Resumo
Este artigo discorre sobre as problematizações arquegenealógicas foucaultianas buscando-se articulá-las com os pressupostos teóricos da Análise do Discurso de vertente francesa a fim de analisar o discurso publicitário de curso de idiomas, mais especificamente sobre como se constituem potenciais sujeitos aprendizes e aprendizagem de língua inglesa nesse espaço enunciativo. Verifica-se a proficuidade do pensamento foucaultiano, em especial no que concerne às noções de verdades, saberes e poderes, e como tais conceitos podem servir ao analista como ferramenta metodológica de análise. Analisa-se uma peça publicitária produzida por curso de língua inglesa e, nesse exercício, apresenta-se aspectos atinentes à constituição de sujeitos aprendizes e aprendizagem dessa mesma língua em nosso país. Apresenta-se como considerações que: 1. Compete sempre ao brasileiro aprender a LE e utilizá-la, nunca ao estrangeiro; 2. Há um apagamento de outras habilidades em proveito da produção oral; e 3. É dado ao estrangeiro o lugar daquele que tem saber e, também, que possui poder(es).
Palavras-chave: Arquegenealogia; Aprendiz; Curso de idiomas; Discurso publicitário; Língua inglesa
Abstract
This paper aims at discussing the arqueo-genealogical problematizations of Michel Foucault trying to articulate them with the theoretical assumptions of the French Discourse Analysis in order to analyze the publicity discourse of a language course, specifically on learners and English language learning are meant in this enunciative space. We verified the usefulness of Foucault's thought, especially as regards, in particular, the notions of truth, knowledge and power, and how these concepts can serve the analyst as a methodological tool of analysis. We analyzed an advertising produced by an English language course and, in this exercise, we present aspects related to the composition of subject learners and learning of that language in our country. We present the following considerations: 1. It is always the Brazilian speaker who has to learn and use the foreign language, never the foreigner; 2. There is an erasure of other skills at the expense of oral production; And 3. It is given to the foreigner the place of knowledge and power(s).
Keywords: Arque-genealogy; Learner; Languages course; Advertising discourse; English language.
Resumen
Este artículo enfoca problematizaciones arqueo genealógicas de Foucault, buscando articularlas con presuposiciones teóricos del Análisis del Discurso de fuente francesa con el objetivo de analizar el discurso publicitario de curso de idiomas, más específicamente sobre cómo se constituyen potenciales sujetos aprendices y el aprendizaje de lengua inglesa en ese espacio enunciativo. Se verifica el provecho del pensamiento de Foucault, en especial sobre nociones de verdades, saberes y poderes, y como tales conceptos pueden servir para el analista como herramienta metodológica de análisis. Se analiza una pieza publicitaria producida por curso de lengua inglesa, y en ese ejercicio se presentan aspectos atinentes a constitución de sujetos aprendices y aprendizaje de esa misma lengua en nuestro país. Se presentan como consideraciones que: 1. Es siempre el brasileño que tiene que aprender a LE y utilizarla, nunca el extranjero; 2. Hay una borradura de otras habilidades en provecho de la producción oral; y 3. Es dado para el extranjero el lugar de aquel que tiene el saber y también que posee poder(es).
Palabras-clave: Arqueo genealogía; Aprendiz; Curso de idiomas; Discurso publicitario; Lengua inglesa
1 PALAVRAS INICIAIS
Este artigo apresenta reflexões de um projeto mais amplo em que nos propusemos a analisar como o sujeito enunciador, no discurso publicitário-institucional, significa o aprendiz brasileiro de língua inglesa e aspectos atinentes à aprendizagem dessa língua. Denominamos discurso publicitário-institucional aquele veiculado nos meios de comunicação (televisão e internet) com fins publicitários e pago pelos institutos de idiomas (de língua inglesa). Assim, sem descurar de questões discursivas que envolvem verdades, saberes e poderes, alvitramos analisar, por meio dos discursos materializados na peça publicitária, corpus deste artigo, como o sujeito significa o potencial aprendiz brasileiro de língua inglesa e, nesse sentido, verificar quais "verdades" são construídas nesses discursos.
A partir dessa proposta principal, avançamos em nossos objetivos: No que tange à imagem e suas diferentes formas de manifestação, daremos especial ênfase ao corpo e aos objetos presentes nas materialidades, elementos que, em nosso entender, merecem considerável atenção1. Como bem nota Foucault ([1981-1982] 2010), o sujeito é constituído por discursos exteriores a ele, e sua construção decorre do funcionamento de práticas discursivas de ordem social. Nesse sentido, interessa-nos apontar aspectos dessa ordem (social) que promovem a produção de subjetividade do potencial sujeito aprendiz.
Sendo assim, iniciaremos este artigo tratando da relevância em aportar o pensamento de Michel Foucault à Análise do Discurso (AD), ou melhor, buscaremos demonstrar, sob um prisma discursivo, como determinados conceitos, tais como verdade(s), poder(es) e saber(es) podem se ensamblar na prática analítica em AD. Na sequência efetuaremos a análise da peça publicitária Rescue, produzida por um curso de língua inglesa presencial e difundida na televisão e na Internet entre os anos de 2010 e 2013 no Brasil. Enfim, arrolaremos algumas considerações a partir da base teórico-metodológica ora apresentada.
2 FOUCAULT E O MÉTODO ARQUEGENEALÓGICO: VERDADES, SABERES E PODERES
O pensamento de Michel Foucault tem contribuído para diversos campos disciplinares. Nos estudos da linguagem, não diferentemente, a argúcia de suas reflexões respalda teórica e metodologicamente pesquisas que se inscrevem na alçada da AD2, um campo que, desde a sua fundação e também em virtude de seu objeto, não se limita a um domínio disciplinar específico. Além disso, se o aporte à obra de Foucault pode se dar de maneira periférica, o objeto da teoria que nos oferece sustentação e em torno do qual gravitam conceitos essenciais, ou seja, o discurso, na transcursão de seu pensamento, recebe atenção sui generis. Como afirma Rouanet et al. (1996, p. 10): "A obra de Foucault é uma reflexão sobre o discurso. Discursos parcelares, como o discurso da loucura e da medicina; discursos entrecruzados, múltiplos, como o discurso das epistemes; e um discurso sobre o discurso, ou a arqueologia".
Nesta via, acreditamos que as reflexões de Michel Foucault contribuem para o desenvolvimento epistemológico da AD por no mínimo três razões3. A despeito de seu olhar se voltar para a produção de conhecimentos de um modo amplo e de como os sentidos se deslocam na história, o método arqueológico, paradoxalmente, busca, no dizer de Gregolin (2004, p. 86), "apanhar o sentido do discurso em sua dimensão de acontecimento". Assim, sem descurar obviamente de seu caráter crítico e político, faz parte desse procedimento a análise da eventualidade discursiva e de como e em quais condições histórico-sociais a mesma se dá. O enunciado é um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar totalmente e sua noção é pensada em uma perspectiva que muito se aproxima do que Courtine cunhou posteriormente de "semiologia histórica" (Foucault não utiliza esse termo4). Importa, pois, ao analista observar as relações do enunciado (como um acontecimento discursivo) com outros enunciados em dispersão, e mesmo em ordens e domínios diferentes e divergentes. Se, em 1969, Pêcheux ([1969] 1990) propõe, a partir de uma via estruturalista, uma análise automática de discursos homogênea e fechada, no mesmo ano Foucault, em outra direção, via nova história, pensa o enunciado ao mesmo tempo singular (em seu momento de irrupção) quanto pertencente a uma rede, a um "todo" histórico do qual não se pode desvencilhar.
Portanto, Foucault efetua uma proposta de análise de discursos em que a materialidade da linguagem rompe com uma perspectiva exclusivamente linguística. Além disso, um dos objetivos de Pêcheux era oferecer às ciências sociais um dispositivo não ideológico para Análise do Discurso. Uma proposta que não se sustenta, pois demonstra posteriormente sua não neutralidade (da teoria) e opacidade, e como o discurso é ideológico5. Para ele, as palavras não são reflexo de uma evidência, de uma transparência, mas de um jogo de relações (simbólico) estabelecido na enunciação.
Em uma visada foucaultiana o analista parte da singularidade do acontecimento para, a partir daí, compreender a produção discursiva que orbita em torno desse mesmo acontecimento e como se estabelece sua relação com outros discursos (dispersos, aparentemente desconexos, singulares). É nesse exercício que se busca deslindá-lo (apesar de nunca alcançá-lo em sua completude), caudatário (o discurso) da complexa trama histórica que o precede e o enrola, e moldado pelas vontades de verdade e exercício de poder amiúde opacos e fugazes.
Além de o método proposto por Foucault contemplar o acontecimento em sua singularidade ou "estreiteza", também o toma de uma rede mais ampla e extensa da qual está absorto (isto é, o discurso). Nesse sentido, constata como determinados conceitos advindos de diferentes campos se alteram em diferentes épocas. Por exemplo, no campo médico-psiquiátrico demonstra não ser tão evidente assim que os loucos fossem reconhecidos como doentes mentais no século XVII. Em outros termos, a própria definição de louco já é uma produção discursiva, pois seus sentidos se vinculam aos dispositivos históricos e sociais (instituições, leis, paradigmas etc.) de uma determinada época.
No mesmo sentido, os significados do significante doença são alterados em virtude da movimentação histórica, nesse caso pelas transformações sociais, pelas formas de observação médica, pelas mudanças do discurso patológico bem como pelas análises clínicas que se alteram de um século para o outro6 (VEYNE, 2009, p. 32). Sendo assim, compreendemos, na esteira de Foucault, que não é possível pensar qualquer coisa em qualquer momento (VEYNE, 2009, p. 32): "Tudo o que julgamos saber está limitado sem que o saibamos. Não lhe vemos os limites e ignoramos até que existam" (VEYNE, 2009, p. 32), uma vez que "só pensamos dentro das fronteiras do discurso no momento" (VEYNE, 2009, p. 32).
Uma segunda razão pela qual as reflexões de Foucault são essenciais para a AD se refere ao fato de Foucault fundamentar o método "arquegenealógico", isto é, demonstrar que as relações de poder são imanentes a toda e qualquer prática discursiva. É por meio dos discursos que os sujeitos se utilizam de determinadas técnicas para se beneficiarem e granjearem o poder. Aliás, tais relações se evidenciam nas relações "mínimas", nos "detalhes" ou "contornos" dos discursos de maneira que, por extensão, podemos compreender que a mobilização de determinado objeto (na tela da televisão), a mudança no volume da voz, ou mesmo o surgimento abrupto de um som não se dão ao acaso, ao revés, animam o trabalho do analista, permitindo-lhe contemplar, juntamente com a análise do verbal, as relações contingencialmente tranquilas ou mesmo substancialmente conflituosas estabelecidas na enunciação.
Isto posto, levando em consideração, também, que é inerente à constituição da AD a inter-relação com outras disciplinas, em especial diante das transformações e novos olhares sobre seu objeto, encontramos em Foucault respaldo para articulá-lo, o que implica um afastamento da noção de ideologia marxista e althusseriana (vale ressaltar que quando utilizarmos o termo "ideologia" neste artigo estaremos nos referindo às relações de embate entre sujeitos). Em sua tese, Althusser define ideologia como a "relação imaginária" convertida em práticas entre a burguesia e o proletariado, de sorte que a classe operária apenas reproduz as relações de produção vigentes. Os indivíduos devem se resignar a esse sistema dominante e totalitário. Assim, a ideologia se estabelece nessas relações em que há "núcleos" de confrontação ou, no dizer althusseriano, dos aparelhos ideológicos e repressores contra os cidadãos. É nessa perspectiva althusseriana que Pêcheux se inscreve em sua luta teórica e política. Sob o prisma de Foucault, entretanto, além de a ideologia se contrapor a algo que seria verdadeiro ou "certo", destaca que ela estaria em posição secundária com relação a alguma coisa que deveria funcionar para ela como infraestrutura ou determinação econômica e/ou material (FOUCAULT [1979] 2007, p. 7).
Em vista disso, o poder é constitutivo de qualquer discurso e o que existe, portanto, são sujeitos em conflito (social, cultural, étnico, político, religioso etc.) que demarcam suas posições em seus discursos: "Se o poder é na realidade um feixe aberto, mais ou menos coordenado (e sem dúvida mal coordenado) de relações, então o único problema é munir-se de princípios de análise que permitam uma analítica das relações de poder." (FOUCAULT [1979] 2007, p. 248). De tal sorte, compete ao analista observar as relações estabelecidas e técnicas utilizadas pelo sujeito em seus discursos.
Enfim, além do seu tratar peculiar com a história, diríamos antifenomenológico7, e das relações de poder acima elencadas, a terceira razão pela qual creditamos a Foucault distinta relevância para aportá-lo no campo da AD se refere ao fato de o filósofo não atribuir hierarquias e nem mesmo sistematizar a forma de manifestação discursiva. O enunciado, como átomo do discurso, pode assumir inúmeras formas e materializar-se sob linguagens diversas. Suas análises não priorizam o linguístico, ao contrário, contemplam materialidades de natureza semiológica distintas em suas obras8. Portanto, é salutar destacar para aqueles que não o consideram analista de discurso que ele não deixou de realizá-la, em certa medida, em seus trabalhos.
Interessa, portanto, a Foucault compreender as regras de formação dos discursos, imbricando práticas discursivas (enunciados) com não discursivas (instituições, acontecimentos políticos etc.). A estas últimas Foucault denomina dispositivos que são constitutivos dos processos de materialização e circulação de enunciados. Cabe ao pesquisador analisar as regras de formação de determinados discursos, não de modo estruturalista, mas em um processo que articula descrições formalizadas do enunciado com suas condições sócio-históricas de emergência. Sobre essas descrições formais, trata das relações entre enunciados, as quais nem sempre se efetuam de modo transparente, mas que são permitidas por meio de suas "estruturas", de suas regras de formação que levam em consideração até mesmo detalhes mínimos: "por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e o poder." (FOUCAULT, [1971] 2013, p. 9-10).
Como o sujeito é o epicentro em torno do qual gravitam os conceitos aqui arrolados, conceitos esses amplamente discutidos em suas obras (ver, por exemplo, FOUCAULT, [1971] 1996, 2003, 2005, 2006, [1979] 2007), aspectos atinentes à verdade, ao poder e ao saber não devem ser contemplados separadamente: "somos submetidos à produção de 'verdade' e só podemos exercer o poder mediante a sua produção" (FOUCAULT, 2005, p. 29). O poder só se exerce por meio da produção de 'verdades', de objetos, conceitos e valores que os sujeitos defendem, criam e reformulam: "A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder" (FOUCAULT, 2006, p. 12). Os discursos significam nas diferentes relações entre sujeitos, produzem efeitos de verdade em virtude também das formas que assumem em conformidade com as condições de produção, os modos de circulação e o suporte que os sustenta.
Sobre a noção de verdade, em uma espécie de crítica ao pensamento científico dogmático, Foucault elucida: "no lugar de perguntar a uma ciência em que medida a história se aproximou da verdade (ou aí lhe proibiu o acesso), não seria necessário dizer, no lugar, que a verdade consiste em um certo tipo de relação que o discurso, o saber mantém com ele mesmo, e se perguntar, se esta relação não é ou não tem ela mesma uma história?" (FOUCAULT, [1954-1975] 2001, p. 875, grifo nosso). Desse modo, a verdade faz parte da história do discurso na condição de um efeito interno a um discurso e uma prática. Assim, a operação dos efeitos de verdade tem como parâmetro um efeito no interior das materialidades discursivas que a acompanham. Essa noção é relevante na medida em que nos leva a perceber as articulações das complexas materialidades, objeto deste artigo, com os efeitos de verdade produzidos nesses mesmos discursos.
Por 'verdade', entende-se um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados. A 'verdade' está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que reproduzem. 'Regime' da verdade. (FOUCAULT, [1979] 2007, p.14).
Nessa conjuntura qualquer materialidade evidencia discurso(s) de sujeitos que se utilizam de técnicas de poder. O poder, inerente aos discursos, é multilateral e pulverizado em todos os setores sociais; se exerce por meio de diferentes técnicas e como relação de forças, também produz discursos. Dito de outro modo, o exercício de poder é determinante da constituição dos materiais significantes. O sujeito se utiliza de estratégias específicas e podemos pensar, verbi gratia, nas técnicas argumentativas, nas imagens mobilizadas pelo sujeito, nas legendas, nas personagens das propagandas, seus gestos, posturas, nos lugares em que esses discursos circulam e que explicitam relações de poder entre os sujeitos-enunciadores e outros sujeitos com ou sobre os quais dialogam, em especial no que concerne às relações inerentes ao processo ensino-aprendizagem de língua inglesa.
Tal prática requer, pois, que se atente para o modo de transporte e recepção do enunciado, pois tais fatores interferem na própria constituição do discurso. A este respeito, o suporte não deve ser tomado como acessório, ao contrário, é um fator essencial na análise dos discursos e não pode ser relegado a segundo plano. É preciso, portanto, considerar efetivamente o mídium, ou seja, as mediações pelas quais o discurso se materializa, pois ele imprime certo aspecto a seus conteúdos e comanda os usos que dele podemos fazer.
3 ANÁLISE DE RESCUE
Após as considerações efetuadas sobre a arquegenalogia em Michel Foucault, passaremos, neste tópico, à análise de Rescue9, peça publicitária audiovisual veiculada por um instituto de idiomas que atua exclusivamente na modalidade presencial e trabalha com o ensino de língua inglesa no Brasil desde 1961.
Trata-se de uma peça que explora mais recursos sonoros e visuais do que elementos verbais. Na verdade, no decurso da propaganda, não existem diálogos, há apenas duas perguntas realizadas pelo ator principal e não respondidas verbalmente. A propaganda inicia-se com uma personagem amarrada de cabeça para baixo, amordaçada, sendo que abaixo há algumas bombas de dinamite prestes a explodir. A cena se passa em um galpão abandonado. Praticamente no mesmo instante surge o ator hollywoodiano, e pelo som de suspense que se produz e a rápida alternância de imagens entre o capturado em agonia e o ator quebrando grades e descendo cordas, evidencia-se que aquele primeiro está em vias de ser resgatado.
Nesse ponto é relevante a observação das imagens no que tange à constituição das personagens. Na agilidade da propaganda, a construção dos sujeitos precisa ser rápida. Isso aponta para o fato de que em um ou poucos segundos o telespectador deve ser capaz de compreender a história contada, caso contrário a publicidade ficaria sem sentido. Isso se efetua por meio do corpo de cada ator, objeto constitutivo da cena, e que recebe destaque central na imagem em movimento. Nessa propaganda, em menos de um segundo emerge no vídeo a personagem de cabeça para baixo e o ator hollywoodiano. Nesse curto espaço, a trilha sonora que se inicia e que acompanha as imagens marca o ritmo do audiovisual.
Concebendo o discurso como nó de uma rede que se constrói na história, o corpo do ator hollywoodiano funciona como suporte de discurso e ecoa outras imagens, outros discursos, vinculados a uma teia que, conforme assinalamos, só faz sentido na história. Em outros termos, a aparição do ator americano nos remete ao corpo como espaço de memória. Por meio dos inúmeros filmes realizados, torna-se impossível não vincular a imagem da personagem da propaganda ora analisada com outras personagens representadas outrora e alhures e que receberam suporte no mesmo corpo.
É no acontecimento da publicidade que dada exterioridade ligada ao corpo do ator faz funcionar toda uma memória10. Isso é corroborado também por outros elementos da materialidade do discurso, tais como suas vestimentas. Sem descurar certamente do lugar do acontecimento e dos elementos sonoros, a blusa de couro, as luvas pretas, a calça jeans e as botas, agregadas ao semblante tenso, ao suor do rosto e ao caminhar ágil indicam ser ele o resgatador, aquele que vem solucionar o conflito; o "herói" enfim.
Na relação entre o brasileiro e o estrangeiro, falante de língua inglesa, interessa-nos analisar os lugares construídos pelo enunciador para esses sujeitos, pois mesmo sendo uma produção fictícia, sua veiculação concorre, de algum modo, na produção de subjetividades. Nesse caso, há posições-sujeito em jogo, cujas relações de poder não podem ser negligenciadas: o brasileiro encontra-se em lugar de aprisionamento e dependência à espera do herói, do "mais forte", ao passo que o norte-americano é colocado como aquele que vem para o salvar. Por que este enunciado e não outro em seu lugar? (FOUCAULT, [1969] 1995, p. 31).
A irrupção de um enunciado (ao invés de outro em seu lugar) é suficiente para apontar os lugares ocupados, sustentados e em jogo na prática discursiva. O discurso, como diz Foucault ([1969] 1995, p. 144, grifo nosso), "não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas uma história". Assim, os lugares ocupados, os quais implicam exercício de poderes, formas de saber e produção de verdades, só são possibilitados por elementos históricos e não se apresentam de modo diferente porque se encontram vestidos no próprio discurso. A aparente "obviedade" das relações, do modo em que é posta, assim se configura pelo fato de que o discurso já está revestido de "verdades", e não pode ser "visível" para o sujeito que enuncia.
Como afirma Veyne (2013, p. 82-83): "Os discursos são 'incontornáveis' no verdadeiro sentido desta palavra e não se pode, por graça especial, perceber a verdade verdadeira: 'não se pode pensar qualquer coisa a qualquer momento'. Nós nunca vemos a verdade nua, mas somente vestida em um discurso; nós não podemos saber o que seria o poder 'no estado selvagem', não vestido em um discurso.". Nessa direção, na sequência da propaganda, ao encontrar aquele a quem procura, o ator encarnando o papel de herói arranca a fita adesiva da boca do aprisionado e pergunta-lhe:
A - Do you speak English?
Hablas Español?
Diante de ambas as perguntas, aquele que está prestes a ser libertado não consegue se expressar. O semblante de dúvida que ganha lugar em seu rosto é a evidência de que ele não fala a LE11. Na ausência de resposta, o ator hollywoodiano, também por meio da expressão fisionômica, demonstra insatisfação e, voltando-se rapidamente contra aquele que deveria resgatar, num gesto ágil, mostra um isqueiro ao telespectador. Nesse instante joga-o próximo ao pavio da dinamite e voltando-se para a câmera, antes de sua saída, declara:
A - Nome da Instituição. É assim que se fala.
É com este enunciado que a propaganda se encerra. No entanto, os efeitos de sentido produzidos a partir da imagem, do som e dos papéis representados pelos atores não se esgotam.
Como resultado, é relevante perceber o paradoxo produzido a partir do slogan da escola: "Assim que se fala". Essa é uma expressão opaca, que permite ser significada no contexto da publicidade, pois a afirmação "assim" não aponta para nenhum diálogo ou modelo de fala na propaganda. É compreendido, portanto, pela remissão a outros elementos: ao norte-americano (que sabemos - fala inglês), à escola de língua (que está ali anunciando um curso de língua inglesa), além do que Assim que se fala indica "é assim que se fala bem" ou "é aqui que você fala com fluência e confiança, como um nativo". Se o falar bem como um nativo se conquista no vínculo com a escola, o próprio ator, ao enunciar em português, o faz com uma pronúncia bem distante do português padrão. Seu dizer é fortemente carregado pelo sotaque de sua língua materna. Em uma palavra: o enunciado é quase ininteligível. A este respeito irrompe uma indagação: Como atores tão talentosos, sem dúvida capazes de imitar tantas personagens - por que não um acento estrangeiro? -, deixam tão evidente o sotaque de sua língua materna?
Ora, a partir das regularidades apresentadas, parece-nos, a este respeito, que o sotaque do falante norte-americano enunciando em português aponta relações de poder da prática discursiva, algo que soa mais como forma de apego à língua inglesa e à cultura norte-americana que lhe é peculiar. Em sentido oposto, funciona, também no mesmo discurso, como desidentificação com a língua portuguesa/cultura brasileira. Como substância sonora e matéria produtora de sentidos, o sotaque dá à voz o vestígio de status e é indicativo da marca estrangeira do sujeito trazido à existência e exposto na superfície da voz. Dito de outro modo, um sotaque aperfeiçoado, bem falado, aportuguesado enfim, poderia não soar bem, pois talvez sugerisse, mesmo implicitamente, a importância de se aprender a língua falada do Brasil, efeito de sentido que o enunciador, sem dúvida, não desejaria causar. Isso é plausível se se considerar o contexto globalizado contemporâneo e a ascensão econômica pela qual o país tem passado neste início do século XXI. Portanto, essas transformações de ordem histórica (ainda) não recebem lugar no discurso; há, ao contrário, a manutenção de um resgate colonialista em que o estrangeiro mantém o papel dominador.
Como se verifica, esse papel é sustentado também no âmbito sonoro. Retomando a questão da substância da voz, o sotaque corrobora os processos de significação dos discursos e não escapa, de modo algum, das relações de poder estabelecidas na enunciação entre os sujeitos. O sotaque aportuguesado do brasileiro, ao enunciar em língua inglesa, é mal recebido - conforme expusemos na análise precedente -, e apresenta-se, no mínimo, como incompetência linguística. Em contrapartida, o sotaque americanizado na fala portuguesa, produzida pelo estrangeiro, é repetido em inúmeras propagandas e parece outorgar certo prestígio ao sujeito que o produz. Como na constituição do sujeito a linguagem é algo que se impõe do exterior aos indivíduos (FOUCAULT, [1972] 1999, p. 123), o forte sotaque do ator americano também constrói verdades que apontam para o fato de que a aprendizagem da língua portuguesa não é, de modo algum, relevante.
Outrossim, nas fronteiras da dimensão sonora pode habitar um conjunto de elementos exteriores, pertencentes ao domínio da história, tais como sons, imagens e palavras. Assim, as substâncias sonoras são capazes de se associar a outros sons bem como fazer ressurgir outros elementos que fazem sentido a partir de suas relações com a exterioridade (relações complexas entre imagens, objetos, corpos, lugares, conceitos, sentimentos etc.). É nessa perspectiva que quase toda a propaganda se segue acompanhada de diferentes formas sonoras. Aliás, não há quase nenhuma mobilização linguística.
Todavia, conforme afirmamos, os sons fazem sentido em virtude de sua presença na história (conforme a noção de enunciado em Foucault), como em uma teia de relações com outras substâncias, oriundas de trilhas sonoras de filmes, propagandas, estilos de música etc. Dito de outro modo, mesmo sendo "inéditos", os sons dessa propaganda significam de determinado modo a partir de sua função enunciativa e da vizinhança estabelecida com outros sons, os quais se vinculam à memória coletiva de sons.
A este respeito, nos dez segundos iniciais, os sons artificiais produzem tensão e mantêm o suspense acerca da história contada. Em seguida, além de dar abertura para o diálogo, a pausa desses mesmos sons também concorre para prender a atenção do enunciatário e funciona como uma espécie de elemento sintático do âmbito sonoro, funcionando como os dois pontos do texto verbal e ao mesmo tempo ampliando a expectativa do que se fará ouvir vocalmente. As formas sonoras artificiais também atuam no desfecho da história, até o ator enunciar o nome da escola. Para fechar a propaganda, uma voz masculina emerge na linearidade da fala, e em tom grave e sério, o qual concorre para a produção de legitimidade do discurso, enuncia:
C - Precisando de uma força em inglês e espanhol?
Fale logo com o Instituto 2.
Enfim, agregado às substâncias sonoras, há também outros aspectos que são partícipes da construção do sujeito aprendiz brasileiro de um modo geral. Aliás, o aprendiz, como um sujeito, não se constitui apenas de língua, pois outros aspectos de ordem social corroboram a produção de sujeitos. Assim, não se pode deixar de destacar que o desfecho do vídeo induz à banalização da vida. Isso se efetua pela mobilização dos principais objetos da imagem: a dinamite que, ao final, serve para explodir o indivíduo que não fala a língua inglesa e o isqueiro que contribui para este propósito. Para o enunciador, há uma visão ascendente na relação brasileiro-americano. Vários poderes são outorgados a esse sujeito, representação do falante de língua-inglesa: não está em jogo apenas o poder da língua, mas o poder de escolhas, o poder de tornar o outro insignificante, o poder de retirar-lhe a vida. Em suma, para o enunciador, aquele que não fala inglês ou não se vincula à escola, torna-se objeto descartável.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise efetuada neste artigo permitiu-nos evidenciar, em certa medida, a proficuidade do pensamento de Michel Foucault para o campo teórico da Análise do Discurso de vertente francesa.
Em relação a como o sujeito enunciador significa o aprendiz de língua inglesa, evidenciamos, na análise empreendida, como existe um apagamento de outras habilidades em proveito da produção oral. Outro aspecto, demonstrado nas análises, é que compete sempre ao brasileiro aprender a LE e utilizá-la, nunca ao estrangeiro. A análise demonstra que apesar de o sujeito enunciador salientar a importância da aprendizagem de uma LE em seu discurso, essa questão se volta apenas para o brasileiro e nunca para o estrangeiro. É notório o fato de o estrangeiro quase sempre enunciar em sua língua materna, ou quando a enunciação se dá em português, sua pronúncia é sempre carregada de forte sotaque. Por outro lado, se o aprendiz brasileiro de língua inglesa enuncia com sotaque, este é um fator que gera a deslegitimação, e consequente ridicularização.
Enfim, ao estrangeiro é outorgado o lugar de saber(es) e poder(es). Isso se dá de forma autoritária. Não está em jogo apenas o poder da língua, mas o poder de escolhas, o poder de tornar o outro insignificante, o poder de retirar-lhe a vida. Em suma, para o enunciador, aquele que não fala inglês ou não se vincula à escola, torna-se objeto descartável. Portanto, o discurso revela os lugares ideologicamente marcados: enquanto o brasileiro encontra-se em lugar de aprisionamento e dependência à espera do herói, do "mais forte", o estrangeiro (norte-americano) é colocado como aquele que vem para o salvar.
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- PÊCHEUX, M. [1969]. A Análise do Discurso: três épocas (1983). In: GADET, F.; HAK, T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Edunicamp, 1990. p. 311-318.
- ROUANET, S. P. et al. O Homem e o Discurso - A Arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.
- VEYNE, P. Foucault, o pensamento, a pessoa. Trad. de Luís Lima. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2009.
- VEYNE, P. . Sobre Foucault. In: MARQUES, W.; CONTI, M. A.; FERNANDES, C. A. Michel Foucault e o Discurso: aportes teóricos e metodológicos. Linguística in focus 9. Uberlândia: Edufu, 2013. p. 81-85.
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De acordo com Foucault ([1969] 1995, p. 115), a materialidade desempenha, no enunciado, um papel muito importante: não é simplesmente princípio de variação, modificação dos critérios de reconhecimento, ou determinação de subconjuntos linguísticos. Ela é constitutiva do próprio enunciado, sendo que este precisa ter uma substância, um suporte, um lugar e uma data. Quando esses requisitos se modificam, ele próprio muda de identidade.
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2
Referendamos a obra Discurso e sujeito em Michel Foucault, de Fernandes (2012), como leitura imprescindível para uma compreensão mais acurada sobre a articulação do pensamento foucaultiano com a Análise do Discurso.
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Sobre o aporte da perspectiva foucaultiana na AD, é preciso destacar as considerações efetuadas por Courtine ainda no início da década de 1980, sobre a entrada do filósofo na teoria. Eis o que faremos no tópico seguinte.
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Essa relação é relevante, pois Foucault pode ser criticado por não ser analista do discurso, sendo que determinados conceitos serão tomados por Courtine ([1981] 2009) em sua tese, já inscrita no campo da AD.
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Essas observações não servem de demérito ao filósofo (Pêcheux), pelo contrário, tencionam apresentar os importantes deslocamentos teóricos no interior de sua proposta.
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Ou mesmo em períodos temporais mais curtos. O enfoque de Foucault recai sobre os séculos XVII, XVIII e XIX e às vezes os compara aos procedimentos do século XX.
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Nos Ditos e Escritos I, Foucault (2001, p. 881) declara: "Se há uma abordagem, entretanto, que eu rejeito categoricamente é aquela (chamemos grosso modo, de fenomenológico) que dá uma prioridade absoluta ao sujeito da observação, atribui um papel constitutivo a um ato e põe seu ponto de vista como origem de toda historicidade - aquela abordagem, em suma, que conduz a uma consciência transcendental.".
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Nesse sentido, há a análise da tela As Meninas de Diego Velázquez em As palavras e as coisas ([1972] 1999), e das telas de René Magritte em Isto não é um cachimbo ([1973] 1989).
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Disponível no endereço eletrônico: <https://www.youtube.com/watch?v=et75KSSZNrs>.
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Referimo-nos à memória do/de um "herói".
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Nem a língua inglesa e nem a espanhola, a outra língua que a escola ensina.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Ago 2016
Histórico
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Recebido
16 Set 2015 -
Aceito
12 Abr 2016