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Desafios no atendimento da criança agudamente doente: uma visão global

EDITORIAL

Desafios no atendimento da criança agudamente doente: uma visão global

Vários marcadores envolvendo o atendimento de crianças agudamente doentes demonstram um enorme avanço nas últimas décadas. Situações em que a mortalidade era inaceitavelmente elevada no início dos anos 1980, como nos casos do choque séptico e síndrome do desconforto respiratório agudo (SARA), tiveram uma drástica redução para uma mortalidade ao redor de 25 a 30%1. Muitos dos avanços obtidos podem ser atribuídos ao progresso tecnológico (por exemplo, a implementação de programas de transplantes, ventilação de alta freqüência, oxigenação por membrana extracorpórea, entre outros). Entretanto, quando avaliamos as principais falências (envolvendo doenças agudas ou crônicas agudizadas) que atingem as crianças, observamos que os avanços no prognóstico a curto e médio prazo estão associados, principalmente, à implementação de protocolos agressivos e com sua racionalidade baseada em evidência científica1-4.

Neste aspecto, as unidades de tratamento intensivo pediátrico (UTIP) comportam-se como verdadeiros laboratórios, onde novos e antigos protocolos vêm sendo minuciosamente avaliados e comparados quanto à sua efetividade e eficácia4,5. A grande maioria desses protocolos foi gerada e concebida para aplicação em ambiente de UTIP. Mas, por sua eficácia e segurança, acabaram sendo incorporados ao tratamento em ambiente de emergência1-7. Exatamente aí é que está a "visão global" no atendimento da criança agudamente doente: oferecer uma continuidade de atendimento desde seu transporte, admissão hospitalar e, finalmente, na UTIP, obedecendo a um crescendo em complexidade, com a adoção de medidas comprovadamente eficazes desde o início e sem postergações ou omissões fundamentadas na discutível falta de equipamentos ou de experiência1,3,7.

Um outro aspecto desta "visão global" é o caráter universal destes problemas, já que a maioria destas situações agudas se distribui por quase todo o planeta, com variações na prevalência e com algumas nuances locais4-7. Na seleção dos autores, além da reconhecida capacidade, pretendíamos oferecer aos leitores do Jornal de Pediatria uma abordagem multicultural feita por intensivistas pediátricos de diferentes regiões do planeta. Em seus textos, observa-se que, além de apresentar as recomendações internacionais para cada tópico, oferecem, também, aspectos e desafios próprios de cada local. Imaginamos que, nesta "visão global ou multicultural", venhamos identificar semelhanças e diferenças com nossa realidade, de forma a poder implementar soluções já utilizadas em outras partes do mundo.

Nos anos 1970 e 1980, por mais informado que fosse o médico, estava condenado a uma defasagem de 4 a 6 meses no seu conhecimento, em razão do retardo na chegada das revistas científicas impressas. Com o rápido acesso à informação, característico dos dias atuais, além de democratizar o acesso às informações em tempo real, romperam-se barreiras de colonialismo cultural, de retenção de conhecimento e, inclusive, de idioma. A partir do momento em que o conhecimento é disponibilizado para todos no mesmo momento, não é de estranhar que centros anteriormente apenas consumidores de informação (Brasil, Índia e muitos países asiáticos, por exemplo) passem, também, a gerar e produzir conhecimento. Assim, a inclusão neste suplemento de autores oriundos desses países, juntamente com consagrados pediatras intensivistas norte-americanos e europeus, mais que uma manobra protecionista, representa uma "visão global ou multicultural" dos atuais desafios, bem como o reconhecimento à sua contribuição no desenvolvimento do conhecimento no campo da terapia intensiva pediátrica.

Um outro fato impressionante da medicina atual é a sua capacidade de questionar tanto novos como antigos e arraigados conceitos. No universo do atendimento da criança agudamente doente, misturam-se antigos e novos dilemas. Portanto, não deve representar surpresa o fato de rediscutirmos, à luz do conhecimento atual, temas como: As recomendações de manutenção hidroeletrolítica proposta por Holliday nos anos 1950 seriam ainda válidas para pacientes nas condições atuais? A acidose metabólica é um fator a ser tratado ou é apenas um marcador de gravidade? Crianças com choque de diferentes etiologias e em diferentes condições imunológicas devem seguir um protocolo único ou deve-se ajustá-lo a cada situação (por exemplo, meningococcemia, neutropênico febril, dengue, agente indeterminado)? O que realmente mudou nas atuais recomendações da reanimação cardiopulmonar? Em que situação e quem se beneficia da ventilação invasiva? A abordagem da família de crianças nos momentos que antecedem a morte obedece ao padrão definido pela literatura norte-americana ou existe outra opção que se ajuste melhor à nossa realidade? Estes e outros temas serão objetos de discussão nos 12 artigos de revisão selecionados para este suplemento. Esperamos que os mesmos sejam do agrado e atendam às expectativas dos leitores do Jornal de Pediatria.

Referências

1. Carcillo J. What is new in pediatric intensive care? Crit Care Med. 2006;34(9 Suppl):S183-90.

2. Micek ST, Roubinian N, Heuring T, Bode M, Williams J, Harrison C, et al. Before-after study of a standardized hospital order set for the management of septic shock. Crit Care Med. 2006;34:2707-13.

3. Carcillo JA, Fields AI, Comitê de Força-Tarefa. Parâmetros de prática clínica para suporte hemodinâmico a pacientes pediátricos e neonatais em choque séptico. J Pediatr (Rio J). 2002;78:449-66.

4. Talmor D, Shapiro N, Greenberg D, Stone PW, Newmann PJ. When is critical care medicine cost effective? A systematic review of the cost-effectiveness literature. Crit Care Med. 2006;34:2738-47.

5. Garcia PC, Piva J. Pediatric Index Mortality 2 (PIM2) -- A prognostic tool for developing countries: easy, efficient, and free! Pediatr Crit Care Med. 2007;8:77-8.

6. Piva J, Schnitzler E, Garcia PC, Branco RG. The burden of paediatric intensive care: a south american perspective. Pediatr Respir Rev. 2005;6:160-5.

7. Polland A, Britto J, Nadel S, DeMunter C, Habibi P, Levin M. Emergency management of meningococcal disease. Arch Dis Child. 1999;80:290-6.

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    Chefe associado, UTI Pediátrica, Hospital São Lucas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS. Professor adjunto, Departamentos de Pediatria, Faculdades de Medicina, PUCRS e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS. Membro, Diretoria Executiva, World Federation of Pediatric Intensive and Critical Care Societies (WFPICCS)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Jun 2007
    • Data do Fascículo
      Maio 2007
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