Open-access Infecções pneumocócicas: considerações atuais

Pneumococcal infections: current considerations

Infecções pneumocócicas: considerações atuais

Pneumococcal infections: current considerations

Heliane Brant Machado Freire*

As infecções pelo Streptococcus pneumoniae persistem como importante causa de morbi-mortalidade em seres humanos, apesar da disponibilidade de antibioticoterapia apropriada. Permanece como um dos microorganismos mais estudados em medicina, tendo as publicações mais recentes abordado, em especial, sua crescente resistência, com variações dependentes dos diversos locais de sua ocorrência, assim como a disponibilidade da imunização, empregando a vacina conjugada, isoladamente ou em associação à vacina polissacarídica 23–valente, permitindo que se antecipe e amplie a proteção frente a esse agente.

O pneumococo integra a microflora normal, e a maioria dos seres humanos possui esse agente no trato respiratório superior. A compreensão de se tratar de processo dinâmico, tanto a aquisição quanto a manutenção do estado de portador desta bactéria, permite melhor esclarecimento da diversidade de aspectos que compõem a colonização: ocorre durante os primeiros meses de vida da criança, envolvendo relativamente poucos dos sorotipos circulantes, resultando em doença (se ocorrer) dentro de um mês após aquisição da cepa, e pode sofrer alterações decorrentes de infecções virais ou bacterianas concorrentes, uso de antibióticos ou indução local ou sistêmica de imunidade(1). A colonização da nasofaringe precede a invasão, mas somente pequena percentagem de pessoas colonizadas apresenta manifestação clínica.

O local de colonização do pneumococo pode influenciar a expressão dos fatores de virulência: enzimas como superóxido dismutase e NADHoxidase podem atuar na patogênese da infecção ao participar da detoxicação dos radicais de oxigênio e gerar a competência das células, tornando-as aptas ao processo de transformação, que é o principal envolvido na recombinação genética do pneumococo(2).

Os 90 sorotipos atualmente descritos do pneumococo são identificados através de diferença na composição química em seus polissacárides capsulares. Além desses, são produzidos outros dois antígenos polissacarídicos: o ácido teicóico e o ácido lipoteicóico, ambos com participação na fisiopatologia da infecção pneumocócica. Para os sorotipos, empregam-se dois diferentes sistemas de nomenclatura: dinamarquês, geralmente empregado, com base na reação cruzada entre os diversos sorotipos, de forma a designar para um sorogrupo comum aqueles que apresentam esse comportamento; americano, com numeração seqüencial dos sorotipos, de acordo com sua descoberta, sem o reconhecimento da reatogenicidade antigênica cruzada entre os sorotipos. Os 90 sorotipos do S. pneumoniae são divididos em 46 grupos ou tipos, numerados de 1 a 48 (não estando em uso os números 26 e 30)(3).

O aumento da resistência do pneumococo aos antimicrobianos foi identificado como fenômeno de ocorrência em isolados invasivos e não-invasivos desse microorganismo, com prevalência apresentando variação regional e geográfica. O principal mecanismo de resistência do pneumococo às penicilinas é a alteração das transpeptidases. O pneumococo possui essas proteínas, ligadoras de penicilina (PBP), de alto peso molecular (1A, 1B, 2A, 2B e 2X), e uma de baixo peso molecular(4). Há regiões de grandes divergências nos gens PBP1A, 2X e 2B das linhagens resistentes em relação a seus correspondentes das linhagens sensíveis pneumococo, que são bastante uniformes quanto a esses gens. Em contraste com esta alteração de PBP da resistência à penicilina, os pneumococos com resistência às cefalosporinas apresentam alterações somente nas PBP 1A e 2X. A aquisição dos gens de resistência à eritromicina, à tetraciclina, ao cloranfenicol e ao sulfametoxazol-trimetoprim parece de ocorrência similar(5). No mecanismo de transformação, responsável pela resistência do pneumococo, ocorre estrutura em mosaico das PBP, originária de recombinações homólogas interespecíficas, sendo característico desse fenômeno de transformação a pequena ou nenhuma capacidade de se abortar seqüências genéticas alteradas. Esta é a justificativa da grande variabilidade do grau de sensibilidade dos isolados do pneumococo aos antimicrobianos, com o aparecimento das linhagens com sensibilidade intermediária(3).

Devido à grande complexidade no comportamento microbiológico e à grande diversidade de manifestações clínicas causadas pelo pneumococo, a análise de sua evolução, em serviços de referência no Brasil, torna-se valiosa para o estudo de características locais que permita a comparação com outros países em desenvolvimento ou desenvolvidos. Nesta edição do Jornal de Pediatria, a experiência da Santa Casa de São Paulo e do Instituto Emílio Ribas, relatada por Berezin e colaboradores, referente à evolução da meningite pneumocócica, destaca a predominância do acometimento de crianças abaixo de um ano de idade (72,4% da amostra), com alta letalidade (20%) e morbidade, a despeito do diagnóstico e acompanhamento adequado. Também neste número do Jornal de Pediatria, a avaliação prospectiva de crianças internadas com infecção meníngea pneumocócica no Centro Geral de Pediatria, hospital de referência no atendimento de doenças infecto-contagiosas, em Belo Horizonte, identificou dois óbitos em 15 pacientes (13,3%).

O estudo de Berezin e colaboradores destacou a presença de fatores predisponentes à infecção pneumocócica grave, observada em 16% dos episódios (9 em 5), através de comunicação anômala do sistema nervoso central com o meio ambiente ou através de deficiência de imunidade. Esse fato deve ser considerado ao se indicar a imunização conjugada para o pneumococo, pois a resposta de pacientes imunodeficientes pode não ser completa.

Os autores, em investigação retrospectiva, determinaram a ocorrência de seqüela neurológica em 16 dos 40 pacientes (40%) avaliados no seguimento clínico. Da mesma forma, registram seqüela auditiva em 12 das 20 crianças (60%) submetidas à avaliação. Deve-se ressaltar as limitações de um estudo de natureza retrospectiva, não se podendo inferir conclusões que o desenho da investigação dificulte obter. Como não foi relatado o momento da afecção da realização da avaliação neurológica e de audiometria, os dados obtidos refletem somente aquela fase da doença, não se determinando a posterior evolução em que, muitas vezes, com a regressão do edema e processo inflamatório residual, se observa redução dos acometimentos observados em fase aguda.

A investigação não detectou diferença no prognóstico de pacientes infectados por cepas sensíveis ou não à penicilina. Essa foi também a observação de Arditi e cols.(6), não identificando maior virulência em organismos não sensíveis à penicilina. Esse excelente levantamento, realizado na Califórnia, demonstrou crescente resistência à penicilina nos três anos de acompanhamento dos casos, sempre com predominância da sensibilidade intermediária (CIM 0,1 a 1,0 µg/ml) em relação à resistência total (CIM³2,0 µg/ml).

Esse é o comportamento observado de uma forma geral nos diversos países, ressaltando-se que esses são níveis padronizados frente à penicilina. Dependendo do local da infecção (meningite, septicemia, etc.) e dos padrões de sensibilidade da instituição em que se trabalha, deve-se orientar a escolha antibiótica inicial frente ao pneumococo.

Magalhães(5), em Belo Horizonte, identificou resistência laboratorial à penicilina significativamente mais elevada entre isolados de pneumonia do que entre os isolados de meningite, sendo os sorotipos 14 e 6B os que apresentaram maior resistência à penicilina. Em pneumonia, predominou sorotipo 14, e 6B em meningite. No estudo de Berezin e colaboradores, apenas em meningite a infecção por cepas resistentes ocorreu também com os sorotipos 6Be 14, além do 19A e 23F. Recente investigação de Kaplan e colaboradores(2) demonstrou a boa evolução de crianças com doença pneumocócica invasiva não-meníngea, com isolados não susceptíveis laboratorialmente à ceftriaxona (CIM > 1 µg/ml em 89 casos, e CIM > 2 µg/ml em 11 casos), mas tratados com sucesso com antibióticos beta-lactâmicos (inclusive a própria ceftriaxona). Os autores concluíram sobre a necessidade de novos acompanhamentos de evolução clínica de pacientes que apresentam isolados de pneumococo laboratorialmente com resistência ou sensibilidade intermediária.

A introdução na prática clínica diária da vacina conjugada heptavalente frente ao pneumococo (4, 6B, 9V, 14, 18C, 19F e 23F são os sorotipos cujos polissacárides capsulares são associados a CRM 197, variante não tóxica da toxina diftérica) permite a proteção de crianças já durante o primeiro ano de vida. Persistem estudos para a vacina conjugada 9-valente (contendo, além dos sorotipos descritos, os sorotipos 1 e 5) e undecavalente (acrescendo, além dos já mencionados, os sorotipos 3 e 7F). Com a vacina introduzida (7-valente) nos Estados Unidos, houve redução de mais de 93% das infecções invasivas pneumocócicas, de 73% das pneumonias, associando-se a decréscimo de 7% das otites médias e de 20% de colocação de tubos por timpanostomia(7).

Recentemente, Nurka e colaboradores(8) estudaram os anticorpos anticapsulares, séricos e salivares de crianças imunizadas com a vacina conjugada heptavalente. Demonstraram anticorpos de mucosa, tanto IgG quanto IgA, raramente aos sete meses de idade, mas predominantemente quando da vacinação de reforço, aos 16 meses. Foi resposta dependente do sorotipo, sendo melhor para 19F, 6B e 14. Concluíram indagando se isto refletiria menor efeito da vacina conjugada para o pneumococo, contrastando com a imunização para o Haemophilus B, que induz anticorpos de mucosa dos sete meses, sugerindo outros estudos sobre o papel dos anticorpos locais na proteção clínica frente a quadros de otite média e sinusite, assim como na colonização das cepas de pneumococo. Este é fator de extrema relevância, pois, teoricamente, a atuação da vacina em colonização por cepas de pneumococo contidas no imunógeno poderia, potencialmente, permitir a substituição por sorotipos não incluídos na vacina, incluindo os resistentes.

A Academia Americana de Pediatria(9) indicou, para os Estados Unidos, a vacinação universal de crianças com menos de 2 anos de idade, empregando-se a vacina conjugada pneumocócica heptavalente (VCP7V). A indicação é eletiva para aquelas de 24 a 59 meses, sendo formalmente recomendada para as possuidoras de risco elevado frente à infecção pneumocócica. Neste grupo, deve ser administrada em esquema associado à vacina polissacarídica 23-valente frente ao pneumococo, para ampliar a cobertura frente a outros sorotipos prevalentes naquele país. Recomenda ainda considerar o uso da vacina conjugada para todas as crianças com idades entre 24 e 35 meses, que freqüentem creches, ou de descendência afro-americana, de índios americanos ou esquimó.

No Brasil, com a investigação minuciosa de Brandileone e colaboradores(4), determinou-se a importância dos sorotipos prevalentes de pneumococo: 14, 1, 6B; 18C, 5, 6A, 23F, 19F, 9V, 19A, 3, 4, 10A, 8 e 7F. A presença dos sorotipos 1 e 5 como circulantes no país pressupõe cobertura da vacina conjugada em torno de 63%, inferior à calculada para os Estados Unidos. Ressalte-se que estes dois sorotipos são raramente resistentes à penicilina.

Sobe

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Referências bibliográficas

  • 1. Ghaffar F, Friedland IR, McCracken Jr GH. Dynamics of nasopharyngeal colonization by Streptococcus pneumoniae Pediatr Infect Dis J 1999; 18:638-44.
  • 2. Kaplan SL, Mason Jr EO, Barson WJ, Tan TQ, Schutze GE, Gebra EY, et al. Outcome of invasive infections outside the central nervous system caused by S. pneumoniae isolates non susceptible to ceftriaxone in children treated with beta-lactam antibiotics. Pediatr Infec Dis J 2001; 20:392-6.
  • 3. Tomasz A. Streptococcus pneumoniae Molecular biology & mechanisms of disease. New York: Mary Ann Liebert; 2000.
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  • 5. Magalhães APGO. Sensibilidade aos antimicrobianos e sorotipagem de isolados do S. pneumoniae, no Centro Geral de Pediatria, Belo Horizonte, MG, Brasil [tese]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais - Instituto de Ciências Biológicas; 2001.
  • 6. Arditi M, Mason EO, Bradley JS, Tan TQ, Barson WJ, Schutze GE, et al. Three-year multicenter surveillance of pneumococcal meningitis in children: clinical characteristics and outcome related to penicilin susceptibility and dexamethasone use. Pediatrics 1998; 102:1087-97.
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  • 9. American Academy of Pediatrics. Committee on Infectious Diseases. Policy statement: Recommendations for the Prevention of Pneumococcal Infections, including the use of Pneumococcal Conjugate Vaccine (Prevnar), Pneumococcal Polysaccharide Vaccine and Antibiotic Prophylaxis. Pediatrics 2000; 106:362-6.
  • 10. Kastenbauer S, Koedel U, Pfister H. Hole of piroxynitrite as mediator of patho-physiological alterations in experimental pneumococcal meningitis. J Infect Dis 2000; 180:1164-70.
  • *
    Heliane Brant Machado Freire – Professora Adjunta-Doutora – Depto. de Pediatria da Faculdade de Medicina-UFMG, Coordenadora da Residência em Pediatria-FHEMIG.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Nov 2002
    • Data do Fascículo
      Fev 2002
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