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Obesidade: como os testes de função pulmonar podem nos trair

Contexto

A prevalência de obesidade tem aumentado exponencialmente em todo o mundo.(1) Por conseguinte, aumentou o número de indivíduos obesos submetidos a teste de função pulmonar (TFP) antes de cirurgia bariátrica, por exemplo, bem como em virtude de sibilância crônica, falta de ar crônica e múltiplas comorbidades que podem explicar a dispneia desproporcional.(2) Tanto o pneumologista encarregado de interpretar os resultados de um TFP como o médico solicitante do teste devem estar familiarizados com os efeitos peculiares da obesidade na função pulmonar.

Visão geral

Um homem de 72 anos, com carga tabágica = 32 anos-maço, estatura = 159 cm e índice de massa corporal (IMC) = 48,2 kg/m2, foi encaminhado para um serviço terciário de saúde para que realizasse um TFP completo em virtude de piora da dispneia, não obstante a terapia máxima para suspeita de DPOC. A espirometria realizada no consultório médico havia sido, segundo a guia de encaminhamento, “normal”. De fato, a espirometria, a pletismografia de corpo inteiro e a DLCO ficaram todas dentro da faixa de normalidade. No entanto, como o paciente apresentou dispneia e desconforto graves após os testes, foi encaminhado ao serviço de emergência pelo fisioterapeuta. Ao chegar ao serviço de emergência, o paciente teve uma parada respiratória. Após a intubação endotraqueal, a angiotomografia de tórax revelou tromboembolismo pulmonar maciço bilateral, enfisema grave e obstrução difusa das vias aéreas. Após um longo tempo de internação na UTI, o paciente foi a óbito por pneumonia associada à ventilação mecânica. Como é possível que anormalidades tão dramáticas e potencialmente fatais não tenham sido detectadas pelos TFP?

A obesidade pode aumentar os fluxos expiratórios em virtude do aumento da retração elástica do pulmão/parede torácica. A CVF pode subestimar a CV lenta porque a CVF é precocemente “amputada” pelo fechamento precoce das pequenas vias aéreas na manobra forçada, ou seja, a relação VEF1/CVF tende a aumentar.(3) Embora a capacidade residual funcional diminua em comparação com a dos estágios iniciais da obesidade,(4) as “extremidades” do volume, isto é, VR e CPT, são apenas levemente afetadas (a menos que a obesidade seja maciça). Logo, o volume de reserva expiratório diminui e a capacidade inspiratória aumenta com o IMC.(4) Essas alterações estão na direção oposta daquelas causadas por obstrução com aprisionamento aéreo, levando à subestimação da doença das vias aéreas ou a um resultado falso-negativo. A DLCO aumenta a um determinado volume alveolar (VA) porque a perfusão pulmonar e o volume sanguíneo intratorácico aumentam; além disso, o VA diminui mais que a DLCO à medida que o pulmão esvazia. Portanto, o coeficiente de transferência de monóxido de carbono (KCO = DLCO/VA) aumenta exponencialmente à medida que o VA diminui.(5) Consequentemente, os sinais de comprometimento da eficiência das trocas gasosas (DLCO e KCO baixos) podem permanecer ocultos. A baixa estatura e a obesidade abdominal, como em nosso paciente, tendem a potencializar esses efeitos da obesidade. O Quadro 1 apresenta uma lista não exaustiva das armadilhas mais comumente encontradas durante a interpretação dos TFP em pacientes obesos.

Quadro 1
Lista não exaustiva de desafios e armadilhas encontrados durante a interpretação de testes de função pulmonar em pacientes obesos. Nota-se que essas fontes de confusão aumentam à medida que aumenta o índice de massa corporal, mas também são afetadas negativamente pelo sexo masculino, estatura e obesidade abdominal para um determinado índice de massa corporal.

Mensagem clínica

O IMC deve constar em todos os laudos de TFP: é a terceira variável a ser observada (após idade e sexo) antes de qualquer tentativa de interpretação dos testes. O caso aqui relatado ilustra que os TFP em pacientes obesos podem ser relativamente normais mesmo em casos de doenças potencialmente fatais das vias aéreas, parênquima pulmonar ou ambos. Deve-se ter muita cautela caso se saiba pouco sobre a probabilidade de anormalidade antes do teste (como é frequentemente o caso). O laudo final deve reconhecer esses “tons de cinza”, e não dar um “veredicto” rígido e dicotômico: reconhecer a incerteza vai sempre ao encontro dos melhores interesses do paciente.

REFERENCES

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  • 3
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  • 5
    Neder JA, Berton DC, Muller PT, O'Donnell DE. Incorporating Lung Diffusing Capacity for Carbon Monoxide in Clinical Decision Making in Chest Medicine. Clin Chest Med. 2019;40(2):285-305. https://doi.org/10.1016/j.ccm.2019.02.005
    » https://doi.org/10.1016/j.ccm.2019.02.005

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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