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A FILOSOFIA DO DISCURSO DE DELEUZE E GUATTARI: POSSIBILIDADES PARA A ANÁLISE DO DISCURSO

DELEUZE AND GUATTARI’S PHILOSOPHY OF DISCOURSE: POSSIBILITIES FOR DISCOURSE ANALYSIS

LA FILOSOFÍA DEL DISCURSO DE DELEUZE E GUATTARI: POSIBILIDADES PARA EL ANÁLISIS DEL DISCURSO

Resumo

Este artigo explora a influência da perspectiva de Gilles Deleuze e Félix Guattari na análise do discurso. Esta exploração visa identificar dois conjuntos de conceitos: conceitos específicos da linguagem e conceitos derivados da filosofia e da psicanálise. Esta análise revela como essa perspectiva pode contribuir para a análise do discurso, por meio do envolvimento em exercícios conceituais de análise e da sua intersecção com áreas de estudo diversas. O artigo destaca a interconexão entre linguagem, subjetivação, desejo, modo de produção e pensamento, enfatizando a importância da micropolítica na análise. Além disso, sugere uma filosofia do discurso como uma caixa de ferramentas para examinar as cadeias discursivas, identificar os investimentos na subjetividade e distinguir vários modos de existência.

Palavras-chave:
Filosofia do discurso; Política da língua; Deleuze; Guattari; Análise do discurso

Abstract

This paper explores the influence of Gilles Deleuze and Félix Guattari’s perspective on discourse analysis. This exploration aims to identify two sets of concepts: specific language concepts and concepts derived from philosophy and psychoanalysis. This analysis reveals how their perspective can contribute to discourse analysis by engaging in conceptual exercises and intersecting with related areas of study. The paper highlights the interconnectedness between language, subjectification, desire, mode of production, and thought, emphasizing the significance of micropolitics in analysis. Furthermore, it suggests a philosophy of discourse as a toolbox to examine discourse chains, identify investments in subjectivity, and distinguish various modes of existence.

Keywords:
Discourse Analysis; Language Policy; Deleuze; Guattari; Discourse Philosophy

Resumen

Este artículo explota la influencia de la perspectiva de Gilles Deleuze y Félix Guattari en el análisis del discurso. Esta exploración visa identificar dos conjuntos de conceptos: conceptos específicos del lenguaje y conceptos derivados de la filosofía y del psicoanálisis. Este análisis revela como esa perspectiva puede contribuir para el análisis del discurso, por medio del involucramiento en ejercicios conceptuales del análisis y de su intersección con áreas de estudio diversas. El artículo destaca la interconexión entre lenguaje, subjetivación, deseo, modo de producción y pensamiento, enfatizando la importancia de la micropolítica en el análisis.Más allá de eso, sugiere una filosofía del discurso como caja de herramientas para examinar las cadenas discursivas, identificar las inversiones de la subjetividad y distinguir varios modos de existencia.

Palabras clave:
Filosofía del discurso; Política de lengua; Deleuze; Guattari; Análisis del discurso

1 ADVERTÊNCIA

Este texto exige, por parte de quem o lê, certa dose de paciência, uma vez que há ao menos duas dificuldades prevalecentes, as quais, provavelmente, não serão superadas nem mesmo após sua conclusão. A primeira é que a inserção da perspectiva deleuze-guattariana no debate teórico do campo dos estudos da linguagem é relativamente recente, quando não incipiente do ponto de vista da expectativa gerada em torno da entrada desses autores nas abordagens da área. E a segunda é que as próprias escrituras dos dois autores não são objetivas, no sentido de fornecer as certezas de que, equivocadamente, sempre se está à procura - os conceitos estão distribuídos por várias obras; não poucas vezes eles são modificados de uma passagem a outra e o problema da linguagem se apresenta sob diferentes abordagens, dedicando um olhar especial para o modo como essa filosofia do discurso tem atravessado a análise do discurso. Para tanto, sugere-se um passeio esquizo pela área, lançando pistas para uma possível abordagem com e não a partir de Deleuze e Guattari.

Portanto, o objetivo principal deste texto é promover um exercício de análise do discurso a partir da filosofia de Deleuze e Guattari. Secundariamente, ele também indica a necessidade de crítica às formas de captura dessa filosofia de modo aligeirado, que podem comprometer ambos os lados, tanto a contribuição teórica, quando o investimento prático em pesquisas diversas.

Em síntese, este texto é uma cartografia e um lance de sorte. Propõe, a quem passar por suas páginas, encontrar pistas do passeio que fizeram Gilles Deleuze e Félix Guattari pela linguagem. Na cartografia anunciada, o objetivo foi localizar os conceitos diretamente ligados ao campo da linguagem em intersecção com outros, por exemplo, da filosofia e da psicanálise. Quanto ao lance de sorte, este diz respeito à aposta na contribuição aos estudos da análise do discurso, procurando estabelecer uma possível abordagem com Deleuze e Guattari. Como resultado, este texto sustenta uma transversalidade entre língua, subjetivação, desejo, modo de produção e pensamento, evidenciando a relevância da micropolítica para a análise, ao passo que propõe uma filosofia do discurso como caixa de ferramentas para se investigar o funcionamento das cadeias de discursividade e, por meio delas, encontrar e distinguir os investimentos sobre a subjetividade.

2 DELEUZE E GUATTARI NOS ESTUDOS DA LINGUAGEM

Deleuze e Guattari não sistematizaram uma análise do discurso ou uma teoria literária, tampouco uma filosofia da linguagem. Mesmos seus postulados de linguística, a análise que fazem dos regimes de signos ou as leituras sobre Kafka, Caroll, Beckett, Lawrence, Proust e outros não alcançam um grau de formalização tal que se possa rotular uma ou outra como um “sistema” ou “teoria” sobre as linguagens. Tal afirmação, ao contrário de parecer demérito, é, na verdade, um indício de coerência com a prática de pensamento desenvolvida por eles - uma perspectiva rizomática em vez de arborescente ou sistemática1 1 Rizoma é um termo originário da botânica que classifica um grupo de plantas com hastes subterrâneas e, portanto, se distinguem das raízes e radículas. O rizoma “nele mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos” (Deleuze; Guattari, 2011b, p. 14). Essa característica foi transportada para a análise do conhecimento, do indivíduo e das inter-relações com a expectativa de enxergar nela a não-hierarquia, a não necessidade de um centro, a possibilidade de passagem dos fluxos, a comunicação e a multiplicidade contínuas. . Apesar de não definirem posições nos campos supracitados, sabemos que os dois operaram, por meio de suas obras, análises relevantes para as diferentes abordagens dos estudos da linguagem que se aposta aglutinar em uma confluência chamada política da língua.

A política está intimamente relacionada à língua e, por consequência, em relação crítica à linguística e à literatura. Segundo os filósofos franceses, “a unidade de uma língua é, antes de tudo, política” (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 49). A política, portanto, é recorrente nas três obras preponderantes para os estudos da linguagem, ou pelo menos no que mais contribui para os campos da linguística e da literatura, uma vez que as artes também compõem esse mesmo conjunto, mas não é parte de nosso investimento. Em Kafka por uma literatura menor, quando tratam da menoridade da literatura produzida pelo autor tcheco; no conjunto de Capitalismo e Esquizofrenia, com o primeiro tomo intitulado O anti-Édipo; e Mil Platôs, quando dedicam os mais evidentes momentos aos estudos linguísticos e sua relação com a produção desejante, pode-se apreender a noção de política da língua, que abrange, entre outros, os conceitos de função-linguagem, palavra de ordem, redundância e menoridade, voltados especificamente ao campo em questão, além dos já conhecidos: enunciado, visibilidade, formas de expressão e formas de conteúdo que são atravessados pelas abordagens de Foucault, Hjelmslev, Austin, Peirce e outros.

Em linhas gerais, abordar os estudos da linguagem a partir da chamada política da língua significa partir de relações de contiguidade; percorrer movimentos de aceleração e letargia; analisar atitudes de proliferação e desertificação do processo de enunciação. Ou seja, trata-se de partir da política e não de se chegar até ela por meio dos enunciados.

A política da língua pode ser entendida como o plano em que os agenciamentos ocupam, operam e produzem o socius - que é um conceito mais abrangente de campo, sociedade, espaço, em que não se separa o consciente do inconsciente - produzindo subjetividades, territorializações, estratificando modos de existência, mas também desterritorializações e linhas de fuga. Maior ou menor, a língua é produtora e produto, do real. Assim, “não existem dois tipos de língua, mas dois tratamentos possíveis de uma mesma língua” (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 52).

Nesse plano concorrem, portanto, uma língua de poder, “homogeneizada, centralizada, padronizada” (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 48) e uma língua “micropolítica, uma política do desejo que põe em causa todas as instâncias (Deleuze; Guattari, 2003, p. 79) individuais que se ligam ao socius. Não se trata de escolha. Nem mesmo da condenação de uma em defesa de outra. É, pois, a concorrência entre elas que possibilita o questionamento permanente à linguagem (e à existência).

É nessa direção que se propõe uma perspectiva deleuze-guattariana dos estudos da linguagem, ou, em outras palavras, fazer um passeio esquizo2 2 Esquizo se refere à esquizoanálise, método e, ao mesmo tempo, uma teoria crítica desenvolvida como alternativa à psicanálise clássica ou às correntes progressistas tidas como limitadoras por Deleuze e Guattari. Sua ocorrência em outros domínios precisa ser ponderada tendo em vista estes e outros aspectos do pensamento deleuze-guattariano. Em linhas gerais, não se trata de avalizar o esquizofrênico como estilo de vida . O que interessou na filosofia do desejo proposta pelos filósofos foi se apropriar do processo esquizoide, que tem, dentre outras características, a esquiva à edipianização, a resistência ao investimento de cura a partir de uma eliminação do próprio sujeito esquizo e, por fim, o deslizamento por entre fluxos descodificados, por onde o “real flui” (Deleuze; Guattari, 2011a, p. 55). . Em síntese, parte-se do entendimento de ser ela um modo operativo capaz de perceber nesse campo as emergências e contingências dos modos de existência, sejam eles estratificados ou furtivos, um contínuo exercício problematizador que se faz no acontecimento.

Pode-se dizer que Deleuze e Guattari lançam, em Mil Platôs, um engenhoso esquema teórico sobre a linguística, em parte antecipado no capítulo três d’O Anti-Édipo. Convocam nomes, avaliam concepções e fazem parecer que uma nova perspectiva está para surgir. Há, contudo, indícios de que esse exercício pudesse ser interpretado como uma farsa, dados os inúmeros arroubos, máximas e conclusões a que chegam sem muito suporte para tal. No entanto, são justamente estas as peças de uma traição que está em curso. Advertidamente, é preciso relembrar Deleuze em Crítica e clínica, de que trair é diferente de trapacear. A traição é parte do jogo, enquanto a trapaça é a sua interdição.

Mas, que traição está em curso? Propõe-se, a partir de uma sequência de palavras apresentadas em Mil Platôs que Deleuze e Guattari justificam empregar para além de qualquer objetivo científico, sedimentador, produtor de alguma rigidez teórica, promover uma experimentação conceitual. São cinco palavras intervaladas pelo sinal de igual, que como eles destacaram, funcionam como os platôs, estratos, atravessados pela multiplicidade, que convocam o pensamento a agir.

Rizomática = Esquizoanálise = Estrato Análise = Pragmática = Micropolítica. Estas palavras são conceitos, mas os conceitos são linhas, quer dizer, sistemas de números ligados a esta ou àquela dimensão das multiplicidades (estratos, cadeias moleculares, linhas de fuga ou de ruptura, círculos de convergência, etc.) (Deleuze; Guattari, 2011bGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 45).

Nos dois textos especialmente dedicados à linguística, Deleuze e Guattari compõem um plano no qual estão dispostos elementos concorrentes, até mesmo conflitantes do campo em questão. Eles propõem, então, a análise de quatro postulados:

A linguagem seria informativa e comunicativa;

Haveria uma máquina abstrata da língua, que não recorreria a qualquer fator “extrínseco”;

Haveria constantes ou universais da língua que permitiram defini-la como um sistema homogêneo; e,

Só se poderia estudar cientificamente a língua sob as condições de uma língua maior ou padrão (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 11-48).

Em síntese, esses postulados servem de guia ao percurso que os filósofos instituem para atravessar o campo da linguagem que se inicia com Kafka, por uma literatura menor, passa pelo O anti-Édipo e chega a Mil Platôs. Isso, em se tratando de produção conjunta, pois, como se verá adiante, há uma presença também nas obras individuais.

Diante disso, o primeiro postulado repercute naquilo que é central para Deleuze e Guattari: a língua se constitui por meio das palavras de ordem, por isso, “ordenar, interrogar, prometer, afirmar, não é informar um comando, uma dúvida, um compromisso, uma asserção, mas efetuar esses atos específicos imanentes, necessariamente implícitos”. O segundo postulado chama a atenção para o entendimento de que “a pragmática se torna o pressuposto de todas as outras dimensões, e se insinua por toda parte”, ainda que o campo dos estudos da linguagem tenha promovido certo distanciamento dela. No terceiro, Deleuze e Guattari recorrem a Labov para afirmar que “a fala não pode mais ser definida pela simples utilização individual e extrínseca de uma significação primeira, ou pela aplicação variável de uma sintaxe prévia: ao contrário, são o sentido e a sintaxe da língua que não se deixam definir independentemente dos atos de fala que ela pressupõe” (Deleuze; Guattari, 2011c, p.15). O último postulado propõe uma dupla captura da língua que tem o objetivo de compreender os movimentos de desterritorialização e reterritorialização, ou seja, há uma língua maior, homogênea e uma língua menor, que subsiste no interior dessa primeira. Não se trata, contudo, de duas línguas, mas de duas formas de uma mesma e única língua.

Com esses postulados, Deleuze e Guattari partem de máximas produzidas no interior do próprio campo da linguagem para corroborá-las ou refutá-las. Não por acaso, se registra a interação com linguistas ou filósofos da linguagem como Austin, Hjelmslev, Benveniste, Chomsky, Saussure e Labov, por exemplo. Mas corroborar ou refutar em função de quê? Certamente, não se está diante da proposição de uma teoria linguística, mas da captura do investimento do desejo neste campo. É em função da análise do capitalismo e das formas de subjetivação que a linguagem é um problema para eles.

3 SUBSÍDIOS PARA UMA FILOSOFIA DO DISCURSO

Intitula-se filosofia do discurso o conjunto conceitual que Deleuze e Guattari desenvolveram ao longo de suas obras e que, apesar de não haver uma sistematização que repercuta na definição de uma teoria, revela-se potente quando aliado aos mais diferentes campos dos estudos da linguagem. Ou seja, nomeia-se filosofia do discurso a caixa de ferramentas que reúne o emaranhado conceitual que Deleuze e Guattari oferece e a que se recorre de modo experimental, especialmente no campo da análise do discurso.

Como já dito, Deleuze e Guattari, juntos ou individualmente, não atuaram pela produção de uma teoria da análise do discurso; suas influências no campo ocorrem na condição do transfronteiriço, do liame, ou intervalo entre as grandes formações teóricas e metodológicas para as quais, em algum momento, procuram a saída. A contaminação por parte desse pensamento faz com que se caracterize uma condição de fuga, o que é, ao mesmo tempo, uma situação paradoxal, pois pode repercutir na produção da fuga criativa, propiciando a emergência de epistemologias, múltiplas abordagens e novos objetos, mas também pode resultar em uma fuga total, até mesmo da própria análise do discurso.

Em geral, o que os autores franceses produzem é uma proliferação de conceitos e abordagens, que não poucas vezes parecem funcionar apenas no interior da própria lógica inventiva. Contudo, a partir do momento em que se conecta a linguagem ao campo do desejo, problemática central do pensamento em questão, é possível se beneficiar de uma saída, uma linha de fuga composta a partir de vários atravessamentos, em que se sobressai a função-linguagem, “uma função coextensiva à linguagem”, que corresponde às palavras de ordem, aos regimes de signos e aos agenciamentos coletivos de enunciação, que “não se confundem com a linguagem. Mas efetuam a condição desta (sobrelinearidade da expressão); preenchem, em cada caso, esta condição, de forma que, sem eles, a linguagem permaneceria como pura virtualidade” (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 26).

A função-linguagem assim definida não é informativa nem comunicativa; não remete a uma informação significante nem a uma comunicação intersubjetiva. E de nada serviria abstrair uma significância fora da informação, ou uma subjetividade fora da comunicação. Pois é o processo de subjetivação e o movimento de significância que remetem aos regimes de signos ou agenciamentos coletivos. A função-linguagem é transmissão de palavras de ordem, e as palavras de ordem remetem aos agenciamentos, como estes remetem às transformações incorpóreas que constituem as variáveis da função (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 27).

Outro desafio posto por Deleuze e Guattari é a aposta na preponderância do discurso indireto livre, que segundo eles antecede em grau de importância as figuras de linguagem do tipo metáfora ou tropo e qualquer forma de representação. Nesse ponto, eles chegam a sugerir uma relevância da análise do discurso indireto, mesmo sem antes terem se referido a uma análise do discurso propriamente dita. Nomes como Bakhtin e Pasolini são alçados à condição de referência para a questão.

O discurso indireto livre ganha expressividade na leitura que fazem os autores franceses e se liga a uma questão fundamental, a da individuação, que repercute na constituição do chamado sujeito de enunciação. Ao contrário de se definir esse lugar individuado, que geralmente é atribuído a um indivíduo ou grupo específico,

compreende-se que só há individuação do enunciado, e da subjetivação da enunciação, quando o agenciamento coletivo impessoal o exige e o determina. Esse é precisamente o valor exemplar do discurso indireto, e sobretudo do discurso indireto “livre”: não há contornos distintivos nítidos, não há, antes de tudo, inserção de enunciados diferentemente individuados, nem encaixe de sujeitos de enunciação diversos, mas um agenciamento coletivo que irá determinar como sua consequência os processos relativos de subjetivação, as atribuições de individualidade e suas distribuições moventes no discurso (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 18, grifo dos autores).

Com isso, a categoria “sujeito” é descentrada da análise do discurso, que por sua vez se estremece diante do foco no discurso indireto. Esse não é, contudo, o único deslocamento produzido pelo passeio que Deleuze e Guattari fazem pelos estudos da linguagem. Como se verá a seguir, o enunciado não é o que ele pensa ser, restando ao analista a sensação de que se está diante de uma perseguição contínua, do tipo Capitão Ahab e a baleia Moby Dick, o que também não deixa de ser uma referência à raridade do enunciado tal qual definiu Foucault.

E o que favorece o discurso indireto livre em uma análise? Ao que parece, ele permite a dupla captura (double-bind) transformacional que o enunciado opera, e ao mesmo tempo revela os dois modos concomitantes do agenciamento em torno dele. Nessa direção, é possível capturar as transformações corpórea e incorpórea da proposição, assim como são perceptíveis as ações do agenciamento - coletivo de enunciação e maquínico de corpos que operam um enunciado, ou melhor um regime de signos com o qual ele compõe cadeias de discursividade.

Comer pão e beber vinho são misturas de corpos; comunicar com o Cristo é também uma mistura entre corpos propriamente espirituais, não menos “reais”; Mas a transformação do corpo do pão e do vinho em corpo e sangue do Cristo é a pura expressão de um enunciado, atribuído aos corpos (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 14).

As misturas de corpos são as transformações corpóreas, a interação entre eles se dá de diferentes maneiras e intensidades, enquanto que a comunicação com Cristo consiste em uma transformação incorpórea, pois é um atributo simultâneo, imediato e instantâneo, que ocorre quando o anúncio é proferido pelo sacerdote, de modo que o enunciado “corpo e sangue de Cristo” é, ao mesmo tempo, a mistura de corpos - de Jesus e dos fiéis em comunhão. Simultaneamente, o agenciamento religioso opera essa transformação, pois age sobre os corpos, os conteúdos e as expressões que emergem com esse evento, de modo que o sacerdote não é mais sacerdote, mas a personificação de Cristo; portanto, os fiéis não são mais os fiéis de uma religião histórica, mas os partícipes de um acontecimento que se atualiza constantemente.

Outro desafio para propor essa filosofia do discurso é perceber trocas e circulações com teorias, sistemas e pensamentos de diferentes interlocutores de Deleuze e Guattari. O primeiro, por exemplo, se dedicou ao modo operativo de Foucault, enquanto o segundo se envolveu com o trabalho psicanalítico marcado por fluxos e influxos com Lacan.

4 DO SUJEITO AO AGENCIAMENTO COLETIVO DE ENUNCIAÇÃO

Félix Guattari3 3 Esclarece-se que, apesar da ênfase dada ao pensamento de Deleuze, no campo da análise do discurso não se pode ignorar que parte considerável do ineditismo da perspectiva que se procura apresentar aqui é oriunda de Guattari. , no livro que escreveu com Suely Rolnik chamado Micropolítica, ao abordar a produção de subjetividade - aliás, é necessário fazer uma primeira consideração, de que não se trata de uma origem como ponto definido, mas da revelação de seus mecanismos de efetuação -, contrapõe a categoria sujeito aos agenciamentos coletivos de enunciação4 4 Esta questão é retomada em Mil Platôs, com Deleuze, quando afirmam que “não existe enunciação individual nem mesmo sujeito de enunciação. Entretanto, existem relativamente poucos linguistas que tenham analisado o caráter necessariamente social da enunciação” (Deleuze; Guattari, 2011c, p. 18). Outro aspecto pertinente é que o agenciamento tem dois eixos, sendo a enunciação um deles e, o outro, a maquinação dos corpos, de modo que não se pode tomá-los separadamente. , no que ele diz: “ao invés de sujeito, de sujeito de enunciação ou das instâncias psíquicas de Freud, prefiro falar em agenciamento coletivo de enunciação” (Guattari; Rolnik, 2011, p. 30). Com isso, ele promove um deslocamento visando o trabalho do analista, mas que de algum modo repercute em qualquer abordagem que leve em conta a questão ontológica do ser. Não mais o indivíduo, o Eu centrado na representação do mundo; a produção do sujeito e do próprio mundo em meio aos fluxos e aos estratos que o atravessam é o que interessa na análise desde então. Ao mesmo tempo que se desloca do problema individual, “o agenciamento coletivo não corresponde nem a uma entidade individuada, nem a uma entidade social predeterminada” (Guattari; Rolnik, 2011, p. 31), mas ao processo que atravessa tanto um quanto o outro.

Portanto,

[...] não se poderá mais falar do sujeito em geral e de uma enunciação perfeitamente individuada, mas de componentes parciais e heterogêneos de subjetividade e de Agenciamentos coletivos de enunciação que implicam multiplicidades humanas, mas também devires animais, vegetais, maquínicos, incorporais, infrapessoais (Guattari, 1992GUATTARI, F. Caosmose. Um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992., p. 162).

A partir disso, uma análise, segundo Guattari, se desloca das preocupações de representação para as de produção da subjetividade. Ou seja, aquilo que poderia parecer individual e íntimo, na perspectiva guattariana, se desdobra em uma heterogênese de fatores influentes nos processos de subjetivação. Assim, a análise é forçada a ampliar seu espectro de alcance, bem como admitir a multiplicidade de componentes que concorrem para esse mesmo processo.

Assim,

Toda a questão está em elucidar como os agenciamentos de enunciação reais podem colocar em conexão essas diferentes instâncias. É claro que não estou inventando nada: essa posição pode ainda não estar verdadeiramente teorizada, mas, com certeza, está plenamente em ação em todo o desenvolvimento da sociedade (Guattari; Rolnik, 2011GUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 31).

Para o campo da análise do discurso, cabe ressaltar que essa elucidação de que tratam Félix Guattari e Suely Rolnik (2011GUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.) exige um outro deslocamento que pode provocar certa suspeição, de modo que seu resultado possa ser considerado como um estágio sempre no meio de outros, uma forma de captura sempre incompleta da realidade.

Uma análise do discurso na perspectiva em curso exige, portanto, o reconhecimento de duas dimensões comunicantes, uma linguística e outra extra-linguística, e nisso não há novidade, se se comparar outras abordagens recorrentes. A comunicação entre elas, contudo, não é de causa e consequência, mas de intersecção, modulando as cadeias de discursividade que alimentam os diferentes agenciamentos que, por sua vez, constituem as subjetividades e produzem os modos de existência distribuídos pelo socius, sempre mobilizados pelo desejo. É neste último ponto, porventura, que é possível localizar certa diferenciação analítica.

Segundo Guattari (1992GUATTARI, F. Caosmose. Um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992., p. 39), “a função existencial dos agenciamentos de enunciação consiste na utilização de cadeias de discursividade para estabelecer um sistema de repetição, de insistência intensiva” que funciona segundo uma heterogênese“polarizada entre um Território existencial territorializado e Universos incorporais desterritorializados”.

Assim, caberia à análise do discurso interrogar os marcadores que se inscrevem no socius e que incidem nas relações individuais e coletivas, reconhecidos por sua repetibilidade, redundância, disparidade e tantos outros movimentos intensivos nos processos de subjetivação. A análise do discurso, portanto, se atentaria, nessa perspectiva, permanentemente, em uma “dupla enunciação, então, territorializada finita e incorporal infinita” (Guattari, 1992GUATTARI, F. Caosmose. Um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992., p. 68), na qual as subjetividades são continuamente agenciadas no entre as duas modulações do enunciado.

Portanto, o problema que parece dominar a cena é o da inscrição. A fórmula a que se chega a partir da perspectiva em curso é de que os processos de subjetivação passam pela inscrição linguística e extralinguística, e só podem ser considerados em uma investigação quando capturados na intersecção que provoca a possibilidade (visibilidade e dizibilidade) enunciativa. A inscrição é, ao mesmo tempo, o registro e a intenção, a participação e a assinatura, pois há continuamente, nesse ato, um duplo aspecto que torna material uma discursividade - o finito territorializado e o infinito incorporal5 5 Em Mil Platôs Deleuze e Guattari reconhecem a influência parcial da teoria do speech acts de Austin, o que poderia sugestionar uma relação do ilocutório com o incorporal guattariano. .

Além disso, apesar de se partir de uma problemática abrangente, que se julga até mesmo universalizante, uma análise do tipo em questão não deixa de perceber que “tudo se reduz sempre a essa questão dos focos de enunciação parcial, da heterogênese dos componentes e dos processos de re-singularização” (Guattari, 1992GUATTARI, F. Caosmose. Um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992., p. 162).

A título de exemplo,

O espaço e o corpo, quando considerados por disciplinas como a arquitetura e a medicina, são apreendidos a partir de categorias distintas e autônomas. É de um ponto de vista completamente diferente que desejo aqui relacioná-los: o de seu Agenciamento de enunciação (Guattari, 1992GUATTARI, F. Caosmose. Um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992., p. 153).

Na perspectiva do agenciamento de enunciação apresentada acima, não só o corpo e o espaço alcançam modalidades diferentes de compreensão, como toda a atenção dedicada aos problemas de subjetivação passa a funcionar segundo uma nova lógica, a lógica da criação.

É, portanto, a criação processual que produz o enunciado, ou melhor, é essa criação que insere uma proposição qualquer em um regime de signos que, por sua vez, estabelece uma cadeia de discursividade em que os corpos são agenciados pelas máquinas técnicas, sociais, desejantes e toda ordem de atravessamento a que se está suscetível.

Com isso, Guattari estabelece um corte (a-significante) que pretende ultrapassar de uma só vez o significante estruturalista, “sempre sinônimo de discursividade linear, [que passa] de um símbolo a outro” (Guattari, 1992, p. 62) e uma abordagem insignificante, diante de uma busca pelas entrelinhas, o por trás de, o não dito, segundo uma redução cada vez mais individualista, pontual e incomparável da realidade6 6 Deleuze e Guattari (2011c, p. 18) também fazem referência a isso quando dizem que “Bakhtin e Labov insistiram, de duas maneiras diferentes, no caráter social da enunciação. Dessa forma, eles se opõem não apenas ao subjetivismo, mas ao estruturalismo, dado que este remete o sistema da língua à compreensão de um indivíduo de direito, e os fatores sociais, aos indivíduos de fato enquanto falantes”. . Uma incursão à análise do discurso na perspectiva em curso exige um deslocamento em múltiplas direções. A primeira é justamente a compreensão do enunciado. Aqui, ele não está ligado a um sujeito, mas às condições em que ele é formulado e, portanto, comporta-se como enunciação coletiva, que por sua vez, está localizada em um ou mais regimes de signos, produzindo cadeias de discursividade que se ligam, mobilizadas pela ação das máquinas abstratas, dos diagramas, de toda uma pragmática.

Também Deleuze (2005DELEUZE, G. Foucault. Trad. Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005.) operava, por outra via, uma saída para a enunciação que extrapolasse o paradoxo que o encerrava como uma questão quase sempre individual do processo enunciativo. Será a partir da leitura que faz de Foucault que ele conclui que “um enunciado sempre representa uma emissão de singularidades, de pontos singulares que se distribuem num espaço correspondente” (p. 15), de modo que o enunciado não deve ser confundido com essa emissão, sendo perceptível segundo a curva que ele expressa, ou seja, a regularidade e o acúmulo que ele é capaz de produzir.

Além disso, não se pode perder de vista a dupla função do agenciamento: se em um segmento ele é agenciamento coletivo de enunciação é porque, em outro, ele é agenciamento maquínico de corpos, o que faz com que uma proposição qualquer seja o efeito desse duplo agenciamento simultâneo. Conteúdo e expressão não são causa e consequência, pelo contrário, se contrapõem em princípio, de modo que a relação entre eles se dá por atributos recíprocos, em que cada um continua preservando sua forma, como é perceptível no exemplo da Figura 1.

Figura 1
Relação entre as formas de conteúdo e formas de expressão

Neste exemplo, a dupla função do agenciamento é percebida na medida em que a produção da sentença é decorrente de um conjunto de estratos ou formações históricas que possibilitam a emergência de um enunciado que se localiza em meio ao que se faz com os corpos dos integrantes do MST e de quem não é integrante também. Aos primeiros, incide a exclusão e o preconceito; aos segundos, impregna-se o medo e a repulsa. Atribui-se a esses múltiplos corpos as qualidades incorpóreas oriundas da produção discursiva acerca deles, de modo que a enunciação venha de algum lugar difuso, do qual não se pode dizer que a autora supracitada não é a porta-voz, mas um ponto de ressonância de um agenciamento coletivo.

5 PRAGMÁTICA OU POLÍTICA DA LÍNGUA

Segundo Deleuze e Guattari (2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 23), “a pragmática é uma política da língua”, de modo que os estudos que se ocupam com ela “referem-se à variação das palavras de ordem e dos atributos não-corpóreos que se relacionam aos corpos sociais, efetuando atos imanentes.” Ao que parece, uma análise do discurso tal como sendo proposta passa, necessariamente, por esta constatação, ou seja, um enunciado ou um agenciamento coletivo de enunciação que se queira analisar deve ser colocado em movimento nesse entre que ocupa o espaço de intersecção do qual proliferam modos existenciais diversos, homogêneos ou singulares. Assim, “um tipo de enunciado só pode ser avaliado em função de suas implicações pragmáticas, isto é, de sua relação com pressupostos implícitos, com atos imanentes ou transformações incorpóreas que ele exprime, e que vão introduzir novos recortes entre os corpos” (Deleuze, Guattari, 2011c, p. 24).

Para os autores franceses, “a linguística não é nada fora da pragmática (semiótica ou política) que define a efetuação da condição da linguagem e o uso dos elementos da língua” (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 27, grifos dos autores). Portanto, a pragmática, que aqui se faz opção por seu sinônimo, a política da língua, tendo em vista não confundir com a subárea dos estudos da linguagem que se convencionou denominá-la, se apresenta como o plano sobre o qual os componentes de uma análise do discurso podem deslizar. Ademais, ao fazer essa opção, reforça-se a posição de que a língua, as linguagens, a linguística são produções políticas, sendo “necessário observar até que ponto a política trabalha a língua de dentro, fazendo variar não apenas o léxico, mas a estrutura e todos os elementos de frases, ao mesmo tempo em que as palavras de ordem mudam” (Deleuze; Guattari, 2011c, p. 27).

Não por acaso, Deleuze e Guattari enfatizam a importância de se compreender a posição da palavra na comunicação. Segundo eles, ao proferir uma palavra, ela funciona como uma ordem.

Chamamos palavras de ordem não uma categoria particular de enunciados explícitos (por exemplo, no imperativo), mas a relação de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. As palavras de ordem não remetem, então, somente aos comandos, mas a todos os atos que estão ligados aos enunciados por uma “obrigação social” (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 17-18).

Caberia à análise do discurso, com isso, dentre outras coisas, explicitar a posição dessas palavras. Posição sintática e política, acúmulos semânticos e resíduos semióticos, de forma que a palavra se ligue à ordem e ao regime a que ela corresponde. Para isso, “toda palavra de ordem deve ser deduzida da soma das particularidades de uma situação política determinada” (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 24). Logo, a “relação entre o enunciado e o ato é interior” e não se fecunda sob o desígnio da identidade. Em vez de uma relação de causa e efeito há uma relação de redundância “[...] A palavra de ordem é, em si mesma, redundância do ato e do enunciado” (Deleuze; Guattari, 2011c, p. 17).

A relação entre língua e política, nesses termos, não é dada a posteriori, ela emerge concomitantemente quando uma palavra de ordem é proferida - uma vez que “a palavra de ordem é, precisamente, a variável que faz da palavra como tal uma enunciação. A instantaneidade da palavra de ordem, sua imediatidade, lhe confere uma potência de variação em relação aos corpos aos quais se atribui a transformação” (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 22-23, grifos dos autores), a redundância não está na repetibilidade da palavra, mas no lastro que ela deixa ao percorrer o plano, por exemplo: quando uma mãe diz “filho, faça a tarefa”, ela está de fato ordenando que se faça a tarefa, mas há um continuum nessa proposição que revela a posição de mãe em relação ao filho, mas também em relação à sociedade, e a ela mesma em uma autoavaliação de sua posição. Dessa palavra de ordem, há o que se espera de uma mãe, há também uma projeção de autoridade, pois é preciso que se cumpra essa ordem, senão todas as outras correm o risco de se esvaziar. Há ainda uma economia afetiva que está em jogo, de alguém que precisa de aprovação e de outro que quer ser reconhecido apesar da ordem.

6 SOB RISCOS E RISOS: ESBOÇO DE UM PROCEDIMENTO DE ANÁLISE

Como se alertou desde o resumo deste texto, este é um exercício experimental de provocação de uma análise do discurso que se beneficia da filosofia de Deleuze e Guattari. E, aqui, é necessário reforçar o ponto de partida de tal propositura: não se tratará de partir de Deleuze e Guattari, mas de propor uma análise com Deleuze e Guattari, ou seja, não se alcançará ao cabo deste texto uma proposta de nova forma de análise, mas uma nova perspectiva sobre os modos operativos correntes da análise do discurso que se beneficiam das mais amplas tradições. O desafio está, justamente, nas interações entre as várias escolas analíticas e esse pensamento, o que será motivo de outro investimento ainda por vir. Será, portanto, sob os riscos de uma incursão incipiente e os risos que ela poderia render aos mais dedicados estudiosos da área que se lança mão de uma aventura do pensamento livre, mas comprometida, como em um devir orquídea-vespa.

A leitura de Deleuze e Guattari acerca do enunciado coincide com aquelas que afirmam que ele não tem uma condição a priori, ou seja, ele não é instantaneamente revelado, não tem uma marca que o identifica, precisando, para tanto, ser levado a tal condição, que aliás, consiste na primeira etapa da análise. A seguir, apresenta-se um panorama da distribuição das operações, dimensões e a correspondência com as tarefas esquizoanalíticas presentes n’O Anti-Édipo:

Figura 2
Diagrama contendo as operações e dimensões da análise do discurso segundo Deleuze e Guattari e sua correspondência com as tarefas esquizoanalíticas

Primeira operação - Determinação e correspondência: nesta primeira tarefa, cabe perguntar a que enunciado pertence uma proposição em análise, se é individual ou de grupo; em que regime de signos ele se subscreve; e que cadeia discursiva ele é capaz de produzir. Do ponto de vista do movimento, é nesta etapa que se verifica os graus de desterritorialização e as operações de reterritorialização que o enunciado efetua. A dimensão em que ela ocorre é a da linguagem e, portanto, é onde também se produz a materialidade discursiva para a análise. Corresponde, na esquizoanálise, à primeira tarefa, que consiste em compreender a força da representação, o grande teatro de sombras que acompanha a humanidade, em que vibram todas as crenças oriundas do mito, da tragédia, dos fetiches do consumo etc. Essa “faxina” deve tender a uma recondução da análise ao campo produtivo do desejo por meio do destacamento dos “fluxos desterritorializados do desejo nos elementos moleculares” (Deleuze; Guattari, 2011aGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 416) da produção.

Segunda operação - Composição e transformação: nesta etapa, o enunciado deve ser inquirido de modo a fazer revelar suas ligações externas. Assim, questões como: “quais as possibilidades de composição deste enunciado? Como ele se traduz ou se transforma em um outro regime? O que permanece irredutível ou o que flui nesse processo?” (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 112-113) orientam o trabalho analítico que localiza o enunciado na segunda dimensão, a dos regimes de signos, ou seja, as composições que o enunciado produz em meio às formações históricas, aos delírios universais, às experimentações singulares etc. que o tornam dizível e visível. Esta operação, por sua vez, corresponde à tarefa esquizoanalítica que “consiste em descobrir num sujeito a natureza, a formação ou o funcionamento de suas máquinas desejantes, independentemente de toda interpretação. “O que são as suas máquinas desejantes? O que você faz entrar nelas? O que você faz sair delas? Como isso funciona? Quais são os seus sexos não humanos?” (Deleuze; Guattari, 2011a, p. 426), que ao contrário de interpretar ou expressar o inconsciente “busca saber quais as máquinas desejantes de alguém, como elas funcionam, com que sínteses, com que entusiasmos, com que falhas constitutivas, com que fluxos, com que cadeias, com que devires” (Deleuze; Guattari, 2011a, p. 449) funciona.

Terceira operação - Criação: neste momento, acredita-se que o enunciado já sofreu o desgaste necessário para não produzir uma ação de ricochetear sobre si mesmo, levando-o a um paradoxo tal, no que ele passaria a corresponder a um sujeito ou ato-sujeito em vez de ser reinserido no plano coletivo. Para isso, a operação em curso consiste em “criar novos enunciados ainda desconhecidos para essa proposição; fazer desabar a sintaxe, a semântica e a lógica em função de signos sem significância; e revelar as máquinas abstratas, os diagramas, os agenciamentos maquínicos” (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 112). A dimensão em que ela ocorre é o da política da língua e a tarefa esquizoanalítica consiste em colocar à prova as reais máquinas desejantes, opondo-as ao jogo de repressão do desejo.

Do ponto de vista prático, o que mais próximo de um exemplo de procedimento de análise foi encontrado, ainda que a ele seja necessário acoplar operações distribuídas por outras obras de Deleuze e Guattari, é o que consta em Mil Platôs, em que seus autores propõem uma investigação acerca da proposição “eu te amo”. Assim, eles a tomam como “um conjunto verbal definido sintática, semântica e logicamente”, para a ela submeter um processo de análise distribuída nas já referidas operações, dimensões e tarefas.

Antes de prosseguir com o exemplo, propõe-se uma breve apresentação dos conceitos que o rondam, de modo a favorecer a compreensão da análise proposta:

Regime de signos: configuração de formas de expressão e de conteúdo que convergem a um modo de vida, produzindo o que se chama de sentido. Impregna-se da linguagem sem ser simplesmente representacional. Em um regime de signos há um centro significante e, em seu entorno, a proliferação de agenciamentos que atuam sobre a experiência, delineando modos de vida e a comunicação deles.

Cadeias de discursividade: são a materialização dos regimes de signos nos diferentes meios, a fim de fazer propagar no socius, as modelizações subjetivas que os indivíduos e grupos podem assumir.

Desterritorialização/reterritorialização: Em linhas gerais, desterritorializar é um movimento de deixar um território. Contudo, esse movimento não parte do princípio de que há um território universal, um a priori, ou seja, um ponto fixo no qual as subjetividades estariam estáveis. Ele é uma formação parcial, da qual só é possível ter um certo grau de formalização, porque a ele se associam terra, território e reterritorialização. Desse modo, se está sempre em meio e não no início ou fim de um processo. Nas palavras de Zourabichvili (2004ZOURABICHVILI, F. O vocabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Centro Interdisciplinar de Estudo em Novas Tecnologias e Informação, 2004., p. 24) “o território é, portanto, a dimensão subjetivante do agenciamento.”

Elemento não linguístico: toda forma extrínseca que, ao mesmo tempo, suporta e é ocupada pelo enunciado. Instituições, acontecimentos, práticas, processos, sejam eles econômicos, políticos, sociais.

Máquinas: Ao longo da trajetória de escrita de Deleuze e Guattari, os termos foram se decompondo, fundindo ou se metamorfoseando em outros. Assim ocorre com o conceito de máquina. Em síntese, destacam os autores franceses que não empregaram o termo como metáfora. A máquina para eles é real, ainda que seja um real a partir do uso que eles dão a ela. Ou seja, ela não quer dizer outra coisa, ela é o que é. O que fica da máquina é a ideia de sistema, conexão, encadeamento, funcionamento, acoplamento etc. “O conjunto homem-cavalo-arco forma uma máquina guerreira nômade nas condições da estepe. Os homens formam uma máquina de trabalho nas condições burocráticas dos grandes impérios. O soldado de infantaria grego compõe máquina com suas armas nas condições da falange” (Deleuze; Guattari, 2011a, p. 508-509).

Diagramas: Tal como em Foucault, trata-se da composição das relações de poder segundo as multiplicidades que lhe são próprias. Além disso, é composto também por forças não capturadas pelos aparelhos de controle, fazendo com que ela seja operada por modos variáveis em cada formação histórica e sob risco contínuo de desterritorialização.

Agenciamento: coletivo de enunciação e maquínico de corpos. Em um primeiro sentido, diz Zourabichvili (2004ZOURABICHVILI, F. O vocabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Centro Interdisciplinar de Estudo em Novas Tecnologias e Informação, 2004., p. 9), “[...] que se está em presença de um agenciamento todas as vezes em que pudermos identificar e descrever o acoplamento de um conjunto de relações materiais e de um regime de signos correspondente”. Os agenciamentos são da ordem molar quando se trata das instituições, das práticas, dos modelos de vida etc. e são da ordem molecular quando cada indivíduo tem de operar agenciamentos locais quando interage com os grandes agenciamentos. “Todavia, o interesse principal do conceito de agenciamento é enriquecer a concepção do desejo com uma problemática do enunciado” (Zourabichvili, 2004, p. 10).

Palavra de ordem: é tratada como a redundância do enunciado. É um marcador importante, pois ele se insinua claramente, pode ser tomado como o próprio enunciado devido a essa presença constante. É essa condição que estratifica ou formaliza o enunciado. Como disseram Deleuze e Guattari, a relação entre enunciado e ato é imanente e não transcendente, ou seja, a ligação entre dizer e fazer não é de causa e consequência, mas de concomitância, estabelecido por um jogo de poder permanente. Quando alguém diz “o telefone está tocando”, a primeira camada da enunciação é informativa, mas não é ela a fundamental, mas sim, “atenda o telefone, pois ele está tocando” e, ainda, “você deve atender o telefone porque não é minha função fazê-lo”. Por isso, essa mensagem é marcada ao mesmo tempo pela instantaneidade, imediatidade e transformação, em que a redundância não se dá pela repetibilidade, mas pela sobreposição.

Função-linguagem: ela inverte a relação entre o processo de subjetivação e os agenciamentos coletivos de enunciação, de modo que o primeiro se remete ao segundo e não o contrário, ou seja, não basta coletar os enunciados no interior de um grupo, padrão ou prática, pois eles são estratificações dentro deles. É a relação com o fora que permite avaliar os intercâmbios desse processo, quais enunciados não entram ou quais saem porque não se subscrevem à formalização em questão. Conforme Deleuze e Guattari, a função-linguagem é a transmissão das palavras de ordem, por isso interessa interrogar o espaço em que ela se dá.

A partir do exemplo “Eu te amo”, apresentado na figura 3 mais adiante, em uma perspectiva deleuze-guattariana, “começaríamos por perguntar a qual ‘enunciado’ essa proposição corresponde no grupo ou no indivíduo (pois uma mesma proposição pode remeter a enunciados completamente diferentes)”, ou seja, partindo de uma perspectiva (des- ou re-) territorial, em que a força é a mesma ainda que a direção seja oposta.

Essa pergunta significa: em que regime de signos a proposição é tomada, regime sem o qual os elementos sintáticos, semânticos e lógicos permaneceriam como condições universais perfeitamente vazias? Qual é o elemento não-linguístico, a variável de enunciação que lhe dá uma consistência? (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 112).

Dessas perguntas é possível produzir uma cadeia de discursividade, que utiliza como critério o avizinhamento, sem qualquer critério prévio aparente, seja ele histórico, de filiação ou de importância. Não há uma hierarquia entre eles. Para se compor o plano em que o enunciado possa deslizar e percorrer fazendo suas conexões e desligamentos é preciso dar espaço para o acontecimento, ou seja, o que é possível ligar ao “eu te amo” imediatamente.

À primeira questão, tem-se a exigência de partir tanto das formações históricas (Deleuze, 2017DELEUZE, G. Michel Foucault: as formações históricas. Trad. Claudio Medeiros; Mario A. Marino. São Paulo: n-1 edições; Ed. filosófica politeia, 2017.) quanto dos delírios universais para compreender o enunciado dentro e fora da representação. Esses elementos próprios do socius organizam, portanto, as condições de visibilidade e se fundem ao próprio enunciado, deixando como resíduo a sensação de que são formações cristalizadas e a priori. Pouco a pouco, ocorre a saída do polo da representação e passa-se ao polo da produção.

O elemento não-linguístico de que tratam é justamente a condição de efetuação do enunciado em função da materialidade discursiva em que ele se localiza. Um “eu te amo”, sintaticamente, é composto por um sujeito simples, um pronome pessoal oblíquo funcionando como objeto direto de um verbo transitivo direto. Contudo, o que a proposição não torna visível são as condições de enunciação e os movimentos que o enunciado realiza de desterritorialização e reterritorialização, ou seja, a atitude política de enfrentamento dos devaneios idealistas. Obviamente, esses elementos não estão subscritos na proposição em questão, mas em seu entorno, até mesmo porque nem mesmo a proposição em si é um transcendente, ela só pode ser pronunciada, escrita, impressa segundo a lógica do desejo, em um campo não-linguístico.

Figura 3
Esquema com a distribuição das operações e dimensões da análise

Nesses termos, um “eu te amo” do amor cortês ou um “eu te amo” das redes sociais digitais reverberam ecos que não são apenas carregados por eles, mas constituidores do próprio enunciado. Mas, cabe perguntar, qual o componente comunicante entre um e outro? No regime da comunicação capitalística, um “eu te amo” tem razões afetivas que se expressam como índices mercadológicos - o que terei de retorno dizendo “eu te amo”? será que posso apostar meu sentimento nisso? Já há uma reserva suficiente que garanta uma proposição verdadeira? Em um “eu te amo” do amor cortês, há reservas de um sentimento que é mensurado pela conquista da guerra. Há uma simbologia da conquista e o desempenho de papéis que cumpre o ritual determinado. Enfim, um enunciado é sempre atual, mas é sempre comunicante com outros enunciados, segundos os índices de redução e fluência perceptíveis entre eles.

A terceira operação, da criação, seria o momento em que o enunciado analisado seria atravessado por todas as possibilidades imanentes de produção, ligando-se a outras proposições de modo que não houvesse resquício de uma significação duradoura. Um “eu te amo” entre um indivíduo e um sistema operacional do tipo digital, um “eu te amo” masoquista, um “eu te amo” entre duas, três, quatro pessoas, que não estão no mesmo lugar. Essa operação, apesar de parecer puramente abstrata, é a mais concreta de todas, pois ela se dirige a uma unidade que não é a reunião de partes, mas a composição de múltiplos.

Uma análise do discurso na perspectiva em curso concorreria para uma abertura da própria área e uma interseccionalidade capaz de subverter as posições cristalizadas que cedo ou tarde parecem recair sobre o enunciado. Deleuze e Guattari estabelecem um jogo de inversões em que

[...] não são os enunciados que remetem às proposições, mas o inverso. Não são os regimes de signos que remetem à linguagem, e tampouco a linguagem constitui por si mesma uma máquina abstrata, estrutural ou gerativa. É o contrário. É a linguagem que remete aos regimes de signos, e os regimes de signos às máquinas abstratas, às funções diagramáticas e aos agenciamentos maquínicos, que ultrapassam qualquer semiologia, qualquer linguística e qualquer lógica (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 113).

De modo que as regras em curso de um jogo em que as peças não se movem sem antes todo o plano em que elas estão também se mova deixa de fazer sentido, pois só há interdições, no máximo representações de movimento e não o movimento propriamente dito. O jogo previsível deve dar lugar ao jogo de sorte. Nessa direção, no jogo da linguagem, não há por que se falar em uma “lógica proposicional universal, nem gramaticalidade em si, assim como não existe significante por si mesmo” (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 113).

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Logo, poder-se-ia perguntar a que resultado chegaria uma análise do discurso na perspectiva de Deleuze e Guattari. Apesar das diversas considerações que eles fazem ao campo da linguística, não há um modelo de análise propriamente dito, como já se anunciou desde o início deste texto. Contudo, não é difícil imaginar que, independentemente da materialidade analisada, ou a que regime ela se liga, é possível depreender que a filosofia do discurso de Deleuze e Guattari pode se conectar a diversos exercícios de análise dos enunciados, mas que nada terá valido a pena se não se chegar a localizar as verdadeiras máquinas desejantes de sua visibilidade, ou seja, nada repercutiria se não fosse colocado em função dos agenciamentos coletivos de enunciação e maquínicos de corpos que o torna dizível em uma ou outra formação.

Diante de uma análise do discurso segundo essa perspectiva, vale considerar a avaliação que Deleuze e Guattari fazem acerca de todo o processo de investigação apresentado por eles em Mil Platôs. Enfim,

a questão não era: como escapar à palavra de ordem? mas como escapar à sentença de morte que ela envolve, como desenvolver a potência de fuga, como impedir a fuga de se voltar para o imaginário, ou de cair em um buraco negro, como manter ou destacar a potencialidade revolucionária de uma palavra de ordem? (Deleuze; Guattari, 2011cGUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011., p. 61-62).

Nessa direção, uma análise do discurso que se vê atravessada por essa preocupação, assim como outras perspectivas, precisa estar atenta ao complexo jogo de fazer ver, de deixar dizer e de produzir o ser, ou melhor, o jogo do investimento subjetivo, com o aditivo de que ela avança sobre as possibilidades enunciativas e não apenas ao discurso dado. Com ela, nenhum enunciado é apenas produto do real, mas, simultaneamente, produtor dele, de modo que o desejo se mostra a principal categoria de análise, enquanto a micropolítica é o seu campo de ação.

“Talvez um dia o século seja deleuziano”, disse Michel Foucault em uma conferência depois publicada sob o título Theatrum philosoficum (Cf. Foucault, 1987FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud & Marx. Theatrum Philosoficum. Trad. Jorge Lima Barreto. São Paulo: Ed. P., 1987.). Talvez, o século XXI seja, não deleuziano, mas DelGua7 7 Expressão cunhada por Luiz Benedicto Lacerda Orlandi (1936-) para dar conta de uma mistura intelectual entre Gilles Deleuze e Félix Guattari. Além de original, a expressão indica a presença coletiva de uma filosofia feita a dois, mas que guarda as singularidades de cada um. A ordem de composição das iniciais Del e Gua não sugere resquício de uma hierarquia entre os pensadores, mas a correspondência com a ordem da autoria presente nas obras conjuntas. A exclusão do hífen (Deleuze-Guattari) por meio do uso da expressão de Orlandi será empregada no decorrer do texto a fim de se beneficiar do efeito que ela causa. O uso do referida noção também é registro em IVO, G.F.S. (2016) Entrelaçamentos de filosofia deleuzeana e literatura angloamericana. Dissertação de Mestrado em Filosofia. 221 f. Campinas, Brasil. . Se tal afirmação é prematura, o risco se deve a uma constatação contemporânea: sim, Deleuze e Guattari estão na moda. Conceitos inéditos, revisão dos clássicos a partir da problemática de seu tempo, rigor na análise sem abandonar a criatividade, trabalho transversal que perpassa as variadas dimensões da vida em diálogo com as suas múltiplas abordagens são algumas das características dessa filosofia.

A atualidade em ler Deleuze e Guattari é curiosa, pois opera em uma dupla captura: a atualidade temática e a experimentação de abordagens metodológicas aparentemente inventivas. Mas, dessa dupla captura também é possível perceber um vácuo marcado pela imprudência, muitas vezes resultado do próprio entusiasmo na incorporação dos autores aos variados investimentos textuais.

A proliferação de trabalhos acadêmicos e mesmo em artigos do tipo magazine que citam ou se apoiam nos pensadores em questão é fato conhecido, sobretudo nos últimos dez anos. Ao passo que é crescente a circulação de seus conceitos e abordagens, também surgem assimilações divergentes e mesmo contraditórias. Fato é que esta constatação não se restringe às filosofias de Deleuze e Guattari, pelo contrário, parece ser comum e até esperado. As divergências, inclusive, servem de análise para parte considerável de trabalhos e fazem com que o problema seja sempre revisitado.

Ler Deleuze e Guattari não é tarefa fácil, nem tarefa única. Percorrer o pensamento deles exige, sobremaneira, uma abertura a intersecções constantes entre a filosofia e as mais variadas áreas do conhecimento. Chama a atenção, no entanto, o fato de pairar sobre essa filosofia a sensação provocada por algumas leituras de que tudo é fluido, o que é muito diferente de admitir que tudo é fluxo, e mesmo isso já seria um exagero. A leveza que carrega as impressões de leitura deixadas por quem tem se aventurado a compreender a filosofia DelGua induz a esquecer que o princípio de toda ela é maquínico. A máquina é operacional, funcional e, por que não, programática. Algo parece indicar que isso é apenas o primeiro critério, ainda extensivo, mas que se processa a outro, este sim, povoado de intensividades. No entanto, o segundo não indica anular o primeiro.

Por fim, uma análise do discurso “contaminada” por esta perspectiva corre sempre um risco a mais: ela pode se tornar obsoleta caso não consiga perceber as nuances do enunciado, as insinuações à sua volta, os movimentos que o colocam no jogo. O perigo reside no desejo em capturar o enunciado em sua totalidade, tentação que ronda qualquer tipo de análise - e esta não seria diferente.

REFERÊNCIAS

  • DELEUZE, G. Foucault. Trad. Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005.
  • DELEUZE, G. Michel Foucault: as formações históricas. Trad. Claudio Medeiros; Mario A. Marino. São Paulo: n-1 edições; Ed. filosófica politeia, 2017.
  • DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: para uma literatura menor. Trad. Rafael Godinho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.
  • DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo. Trad. Luiz Benedicto Lacerda Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2011a.
  • DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. v. 1. Trad. Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto, Cecília Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 2011b.
  • DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. 2. v. 2. Trad. Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, Coleção Trans, 2011c.
  • FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud & Marx. Theatrum Philosoficum. Trad. Jorge Lima Barreto. São Paulo: Ed. P., 1987.
  • GUATTARI, F. Caosmose. Um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992.
  • GUATTARI, F.; ROLNIK S. Micropolítica. Cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
  • ZOURABICHVILI, F. O vocabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Centro Interdisciplinar de Estudo em Novas Tecnologias e Informação, 2004.
  • 1
    Rizoma é um termo originário da botânica que classifica um grupo de plantas com hastes subterrâneas e, portanto, se distinguem das raízes e radículas. O rizoma “nele mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos” (Deleuze; Guattari, 2011b, p. 14). Essa característica foi transportada para a análise do conhecimento, do indivíduo e das inter-relações com a expectativa de enxergar nela a não-hierarquia, a não necessidade de um centro, a possibilidade de passagem dos fluxos, a comunicação e a multiplicidade contínuas.
  • 2
    Esquizo se refere à esquizoanálise, método e, ao mesmo tempo, uma teoria crítica desenvolvida como alternativa à psicanálise clássica ou às correntes progressistas tidas como limitadoras por Deleuze e Guattari. Sua ocorrência em outros domínios precisa ser ponderada tendo em vista estes e outros aspectos do pensamento deleuze-guattariano. Em linhas gerais, não se trata de avalizar o esquizofrênico como estilo de vida . O que interessou na filosofia do desejo proposta pelos filósofos foi se apropriar do processo esquizoide, que tem, dentre outras características, a esquiva à edipianização, a resistência ao investimento de cura a partir de uma eliminação do próprio sujeito esquizo e, por fim, o deslizamento por entre fluxos descodificados, por onde o “real flui” (Deleuze; Guattari, 2011a, p. 55).
  • 3
    Esclarece-se que, apesar da ênfase dada ao pensamento de Deleuze, no campo da análise do discurso não se pode ignorar que parte considerável do ineditismo da perspectiva que se procura apresentar aqui é oriunda de Guattari.
  • 4
    Esta questão é retomada em Mil Platôs, com Deleuze, quando afirmam que “não existe enunciação individual nem mesmo sujeito de enunciação. Entretanto, existem relativamente poucos linguistas que tenham analisado o caráter necessariamente social da enunciação” (Deleuze; Guattari, 2011c, p. 18). Outro aspecto pertinente é que o agenciamento tem dois eixos, sendo a enunciação um deles e, o outro, a maquinação dos corpos, de modo que não se pode tomá-los separadamente.
  • 5
    Em Mil Platôs Deleuze e Guattari reconhecem a influência parcial da teoria do speech acts de Austin, o que poderia sugestionar uma relação do ilocutório com o incorporal guattariano.
  • 6
    Deleuze e Guattari (2011c, p. 18) também fazem referência a isso quando dizem que “Bakhtin e Labov insistiram, de duas maneiras diferentes, no caráter social da enunciação. Dessa forma, eles se opõem não apenas ao subjetivismo, mas ao estruturalismo, dado que este remete o sistema da língua à compreensão de um indivíduo de direito, e os fatores sociais, aos indivíduos de fato enquanto falantes”.
  • 7
    Expressão cunhada por Luiz Benedicto Lacerda Orlandi (1936-) para dar conta de uma mistura intelectual entre Gilles Deleuze e Félix Guattari. Além de original, a expressão indica a presença coletiva de uma filosofia feita a dois, mas que guarda as singularidades de cada um. A ordem de composição das iniciais Del e Gua não sugere resquício de uma hierarquia entre os pensadores, mas a correspondência com a ordem da autoria presente nas obras conjuntas. A exclusão do hífen (Deleuze-Guattari) por meio do uso da expressão de Orlandi será empregada no decorrer do texto a fim de se beneficiar do efeito que ela causa. O uso do referida noção também é registro em IVO, G.F.S. (2016) Entrelaçamentos de filosofia deleuzeana e literatura angloamericana. Dissertação de Mestrado em Filosofia. 221 f. Campinas, Brasil.

Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2024
  • Aceito
    25 Jun 2024
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