrossam o encontro.
Experimentamos novas sensibilidades, tateando com mãos, pés e ouvidos os corpos e os espaços, tentando ampliar nosso campo de percepção e adentrar o universo minúsculo dos imperceptíveis. Aceitamos os pesos da atenção básica, sem resignação, tentando ampliar suas potências. Qual a potência da vigilância que impõe um controle da frequência de alguns usuários? Qual a potência do trabalho em equipe mesmo em seu cotidiano atarefado e dos alertas para a violência tão frequentes? Qual a potência dos atendimentos individuais (tão comumente patologizantes)?
Aceitando os pesos, tomamos a própria queda como experiência, inspirados na queda da aura do artista da qual nos fala Rodrigues13 ao retomar Benjamin e Baudelaire. A preocupação não é o que, com isso, se perde, mas sim os efeitos dessa queda. “A perda da aura, como marca constituidora da experiência da modernidade, diz respeito, sobretudo, não ao que com ela se esvaiu, mas a seus efeitos, e o que há por se fazer em um mundo onde o halo jaz no chão.”13 (p. 246).
Assim, quando a clínica é desestabilizada por fluxos que a colocam em queda, desconstruindo suas verdades, tentamos fazer desaparecer os artifícios desnecessários, buscando desnudar nossos movimentos e experimentar aquilo que, de fato, coloca-nos em encontro com o outro. Fazer o que quiser, aqui, diz respeito então à potência de transformação, de rir dos pesos, entremeando levezas e se desfazendo desses artifícios. Diante de um mundo que nos encharca de utilidades e funcionalidades, impondo rotinas, tarefas, modos de ser mulher, mãe, pai, criança, cuidador, psicólogo, a inutilidade, a despretensão e a aleatoriedade aparecem como elementos importantes da experimentação clínica, fazendo contraponto.
Yvonne Rainer2 pensa o desaparecimento na dança, diferente do aniquilamento, que vai em direção a alguma coisa, virtual, zona de atualização sempre possível de um movimento. Ao experimentarmos os vazios, tentamos desaparecer formas, fazendo surgir o trivial, o comum, aquilo que sempre está aí e ao mesmo tempo não para de devir. A dança tem esse potencial de despersonalizar e abrir novos possíveis:
[...] tende a desindividualizar aquele que dança, que deixa cada vez mais de ser eletricista, psiquiatra ou banqueiro para se tornar um homem que dança. Singularidade pré-individual, como diria Deleuze. A tendência para a despersonalização atravessa todos os planos da individuação: o estatuto social, a psicologia, as múltiplas figuras e funções de subjetivação que o indivíduo é levado a assumir em sociedade. Ao dançar, ele despoja-se pouco a pouco de todas essas peles e torna-se um corpo nu2. (p. 205)
Assim como a dança, a clínica, em uma experimentação estética, carrega sua potência de desconstruir formas, liberando devires pelas brechas abertas em uma visita domiciliar, um atendimento conjunto ou uma gargalhada solta de uma criança em acompanhamento, colocando em relação corpos quando os especialismos da saúde perdem força. Escutamos o ronco do chimarrão que transversaliza tanto a unidade quanto os domicílios mais precários, o canto do olho e a mão que bate no ombro em um trabalho conjunto e apoiado com a ACS, a pressa que atravessa tanto psicólogos quanto crianças e nos faz cair em gargalhada. Os gestos comuns agenciam-nos, deixando passar fluxos que transformam a clínica. Os pesos tornam-se impulso, ao fazermos do próprio corpo o espaço2, meio de encontro, de trabalho, de escuta.
Como sugere Louppe7, entre pesos e levezas, tomamos o chão como aliado, dançando com ele e com suas aberturas.
Bernard Rémy indica o seguinte: “O chão esburacado parece oferecer uma sequência de apoios incertos. O solo é imprevisivelmente desigual. Pina Bausch compôs um ritmo com base neste chão mutável. Por vezes, os bailarinos deslocam-se de olhos fechados e são forçados, interrompidos, agitados e transportados pelos ritmos tácteis da sintaxe quebrada do solo.”7 (p. 203)
Assim, experimentamos a concretude da experiência clínica, com suas dores e dificuldades, mas também potencialidades de uma energia que nos atravessa fazendo do próprio corpo máquina de pensar. Percebemos as ressonâncias, ampliando nossa capacidade de escuta, de acolhimento de tais diferenças intensivas. Em meio às vizinhanças do território, vamos ao encontro das fronteiras que separam e unem corpos diversos, produzindo hibridações, habitando tensões e intensificando paradoxos.
Seguindo a pista de Rolnik14 sobre não abandonar a arte, não desejamos abandonar a clínica ao trazer a dança. Habitar a tensão da zona fronteiriça recupera justamente a potência crítica ao modo de subjetivação instituído, potencializando a revitalização do estado de arte, invenção da existência. Ir ao encontro da fronteira. Deslocar o objeto artístico da condição de fim para a condição de meio, tirando da arte a exclusividade de enfrentamento do trágico e habitando de fato uma outra consciência, outro plano de comunicação entre corpos em qualquer um dos campos.
Uma clínica do chão exige tranversalizar campos e formas, como já apontavam Passos e Barros15 ao trazerem a proposta de uma clínica transdisciplinar, mobilizando sua potência crítica, ética, estética e política. Hibridizar, segundo Rolnik14, explicita a transversalidade existente entre as práticas. Ganha, assim, visibilidade a dimensão clínica da arte e a dimensão estética da clínica, do mesmo modo que a dimensão ética, deslocamento do princípio constitutivo das formas da realidade (que predominaria em nosso mundo), desfazendo-nos das formas-mortalha como referência que aprisionam um corpo, constituindo-se justamente no festim entre a vida e a morte. Diz, a autora, então: “[...] criar condições para expor-se ao mal-estar provocado pelo trágico é a questão ética fundamental que atravessa estes dois campos.”14 (p. 47). Do mesmo modo, evidencia-se a dimensão política, resistência à esterilização do poder, aos modos de controle e homogeneização presentes nas segmentações e linhas duras em todos os campos.
A estratégia de produzir consistência e coerência dessa clínica é então hibridizar, abrindo brechas que ajudem a escapar da rigidez que separa as práticas e produz patologização. Buscamos investir na dimensão experimental da vida, tentando encontrar um modo de lidar com os impedimentos que enrijecem as fronteiras entre aquilo que somos, as formas que conhecemos e aquilo que variamos, potencial de transformação a cada repetição. Buscamos ampliar possíveis, tentando imprimir novos ritmos aos nossos movimentos, mais abertos ao acontecimento. Gil2 nos diz que, quando algo excepcionalmente nos transforma em nossas práticas clínicas e dançantes, a relação com o espaço-corpo que se abre muda, por contágio, alargando o campo imediato de possíveis, como se o corpo entrasse em expansão. Por outro lado, o tempo, de súbito, reapropria-se de sua duração subjetiva em um acontecimento brusco. Surge algo que transforma o pensamento, em que ação e pensamento coincidem.
[...] surge em ocasiões excepcionais, por altura de uma descoberta que transforma o pensamento ou a existência, como acontece no decorrer das terapias psíquicas; ou em momentos revolucionários, quando a percepção das coisas, do espaço e do tempo muda bruscamente; ou, por vezes, quando o curso dos hábitos se quebra violentamente, e os gestos exploram novos movimentos: um outro corpo emerge então.2 (p. 192)
Algo acontece. O corpo aberto se faz outro, diferenciando-se de si mesmo. Tudo se passa em um nível micropolítico, exigindo também estratégias pequeninas atentas às intensidades nem sempre visíveis. Conexão assimétrica. Somos surpreendidos por um campo de possíveis alargado que exige desvios, criação. Uma clínica do chão é necessariamente inventada no encontro, com seus paradoxos intensificados, em uma experiência intensa e de autoria nebulosa, diluída, que evidencia fragmentos, e não personagens-heróis. Improvisamos no encontro com o outro, testando as resistências dos cabos de guerra, as fragilidades dos vínculos que podem quebrar, ou os apoios matriciadores que ajudam a impulsionar.
As criações são gestos comuns, rastejantes pelo chão, que por isso têm a potência de articular diferenças. Nesse sentido, Fonseca e Costa11, ao pensarem as metodologias cartográficas, apresentam a potência da invenção, da ficção que expressa múltiplas relações possíveis permitindo delirar e sendo o próprio delírio a possibilidade de incrementar a capacidade de se relacionar. Tal incremento aumenta a indeterminação das relações, adquirindo nuances fugidias. Deliremos.
Logo, em uma clínica pensada a partir da Filosofia da Diferença, o mundo todo – inclusive a clínica e a pesquisa – é experimentado como obra de arte. Isso traz todos seus elementos minúsculos – cheiros, texturas, ruídos e imagens, e não apenas palavras – para esse jogo de composições fugidias, ampliando percepções e modos de ação em um sistema aberto e polifônico15.
Em meio às comunidades, a busca de um estilo
A potência de invenção dessa proposta clínica está justamente no incremento das relações. Novos comuns em meio às comunidades, sem totalizar novas grupalidades ampliadas16. Plano comum imanente se esparrama pelo chão dos encontros clínicos, sem buscar resgatar uma comunidade perdida, mas possibilitando conviver diferenças variantes e provisórias. Mantém dissimetrias. Nesse plano coletivo da clínica, não se achatam singularidades em prol de uma identidade única e de uma identidade dançante salvacionista. Forças singulares pululam em meio às estabilidades, em um agenciamento coletivo que se faz comunidade aberta.
O comum é, assim, abertura ao Outro, composição de singularidades, capacidade de diferir. É alargamento da capacidade de comunicar, de associar, compartilhar, forjar novas conexões e proliferar redes e tem, como condição, a abertura a uma multiplicidade de encontros que não se fecha a um conjunto de pessoas.17 (p. 12)
Tentamos promover, assim, processos de vida e de criação, a partir de uma concepção de saúde frágil, inacabada, aberta ao mundo e vital, mesmo na doença, como nos dizem Lima e Pelbart18. Ao buscar aumentar a fluência dos movimentos, por meio dessa relação com o mundo heterogêneo e mutante, tentamos impulsionar gestos em meio às sensibilidades alargadas. O exercício clínico aqui é exercício de invenção. É esculpir um estilo que não falseie o gesto e sim o carregue de verdades inventadas.
Invenção e verdade...
... andam lado a lado, pois a verdade aqui diz mais dos modos de agenciamento que, ao colocar termos em relação deste ou daquele modo, abrem-se ao acontecimento, e não das essências identitárias, supostamente verídicas. A verdade justamente está no fato de considerar todos os elementos em relação, já que tudo expressa, produz sentidos, em meio às nossas invenções. Buscar um estilo, desse modo, para Fonseca e Costa11, tem a ver com fazer durar, habitar um outro tempo, do acontecimento, que nos conecta com essa potência que nos compõe e carrega verdade em sua impessoalidade e singularidade concomitantes, para além, mas também para aquém das formas dadas.
Inventar um estilo é necessário ao produzirmos uma clínica do chão que se dispõe a dançar singularmente. Repete, repete, difere, repete, repete, difere. Ensaiamos movimentos clínicos na unidade de saúde no campo da saúde mental. Percebemos que muitos movimentos se repetem. Muitas misturas se efetivam também, hibridizando nossa clínica, colocando em questão fronteiras da saúde mental. Reverberam encontros dançantes mesmo que em suas formas, em princípio, separadas e distantes. Em meio às misturas que enriquecem nossas trajetórias repetitivas e sempre em movimento, encontramos possibilidade de diferir de nós mesmos, movimentar os endurecimentos clínicos de modo singular, fragmentário e em um instante que dura, estendendo-se nesta escrita.
Buscar um estilo tem a ver, assim, com se valer do movimento do outro, agenciar-se, contagiar-se, sem mimetizar completamente, nem criar isoladamente novas identidades. Segundo Deleuze e Parnet19, um estilo diz de um agenciamento coletivo de enunciação. A possibilidade de singularizar – encontrar um caminho só seu e, ao mesmo tempo, coletivo que expressa – é exatamente o ponto do agenciamento que nos conecta e nos faz clinicar deste ou daquele modo em nossas invencionices.
Para tanto, devemos estar atentos às exigências das transformações profundas do tempo, como desenvolve Gil2 em relação ao que seria uma dança atual. Podemos tomar de empréstimo e pensar: o que é uma clínica atual? Como produzir uma clínica conectada com o outro, atenta ao presente marcado por transformações políticas constantes, com linhas endurecidas e concomitantemente inseguras do porvir? Uma clínica atual é justamente aquela que toma o tempo e a possibilidade de compor novos ritmos, movendo, aumentando a fluência e produzindo respostas singulares diante das fraturas, aberturas que a realidade nos coloca, transformando o presente. O tempo se constitui como elemento essencial. O contemporâneo nos desafia a cada segundo a nos diferenciarmos para não sucumbirmos ao caos ou aos endurecimentos. Potência de criar o presente, de produzir novos sentidos diante dos gestos inventados e carregados de descodificação, selvagerias, caos.
Escutar a própria época e seus signos subterrâneos, por meio do nosso próprio corpo que faz ressoar, sugere Gil2. Assim, colocar a clínica a dançar, uma dança rastejante, do chão, é corporeizar a clínica em uma lógica intensiva, podendo aceitar os pesos do nosso tempo e concomitantemente rir deles, profanar, recusar os halos que pairam sobre nossas cabeças artistas, clinicantes e pesquisantes.
Referências
- 1 Deleuze G. Conversações. São Paulo: Editora 34; 2013.
- 2 Gil J. Movimento total: o corpo e a dança. Lisboa: Relógio D’água Editores; 2001.
- 3 Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34; 1996. v. 3.
- 4 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2014. (Cadernos de Atenção Básica, n. 39).
- 5 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde; 2002.
- 6 Paulon S, Neves R, organizadores. Saúde mental na atenção básica: a territorialização do cuidado. Porto Alegre: Sulina; 2013.
- 7 Louppe L. Poética da dança contemporânea. Costa R, Tradutor. Lisboa: Orfeu Negro; 2012.
- 8 Ceccim RB. Equipe de saúde: perspectiva entre-disciplinar na produção dos atos terapêuticos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Cuidado: as fronteiras da integralidade. 3a ed. Rio de Janeiro: IMS, UERJ, ABRASCO; 2006. p. 259-78.
- 9 Aragon LEP. A espessura do encontro. Interface (Botucatu). 2003; 7(12):11-22.
- 10 Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34; 1997. v. 4.
- 11 Fonseca TMG, Costa LA. As durações do devir: como construir objetos-problema com a cartografia. In: Passos E, Kastrup V, Tedesco S, organizadores. Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum. Porto Alegre: Sulina; 2014. p. 260-84.
- 12 Deleuze G. En medio de Spinoza. 2a ed. Buenos Aires: Cactus; 2008.
- 13 Rodrigues AC. Cisões, silêncios e alguns ruídos: considerações acerca da subjetividade, cidade e modernidade. Fractal Rev Psicol. 2009; 21(2):237-52.
- 14 Rolnik S. Lygia Clark e o híbrido arte/clínica. Percurso. 1996; 16(1):43-8.
- 15 Passos E, Barros RB. Construção do plano da clínica e o conceito de transdisciplinaridade. Psicol Teor Pesqui. 2000; 16(1):71-9.
- 16 Pelbart PP, organizador. Vida capital. São Paulo: Editora Iluminuras; 2003. p. 28-41.
- 17 Barros MEB, Pimentel EHC. Políticas públicas e a construção do comum: interrogando práticas PSI. Rev Polis Psique. 2012; 2(2):3-22.
- 18 . Lima EMFA, Pelbart PP. Arte, clínica e loucura: um território em mutação. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2007; 14(3):709-35.
- 19 Deleuze G, Parnet C, organizadores. Diálogos. São Paulo: Escuta; 1998. p. 9-46.
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Tese defendida em agosto de 2017 no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Todos os nomes utilizados são fictícios.
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Fazemos uso da palavra “afecto”, em português de Portugal, em vez de “afeto”, alinhados à diferenciação que Deleuze faz em relação aos sentimentos, ao estudar Spinoza, seguindo a opção de grafia de Luiz Orlandi, estudioso e tradutor de Deleuze. “Afecção” tem a ver com o efeito de um corpo sobre outro na dinâmica dos encontros spinozanos. Esse efeito instantâneo vai sofrendo variações continuamente, indo de um estado a outro (crescendo ou decrescendo em relação ao estado anterior), chamando-se então “afecto”. O afecto corresponde a uma afecção, mas não é representativo e não está ligado diretamente a outro corpo. Tem a ver com essas variações contínuas da nossa potência de agir e de existir, expressando um modo de sentir, e não o conteúdo de um sentimento. Alegria e tristeza são os dois principais afetos, mas não no modo que os conhecemos, como sentimentos que são posse de um corpo, mas sim como variação da potência; daí a opção pela grafia “afecto”.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Ago 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
29 Out 2018 -
Aceito
24 Abr 2019