Resumo
O presente artigo discute as conexões entre as HQs Cangaço Overdrive (2018), de Zé Wellington e Walter Geovani e Ronin (1983-1984), de Frank Miller. As duas obras foram pioneiras em seu trânsito por diferentes tradições artísticas — enquanto Ronin antecipou o movimento cyberpunk, Cangaço Overdrive articulou elementos que configurariam o sertãopunk ainda antes do movimento tomar forma. Ambas também tomam como ponto de partida a ressurreição de uma figura de um passado heroico em um futuro distópico, mas se diferenciam na forma como desenvolvem a relação dessas figuras com o mundo ao qual elas retornam em seu deslocamento temporal — isto é, tratam de maneira radicalmente diversa a relação do passado com o futuro. Defende-se, a partir deste cotejo, que as semelhanças superficiais entre as obras são menos significativas em sua análise conjunta do que suas diferentes apreensões do capitalismo tardio, expressivas dos movimentos literários a que se associam e de seus respectivos quadros ideológicos.
Palavras-chave Sertãopunk; Cyberpunk ; Quadrinhos; Distopia; Hibridismo
Abstract
This article discusses the connections between the comics Ronin (1983-1984), by Frank Miller, and Cangaço Overdrive (2018), by Zé Wellington and Walter Geovani. Both works were pioneers in their connection with different artistic traditions — while Ronin anticipated the cyberpunk movement, Cangaço Overdrive articulated elements that would later make up sertãopunk before the movement took shape. Both have as their starting point the resurrection of a figure from a historic past in a dystopic future, but differ in the way in which they develop the relationship between these figures and the world to which they return in their temporal displacement — that is, they deal in a radically different way with the relation between past and future. Based on this comparison, it is argued that the superficial similarities between the two works are less significant to their joint analysis than their different apprehensions of late capitalism, expressive of the literary movements to which they are associated and their respective ideological frameworks.
Keywords Sertãopunk ; Cyberpunk; Comics; Dystopia; Hybridism
Introdução
Entre os anos de 1983 e 1984, o renomado quadrinista Frank Miller somou esforços com a colorista Lynn Varley para produzir Ronin, uma graphic novel centrada no espírito de um samurai caído em desgraça que retorna à vida em uma Nova Iorque futurista e distópica. De caráter altamente experimental, a obra dá forma a um quadro desesperançoso do futuro altamente globalizado e pautado pelos interesses das grandes corporações multinacionais que se desenhava à época, de forma que, anos mais tarde, a narrativa seria contada entre as primeiras representações do que mais tarde seria entendido como o cyberpunk (Cf. KAWA, 2009; LABARRE, 2022).
Em 2018, Zé Wellington e Walter Geovani publicam Cangaço Overdrive, HQ com uma premissa de contornos similares, em que um cangaceiro morto no século XIX é ressuscitado em um corpo robótico para trazer um desfecho à batalha que resultou em sua própria morte. Da mesma forma que a mobilização de elementos característicos do cyberpunk em Ronin é anterior à categorização desse gênero, Cangaço Overdrive também articulou elementos que configurariam o sertãopunk antes de o movimento tomar forma.
As duas obras também transitam entre diferentes tradições artísticas, com o trabalho de Miller aliando elementos dos quadrinhos mainstream estadunidenses, das vanguardas europeias e do mangá japonês, e o dos artistas brasileiros propondo um diálogo entre elementos da cultura tradicional nordestina e o movimento cyberpunk. A forma como os artistas tratam dessa transposição de categorias e fronteiras, no entanto, é bastante diversa.
Neste artigo, pretende-se analisar as diferenças e as similaridades de ambos os quadrinhos, partindo de elementos que propiciem uma comparação profícua entre os dois. A despeito da disposição muito aproximada dos recursos narrativos, como o fundo distópico, o retorno de personagens heroicos do passado e sua reconstrução a partir de tecnologia futurista, cada obra encerra em si uma projeção e uma reflexão particulares acerca das ansiedades características do cyberpunk — os efeitos do aprofundamento do capitalismo tardio.
Cangaço Overdrive e o sertãopunk
Em 2018, o ilustrador gaúcho Vitor Wiedergrün desenvolveu um projeto no qual representava personagens caracterizados com elementos representativos do cangaço imaginados sob uma estética cyberpunk, ao qual deu o nome de cyberagreste. Suas ilustrações, que tiveram grande repercussão nos meios digitais, inspiraram outros artistas a conceberem novas criações seguindo essa mescla entre estilos a princípio tão distantes, logo resultando na emergência de diversos contos, cordéis, cenários de role-playing games, histórias em quadrinhos e ilustrações alheias ao artista original, mas partícipes de sua visão.
Não obstante, um grupo de autores nordestinos encabeçado por Alec Silva, Alan de Sá e G. G. Diniz, questionou os pressupostos que embasavam as criações de Wiedergrün e as obras dele derivadas, problematizando o fato de a estética retrofuturista idealizada pelo artista visual pretender representar o futuro da região nordestina estritamente através da massificação de elementos considerados exóticos e da atualização estética de signos negativos associados a ela. Alan de Sá argumenta que:
No caso do cyberagreste, que nasceu como um conjunto de artes do artista visual Vitor Wiedergrun e depois foi para a literatura, há uma massificação do cangaceiro como personagem e do uso de uma estética retrofuturista. Lampião e seu bando não são um símbolo proibido e intocável, que não pode nunca ser utilizado. A questão é somente usar este símbolo”
(SÁ, 2020, p. 5).
Esses autores propuseram então a concepção de um nordeste futurista que não fosse necessariamente definido pelos estigmas da seca, do banditismo e do coronelismo, ou que ao menos o fizesse a partir de uma perspectiva crítica. A partir dessas demandas propôs-se o Movimento Sertãopunk, materializado em um livro-manifesto homônimo em 2020 (SILVA, 2020).
No manifesto e em sua prática literária, esses autores se propõem a repensar a representação do Nordeste brasileiro em narrativas de ficção científica a partir do protagonismo de escritores da própria região na elaboração de pautas e narrativas sobre ela. Silva (2021) situa o movimento como sendo constituinte de uma Quarta Onda da ficção científica brasileira, marcando um momento em que produções centradas na “afirmação e celebração das diversidades socioculturais e regionais do Brasil” (p. 63) estariam tomando vulto no cenário nacional, como demonstrado pela emergência do amazofuturismo e do próprio sertãopunk.
Ainda antes da eclosão das polêmicas suscitadas pelas ilustrações de Wiedergrün, o roteirista Zé Wellington e o ilustrador Walter Geovani publicaram a HQ Cangaço Overdrive (2018), que articula elementos do cyberpunk sobre o pano de fundo do Ceará em um futuro próximo. Foi por subscrever-se a essa perspectiva crítica que o autor Zé Wellington optou por classificar retroativamente sua história em quadrinhos, finalista do prêmio Jabuti 2019 na categoria “História em Quadrinhos”, sob o epíteto de sertãopunk em detrimento do cyberagreste.
Na trama de Cangaço Overdrive, Cotiara, um célebre cangaceiro, é revivido em um corpo cibernético junto a Avelino, um coronel que foi em vida seu incansável perseguidor. Ambos morreram pelas mãos um do outro e foram trazidos de volta à vida para reencenar seu conflito em um futuro no qual a tecnologia avançou a tal ponto que as guerras no sertão nordestino são travadas com ciborgues e hackers, mas as mazelas sociais oriundas de estruturas de poder avoengas se aprofundaram na mesma medida.
No futuro no qual esses adversários foram reanimados, o sertão cearense foi esvaziado pela seca, com os descendentes distantes do coronel Avelino, os Rios, tendo assumido a gestão privada dos recursos hídricos da região. Uma comunidade autônoma sobrevive entrincheirada no Morro do Preá, terreno no qual Cotiara planejava se estabelecer quando se aposentasse do cangaço, subsistindo da água que ainda brota do subsolo naquele ponto e fazendo frente às tropas governamentais que intentam transferir a posse da terra à corporação da família Rios.
Ao ser revivido, Cotiara, cuja história foi elevada à condição de hagiografia, trava contato com Rosa, líder da comunidade e descendente de um dos seus companheiros no cangaço, alinhando-se a ela contra a família de Avelino. Os Rios trouxeram os dois de volta à vida em corpos cibernéticos, porém assimétricos, sendo o do coronel superior, uma vez que seu intento era reencenar a batalha dos dois de tal maneira que a derrota do cangaceiro desmobilizasse a resistência no Morro do Preá.
Indo ao encontro da proposta de seus conterrâneos regionais, o autor tematiza nessa obra o próprio processo histórico por detrás dos signos que formam o imaginário nacional do Nordeste, assumindo a contradição inerente à reivindicação dessa identidade que, para Durval Muniz de Albuquerque Júnior e Antonio Carlos Robert Moraes, funda-se em um esforço reacionário pela defesa dos privilégios perdidos de uma elite local (Cf. MORAES, 1991, p. 100-103; ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p. 342). É justamente através da demanda dos estigmas estruturantes desse ideário regional que ele opera a ressignificação destes como símbolos de um processo emancipador, tal como proposto por Pierre Bourdieu quando este afirma que:
O estigma produz a revolta contra o estigma, que começa pela reivindicação pública do estigma, constituído assim em emblema [...] e que termina na institucionalização do grupo produzido (mais ou menos totalmente) pelos efeitos econômicos e sociais da estigmatização. É, com efeito, o estigma que dá à revolta regionalista ou nacionalista, não só as suas determinantes simbólicas, mas também os seus fundamentos econômicos e sociais, princípios de unificação do grupo e pontos de apoio objectivos da acção de mobilização
(BOURDIEU, 1992, p. 125).
Assumindo as características do cyberpunk para além da estética retrofuturista, Zé Wellington e Walter Geovani se valem do seu potencial de sistematização crítica do capitalismo tardio para realizar uma denúncia dos elementos estruturantes que marcaram historicamente a região nordestina e encontram um vetor de expressão hiperestetizado em sua recombinação com os tropos do cyberpunk na história em quadrinhos. Para além disso, os artefatos transtemporais nos quais se transformam os corpos mecanizados do protagonista e do antagonista ecoam fortemente a tensão estruturante da trama entre passado e presente, local e global.
A despeito de uma literatura extensiva de graphic novels latino-americanas centradas no cyberpunk, a abordagem do tema em Cangaço Overdrive convida a um paralelo mais explícito com uma obra em específico. Este se dá com a graphic novel Ronin (1983-1984) de Frank Miller, a qual, apesar de alheia ao cenário da América Latina, estabelece um precedente interessante na apresentação de temas semelhantes àqueles trabalhados no roteiro de Zé Wellington, oferecendo um diálogo produtivo com a obra a partir da forma contrastante com a qual ambas lidam com seu referencial comum.
Ronin e o cyberpunk
O cyberpunk é um subgênero de ficção científica centrado na representação de um futuro próximo em que o rápido avanço tecnológico e o aprofundamento das relações sociais capitalistas derivadas de sua emergência levaram ao desenvolvimento de uma sociedade pautada pelo binômio “lowlife and high tech” (STERLING, 1986, p. 8). Seus precursores são um grupo de autores de ficção científica que, na década de 1980, escreveram alguns dos trabalhos seminais para o estabelecimento dos tropos do cyberpunk, em particular William Gibson e sua trilogia do Sprawl, iniciada com o clássico Neuromancer (1984).
Enquanto esses autores estabeleceram o arcabouço imagético e temático do subgênero, além de alçá-lo à popularidade da qual viria a gozar nas décadas seguintes, seus escritos não foram os primeiros a trabalharem essas temáticas, já então fervilhantes no imaginário de uma sociedade marcada pelo ritmo vertiginoso das novas tecnologias computacionais e preocupada com suas implicações no futuro. O filme Blade Runner (1982), dirigido por Ridley Scott e baseado no romance de Phillip K. Dick intitulado Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1968) é frequentemente alvo de uma associação retroativa ao cyberpunk, muito em função de sua “ambientação em um pesadelo urbano futurístico, enormes conglomerados financeiros usurpando os poderes do governo, tecnologia, influência japonesa e uma caçarola de história e cultura pós-moderna” (SENIOR, 1996, p. 1, tradução nossa)1.
Outro trabalho que precedeu a eclosão desse movimento e corresponde a todos esses elementos é a graphic novel Ronin (1983-1984), do quadrinista estadunidense Frank Miller. Como sua publicação antecede a onda do cyberpunk encabeçada pelo grupo de William Gibson, Miller deriva sua orientação estética de outras matrizes.
Além de estar a par das vanguardas europeias de narrativas gráficas (GIBBONS, 2015, p. 6) — das quais um de seus maiores proponentes, Jean Giraud “Moebius” produziu, ainda em 1976, uma das obras mais destacadas dentre as influências de Blade Runner, The long tomorrow (1976) (LONDERO, 2013, p. 160) — a grande influência de Miller foi a arte sequencial japonesa, em especial as ilustrações de Kojima Goseki para Kozure Okami (1970-1976) (publicado no Brasil como Lobo Solitário). Miller declararia ter acompanhado o mangá por muito tempo e tê-lo tido como seu “quadrinho favorito”, mesmo sem ter entendido o que estava escrito nele antes da publicação da série nos Estados Unidos2 (MILLER, 1987, p. 1).
É interessante notar que, paralelamente à publicação de Ronin, configurava-se uma forma de cyberpunk japonês, a exemplo do mangá Akira (1982-1990), de Otomo Katsuhiro. Diferente de sua contraparte ocidental, o escopo desse cyberpunk nipônico, tal como prefigurado pela obra de Otomo, centra-se não apenas na tônica do lowlife, high tech, sendo também comumente caracterizado por uma metamorfose radical do protagonista por meio de algum advento tecnológico, o qual altera profundamente sua relação com o mundo e lhe imbui de uma capacidade de exercer controle sobre sua vida que lhe era negada antes de alcançar sua condição pós-humana.
Na trama de Ronin, a empresa Aquarius, instalada no coração de uma Nova Iorque arruinada em um futuro próximo, desenvolve uma biotecnologia revolucionária que, aliada à Inteligência Artificial (IA) avançada Virgo, poderia reverter o estado catastrófico do mundo pela geração de biocircuitos eletrônicos autorreplicantes. A Aquarius também emprega Billy Challas, um jovem com poderes telecinéticos nascido sem membros e com o desenvolvimento mental de uma criança, para avançar seus projetos, valendo-se de seus poderes para auxiliar a IA no comando dos biocircuitos.
Com o tempo, Billy passa a experienciar alucinações vívidas remetendo a um samurai cujo mestre foi morto por um demônio e se viu obrigado a embarcar numa jornada para selá-lo numa espada mágica, finalmente derrotando-o, mas acabando por prender a si mesmo na espada junto do monstro. Essas alucinações tomam forma no mundo material quando o demônio, Agat, ataca a sede da empresa, fazendo com que Billy se transforme através da manipulação dos biocircuitos no samurai sem mestre — o ronin — e retome a batalha que os dois travaram nos tempos do Japão feudal.
Aproximações e dissonâncias
A centralidade da incidência do passado sobre o presente — um presente que é, do ponto de vista do leitor, o futuro — é notável tanto em Ronin quanto em Cangaço Overdrive. Esse passado se apresenta na forma de ameaças, materializadas no demônio Agat, no caso do primeiro, e no coronel Avelino e nas estruturas de poder que alicerçam o coronelismo na segunda, mas faz-se presente também nos protagonistas, que carregam ambos em seus próprios corpos a marca de seu caráter transtemporal — heróis do passado habitando corpos ciborgues.
Enquanto pode-se argumentar que essa tensão entre passado e presente/futuro já se encontra presente na ambiguidade no nome cyberpunk, de raiz tanto clássica (do grego kubernetes [capitão, timoneiro, piloto, navegador], que dá origem a cybernetics) quanto da cultura de massa (punk) (AMARAL, 2006, p. 74), ela é definitivamente estruturante da identidade regional nordestina, remontando às motivações por trás de sua articulação pela elite agrária decadente em fins do século XIX e à sua retomada e articulação formal com Gilberto Freyre nas primeiras décadas do século XX (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001). Com a cristalização da discursividade que assume o Nordeste como um recorte espacial marcado pela presentificação do passado, toma forma a concepção dessa região como o Outro de um Brasil cuja república foi fundada sob o signo do ideário do progresso positivista.
Resultado do “fechamento imagético-discursivo de um espaço subalterno na rede de poderes” organizado por uma elite local decadente que, após perder seu protagonismo, abre mão de “aspirar ao domínio do espaço nacional” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p. 83), o Nordeste toma forma como uma região marginalizada em um país na periferia do sistema capitalista global. Assim, na mesma medida que essa região é marcada pelo estigma do “atraso” em relação ao resto do Brasil, ela não deixa de estar inserida no contexto do complexo econômico e cultural hegemônico que se impõe de maneira totalizante sobre todo o planeta.
As manifestações culturais que se seguiram à conformação com o construto identitário da região nordestina percorreram frequentemente o espaço limítrofe entre os tempos que se sobrepõem nesse espaço, revelando uma tensão que, se é nacional, também não deixa de ser global. É justamente nesta escala mais ampla que as tendências transgressoras se revelam de maneira mais marcante, como no caso dos movimentos musicais da tropicália e do manguebeat.
Apesar de a HQ Cangaço Overdrive ser outra representante da elaboração artística dessa tensão temporal estruturante da identidade nordestina e de o tema da disjunção temporal também ser central em Ronin, as duas graphic novels lidam com esse objeto de maneira radicalmente diferente. O quadro pintado por Miller é marcado pela decadência, com uma Nova Iorque arruinada, dominada por personagens “degenerados” que representam uma alteridade profunda em relação ao seu protagonista e à normatividade social de então.
A fala do antagonista, Agat, ao fim do primeiro volume, aponta para isso: “Eu vi esta Nova Iorque. Ela é linda... Violenta, desesperada, desesperançosa, má até a raiz... Sim... Agat encontrou uma nova casa. Enquanto você [ronin] — você é só um homem simples, de uma época simples. Você não pode sobreviver aqui” (MILLER, 2014, p. 46)3. As personagens com as quais o ronin lida ao longo da narrativa corroboram esse adágio.
Em seu retrato cínico do futuro, Miller traça uma equivalência entre panteras negras e neonazistas enquanto gangues rivais que lutam pelo controle da cidade. Os panteras justificam sua guerra permanente como uma “luta pela igualdade social", enquanto os nazistas têm suas fileiras compostas majoritariamente por mulheres e homossexuais ligados à subcultura do couro, em um esvaziamento do conteúdo conservador que usualmente excluiria essas minorias, mas que não prescinde, contudo, do enfoque no preconceito racial contra seus adversários políticos, os panteras negras.
Outro caso expressivo é a figura do hippie Head, sócio parasitário do ronin que trata o potencial disruptivo de suas ações como uma oportunidade de ascensão social para si, explorando o protagonista em uma relação que emula o agenciamento de artistas no contexto da indústria fonográfica. Em sua paradoxal reprodução de relações de exploração, essa personagem configura mais um exemplo do esvaziamento de categorias sociais antes sólidas e bem delimitadas nesse futuro imaginado por Miller — outra caricatura de um movimento social contra-hegemônico tornada hipócrita ao ser cooptada pela inescapável lógica do capital.
Também é ilustrativa a presença na narrativa da corporação japonesa Sawa, a qual, além de ecoar uma ansiedade orientalista com a ascensão econômica do Japão durante as décadas de 1970 e 1980, se presta ao papel de inescrupulosa exploradora do potencial bélico dos biocircuitos. Sua representação nessa projeção do capitalismo tardio de Miller ecoa a decadência do resto da sociedade, contrastando sua execução fria da busca sem limites do lucro preconizada pela lógica capitalista com o sistema de honra marcial apresentada pelos recortes mostrados do Japão feudal.
Soma-se a isso o fato de que essa representação da sociedade nipônica antiga era uma ficcionalização criada por Virgo para instrumentalizar os poderes de Billy Challas, de forma a dar ainda mais mostras do cinismo niilista que marca o tom dessa graphic novel — a âncora moral da história, os "velhos tempos" que contrastariam com esse futuro distópico e degenerado, não passam de uma invenção. Não há escapatória da decadência que permeia a narrativa de Miller.
Já em Cangaço Overdrive, o fundo distópico marcado pelo colapso ambiental e o emparelhamento do Estado por megacorporações serve como propulsor de uma narrativa que celebra a potencialidade da diversidade e da capacidade de resistência coletiva, trazendo à baila a discussão do direito de acesso à terra. Na comunidade autônoma do Morro do Preá, que ocupa uma porção de terra sobre uma das últimas fontes d’água ainda não privatizadas, organizam-se pessoas marginalizadas das mais diversas, unidas em prol da manutenção de seus laços sociais em face de sua desintegração pelos efeitos do aprofundamento do capitalismo tardio cuja face local é a Corporação Rios, efetiva proprietária de quase todo o estado.
Dentre os líderes da comunidade contam-se Rosa, uma mulher negra, e Calango, um homem homossexual e deficiente físico, além de diversas personagens menores, todas nordestinas, que protagonizam uma luta pela sua autodeterminação. Aqui a diversidade é apresentada sob uma luz positiva, um fator agregador em face da imposição de uma lógica totalizante que ameaça formas de organização social disruptivas do sistema capitalista, apresentando-se como uma alternativa a essa ordem hegemônica.
Diante desses cenários díspares, o retorno dos respectivos heróis do passado em cada história também apresenta contornos contrastantes. Essas figuras sublinham as visões divergentes dos autores acerca de suas representações do futuro.
O objetivo do ronin se realiza estritamente no plano individual, seguindo o tema — comum nas obras de Miller — do anti-herói solitário, último bastião de uma moralidade tradicional identificada com valores perdidos, voltando-se contra uma ordem totalitária que viceja em meio à decadência moral da sociedade (vide, entre os mais notórios, sua fase à frente da revista Demolidor [1980-1983], sua série autoral Sin City [1993-2000] e suas graphic novels Os 300 de Esparta [1998], Batman, o Cavaleiro das Trevas [1986] e Batman: Ano Um [1987]). O ronin insere-se no tradicional arquétipo do protagonista solitário do imaginário estadunidense, que age à margem da lei seguindo uma bússola moral própria que o guia em um mundo de moralidade cinza, figura transgressora e expressiva da individualidade heroica que foi historicamente associada do caubói ao detetive noir, com possíveis raízes no cavaleiro errante medieval (PORTER, 2003, BUCHENBERGER, 2007), e usualmente representada no contexto do cyberpunk pela figura do hacker (Cf. MCHALE, 1992).
Em contrapartida, Cotiara encarna antes a possibilidade de retomada de autodeterminação de toda a comunidade da qual faz parte, atuando como um catalisador e herói coletivo. O cangaceiro emerge de um passado no qual fulgurava como um símbolo de resistência para um presente/futuro no qual atua ativamente contra as estruturas de opressão que remontam à sua própria época.
Seguindo a mesma lógica, o conflito entre Rosa e a corporação Rios é a continuidade daquele entre o coronel Avelino e o bando de Cotiara. O líder dos cangaceiros morreu sem deixar descendentes que dessem continuidade ao seu legado, mas o antepassado de Rosa — seu segundo em comando, Janus, que possuía família e defendia junto a Cotiara as virtudes da vida em comunidade — manteve essa ideia viva através das gerações ao instigar a pauta do direito à terra — questão que é o pivô do conflito entre sua descendente e os familiares de Avelino.
O cangaceiro é, assim, retomado como elemento de um passado que se reafirma no presente, signo regional imposto como um estigma, mas retomado como símbolo agregador de um processo de ressignificação dessa identidade nordestina a partir de uma perspectiva emancipadora, tal como proposto pelos autores do manifesto sertãopunk e preconizado no processo supracitado de Bourdieu. A possibilidade de superação da condição distópica que se apresenta na história a partir de Cotiara distancia o conteúdo da narrativa dos pressupostos usuais do cyberpunk, uma qualidade que o pesquisador Rodolfo Londero (2013) defende ser característica da manifestação do subgênero na América Latina.
O autor propõe que essas produções reinventam a fórmula estabelecida pelos precursores estadunidenses do movimento em função de sua perspectiva marginal sobre as condições sócio-históricas em que o cyberpunk emergiu. Na medida em que esse subgênero expressa uma perspectiva historicamente determinada pelas especificidades dos processos de globalização tal qual estes se davam na década de 1980, houve um esgotamento tanto de seu apelo comercial quanto de sua percepção como expressão de um futuro possível, de tal modo que, retomado por autores que o encararam sob uma perspectiva sócio-histórica diversa, o cyberpunk foi efetivamente reformulado e revitalizado nas décadas seguintes de forma a alargar seus horizontes sem perder suas características definidoras.
Adriana Amaral defende que uma das características definidoras dessas narrativas, as quais ela caracteriza como pós-cyberpunk, é justamente a de que nelas o indivíduo “[...] ressurg[e] através da reafirmação dos laços sociais entre os indivíduos e de uma preocupação com o ambiente” (AMARAL, 2006, p. 37). Em par com o pensamento de Londero, essa perspectiva dá conta das diferenças basilares da apropriação que o sertãopunk faz dos elementos do cyberpunk em relação à forma como eles eram articulados nas narrativas propulsoras do movimento na década de 1980.
Com essas narrativas, o cyberpunk passa tanto a comportar novas formas de expressar as inquietações que suscitaram o seu surgimento através de uma maior adaptabilidade a contextos diversos (LONDERO 2007a, LONDERO 2007b), quanto imprime sobre si toda uma nova carga de significações acerca de seus tropos já consagrados. É a partir desses princípios que a possibilidade da superação distópica no cyberpunk se realiza no contexto latino-americano sem perder de vista os temas centrais do subgênero.
Esse elemento parece apontar para a razão pela qual o cyberpunk se reinventou da maneira como o fez na América Latina, dado que, como afirma Aníbal Quijano, “[q]uando se trata do poder, é sempre a partir das margens que ele se faz mais visto, e mais cedo, posto que entra em questão a totalidade do campo de relações e sentidos que constituem tal poder” (QUIJANO, 2007, p. 95)4. É possível que o sertãopunk em especial, mas também outras manifestações latino-americanas do cyberpunk, possuam um impulso utópico subjacente justamente por estarem estabelecidas em um contexto histórico e geográfico no qual as questões problematizadas pelo movimento em sua formulação original — na década de 1980 e no seio da maior potência capitalista de então — se materializam de maneira muito mais contundente e, como consequência, o horizonte de sua superação seja uma pauta em evidência.
Cangaço Overdrive, em particular, oferece uma exposição exemplar dessa ideia. A preeminência do sol, as cores quentes e os espaços abertos que servem de fundo à ação da graphic novel não são tão somente elementos que remetem ao imaginário em torno da paisagem nordestina, mas apontam para a forma como a exploração capitalista se dá de forma muito mais desabrida no contexto onde se desenvolve a narrativa — aquele de uma região historicamente marginalizada em um país na periferia do capitalismo global. Da mesma forma, a resistência a essa dominação é uma luta que não é apenas tangível, mas possui um lastro histórico na realidade.
Ademais, Cangaço Overdrive transcende uma convenção do cyberpunk que Leonard Patrick Sanders caracteriza como sendo um “orientalismo pós-moderno” (SANDERS, 2008), presente na apropriação realizada por William Gibson dos influxos culturais e tecnológicos do Japão na composição de sua trilogia do Sprawl, ilustrativa daquela realizada pelo cyberpunk como um todo. Superando as concepções fetichistas da cultura nipônica que marcam suas produções clássicas da década de 1980, Cangaço Overdrive desloca essa representação do Japão em favor de um destaque a elementos da cultura da região Nordeste do Brasil, reiteradamente retratada como o “Oriente Brasileiro” (WEINSTEIN, 2015), em um paralelo às formulações de Edward Said (2007) acerca da produção discursiva sobre os povos asiáticos que também pauta a conceituação de Sanders.
A graphic novel de Frank Miller lida de maneira diferente com a questão orientalista em pauta. Para além do tratamento dispensado à cultura nipônica na obra, característica da percepção estadunidense sobre o país na década de 1980, Miller também mesclou, como já referido, elementos estéticos do mangá japonês na composição de sua graphic novel, tanto na disposição das quadrículas quanto na representação das cenas de ação e compasso geral da narrativa.
Em depoimento à edição digital da revista Dazed feito em 2014, o autor detalharia o processo pelo qual ele procurou implementar técnicas narrativas típicas do quadrinho sequencial japonês em seus trabalhos. Ele fala de uma tentativa de criar um “híbrido”, denotando uma perspectiva em que a estética nipônica não seria meramente incorporada ao trabalho, mas serviria como elemento para a criação de algo novo, tão distante de si quanto dos quadrinhos americanos tais como feitos até então:
Eu achava que os quadrinhos americanos e ingleses tinham texto demais, eram constipados demais, e que os quadrinhos japoneses eram muito vazios. Então eu estava tentando criar um híbrido. Eu usaria o ritmo do mangá onde eu quisesse que você lesse depressa, e então usaria as técnicas ocidentais para te segurar durante algo que levaria um tempo maior para se acompanhar
(DUNNING, 2014)5.
Em outra entrevista, esta concedida à revista Comics Interview em 1983 para promover seu quadrinho ainda não publicado, Miller sintetizou o apelo da temática trabalhada em Ronin. Ele diz que:
O aspecto do samurai que mais me intriga é o ronin, o samurai sem mestre, o guerreiro caído... Todo esse projeto vem da minha sensação de que nós, homens modernos, somos ronins. Nós estamos desassociados, de certo modo. Eu não percebo nas pessoas que eu conheço, nas pessoas que eu vejo na rua, que elas tenham algo maior do que elas mesmas para acreditar. Patriotismo, religião, o que seja — todas essas coisas perderam seu significado para nós
(KRAFT & SALICUP, 1983, p. 13)6.
Essa tentativa de ressignificação da figura do samurai sem mestre à luz da angústia do homem moderno, aliada à formulação de uma estética completamente nova e ancorada em procedimentos técnicos tanto orientais quanto ocidentais, permite a apreciação dessa obra de Miller também pela ótica da antropofagia, tal como preconizada por Oswald de Andrade. À luz da revelação de que a representação caricata do Japão feudal da qual provém o próprio ronin nada mais é do que uma projeção da mente infantilizada de Billy em um esforço por materializar sua fantasia heroica, derivam questões interessantes em relação ao processo antropofágico quando realizado em contextos hegemônicos, a própria condição dos quadrinhos enquanto uma mídia subvalorizada nessa relação e os processos de produção discursiva em curso nas produções do cyberpunk da época.
A metáfora antropofágica se reafirma nessas obras para além de sua potência analítica enquanto estratégia de apropriação cultural. A imagética da antropofagia — e de seu aspecto menos prenhe de significações, o canibalismo em si — as perpassa de maneira inelutável. Elas englobam a representação dos corpos dos protagonistas como “esculturas” mesmas desse processo de antropofagia de matrizes culturais e tempos distintos aos próprios textos como sendo oriundos de um processo de trocas culturais antropofágico.
Na mesma medida, enquanto uma estrutura efetivamente canibal se espalha pela cidade com o descontrole da IA Virgo e os esgotos são povoados por pessoas bestializadas e comedoras de carne em Ronin, o canibalismo na narrativa de Cangaço Overdrive se faz mais presente na percepção das estruturas de poder representadas na trama. Estas se fazem sentir no aprofundamento das relações capitalistas no Brasil, remetendo à metáfora de Darcy Ribeiro sobre como os processos históricos pelos quais o país passou o configuraram como um “moinho de gastar gente” (RIBEIRO, 1995).
A preocupação de Zé Wellington com esses processos foi expressa por ele à ocasião do lançamento do livro. Ele chama especial atenção à sua própria tomada de consciência sobre um recorte regional em relação a essa problemática, escrevendo ao blog da Editora Draco que:
Os textos sobre o Sertãopunk me fizeram refletir muito, até mesmo me fazendo pensar sobre como eu mesmo represento o nordeste. [...] A essência e o pensamento que orientou a discussão sobre o Sertãopunk me representam muito. É uma questão de garantir nosso território, como Rosa e Cotiara defendem o Morro do Preá em Cangaço Overdrive. É uma treta que vale muito a pena. Levar o cyberpunk para o nordeste é uma questão de sobrevivência. [...] O caldeirão que criou o cyberpunk na década de 80 está queimando aqui mesmo no Brasil. E as minorias seguem sendo o prato principal, como era na época do Cangaço
(WELLINGTON, 2019).
João Cezar de Castro Rocha entende o conceito oswaldiano de antropofagia como “a promessa de uma imaginação teórica de alteridade, mediante a apropriação criativa da contribuição do outro” (ROCHA, 2011, p. 648). Ele defende que a metáfora antropofágica não estaria restrita à caracterização de uma expressividade brasileira, quanto menos àquela associada ao pensamento oswaldiano, sendo antes uma ferramenta analítica cuja potência se estende a quaisquer situações de assimilação criativa da produção do Outro.
A partir dessa perspectiva, o autor dialoga com a formulação de Carlos Jáuregui acerca do caráter polivalente ao qual a antropofagia se prestou enquanto um conceito-chave para a interpretação do continente americano ao longo da história. Para o autor, o signo antropofágico foi subvertido enquanto um estigma imposto à América para ser assumido como um signo de resistência:
[...] assim como o tropo canibal foi um signo da alteridade da América e serviu para sustentar o edifício discursivo do imperialismo, ele pode articular — como efetivamente já o fez — discursos contra a invenção da América e contra o próprio imperialismo
(JÁUREGUI, 2005, p. 13)7.
Dessa forma, a antropofagia revela-se uma chave de interpretação fértil para a análise de estratégias de apropriação cultural assentadas em “[...] contextos políticos, econômicos e sociais assimétricos” (ROCHA, 2011, p. 666), tornada relevante sobretudo face às transformações nas relações sociais advindas do aprofundamento dessas disparidades em função do capitalismo tardio. A ascensão do globalitarismo (SANTOS, 2000) e de uma sociedade cada vez mais digitalizada, que implica na simultaneidade de informações e em uma imposição de conteúdos sem precedentes, oferece um novo horizonte para a imagética antropofágica, como salienta Rocha em entrevista ao Canal Saúde:
A antropofagia é em parte a capacidade de lidar, de maneira produtiva, com essa simultaneidade sem estabelecer hierarquia, e sem estabelecer exclusões a priori. A antropofagia sempre é a capacidade de lidar com o simultâneo e com o diverso de maneira produtiva. [...] O homem antropofágico é um cibernético avant la lettre”
(ANTROPOFAGIA, 2012, 11:58 - 12:25).
Na mesma ocasião, o autor retoma a palavra para situar de maneira mais precisa o conceito e sua relevância para o entendimento da organização do mundo contemporâneo. Ele diz:
A antropofagia, para resumir sinteticamente, é uma imaginação teórica de apropriação da alteridade. Se existe algo que nós precisamos no mundo contemporâneo globalizado, assimétrico, em que as relações de poder são cada vez mais evidentes, é desenvolver uma estratégia teórica, uma imaginação que permita a apropriação criativa do outro sem excluí-lo e sem impor-se ao outro, dialogando criativamente. Isto é a antropofagia.
(ANTROPOFAGIA, 2012, 21:32 - 22:00)
A proposta do Movimento Sertãopunk corresponde a essa perspectiva, tal como Cangaço Overdrive. Ronin, por outro lado, numa crítica que também se estende ao cyberpunk em sua expressão oitentista, confina os influxos culturais alheios dos quais se alimenta sob a égide uma lógica estritamente anglocentrada, que assume o avanço e consolidação do capitalismo que se testemunhava no centro irradiado do poder global como uma marcha inexorável e inescapável, condenando quaisquer formas de desobediência epistêmica a existirem dentro dos limites da ordem estabelecida por ser incapaz de imaginar um futuro em que haja uma alternativa a ela.
Conclusão
Em Ronin e Cangaço Overdrive, a felicidade é feita de metal — tal como na canção “Futurível” (1969), de Gilberto Gil, que enceta essa discussão — porque é através de suas reencarnações robóticas que os protagonistas realizam suas respectivas ambições. Ambas as histórias tratam da resolução de uma inquietação advinda do passado ou das transformações imposta pelo futuro distópico do fundo cyberpunk às estruturas estáveis desse passado, ainda que cada qual o faça a partir de uma perspectiva completamente diferente.
Billy materializa suas fantasias — ou, quiçá, as de Miller — através do ronin enquanto um homem branco inválido em um mundo dominado por grupos outrora marginalizados, do retorno a um passado perdido de honra e exercício de uma masculinidade tradicional. O próprio ronin, se visto enquanto uma entidade separada da de Billy, também realiza suas ambições ao finalmente derrotar Agat em sua encarnação no futuro.
Cotiara, por sua vez, também alcança seus objetivos de mais de uma maneira. Não só ele termina sua vendeta contra o coronel Avelino, mas ele toma consciência, a partir de sua ressurreição, do sentido que as suas ações adquiriram junto ao imaginário popular, podendo tornar-se participe da concretização coletiva do sonho pelo qual morreu lutando sem nem mesmo saber — a garantia da autodeterminação e da posse comunitária da terra em face da tirania dos poderosos.
Ao fatalismo desesperançoso de fundo reacionário de Miller se opõe a ode à resistência e diversidade dos quadrinistas brasileiros. É nesse sentido que Cangaço Overdrive antecipa o sertãopunk. Porque não é tão somente um cyberpunk ambientado em cenário nordestino, mas uma tomada de posição em relação as possibilidades representativas do cyberpunk nordestino.
Notas
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1
No original: “Future urban nightmares form their settings; huge financial conglomerates usurp the powers of government; technology, Japanese influence, and a bouillabaisse of postmodern history and culture”.
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2
Miller chegou a ilustrar as capas da edição estadunidense de Lobo Solitário, publicadas pela First Comics a partir de 1987 sob o título de Lone Wolf and Cub.
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3
No original: “I have seen this New York. It is beautiful, warlike, desperate, hopeless, evil to the root… Yes… Agat has found a new home. While you — you are a simple man, from a simple time. You cannot survive here”.
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4
No original: “Cuando se trata del poder, es siempre desde los márgenes desde donde suele ser más visto, y más temprano, porque entra en cuestión la totalidad del campo de relaciones y de sentidos que constituye tal poder”.
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5
No original: “I found American and English comics be too wordy, too constipated, and Japanese comics to be too empty. So, I was attempting to do a hybrid. I would use a manga pace where I wanted you to be reading quickly, and then I’d use the western techniques to stop you for something that would take a long time to get through”.
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6
No original: “The aspect of the samurai that intrigues me most is the ronin, the masterless samurai, the fallen warrior… This entire project comes from my feelings that we, modern men, are ronin. We're kind of cut loose. I don't get the feeling from the people I know, the people I see on the street, that they have something greater than themselves to believe in. Patriotism, religion, whatever — they've all lost their meaning for us”.
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7
No original: “[...] así como el tropo canibal ha sido signo de la alteridade de América y ha servido para sostener el edificio discursivo del imperialismo, puede articular — como en efecto ha hecho — discursos contra la invención de América y el propio colonialismo”.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Set 2023 -
Data do Fascículo
May-Aug 2023
Histórico
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Recebido
05 Jan 2023 -
Aceito
12 Jun 2023