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INTEGRAÇÃO DE FATOS FORMULATIVOS E INTERACIONAIS NA CONSTRUÇÃO DO TEXTO: UM ESTUDO SOBRE O USO DE FORMAS REFERENCIAIS NA ORGANIZAÇÃO TÓPICA

INTEGRATION OF FORMULATIVE AND INTERACTIONAL FACTS IN THE CONSTRUCTION OF THE TEXT: A STUDY ON THE USE OF REFERENTIAL FORMS IN TOPIC ORGANIZATION

INTÉGRATION DES FAITS FORMATEURS ET INTERACTIFS DANS LA CONSTRUCTION DU TEXTE: UNE ÉTUDE SUR L’USAGE DES FORMULES RÉFÉRENTIELLES DANS L’ORGANISATION TOPIQUE

INTEGRACIÓN DE HECHOS FORMULATIVOS E INTERNACIONALES EN LA CONSTRUCCIÓN DEL TEXTO: UN ESTUDIO SOBRE EL USO DE FORMAS REFERENCIALES EN LA ORGANIZACIÓN TÓPICA

Resumo

Neste trabalho, investigo a integração de fatos formulativos e interacionais, na construção do texto, a partir do emprego de formas referenciais como um mecanismo de articulação tópica.

Palavras-chave:
estratégia textual-interativa; referenciação; organização tópica; texto

Abstract

In this work I investigate the integration of formulative and interactive facts in the operation of the text, starting from the use of referential forms as mechanisms of topical articulation.

Key words:
textual-interactive strategy; referencing; topical organization; text

Resume

Ce que je cherche, dans ce travail, c’est l’intégration de faits formateurs et interactifs dans la construction du texte, à partir de l’emploi de formules référentielles comme un mécanisme d’articulation topique.

Mots-clés:
stratégie textuelle-interactive; referent; organisation topique; texte

Resumen

En este estudio, investigo la integración de hechos formulativos e internacionales, en la construcción del texto, desde empleo de formas referenciales como un mecanismo de articulación tópica.

Palabras-clave:
estrategia textual interativa; referenciación; organización tópica; texto

1 INTRODUÇÃO

Muitos são os trabalhos que estudam a organização global do texto e a atuação de aspectos de natureza pragmática nessa organização. No entanto, esses dois aspectos são comumente considerados separadamente, ou seja, estudam- se, na construção do texto, de um lado, os aspectos lingüísticos, de formulação, e de outro, os de natureza pragmático-interacional (ADAM, 1990ADAM, J. -M. Élements de linguistique textuelle. Liége: Mardaga, 1990.; KOCH, 1991KOCH, I. G. V. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 1991.; BRONCKART, 1999BRONCKART, J. -P. Atividade de linguagem, textos e discursos. São Paulo: EDUC, 1999. ). Neste trabalho, entendo a organização do texto, tanto falado como escrito, na perspectiva segundo a qual o seu processo de formulação está ancorado no processo interacional (KOCH al., 1994; PINHEIRO, 2003PINHEIRO, C. L. Integração de fatos formulativos e interacionais na construção do texto: um estudo a partir da topicalidade. Tese (Doutorado em Letras) - UNESP, Assis/SP, 2003.). Meu objetivo é, assim, investigar a integração de fatos formulativos e interacionais, na construção global do texto a partir do emprego de formas referenciais na sua organização tópica.

A análise da organização tópica leva em consideração a identificação e delimitação de segmentos tópicos e dos procedimentos pelos quais esses segmentos se distribuem na linearidade do texto e se recobrem hierarquicamente. Disso se conclui que o texto se organiza topicamente em dois planos: um vertical, que diz respeito à particularização hierarquizada do assunto em pauta; e um horizontal, que diz respeito à distribuição dos tópicos na linha discursiva.

A articulação tópica constitui uma estratégia através da qual se relacionam, na superfície textual, os segmentos tópicos, considerados a partir dos diferentes planos hierárquicos, nível intertópico, e os enunciados que integram os segmentos em particular, nível intratópico. Através da análise dos mecanismos pelos quais se realiza essa estratégia é possível identificar a forma como os fatos formulativos e interacionais interagem na organização do texto (PINHEIRO, 2003PINHEIRO, C. L. Integração de fatos formulativos e interacionais na construção do texto: um estudo a partir da topicalidade. Tese (Doutorado em Letras) - UNESP, Assis/SP, 2003.).

O emprego de formas referenciais constitui um dos mecanismos pelos quais se realiza essa estratégia. Elas realizam, tanto no plano da constituição interna dos segmentos tópicos mínimos, intratópico, como no plano da articulação desses segmentos entre si, intertópico, movimentos que sinalizam a construção textual, relacionados a diversos aspectos do processo interacional.

2 ORGANIZAÇÃO TÓPICA

Para Brown & Yule (1983BROWN, G.; YULE, G. Discourse analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. , p. 73), a noção de tópico está relacionada a representações do conteúdo, que se organizam de forma hierárquica. O tópico pode, então, ser entendido como “o assunto acerca do qual se está falando ou escrevendo”, e está na dependência de um processo colaborativo que envolve os participantes do ato comunicativo.

Nessa mesma linha se posiciona o trabalho de Jubran et al. (1992JUBRAN, Clélia C. A. S. et al. Organização tópica da conversação. In: ILARI, R. (Org.). Gramática do português falado. Campinas/SP: UNICAMP; São Paulo: FAPESP, 1992. V. 2.). Conforme os autores, o tópico é uma categoria abstrata, primitiva, que se manifesta “na conversação, mediante enunciados formulados pelos interlocutores a respeito de um conjunto de referentes explícitos ou inferíveis, concernentes entre si e em relevância num determinado ponto da mensagem” (1992, p. 361).

O tópico, nessa perspectiva, abrange duas propriedades que o particularizam: a centração e a organicidade. A centração abrange os seguintes traços:

  • a) concernência: relação de interdependência semântica entre os enunciados - implicativa, associativa, exemplificativa ou de outra ordem - pela qual se dá sua integração no referido conjunto de referentes explícitos ou inferíveis;

  • b) relevância: proeminência desse conjunto, decorrente da posição focal assumida pelos seus elementos; c) pontualização: localização desse conjunto, tido como focal, em determinado momento da mensagem. (JUBRAN, et al., 1992JUBRAN, Clélia C. A. S. et al. Organização tópica da conversação. In: ILARI, R. (Org.). Gramática do português falado. Campinas/SP: UNICAMP; São Paulo: FAPESP, 1992. V. 2., p. 360)

Considerando que, em uma única conversação, os interlocutores podem desenvolver vários temas, e, portanto, vários tópicos, é possível abstrair-se desse evento uma dada organicidade, expressa na distribuição dos assuntos em quadros tópicos.

O tópico, portanto, se identifica com a questão de interesse imediato, serve para descrever o conteúdo sobre o qual se fala/escreve e sinaliza a perspectiva focalizada. Nesse sentido ele é visto como uma categoria analítica, de base textual- discursiva, ou seja, relaciona-se ao plano global de organização do texto. Mas é também uma categoria interacional, pois é resultante da natureza interativa e colaborativa do discurso. Segundo Jubran et al. (1992JUBRAN, Clélia C. A. S. et al. Organização tópica da conversação. In: ILARI, R. (Org.). Gramática do português falado. Campinas/SP: UNICAMP; São Paulo: FAPESP, 1992. V. 2., p. 361), a construção tópica envolve “um complexo de fatores contextuais, entre os quais as circunstâncias em que ocorre o intercâmbio verbal, o conhecimento recíproco dos interlocutores, os conhecimentos partilhados entre eles, sua visão de mundo, o background de cada um em relação ao que falam, bem como suas pressuposições”. Esses fatores envolvidos na construção do tópico o caracterizam como uma categoria interacional.

Segundo Jubran et al. (1992JUBRAN, Clélia C. A. S. et al. Organização tópica da conversação. In: ILARI, R. (Org.). Gramática do português falado. Campinas/SP: UNICAMP; São Paulo: FAPESP, 1992. V. 2.), a organização tópica pode ser observada em dois níveis: no plano hierárquico e no plano seqüencial. No plano hierárquico, as seqüências textuais se desdobram em supertópicos e subtópicos, dando origem a quadros tópicos, caracterizados, obrigatoriamente, pela centração num tópico mais abrangente e pela divisão interna em tópicos co-constituintes; e, possivelmente, por subdivisões sucessivas no interior de cada tópico co-constituinte, “de forma que um tópico pode vir a ser ao mesmo tempo supertópico ou subtópico, se mediar uma relação de dependência entre dois níveis não imediatos” (1992, p. 364).

No que diz respeito ao plano seqüencial, dois processos básicos caracterizam a distribuição de tópicos na linearidade discursiva: a continuidade e a descontinuidade. A continuidade se caracteriza por uma relação de adjacência entre dois tópicos, com abertura de um tópico subseqüente somente quando o anterior é esgotado.

A descontinuidade se caracteriza por uma perturbação da seqüencialidade linear, causada ou por uma suspensão definitiva de um tópico, ou pela cisão do tópico, que passa a se apresentar em partes descontínuas (JUBRAN, 1993JUBRAN, Clélia C. A. S. Inserção: um fenômeno de descontinuidade na organização tópica. In: CASTILHO, A. T. (Org.). Gramática do português falado. Campinas: Editora da UNICAMP; São Paulo: FAPESP, 1993. V. 3.).

Jubran et al. (1992JUBRAN, Clélia C. A. S. et al. Organização tópica da conversação. In: ILARI, R. (Org.). Gramática do português falado. Campinas/SP: UNICAMP; São Paulo: FAPESP, 1992. V. 2., p. 366) observam que a organização seqüencial, que é perturbada na linearidade, tende a se estabelecer hierarquicamente, ou seja, “a continuidade, postulada em termos de só se abrir um novo tópico após o fechamento de outro, reaparece nos níveis mais altos da hierarquia da organização tópica”.

Jubran (1993JUBRAN, Clélia C. A. S. Inserção: um fenômeno de descontinuidade na organização tópica. In: CASTILHO, A. T. (Org.). Gramática do português falado. Campinas: Editora da UNICAMP; São Paulo: FAPESP, 1993. V. 3.) postula um conceito de inserção, tomando como critério a natureza tópica ou não do segmento encaixado. Seguindo esse critério, a autora identifica duas modalidades de inserção: uma em que o elemento inserido não se configura como tópico, e outra em que o elemento constitui um tópico, por apresentar a propriedade de centração. Essa forma de entender o fenômeno da inserção possibilita a compreensão dos processos de descontinuidade a partir da perspectiva textual-interativa.

As inserções sem estatuto tópico são as que a autora caracteriza como parentéticas, cujo critério primeiro de identificação é o desvio tópico. “O encaixe efetuado não tem estatuto tópico, por não preencher a particularidade da centração, isto é, por não projetar e desenvolver um tópico discursivo em determinado ponto do texto” (JUBRAN, 1999______. Estratégias de construção textual - parentização. 1999. (mimeo), p. 2). As inserções parentéticas desempenham uma função pragmática, “promovendo avaliações e comentários laterais sobre o que está sendo dito, e/ou sobre como se diz, e/ou sobre a situação interativa e o evento comunicativo” (JUBRAN, 1999, p. 3).

O procedimento de identificar seqüências discursivas que configuram um tópico discursivo é concretamente desenvolvido por Jubran et al. (1992JUBRAN, Clélia C. A. S. et al. Organização tópica da conversação. In: ILARI, R. (Org.). Gramática do português falado. Campinas/SP: UNICAMP; São Paulo: FAPESP, 1992. V. 2.). Operando com a categoria de tópico discursivo, os autores chegam à identificação e delimitação de segmentos tópicos, “isto é, unidades discursivas que atualizam as propriedades do tópico” (1992, p. 363). Dessa forma, enquanto o tópico discursivo é uma categoria analítica abstrata, o segmento tópico é a seqüência textual que preenche as propriedades dessa categoria.

O segmento tópico é, portanto, a unidade que, em termos de centração, revela concernência e relevância no conjunto de seus elementos e se localiza num determinado ponto do evento comunicativo (pontualização), submetida à organização tópica negociada pelos falantes. O segmento tópico, em outras palavras, constitui cada conjunto de enunciados tematicamente centrados.

A noção de segmento tópico é importante na medida em que se pode ser tomado como uma unidade a ser considerada na análise textual-interativa. Os diferentes gêneros de texto apresentam uma extensão variada, por isso é necessário recortar uma unidade menor para analisá-los. Na perspectiva de que a topicalidade é um princípio geral de organização do texto, o segmento tópico se apresenta, então, como a unidade de composição do texto.

Como unidade de composição textual, o segmento tópico reúne as mesmas características formulativo-interacionais do texto, ou seja, se constitui como uma unidade estrategicamente organizada veiculadora de sentido. Através da observação do segmento tópico é possível isolar convenientemente as informações do texto e acompanhar os seus diferentes estágios de desenvolvimento, o que permite verificar processos globais de organização do texto. Apresenta-se também como uma unidade compatível com a análise textual-interativa, sobretudo se comparado à oração, à proposição ou à seqüência, unidades que não dão conta de dados pragmático-textuais, “que interessam fundamentalmente a uma perspectiva discursiva de análise” (JUBRAN et al., 1992JUBRAN, Clélia C. A. S. et al. Organização tópica da conversação. In: ILARI, R. (Org.). Gramática do português falado. Campinas/SP: UNICAMP; São Paulo: FAPESP, 1992. V. 2., p. 359).

Operando com essa categoria, observei, em diferentes usos da língua, recorrências que caracterizam a articulação tópica como um aspecto da composição do texto, que faz parte do subsistema textual de desempenho lingüístico (PINHEIRO, 2003PINHEIRO, C. L. Integração de fatos formulativos e interacionais na construção do texto: um estudo a partir da topicalidade. Tese (Doutorado em Letras) - UNESP, Assis/SP, 2003.).

3 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE

A análise foi realizada em um corpus diversificado em termos de gêneros textuais e de modalidade falada e escrita: carta pessoal, artigo de opinião, artigo científico, conversação espontânea, aula, palestra, entrevista falada e escrita e reportagem, de televisão e de revista. Alguns exemplares dos textos foram extraídos do corpus do projeto PORCUFORT,1 1 O projeto PORCUFORT (Portugues Oral Culto de Fortaleza) constitui uma aplicacao, na cidade de Fortaleza-Ce, do projeto NURC (Norma Urbana Culta), cujo objetivo e a descricao do portugues falado culto no Brasil. Os inqueritos sao distribuidos de acordo com o sexo e a faixa etaria dos informantes e com o grau de formalidade. alguns do corpus do NELFE,2 2 O NELFE (Nicleo de Estudos da Lingua Falada e Escrita) e um nicleo de pesquisa cadastrado no Diret6rio de Grupos de Pesquisas do CNPq, inserido no programa de P6s-Graduacao em Linguistica da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). O objetivo central do nicleo e investigar questoes ligadas a fala e a escrita (MARCUSCHI, 1996). e ainda outros foram coletados por mim mesmo, especialmente para este fim. Considerei o fato de que essa diversidade pode exercer influências sobre o tópico discursivo e a maneira como ele é conduzido; e, dessa forma, sobre a articulação tópica.

Identifiquei, em cada texto do corpus, a particularização hierarquizada dos tópicos e a sua distribuição seqüencial na linha discursiva. Para isso todos os textos foram divididos em segmentos lineares, e foram atribuídos rótulos aos tópicos recobertos por cada segmento, com base no critério da centração. Após a segmentação dos textos em seus tópicos constituintes, observei as dependências desses tópicos no plano vertical, detectando as relações de super e sub-ordenação entre eles e demonstrando a sua organização hierarquizada.

4 EMPREGO DE FORMAS REFERENCIAIS COMO MECANISMO DE ARTICULAÇÃO TÓPICA

A referenciação está sendo entendida aqui, conforme Koch e Marcuschi (1998KOCH, I. G. V.; MARCUSCHI, L. A. Processos de referenciação na produção discursiva. D.E.L.T.A., v. 14: número especial, p. 169-190, 1998.), como uma atividade discursiva, ou seja, como um processo realizado negociadamente no discurso e que resulta na construção de referentes. A noção de referência, nesse sentido, não é a tradicionalmente conhecida, ligada ao fato de a linguagem referir o mundo, e, conseqüentemente, à relação de correspondência entre as palavras e as coisas.

Assim como uma noção não realista de referência supõe que os referentes não sejam objetos do mundo, mas objetos de discurso, as cadeias referenciais também não se fundam exclusivamente na correferencialidade, ou seja, “a continuidade referencial não implica referentes sempre estáveis nem identidade entre referentes” (KOCH, 2002______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002., p. 84).

As pesquisas sobre o emprego de expressões referenciais apontam para dois tipos de análise: uma em que essas expressões são tomadas como elos coesivos e a partir daí se descreve como se obtém a unidade formal do texto;3 3 Cf. coesao referencial, conforme Koch (1991). e outra em que se analisam os processos de introdução e manutenção de referentes, e se destacam funções responsáveis pela construção textual (através dos processos de retroação e prospecção) e pela orientação argumentativa, entendida como uma forma de realçar partes ou propriedades do objeto discursivo que mais favorecem a intenção do falante/escritor. Nessa segunda perspectiva, as expressões referenciais são tomadas como multifuncionais. É o que destaca Koch (2002______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002., p. 106), na seguinte passagem:

A função das expressões referenciais não é apenas referir. Pelo contrário, como multifuncionais que são, elas contribuem para elaborar o sentido, indicando pontos de vista, assinalando direções argumentativas, sinalizando dificuldades de acesso ao referente e recategorizando os objetos presentes na memória discursiva.

Marcuschi (2000) também destaca a idéia de que os processos referenciais estão relacionados com a construção da coerência na atividade discursiva. Nesse estudo, o autor ressalta uma importante imbricação entre os processos de referenciação, condução tópica e coerência discursiva.

[...] Parece de extrema importância que um discurso, seja ele falado ou escrito, deve necessariamente preencher o requisito da topicalidade fundada na referenciação continuada, seja ela na base pronominal ou na base lexical. Pode haver lacunas preenchíveis por atividades cognitivas e investimento de conhecimentos externos. Podem ocorrer relações globais, ou seja, de extensões maiores ou outros aspectos que exijam maior esforço interpretativo. O que não pode faltar é uma base referencial preservada que permita a construção da coerência. É nisto que reside a possibilidade de identificar sobre o que se fala, ou então se em dado momento, se volta a falar sobre o mesmo tópico já apresentado. (MARCUSCHI, 2000, p. 11)

Seguindo essa linha de raciocínio, Cavalcante (2002______. . Função discursiva dos elos coesivos referenciais. In: ENCONTRO DO CELSUL, 5., 2002, Curitiba. Anais... (no prelo), p. 1) destaca que o estudo da coesão referencial e a análise dos processos referenciais são geralmente abordados de forma separada na Lingüística de Texto. Para a autora, o limite entre esses dois conteúdos “é muito mais extenso do que normalmente se costuma supor. É antes uma escolha de perspectiva do que uma focalização de paisagens distintas”.

Cavalcante (2002______. . Função discursiva dos elos coesivos referenciais. In: ENCONTRO DO CELSUL, 5., 2002, Curitiba. Anais... (no prelo)) propõe, então, uma superposição entre o estudo dos elos coesivos e dos elementos referenciais. Ela parte da divisão dos elos coesivos referenciais proposta por Koch (1991KOCH, I. G. V. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 1991.) e os distribui segundo a ótica da referenciação. Nessa distribuição, se distinguem as formas referenciais gramaticais presas, que se prendem sintaticamente a um nome; as formas referenciais gramaticais livres, que substituem um grupo nominal; e as formas referenciais lexicais. A autora não se detém nas formas referenciais gramaticais presas, porque elas se caracterizam pela não-autonomia referencial.

Analisando as formas referenciais gramaticais livres sob a ótica da referenciação, Cavalcante salienta que, embora essas formas pareçam meras substitutas de referentes anteriormente introduzidos no texto, nem todas operam uma retomada total e pontual. Outro ponto destacado pela autora são os traços de saliência discursiva e de pressuposição das coordenadas da enunciação que essas formas carregam, o que lhes confere um comportamento dêitico. No que diz respeito às formas referenciais lexicais, a autora salienta que elas costumam “recategorizar os referentes, somando significados e atributos e - principalmente - veiculando pontos de vista do enunciador, o que lhes dá enorme força argumentativa” (2002, p. 5).

Em síntese, a proposta de Cavalcante (2002______. . Função discursiva dos elos coesivos referenciais. In: ENCONTRO DO CELSUL, 5., 2002, Curitiba. Anais... (no prelo), p. 7) prevê uma análise do emprego das formas referenciais sob o viés do exame da construção da coerência, como “dispositivos de que dispõe a língua para remodelar os sentidos”.

A análise desenvolvida neste trabalho mostrou que as formas referenciais, especificamente as gramaticais livres e as lexicais, podem ser também estudadas como mecanismo de articulação tópica, em que atuam como elementos formulativo- interacionais. Três tipos de processos de referenciação atuam na articulação tópica: a) encadeamento de referentes vinculados a um contexto central, b) reiteração de um mesmo referente, e c) conferição de estatuto de referente a um conjunto de informações difundidas no cotexto anterior.

4.1 Encadeamento de referentes vinculados a um contexto central

Esse processo consiste no emprego de referentes que mantém entre si uma inter-relação criada a partir de um determinado contexto textual-interativo. A articulação de tópicos e de enunciados que constituem um segmento tópico em particular é estabelecida através do encadeamento desses referentes na superfície textual.

O contexto que permite o vínculo entre os referentes tem a ver com o que Brown e Yule (1983BROWN, G.; YULE, G. Discourse analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. ) consideram o “princípio da analogia”, o qual prevê uma “armação” que possibilita ao leitor/ouvinte interpretar seqüências discursivas sucessivas como relativas a um mesmo tópico. Por essa ótica, a expectativa normal na construção e interpretação do discurso é a da manutenção do assunto que começou a ser tratado, numa determinada condição, ou seja, se um locutor se propõe a tratar de um tópico, o esperado é que todas as seqüências produzidas sejam atinentes a esse tópico, a menos que o próprio locutor ou o interlocutor, na fala, sinalize para alguma mudança.

Esse contexto é criado por diferentes mecanismos. Um conjunto de enunciados introdutórios, um enunciado metadiscursivo, a presença de títulos e subtítulos, no caso de textos escritos, e perguntas são alguns desses mecanismos.

O segmento destacado a seguir recobre o tópico fontes de inspiração, da entrevista escrita E-162. Esse tópico é explicitamente apontado pela pergunta do entrevistador, “Qual a maior fonte de inspiração da turma do Casseta e Planeta?”. É essa pergunta que cria o contexto a partir do qual é possível se esperar que as informações subseqüentes sejam atinentes ao tópico apresentado. Os referentes “políticos”, “CPI da corrupção”, “João Alves”, “PC Farias”, “candidatura de Esperidião Amim”, “governo Itamar Franco” e “governo Collor” não guardam em todo e qualquer contexto uma ligação semântica subjacente. O vínculo entre eles é específico desse contexto, criado pela explicitação do tópico, no início do segmento.

(01)

VEJA -[4 Qual a maior fonte de inspiração da turma do Casseta e Planeta? BUSSUNDA - Estamos numa fase muito boa. Os políticos têm colaborado muito, Brasília tem dado ótimas pautas. No ano passado, o ponto alto foi a CPI da Corrupção e o João Alves foi o patrono dos humoristas, mas saturou um pouco. Agora, estamos esperando o suicídio dele; afinal o político tem que honrar suas promessas. O PC Farias também ajudou bastante, porque, além de ser ladrão, é careca. Neste ano, os humoristas torcem pela candidatura do Esperidião Amin para a gente ficar quatro anos fazendo piadinha de careca. A gente vai poder até tirar férias e colocar uns iniciantes para fazer piadas no nosso lugar.

VEJA - O governo Itamar Franco não é bom de humor?

BUSSUNDA - No governo Collor, havia personagens muito fortes, que rendiam muita piada. O Itamar prestou um desserviço aos humoristas: montou um ministério de desconhecidos. Por causa de seu estilo centralizador, a gente está com um problema dentro do grupo Casseta e Planeta. O Reinaldo, que interpreta o Devagar Franco, não era muito conhecido antes de o Itamar substituir o Collor. Agora, ficou muito famoso, é reconhecido nas ruas e está entrando em crise porque o Itamar vai sair do governo. Ele pretende até defender a possibilidade de reeleição do Itamar na revisão constitucional. O Itamar dá caldo em matéria de humor, mas, na época do Collor, da Zélia, nós fazíamos graça em cima do comportamento deles. Com o Itamar, a graça é em cima do que ele não faz.]

(Entrevista escrita, E-162)

Do ponto de vista da organização textual, esse processo possibilita que os segmentos tópicos e enunciados constitutivos de cada segmento sejam dispostos de forma adjacente na superfície do texto. Com base em um segmento ou em um enunciado se segue outro segmento ou outro enunciado, configurando-se o processo de seqüenciação.

Além desse movimento textual que o encadeamento de referentes permite, se instaura um movimento interacional, que é a indicação da forma continua e progressiva como as informações devem ser assimiladas. O interlocutor é orientado a perceber a montagem do texto, ou seja, com apresentação do tópico e seu desenvolvimento em partes contínuas, e a interpretar que nenhuma dessas partes é mais relevante ou importante; elas constituem uma espécie de enumeração de diferentes aspectos do tópico.

Essa atividade de atribuição de referente enquanto mecanismo de articulação tópica ocorre tanto no nível intra como intertópico. O trecho a seguir exemplifica o procedimento no nível intratópico.

(02)

[6 (a) Com o alastramento da Aids presenciamos não apenas um significativo incremento do discurso sobre a sexualidade, como também uma gradativa exibição de imagens relacionadas ao sexo sem risco. (b) A camisinha, até então escondida nas prateleiras das farmácias e nos recônditos das gavetas, passou a ser exposta em lugar de destaque dos supermercados. (c) Cartazes, panfletos e filmetes oficiais passaram a mostrar o preservativo em sua nudez, fora da embalagem, manipulado como se fosse uma luva de proteção. Para ensinar como usá-lo, utilizaram-se primeiro objetos fálicos - a aeromoça que enfiava a camisinha no dedo, ou numa banana - o que levou os grandes empresários desta fruta a protestar na televisão norte-americana. (d) Hoje, sobretudo nos países mais desenvolvidos, cartazes e folders mostram com todo realismo corpos dos entrelaçados e membros eretos protegidos pelo profilático, material destinado tanto às clientelas héteros quanto homossexuais. (e) Nesta VI Conferencia Internacional de Aids, enquanto uma fração do grupo anti-Aids “Act Up” comandava manifestações na rua, em protesto contra a política discriminatória à entrada dos HIV positivos nos Estados Unidos, dentro do centro de convenções, outros membros do Act Up optaram por outra estratégia de luta - vendiam e exibiam um vídeo ultra realista sobre o safe sex, filme cujo roteiro não ficava nada a dever às imagens mais sensuais das Mil e uma Noites ou do Kama Sutra. A Aids levando o sexofóbico Ocidente às intimidades da alcova da ars erotica oriental. (f) Nos pontos de ônibus e nos transportes coletivos de algumas grandes cidades norte-americanas e européias, cartazes sempre bastante explícitos, evocam aos passantes detalhes do sexo sem risco. (g) No Brasil, o moralismo oficial e a pobreza dos recursos das organizações comunitárias e dos órgãos não-governamentais explicam a falta de imaginação e pudicícia do material visual relacionado ao sexo sem risco, se comparado com o dos países mais ricos. A maior audácia visual com chancela oficial foi produzida pela Secretaria de Saúde da Bahia, ao divulgar em Salvador, no verão de 1988, out-doors e cartazes com um casal deitado juntinho, na praia, ela com sumaríssima tanga, ele de sunga, com as duas mãos enlaçando as pernas da companheira. O texto dizia “O verão da Bahia chegou... Turistas chegam de todas as partes e se entregam de corpo e alma às delícias desta terra morena, hospitaleira e sensual. Na Bahia, 70% dos casos de Aids foram adquiridos através do ato sexual. Isto não quer dizer que as pessoas estão condenadas a um verão triste e sem amor. Você pode relaxar e curtir o verão desde que tome diversos cuidados. Não deixe de usar o preservativo! A camisinha é seu único amuleto: feche seu corpo, abra seu coração!”. (h) Na falta de cartazes específicos com visual homoerótico, o Grupo Gay da Bahia aproveitando este material oficial, fez uma montagem onde em vez do casal modelo, dois rapazes se entrelaçavam tendo a mesma praia e dizeres como pano de fundo. (i) Na televisão foram exibidos filmetes com cenas bem realistas de “pegação”, mostrando cenas de promiscuidade na área do meretrício: mulheres e travestis abraçados a seus clientes, sugerindo aos telespectadores o risco da troca de casais e sexo com qualquer pessoa. Salvo erro, foram as imagens mais ousadas veiculadas pelo Ministério da Saúde. (j) Quanto ao visual mais explícito divulgado no Brasil relativamente ao sexo sem risco - além de uma história em quadrinhos do Grupo Atobá de Emancipação Homossexual, do Rio de Janeiro, onde Batman e seu companheiro Robin eram mostrados com superdotados membros eretos, dando lições de como usar a camisinha, destaca- se o livrete publicado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, com patrocínio da Fundação Ford, onde cenas eróticas extraídas de revistas gays mostram diversos atos sexuais rotulados alguns como muito arriscados (dar e comer), arriscados (chupar), sem risco (beijo, punheta e consolos). [...] (Artigo científico, E-053)

Esse trecho é um segmento textual de um artigo científico que recobre o tópico visualização do sexo. Esse tópico é explicitado no início do segmento, através do enunciado introdutório “Com o alastramento da Aids presenciamos não apenas um significativo incremento do discurso sobre a sexualidade, como também uma gradativa exibição de imagens relacionadas ao sexo sem risco”. O autor inicia o segmento, apresentando seu conteúdo. Estabelece-se, assim, o contexto para que todos os enunciados seguintes possam ser interpretados como relacionados a esse conteúdo.4 4 No artigo, o subt6ptico e explicitado tambem por um subtitulo: Liberacao visual.

Os demais conjuntos de enunciados que se seguem constituem o desenvolvimento desse assunto, ou seja, são postas as evidências que demonstram que a Aids serviu para liberar a exibição de imagens relacionadas ao sexo.5 5 No trecho, identifico cada conjunto de enunciados com letras entre parenteses. Esses conjuntos de enunciados estão dispostos de forma adjacente, num processo semelhante ao de uma lista detalhadora. O encadeamento dos referentes vinculados à idéia de imagens relacionadas ao sexo é a forma empregada para articular esses conjuntos de enunciados.6 6 Destaco, em negrito, no pr6prio trecho, as formas referenciais empregadas. Do ponto de vista interacional esse mecanismo sinaliza para o tipo de montagem do segmento: introdução e desenvolvimento em partes contínuas.

A forma como os tópicos ou enunciados são distribuídos na linearidade do texto permite uma certa mobilidade das informações, ou seja, com exceção da introdução do quadro tópico ou do segmento, a ordem de colocação dos subtópicos e enunciados pode ser alterada. Para alguns estudiosos da Lingüística Textual, que entendem a coesão como elemento que garante a estruturação da seqüência superficial do texto, representado por elementos formais, esses textos seriam destituídos de recursos coesivos e a progressão temática se estabeleceria apenas no nível do sentido e não no nível das relações entre constituintes lingüísticos (MARCUSCHI, 1983MARCUSCHI, L. A. Lingüística de texto: o que é e como se faz. Recife: Editora da UFPE, 1983.). Porém, na perspectiva que estou adotando para compreender a organização do texto, fica evidente que a relação entre tópicos e enunciados se estabelece pelos referentes que aparecem na superfície do texto. A unidade entre as informações que permite entender o texto como coerente não se estabelece no nível de uma abstração, mas pela atividade formulativa que gera a organização superficial do texto. Nessa atividade formulativa, está congregada uma atividade interacional, o tipo de montagem que o produtor pretende dar ao texto e a tentativa de sinalizar isso para seu interlocutor.

Além da seqüenciação, o encadeamento de referentes atua também no processo de retomada tópica, ou seja, ao empregar um referente vinculado ao contexto de um tópico suspenso, o produtor do texto orienta seu interlocutor para a retomada desse tópico. Na entrevista escrita E-162, por exemplo, da qual destaco um trecho, mais a seguir, o quadro tópico televisão apresenta três subtópicos: programas infantis, novelas e programas para jovens. Entre os dois primeiros subtópicos (segmentos 11 e 13), ocorre na linha discursiva o tópico pessoas chatas (segmento 12). Esse tópico é introduzido pelo entrevistador, por meio da pergunta Quem são hoje os outros campeões da chatice no país?, que, embora derive da avaliação que o entrevistado faz, no tópico anterior, dos programas infantis da TV como chatos, ultrapassa o circuito da TV, na medida em que desloca a questão da chatice da TV para o país. Esse deslocamento, evidente na resposta do entrevistado, que cita vários tipos de chatos em geral, leva a uma suspensão do tópico televisão, que estava em pauta, mas que voltará a ser focal no segmento 13, quando entra o subtópico novelas.

Por não ser assim concernente com o quadro tópico Televisão, e por entremear-se nesse quadro tópico, o tópico pessoas chatas configura, na linearidade textual, uma inserção. A retomada do tópico televisão, após essa inserção, é marcada pelo emprego do referente “novela”, que articula os dois primeiros subtópicos desse tópico, dispostos em segmentos não contíguos na linearidade discursiva. À pergunta introdutora do primeiro subtópico do quadro tópico televisão (O que você acha dos programas infantis da TV?) soma-se a que inicia o segundo subtópico (E o que acha das novelas?), para restabelecer e dar prosseguimento ao tópico cindido pela inserção. Isso é possível porque o referente “novela” se vincula a “programas infantis”, nesse contexto. Através desse procedimento, o entrevistador orienta a atenção do entrevistado par o fim do tópico inserido e o convida a retornar ao que havia sido iniciado e suspenso.

(03)

[ 11 VEJA - O que você acha dos programas infantis da TV? BUSSUNDA - A Xuxa, a Angélica e a Mylla Christie são bonitinhas e inofensivas, gostaria que fossem babás da minha filha, mas os programas são de lascar. No Canta Conto, da TVE, a Bia Bedran conversa com o mar e ele responde, fala “oi, bondinho” para o bonde do Pão de Açúcar e ele retruca “oi, Bia”. Eu não deixo a minha filha ver uma coisa dessas de jeito nenhum. Em matéria de chatice, a Bia Bedran é o Oswaldo Montenegro de saias.]

[ 12 VEJA - Quem são hoje os outros campeões da chatice no país? BUSSUNDA - Há vários tipos de chato. O Humberto Gessinger, do grupo Engenheiros do Hawaii, e o Gabriel o Pensador, por exemplo, são chatos do mesmo tipo: fazem música óbvia para que pessoas que nunca leram um livro se sintam inteligentes. Podem ser chamados de os chatos ginasianos. O maior chato do Brasil é, sem dúvida alguma, o Beijoqueiro. É o chato mala, que dispensa maiores explicações. Mas o pior tipo de chato é o chato bêbado, que fica com um copo em uma das mãos e a manga da camisa alheia na outra. Foi esse tipo que me fez parar de sair à noite, porque sempre tinha um representante da categoria que vinha parar na minha mesa e contar uma piada nova que eu já conhecia há mais de cinco anos. Há também o chato dono da verdade, como o Agnaldo Timóteo - se acha um primor de inteligência e é o único que enxerga essa qualidade nele. Há os chatos de plantão, como o Amaral Netto e o Jair Meneguelli. E não se pode esquecer dos chatos centrados, tipo Mário Covas, que não dizem nada com uma firmeza impressionante.]

[ 13 VEJA - E o que acha das novelas? BUSSUNDA - Eu sou noveleiro desde criança, embora meus pais me proibissem de ver novela. Eles eram do Partido Comunista e eu não podia ver novela porque era coisa “de alienado”. Aí, eu via escondido. Foi minha primeira rebeldia. As marcantes para mim foram O Bem Amado e Saramandaia. [...]

(Entrevista escrita, E-162)

Seja no processo de seqüenciação, seja no de retomada, os referentes vinculados ao mesmo contexto atuam retroativa e prospectivamente, promovendo o movimento de progressão do texto. Essa constatação mostra que as atividades formulativas que garantem a progressão textual não se limitam a alguns tipos de recorrências (reiteração de itens lexicais, paralelismos, paráfrases, recorrência de elementos fonológicos, de tempos verbais etc.) e aos articuladores textuais, conforme aponta Koch (2002______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.). Atuam também as formas referenciais.

4.2 Reiteração de um mesmo referente

A atividade de reapresentar seguidas vezes um mesmo referente discursivo emergiu na análise também como um importante mecanismo de articulação tópica.

Um mesmo referente é reiterado com o objetivo de aumentar o efeito de presença de um tópico. Salientando a presença do tópico, o produtor do texto prepara o seu interlocutor para o desenvolvimento de subtópicos, no processo de seqüenciação tópica, ou para a retomada, quando ocorrem desvios de tópico.

Na reportagem de televisão, destacada em (04), por exemplo, a articulação intertópica é estabelecida pela reiteração de um mesmo referente, “o candidato do PT Luiz Inácio Lula da Silva”. Esse referente constitui o supertópico do texto. Em cada um dos três desdobramentos, subtópicos encontro com os aposentados (segmento 2), participação no encontro de meninos e meninas de rua (segmento 3) e reunião com a cúpula da Assembléia de Deus (segmento 4), esse tópico é reativado pelos sintagmas nominais “Lula” e “o candidato petista”. Ocorre, nesse caso, uma sucessão de informações, ou seja, um processo de seqüenciação tópica, para o estabelecimento do qual atuam as referidas formas referenciais.

(04)

[1 Apresentador - O candidato do PT Luiz Inácio Lula da Silva teve encontros hoje em Brasília com líderes de ruas, líderes evangélicos e aposentados. A reportagem é de Cristina Lemos.]

[2 Repórter - Dos aposentados Lula ouviu denúncias: querem um salário mínimo de 350 reais, mas o candidato petista evitou promessas. Em meio às turbulências do mercado Lula não poupou críticas à área econômica do governo. (Fala de Lula - inaudível)]

[3 Repórter - No encontro nacional de meninos e meninas de rua no plenário da câmara, Lula foi surpreendido com a saudação da ex-colega de partido, deputada Erundina, hoje aliada a Anthony Garotinho, do PSB.

(Fala de Erundina - inaudível)]

[4 Repórter - O candidato petista fechou o dia com uma reunião com a cúpula da assembléia de Deus, que congrega 18 milhões de evangélicos. A eles Lula prometeu tentar melhorar o relacionamento das prefeituras com as igrejas. Mais tarde em entrevista Lula voltou a responsabilizar o governo pela instabilidade do mercado.

(Fala de Lula - inaudível)]

(Reportagem de televisão, F-01)

A atividade de reiteração do referente assume também a função de salientar o tópico, direcionando a atenção do interlocutor para o movimento de retomada após inserção tópica ou parentética. Quando o tópico é suspenso, seja para o desenvolvimento de outro tópico ou de um parêntese, o seu retorno ao discurso é sinalizado através da reiteração do referente, que o coloca novamente em posição focal.

Na passagem da conversação espontânea D2-30, destacada a seguir, o tópico em desenvolvimento é o impacto da morte, segmento 19. Esse tópico é interrompido pelo parêntese “/tá perto Inf. 1 - terminou Doc.2- não”, que quebra o fluxo temático para focalizar contingências do ato de comunicação em si (JUBRAN, 1999______. Estratégias de construção textual - parentização. 1999. (mimeo)). O retorno é sinalizado pelo sintagma nominal “Airton Senna”, que, por reiterar o referente que é tópico do segmento, articula os enunciados cindidos pela inserção.

(05)

[19 Doc.2- só vo/ voltando aqui um pouquinho... eh e a morte do Ayrton

Senna {vamo/ falar um pouquinho

Inf. 2 - ah:: não fale do meu {lindinho ((risos)) Inf. 1 - ((riu))

Inf. 2 - oh bi{chinho que é o::... Ave Maria

Doc. 2 - com/ é que é o bichinho pra cada um de vocês

Inf. 2 - pra mim Deus me livre eu faltei foi a minha irmã ficou viúva né? uma semana

Inf. 1 - ((riu))

Inf. 2 - viúva porque o marido dela disse que num agüentava mais... e ela chorava mais do qualquer outra coisa que ela tivesse visto ela CHOROU... literalmente mais de uma semana a M.

Inf. 1 - M. {foi?

Inf. 2 - a M. M. simplesmente ela num chorava não ela ficou de CALdo ela num foi trabalhar no dia porque /tava toda inchada de tanto que ela chorou... Inf. 1 - ((riu))

Inf. 2 - ((riu))... {mas a M. foi mesmo não /tá perto

Inf. 1 - terminou

Doc.2- não

Inf. 2 -...mas a M. o Ayrton Senna Ave Maria... foi triste aquilo ali foi triste eu achei assim... a morte DEle assim uma coisa assim muito::... sa{be uma coisa que ninguém

Inf. 1 - é

Inf. 2 - espera{va:: que

Inf. 1 - a gente VÊ a gente vê muita morte só que aquela morte foi ao vivo {né?... então ele

Inf. 2 - foi ao VIvo exatamente né?

Inf. 1 - /tava... no Ápice da carreira né?... {e::... representava

Inf. 2 - Ave Maria já devia ter parado há muito tempo] (Conversação espontânea, D2-39)

Um outro aspecto interacional vinculado à reiteração de um mesmo referente na articulação tópica é a sinalização da atitude assumida pelo produtor em relação ao conteúdo do texto. Segundo Koch (2002______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002., p.88), “a escolha de determinada descrição definida pode trazer ao leitor/ouvinte informações importantes sobre as opiniões, crenças e atitudes do produtor do texto”. Ao reiterar o referente com uma expressão nominal definida, o produtor do texto pode também deixar transparecer seu ponto de vista em relação ao que está dizendo.

O trecho destacado a seguir apresenta partes do segmento em que se desenvolve o quadro tópico Sistema Seae-SDE-Cade, do artigo de opinião E-149. Esse quadro se desdobra em cinco subtópicos. No primeiro subtópico (segmento 4), o produtor do texto trata dos objetivos do sistema, inserindo-o no contexto de órgãos criados para a defesa da concorrência no Brasil. Cria-se, no início desse subtópico, um contexto que integra os subtópicos subseqüentes, o que possibilita que a articulação seja realizada através do encadeamento de referentes vinculados ao contexto. É exatamente o que ocorre entre os subtópicos poderes do sistema (segmento 5), infrações previstas pelo sistema (segmento 6) e penalidades previstas no sistema (segmento 7): a articulação é realizada, respectivamente, através do emprego dos sintagmas nominais “as infrações” e “as multas”.

A articulação entre os segmentos 4 e 5 poderia também ser realizada por um sintagma nominal através do qual fosse criado, no texto, um referente vinculado ao contexto do Sistema Seae-SDE-Cade, como “os poderes”, por exemplo. No entanto, é a reiteração do referente “Sistema Seae-SDE-Cade” pela expressão nominal definida “o monstrengo” que realiza a articulação. Nesse caso, prevalece a avaliação que o produtor do texto faz em relação ao que ele está dizendo, e ocorre a reativação do referente para o desenvolvimento de um subtópico. Ao reiterar assim o referente, o produtor do texto deixa transparecer sua posição em relação ao sistema, ou seja, trata-se de algo que, na sua avaliação, não é bom.

(06)

[4 No Brasil, complicado sistema Seae-SDE-Cade (Secretaria de Acompanhamento Econômico do MF, Secretaria de Direito Econômico do Ministério MJ, e Cade) foi montado a pretexto de “defesa da concorrência”. Mas o que fez foi encobrir uma estapafúrdia combinação de objetivos de controle de preços e de intimidação das empresas privadas. No clima “antibusiness” da administração brasileira, infiltrada de petistas, a soma de poderes dados ao Cade equivale à doação de um revólver a lunáticos de asilo...]

[5 O monstrengo tem poderes para meter o bedelho em “aumentos injustificados de preços” ou “imposição de preços excessivos”. Numa economia de mercado, quem julga os preços é o consumidor, e o único instrumento eficaz a respeito é a concorrência. E “preços excessivos” são criados pelo governo, via inflação. Transformado em autarquia caríssima, o Cade ganhou poderes inquisitoriais como: “Requisitar informações de quaisquer pessoas, órgãos, autoridades públicas ou privadas”, e ter submetidos “à sua apreciação os atos que possam de qualquer forma prejudicar a livre concorrência”.]

[6 As infrações são expressas, no melhor estilo totalitário, de forma genérica e vaga, repleta de adjetivos e advérbios sem conteúdo preciso: “Aumentar arbitrariamente os lucros”, ou “exercer de forma abusiva posição dominante”. O art. 20 da lei 8884 chega ao cúmulo de criar a figura da infração “independentemente de culpa”! Relacionam-se 24 tipos de infração, dos quais apenas oito têm algo a ver com a preservação da concorrência, propriamente dita. Um proíbe “exclusividade para divulgação de publicidade aos meios de comunicação de massa” (como ficarão as nossas agências de publicidade?). Há outras idiotices como: “Açambarcar ou impedir a exploração de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de tecnologia” (lá se vai a Lei de Patentes!...); “abandonar, fazer abandonar ou destruir lavouras ou plantações, sem justa causa comprovada” (milhões de agricultores todos os anos teriam de dar explicações ao Cade, porque o preço caiu ou o financiamento do Governo não chegou a tempo...); “vender injustificadamente mercadoria abaixo do preço de custo”; “interromper ou reduzir em grande escala a produção” ou “cassar parcial ou totalmente as atividades da empresa sem justa causa comprovada” (o empresário que quiser mudar de ramo ou fechar o negócio tem de pedir licença e “comprovar” a “justa causa”, que naturalmente é definida pelo arbítrio do Cade!) e “impor preços excessivos ou aumentar sem justa causa o preço do bem ou serviço”.]

[7 As multas são brutais; 1 a 30% do faturamento bruto no último exercício, mais 10 a 50% sobre o administrador direta ou indiretamente responsável. Além de outras penas, como a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitações por prazo “não inferior a cinco anos”, transferência compulsória de patentes do infrator, não parcelamento de tributos, transferência do controle acionário, venda de ativos, cessação parcial de atividade ou qualquer outro ato ou providência necessários... (sic). A pena de morte seria supérflua...]

(Artigo de opinião, E-149)

Até aqui mostrei a atuação do processo de reiteração do mesmo referente na seqüenciação e na retomada tópica, em conformidade com os tipos de relações que se estabelecem entre os segmentos tópicos: seqüenciação, retomada ou mudança. Ocorreram no corpus, no entanto, alguns casos de articulação tópica pelo processo de reiteração sem a existência de uma dessas relações. Ocorre que as condições de produção do discurso fazem com que um mesmo tópico seja abordado várias vezes, como se fosse um novo tópico, dando a impressão de segmentos dispersos na superfície do texto. Dessa forma, o locutor não reitera o mesmo referente para orientar a atenção do seu interlocutor para a retomada, mas como uma forma de repisar o mesmo tópico que aparece ao longo do texto.

Na carta pessoal E-137, há um caso ilustrativo desse fato. O tópico entusiasmo é abordado várias vezes durante a carta, em segmentos descontínuos (segmentos 1, 4, 10, 12, 19). O supertópico a que esse tópico se subordina é a repercussão de uma carta anterior que a escrevente recebera da destinatária. Toda vez que a escrevente sente esse entusiasmo, ela passa a falar dele na carta que está escrevendo. Ao sentir o entusiasmo, a escrevente o percebe como um novo tópico, e, por isso, não é possível afirmar que se trata de um processo de retomada. A forma adjacente como apresentei esses segmentos, em (07), mostra como eles constituem uma unidade. Há aí a atividade de representar seguidas vezes um mesmo referente discursivo, através da qual se estabelece a articulação entre os segmentos: “ler sua carta”, “ler de novo”, “acabei de ler”, processos realizados pela escrevente; “devorei-a”, “adorei”; e “sorrir”, “chorar”, avaliações e manifestações emotivas da escrevente diante desses processos, respectivamente.

(07)

[1 Acabei de ler sua carta, devorei-a, acho que vou até ler de novo. Sabe quando se quer saber logo tudo de uma vez, pois é! Ao terminar a carta, quer dizer, agora: estou tremendo, sorrindo, chorando, sentido algo muito estranho, por isso corri para escrever para você.] [4 Senti uma emoção enorme ao ler sua carta, adorei, parecia que estava falando com você!] [10 Acabei de ler (de novo!) sua carta. Adorei] [12 Não sei se com você é assim, mas quando chegam cartas aqui leio a primeira vez com tanta ânsia que certas idéias fogem e eu tenho que ler de novo, mais analítica e calma.] [19 Quero pegar nossas cartas, lê-las daqui a uns 20 30 40 ou 50 anos e ri, chorar, comentar, sentir saudades...]

(Carta Pessoal, E-137)

4.3 Conferição de estatuto de referente a um conjunto de informações difundidas no cotexto

Nesse processo de atribuição de referentes, um conjunto de informações difundidas no cotexto anterior é erigido em referentes, que não apresentam, no universo discursivo, antecedentes pontualmente delimitáveis. Esse tipo de elaboração referencial, também ancorada no processo interacional, atua como mecanismo de articulação tópica, estabelecendo seqüenciação e mudança.

Ao atribuir a um conjunto de informações o estatuto de referente, o produtor do texto deixa transparecer seu ponto de vista em relação a essas informações. Esse é um dos aspectos interacionais vinculados à conferição de estatuto de referente a um conjunto de informações difundidas no cotexto como mecanismo de articulação tópica. Ao sumarizar todo o conteúdo de tópico através de uma forma referencial, o produtor do texto pode realçar uma parte desse conteúdo, avaliando-a.

Destaco, a seguir, um trecho do artigo de opinião E-149 em que esse fato acontece. O tópico penalidades previstas pelo sistema, segmentos 7, é sumarizado pelo referente “arbítrio”. Por meio dessa sumarização, o produtor do texto introduz um referente novo no discurso, sinalizando o início de um novo tópico. Ocorre, assim, tanto o processo de sinalização da seqüenciação tópica, articulação entre os subtópicos penalidades previstas pelo sistema com conseqüência do sistema para a economia brasileira, segmento 8, como a explicitação da avaliação do articulista de que as multas previstas pelo sistema Seae-SDE-Cade são arbitrárias, o que constitui o aspecto do segmento 7 que é realçado.

(08)

[7 As multas são brutais; 1 a 30% do faturamento bruto no último exercício, mais 10 a 50% sobre o administrador direta ou indiretamente responsável. Além de outras penas, como a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitações por prazo “não inferior a cinco anos”, transferência compulsória de patentes do infrator, não parcelamento de tributos, transferência do controle acionário, venda de ativos, cessação parcial de atividade ou qualquer outro ato ou providência necessários... (sic). A pena de morte seria supérflua...]

[8 Tal arbítrio gera graves incertezas para os investimentos produtivos e a gestão normal das empresas, aumentando o bestial “custo Brasil”, que está nos empurrando para fora do mercado internacional.]

(Artigo de opinião, E-149)

Os exemplos que comentei demonstram que, tanto a seqüenciação como a mudança tópica, podem ser sinalizadas pela criação de um novo referente discursivo que conduz um elemento avaliativo, que, por essa razão, exerce também a função de instaurar um ponto de vista do produtor do texto. Mas podem ocorrer também, em ambos os contextos, a criação de referentes sem função atributiva. Nesse caso, compreendo que há uma explicitação da postura neutra do locutor em relação ao assunto. No artigo científico E-020 ocorre um exemplo disso. Todo o quadro tópico posição da mulher no século XIX, segmentos 7 e 8, é retomado de forma sumarizada pelo referente “nível de aspiração”, que o articula ao quadro tópico seguinte exclusão da educação formal nacionalista, iniciado no segmento 9. Com esse processo de atribuição de referente, o produtor do artigo orienta seu leitor para a mudança de quadro tópico, mas, ao empregar um referente não avaliativo, cria também um efeito de neutralidade, ou seja, ele se coloca de forma imparcial em relação ao tópico.

(09)

[7 A construção é enviesada na medida em que o século XIX foi essencialmente o período em que se cultuou a missão “natural” da mulher para o casamento, a criação dos filhos e vida no lar. Para evocar essa ideologia dominante escolheram-se citações do Opúsculo humanitário, de Nísia Floresta, não só por seu estatuto de pioneira do feminismo, como por sua defesa do direito da mulher à educação, para não ficar em situação inferior à do homem, mas também para tornar-se mais apta a educar seus filhos e os alheios.

Em 1853, com uma perspectiva afrancesada e positivista, ela deixou indicada a necessidade desse esforço de construção de uma unidade nacional: “Dissemos que não limitaríamos a nossa análise sobre a educação de nossas mulheres a esta ou aquela outra província, mas sim a todo Brasil. Nunca nos assomaram os epidêmicos delírios de mal-entendido orgulho provincial, funesto germe fomentado outrora entre nós por disfarçados inimigos da prosperidade desta grandiosa e rica peça, tão invejada pelos estrangeiros e tão ameaçada por seus próprios possuidores de perder em sua divisão o prodigioso valor que o seu todo constitui”.

Foi realmente depois de 1840 que surgiram os romances nacionalistas que vieram reforçar uma representação da realidade capaz de vincular a produção artística à realidade nacional, dentro de uma tradição literária.

Tudo levaria a crer que o nacionalismo estivesse inteiramente ausente das preocupações femininas. Circunscritas ao círculo familiar e às obrigações cotidianas, restringiam-se a atividades domésticas e as religiosas quando se afastavam do círculo da família ou dos pesados encargos para sobrevivência. Toda uma literatura de louvação à mulher aponta nela virtudes “úteis” de capacidade de sacrifício, de dedicação e de fidelidade. Ao examinar escolas primárias e secundárias para mulheres no Brasil em 1853, Nísia Floresta considerou uma vantagem a educação dirigida pelas próprias mães, “em condições apropriadas para o que desejaríamos proporcionar a todas conhecimentos, aptidão e gosto, a fim de preencherem elas mesmas, como deviam, a honrosa e sublime missão de preceptoras de suas filhas e da mais útil amiga do homem”.]

[8 As mulheres de letras do século XIX insistem na necessidade de educar a mulher para que ela possa exercer com maior eficiência suas atribuições de esposa, mãe e mestra do homem. A luta em que se empenham é contra toda uma tradicional desconfiança da educação, que tiraria as mulheres de suas atribuições sagradas e “naturais”. Ler romances, saber ler e escrever, exercer uma profissão fora de casa, gostar de escrever eram considerados deslizes perigosos, transgressões da “verdadeira” missão feminina que era casar e cuidar de filhos, obedecendo aos sucessivos amos e senhores.

Como exprimiu Nísia Floresta: “Em vez de leitura de inflamantes e perigosos romances que imprudentemente lhes deixais livre, fornecei-lhes bons, escolhidos livros de moral e de filosofia religiosa, que formem o seu espírito, esclareçam e fortifiquem sua razão. A história, principalmente a de nossa terra, de que bem poucas se ocupam, é um estudo útil e agradável, mais digno de ocupar as suas horas vagas que certos contos de mau gosto, inventados pela superstição ou fanatismo ignorantes para recriar (sic) a mocidade sem espírito”.]

[9 Com esse nível de aspiração focalizado na unidade familiar e na procriação, não seria de esperar que as mulheres contribuíssem para a construção do pensamento nacionalista, nem fossem alvo de sua atuação. Dirigida para a guarda do lar, com todas as pressões ideológicas a estimular os corações maternos, desmerecendo qualquer colaboração mais ativa nos diversos setores da vida nacional, a mulher do século XIX viu-se excluída da construção educacional do nacionalismo realizada através dos livros didáticos de história pátria, que começaram a aparecer nos colégios masculinos. Eram histórias de um Brasil que surgia e se desenvolvia num espaço muito extenso e cheio de florestas, governado por um Estado unitário, resultante de uma história comum dos diferentes tipos de convivência humana, mas, principalmente, masculina e referente ao domínio progressivo de portugueses e europeus.

Não só as mulheres estavam excluídas dessa história, mas também todas as camadas subalternas - índios, negros e imigrantes. Elas apareciam apenas para permitir a vitória dos vencedores. [...]

(Artigo científico, E-020)

A sumarização de um conjunto de informações em forma de referente novo no discurso se presta ainda para o produtor do texto dar um enfoque preferencial a uma determinada passagem do texto e envolver o interlocutor na construção de um argumento.

Esse enfoque pode ser dado tanto para um segmento recoberto por um subtópico, num mecanismo de articulação intertópica, como para conjuntos de enunciados que constituem um segmento em particular, num mecanismo de articulação intratópica, conforme mostra a passagem da carta pessoal E-002, transcrita a seguir. O segmento 6 recobre o tópico trabalho na Furnas, em que o escrevente descreve parte de sua atividade profissional. O conjunto de enunciados que se inicia com “Lá eu faço a previsão das chuvas” e segue até “Todos os estados da região Sudeste e Sul ficam sem energia” é condensado, no conjunto de enunciados subseqüente pela expressão referencial “por aí”. Essa expressão articula os dois conjuntos de enunciados, assinalando a relação de seqüenciação que se estabelece entre eles, e dá um enfoque para o conjunto antecedente, destacando-o como um argumento para a idéia desenvolvida no conjunto subseqüente, ou seja, a importância da profissão do escrevente. Instaura-se também um movimento de suposição do locutor de partilhamento do interlocutor nesse argumento.

(10)

[6 Bem, já estou estagiando em Furnas Centrais Elétricas. É uma das empresas que gera eletricidade para o Brasil, com suas usinas hidroelétricas. Você deve estar pensando: mas porque eles querem um meteorologista? Lá eu faço a previsão das chuvas, ou seja, digo se vai chover e quanto vai chover em todas as cidades por onde passam os rios Paraíba do Sul e Grande. Com minha previsão eles sabem o quanto vão abrir as comportas das usinas. Assim a chuva não inunda as cidades. Imagine se eu digo que vai chover, eles abrem as comportas e na verdade não chove? A hidroelétrica fica sem água para transformar em energia elétrica e o que acontece? Todos os estados da região Sudeste e Sul ficam sem energia. Vou almoçar. Pronto, já almocei. Por aí você tira a importância da minha profissão. Muita gente pensa que meteorologia é só fazer previsão do tempo; mas esquecem que sem a meteorologia não haveriam alimentos, nem viagens de navio ou de avião. Já notou que sou fascinado por meteorologia, não é? Adoro minha profissão é super interessante.]

(Carta pessoal, E-002)

Esse enfoque preferencial se relaciona também ao relevo, ou seja, fenômeno que diz respeito a um destaque que o falante/escritor dá a determinados elementos do texto, colocando-os em proeminência em relação a outros, ou a um rebaixamento, ocultando determinados elementos em relação a outros (TRAVAGLIA, 1999TRAVAGLIA, L. C. O relevo no português falado: tipos e estratégias, processos e recursos. In: NEVES, M. H. de M (Org.). Gramática do português falado. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP; Campinas/ SP: Editora da Unicamp, 1999. V. 3.). Segundo Travaglia (1999TRAVAGLIA, L. C. O relevo no português falado: tipos e estratégias, processos e recursos. In: NEVES, M. H. de M (Org.). Gramática do português falado. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP; Campinas/ SP: Editora da Unicamp, 1999. V. 3.), a proeminência caracteriza um relevo positivo ao passo que o rebaixamento caracteriza um relevo negativo. Isso dá aos elementos do texto um “status” proeminente, normal ou rebaixado.

Ao provocar a concentração da atenção do interlocutor em um determinado tópico ou conjunto de enunciados, o produtor do texto assinala um relevo positivo, ou seja, em favor de uma determinada orientação de sentido, criada na relação entre os interlocutores, esse tópico ou esse conjunto de enunciados assume maior importância em relação aos outros, ganha posição em um plano mais elevado.

Seguindo Apothéloz e Chanet (1997APOTHÉLOZ, D.; CHALET, C. Defini et démonstratif dans les nominalisations. In: MULDER, W. de, RYCK, L. T.; VETTERS, C. (Eds.). Relations anaphoriques et (in)coherence. Amsterdan: Rodopi, 1997.), Cavalcante (2001aCAVALCANTE, M. M. Subtipos de nomeação. Cadernos de Estudos Lingüísticos, n. 41, 2001a.) destaca que os casos de nomeação manifestada por sintagmas nominais podem consistir de: a) um nome morfologicamente derivado de um verbo da proposição que fornece a informação-suporte, como “alegar - a alegação”, “afirmar - a afirmação”; b) um nome que evidencia o valor ilocutório ou perlocutório da enunciação, como “o aviso”, “essa explicação”; c) um nome que transforma processos específicos em processos genéricos, como “essa tarefa”, “a análise”; e d) um nome que exprime juízo de valor, como “essa desculpa”, “esse preconceito”.

Cavalcante (2001aCAVALCANTE, M. M. Subtipos de nomeação. Cadernos de Estudos Lingüísticos, n. 41, 2001a.) propõe que as nomeações realizadas por sintagmas nominais se subdividem, ainda , conforme seus papéis discursivos, em três grupos: a) os que introduzem um referente novo para o discurso, dotado de valor axiológico, mas ancorado em pistas contextuais; b) os que instituem referentes novos, mas sem valor axiológico, e que se caracterizam por apresentar nomes nucleares que representam atividades lingüísticas, processos mentais e classes metalingüísticas, que realizam uma classificação; e c) os que também instituem referentes novos, sem valor axiológico, e se caracterizam por apresentar um nome genérico como “coisa”, “negócio”, “questão”, que não exercem função classificatória, nem avaliativa.

No exemplo (08), o sintagma nominal “tal arbítrio”, composto por um nome e um determinante, introduz um referente novo no discurso, que apresenta um valor axiológico, ancorado em pistas contextuais. Embora não haja, no tópico anterior, um antecedente pontualmente delimitável, a alusão a “multas brutais” e a “outras penas”, no tópico anterior, se configura como uma “pista” para sustentar a interpretação referencial de “arbítrio” e a conotação negativa de arbitrariedade. Além disso, o emprego do demonstrativo “tal” permite que o interlocutor reconheça o referente como sendo compartilhado. Assim como esse, muitos outros casos de sintagmas nominais rotuladores empregados na articulação tópica, identificados na análise, são contemplados pela classificação proposta por Cavalcante (2001aCAVALCANTE, M. M. Subtipos de nomeação. Cadernos de Estudos Lingüísticos, n. 41, 2001a.). Há, no entanto, outros sintagmas nominais empregados na articulação tópica que não são previstos por essa classificação. É o caso do exemplo (09), em que o núcleo do sintagma nominal “esse nível de aspiração” não é um nome derivado de um verbo, não evidencia um ato ilocutório ou perlocutório, não transforma processo específico em genérico, nem exprime juízo de valor.

No que diz respeito aos papéis discursivos, a análise aqui desenvolvida aponta também para outra interpretação. Ao separar em grupos diferentes nomeações dotadas de valor axiológico, classificadoras e não avaliativas e não classificadoras, Cavalcante (2001aCAVALCANTE, M. M. Subtipos de nomeação. Cadernos de Estudos Lingüísticos, n. 41, 2001a., p. 6) afirma que, apenas no primeiro caso, ocorre indicação de uma orientação de sentido por parte do produtor do texto. Segundo a pesquisadora, as nomeações que contém valor axiólogico “desempenham uma função dupla, referencial e atributiva”. As demais servem “apenas para encapsular informações” (2001a, p. 2). Como mostrei, na análise do exemplo (09), o fato de o núcleo do sintagma nominal que confere a um conjunto de informações o estatuto de referente não portar um valor axiológico não significa que não haja função interacional. A não-avaliação é também uma tomada de posição do produtor do texto, a de neutralidade.

O referente que sumariza um conjunto de informações pode ser expresso também por pronomes demonstrativos ou advérbios pronominais, como o “aí”, no exemplo (10). Segundo Cavalcante (2001b), nas nomeações realizadas por pronomes, o produtor do texto não tem o trabalho de escolher um nome que mais apropriadamente designe sua intenção comunicativa, como tem ao realizar uma nomeação por meio de sintagma nominal. Para a autora, as nomeações pronominais despendem pouco esforço cognitivo e não acrescentam nenhum conteúdo argumentativo. Nesse caso, os resultados desta pesquisa apontam também para uma interpretação diferente. O emprego de uma pro-forma resumidora, demonstrativo ou advérbio pronominal, não parece estar relacionado simplesmente a uma questão de menor esforço cognitivo. As pro-formas servem para dar um enfoque preferencial ao conjunto de informações sumarizadas e atribuir a elas relevo positivo, exercem, portanto, também uma importante função interacional.

Outro ponto que merece destaque no que diz respeito tanto aos sintagmas nominais como aos demonstrativos e advérbios pronominais nessa atividade de atribuição de referentes é o fato de que, ao encapsular as informações contidas no tópico ou no enunciado anterior, essas formas referenciais fazem uma remissão a elas. Nessa remissão se institui uma relação anafórica, porque essas informações são as pistas para que a representação do referente criado e a percepção do ponto de vista do produtor sejam interpretadas. É essa remissão anafórica que permite que as formas referenciais possam ser empregadas como mecanismo de articulação tópica.

5 CONCLUSÃO

Nos estudos anteriores sobre coesão referencial e processos de referenciação, as formas referenciais são vistas sob dois ângulos, o da função textual, quando atuam na organização do texto, e o da função pragmática, quando atuam “para elaborar o sentido, indicando pontos de vista, assinalando direções argumentativas, sinalizando dificuldades de acesso ao referente e recategorizando os objetos presentes na memória discursiva” (KOCH, 2002______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002., p. 106). Os resultados da análise aqui desenvolvida mostram que a articulação tópica se estabelece com base nas relações referenciais, que são textual e interacionalmente construídas. Assim, os fenômenos distintos, estudados em trabalhos anteriores, aqui são concebidos de forma integrada, ou seja, como fatos formulativo-interacionais, que estão imersos na materialidade lingüística.

Referências

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  • 1
    O projeto PORCUFORT (Portugues Oral Culto de Fortaleza) constitui uma aplicacao, na cidade de Fortaleza-Ce, do projeto NURC (Norma Urbana Culta), cujo objetivo e a descricao do portugues falado culto no Brasil. Os inqueritos sao distribuidos de acordo com o sexo e a faixa etaria dos informantes e com o grau de formalidade.
  • 2
    O NELFE (Nicleo de Estudos da Lingua Falada e Escrita) e um nicleo de pesquisa cadastrado no Diret6rio de Grupos de Pesquisas do CNPq, inserido no programa de P6s-Graduacao em Linguistica da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). O objetivo central do nicleo e investigar questoes ligadas a fala e a escrita (MARCUSCHI, 1996).
  • 3
    Cf. coesao referencial, conforme Koch (1991KOCH, I. G. V. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 1991.).
  • 4
    No artigo, o subt6ptico e explicitado tambem por um subtitulo: Liberacao visual.
  • 5
    No trecho, identifico cada conjunto de enunciados com letras entre parenteses.
  • 6
    Destaco, em negrito, no pr6prio trecho, as formas referenciais empregadas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Dec 2003

Histórico

  • Recebido
    08 Jul 2003
  • Aceito
    18 Ago 2003
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