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“E AGORA, JOSÉ?”: MANCHETES, LIDES E A GRAMÁTICA DA (IN)VISIBILIZAÇÃO SOCIAL

“What about Now, José?: Headlines, leads, and the Grammar of Social (In)Vizibilization

“¿Y ahora, José?”: titulares, leads y la gramática de la (in)visibilidad social

Resumo

Este artigo apresenta uma análise crítica de gênero de manchetes e lides de seis notícias online sobre um acidente de trânsito envolvendo dois cidadãos brasileiros que epitomam duas classes socioeconômicas: a classe dominante (ATOR 1) e a classe trabalhadora (ATOR 2). Tendo como ferramentas o sistema de transitividade da gramática sistêmico-funcional (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) e a taxonomia de representação de eventos sociais (FAIRCLOUGH, 2003), o objetivo é verificar como a mídia recontextualiza o evento social e seus atores de modo a construir representações particulares sobre eles. A análise revela um conjunto de mecanismos gramaticais e discursivos que forjam a invisibilização do ATOR 2 como vítima fatal do acidente e, por outro lado, mitigam a responsabilidade do ATOR 1 como provocador do evento.

Palavras-chave:
Análise do Discurso; Manchete; Gramática

Abstract

This paper presents a Critical Genre Analysis (CGA) of headlines and leads in six online hard news about a traffic accident involving two Brazilian citizens that summarize two socioeconomic classes: the dominant class (ACTOR 1) and the working class (ACTOR 2). Using the transitivity system of the Systemic Functional Grammar (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) and the taxonomy for representation of social events (FAIRCLOUGH, 2003), we aim to analyze how the media recontextualize the social event and its actors in order to create particular representations of them. The analysis reveals a set of grammatical and discursive mechanisms that produce the invisibilization of ACTOR 2 as a fatal victim of the accident, while mitigating the ACTOR 1’s responsability for provoking the event.

Keywords:
Discourse Analysis; Headline; Grammar

Resumen

Este artículo presenta un análisis crítico de género de titulares y leads de seis noticias em línea sobre un accidente de tránsito involucrando dos ciudadanos brasileños que son epitomas de dos clases socioeconómicas: la clase dominante (ATOR 1) y la clase trabajadora (ATOR 2). Teniendo como herramientas el sistema de transitividad de la gramática sistémico-funcional (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) y la taxonomía de representación de eventos sociales (FAIRCLOUGH, 2003), el objetivo es verificar cómo la media recontextualiza el evento social y sus actores, de manera a construir representaciones particulares sobre ellos. El análisis revela un conjunto de mecanismos gramaticales y discursivos que forjan la invisibilidad del ACTOR 2 como víctima fatal del accidente, y de otra forma, mitigan la responsabilidad del ACTOR 1 cómo aquél que provoca el evento.

Palabras clave:
Análisis del Discurso; Titulares; Gramática

E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José? [...]

(Carlos Drummond de Andrade)

1 INTRODUÇÃO

A mídia, além de pautar o debate público, desempenha papel decisivo em naturalizar papéis sociais e modelos aceitáveis de sociedade. Graças à internet e às tecnologias móveis, a leitura de notícias está mais do que nunca profundamente entranhada em nossa vida diária (TEWKSBURY; HALS; BIBART, 2008TEWKSBURY, D.; HALS, M. L.; BIBART, A. The Efficacy of News Browsing: The Relationship of News Consumption Style to Social and Political Efficacy. Journalism & Mass Communication Quarterly, v. 85, n. 2, p. 257-272, 2008., p.1). Nesse contexto, potencializa-se o efeito dos gêneros jornalísticos em inculcar, sustentar ou modificar (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003., p. 9) as representações que as pessoas têm sobre si mesmas, sobre os outros e sobre o mundo.

Se em mídias impressas as pessoas, com frequência, não liam além da manchete (van DIJK, 1991, p. 50), nas mídias digitais esse comportamento toma novas dimensões, que requerem atenção de profissionais da linguagem. Os consumidores podem ler superficialmente um grande número de manchetes buscando atualização rápida e panorâmica sobre os eventos do dia ou para decidir quais notícias lerão (ECKERT et al., 2014ECKERT, U. K. H.; LEWANDOWSKY, S.; CHANG, E. P.; PILLAI, R. The effects of subtle misinformation in news headlines. Journal of Experimental Psychology: Applied, v. 20, n. 4, p. 323-335, 2014., p. 324). Quanto maior a disponibilidade de fontes de informação, mais decisivo o papel das manchetes em captar a atenção do leitor e despertar interesse pela notícia.

Neste artigo, apresento uma análise das manchetes e dos lides de seis notícias online sobre um acidente de trânsito envolvendo dois cidadãos brasileiros que epitomam duas classes socioeconômicas: a classe dominante e a classe trabalhadora. Que a mídia hegemônica reproduz o discurso da classe dominante, operando para manutenção das estruturas sociais, é praticamente consenso (van DIJK, 1993; FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.; FIGUEIREDO; BONINI, 2017FIGUEIREDO, D. C.; BONINI, A. Recontextualização e sedimentação do discurso e da prática social: como a mídia constrói uma representação negativa para o professor e para a escola pública. D.E.L.T.A, São Paulo, v. 33, n. 3, p. 759-786, 2017.). Segundo van Dijk (1993), o poder das elites e seus discursos não seriam tão influentes sem a função mediadora e em geral consolidante da mídia. O que a maioria das pessoas sabe sobre os diferentes atores sociais é baseado na figura refletida e construída pela mídia (van DIJK, 1993).

Que representações são essas e que mecanismos gramaticais são mobilizados na construção dessas representações constitui a proposta investigativa deste artigo, que constitui uma análise crítica dos gêneros manchete e lide online. A partir da análise de elementos linguísticos do texto em combinação com a análise dos elementos ideológicos do contexto, o analista crítico de gênero busca explicar e localizar os elementos linguísticos no tempo e no espaço, e desnaturalizar os valores que estão postos, bem como esclarecer o significado dos textos para a vida individual e grupal e o papel estruturador dos gêneros para a cultura (MOTTA-ROTH, 2008MOTTA-ROTH, D. Análise crítica de gêneros: contribuições para o ensino e a pesquisa de linguagem. D.E.L.T.A, v. 24, n. 2, p. 341-383, 2008., p. 370).

Tendo como ferramentas o sistema de transitividade da gramática sistêmico-funcional (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. An Introduction to Functional Grammar. London: Routledge, 2004.) e a taxonomia de representação de eventos e atores sociais (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.), o objetivo geral é analisar a recontextualização, pela mídia, de um evento social e seus atores, de modo a construir representações particulares sobre eles em manchetes e lides online.

Os objetivos específicos são: 1) identificar que elementos do evento social são excluídos/incluídos nas manchetes e lides, quais são representados em primeiro plano/segundo plano, quais são (des)responsabilizados pelas ações reportadas; 2) mapear os mecanismos lexicogramaticais mobilizados pelos redatores para obter tais efeitos de sentido; e 3) contribuir para o esclarecimento sobre o papel das manchetes e lides em influenciar nossa leitura de eventos cotidianos e, em última instância, para legitimar relações de poder na sociedade brasileira.

2 PADRÕES DE LEITURA ONLINE

Quanto à exposição a notícias online, Tewksbury, Hals e Bibart (2008TEWKSBURY, D.; HALS, M. L.; BIBART, A. The Efficacy of News Browsing: The Relationship of News Consumption Style to Social and Political Efficacy. Journalism & Mass Communication Quarterly, v. 85, n. 2, p. 257-272, 2008.) descrevem dois comportamentos: o seletor, em que a audiência busca um conteúdo específico conforme interesses e necessidades individuais; e o navegador, “caracterizado pelo uso das mídias jornalísticas para obter informação em uma gama de tópicos” (2008, p. 257). O comportamento predominante parece ser o navegador, em que as pessoas se informam sobre os eventos por meio de exposição incidental, ou seja, leem ao se deparar com uma notícia durante a realização de outra atividade online (YADAMSUREN; ERDELEZ, 2011YADAMSUREN, B.; ERDELEZ, S. Online news reading behavior: From habitual reading to stumbling upon news. Proceedings of the American Society for Information Science and Technology, v. 48, n. 1, 2011.; TEWKSBURY; WEAVER; MADDEX, 2001TEWKSBURY, D.; WEAVER, A. J.; MADDEX, B. D. Accidentally Informed: Incidental News Exposure on the World Wide Web. Journalism & Mass Communication Quarterly, v. 78, n. 3, p. 533-554, 2001.).

Esse comportamento de leitura é baseado no que está visível em tela. Os leitores passam mais tempo navegando e rastreando palavras-chave, fazendo leitura pontual, e menos em leitura aprofundada e concentrada (LIU, 2005, p.1). Se as pessoas tendem a não ler além da manchete (van DIJK, 1991, p. 50) em mídias impressas, nas digitais esse padrão se potencializa. Uma pesquisa recente (GABIELKOV et al., 2016GABIELKOV, M.; RAMACHANDRAN, A.; CHAINTREAU, A.; LEGOUT, A. Social Clicks: What and Who Gets Read on Twitter? In: 2016 INTERNATIONAL CONFERENCE ON MEASUREMENT AND MODELING OF COMPUTER SCIENCE (SIGMETRICS ’16). Proceedings… New York, USA: Association for Computing Machinery, 2016. p. 179-192.) apontou que, no contexto norte-americano, 59% dos compartilhamentos de notícias são feitos exclusivamente a partir da leitura da manchete. Isso indica que as pessoas se informam e se posicionam a partir daquilo que é textualizado nesse fragmento da notícia. Se a manchete for equivocada ou enfocar um aspecto periférico da notícia, leitores que não avançarem na leitura formarão concepções distorcidas sobre o assunto (ECKER et al., 2014, p. 332).

3 MANCHETE E LIDE: DEFINIÇÃO E FUNÇÕES

Na notícia, manchete e lide são reconhecidos como um resumo do que será relatado. A manchete, primeiro ponto de conexão com leitores em potencial, é “a parte mais conspícua de uma notícia” (van DIJK, 1991, p. 50) por ser concisa, escrita em fonte destacada e localizada em posição privilegiada. Em listas de navegação digital, ela funciona como elemento captador de atenção, que pesará na decisão sobre eventual leitura da notícia ou, em caso de comportamento “navegador”, o único acesso ao conteúdo da notícia (TEWKSBURY; HALS; BIBART, 2008TEWKSBURY, D.; HALS, M. L.; BIBART, A. The Efficacy of News Browsing: The Relationship of News Consumption Style to Social and Political Efficacy. Journalism & Mass Communication Quarterly, v. 85, n. 2, p. 257-272, 2008.). Já o lide é uma espécie de subtítulo, em letras menores, que traz informações adicionais a respeito da notícia. Juntos, manchete e lide encapsulam e antecipam o tópico da notícia (TEWKSBURY; HALS; BIBART, 2008, p. 46). Pela posição estratégica, esses dois componentes da notícia têm implicações cognitivas, sócio-semióticas e ideológicas para o evento de leitura.

Do ponto de vista cognitivo, manchete e lide desencadeiam nos leitores a construção de uma representação mental global sobre o texto que lerão. O reconhecimento de palavras na manchete ativa na memória do leitor o conhecimento relevante para que ele processe e compreenda a notícia (van DIJK, 1991). Do ponto de vista sócio-semiótico, a manchete funciona como macro-Tema (MARTIN; ROSE, 2007), estabelecendo um contexto para a leitura e antecipando não apenas o tópico, mas o enquadramento do tema. Na oração, o Tema é o “ponto de partida para a mensagem; é aquilo que localiza e orienta a oração no seu contexto” (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. An Introduction to Functional Grammar. London: Routledge, 2004., p. 64). No nível do texto, o macro-Tema é um sintagma ou oração que cria um ângulo interpretativo para o texto. Assim, a manchete, uma vez lida, funciona como informação dada, familiar, não contestada, na qual serão ancoradas as informações novas do texto.

Uma manchete pode fazer mais que (re)formular o sentido da notícia. Se equivocada, pode prejudicar a habilidade do leitor em recordar detalhes sobre o artigo (ECKER et al., 2014). Primeiro, porque os leitores delimitam o processamento da informação subsequente, no corpo da notícia, à informação disponibilizada na manchete (ECKER et al., 2014, p. 332). A informação nova será examinada à luz da informação de partida. Segundo, porque é difícil corrigir uma informação inicialmente distorcida na manchete, já que exige esforço interpretativo adicional pelo leitor.

Do ponto de vista ideológico, a “manchete resume a informação mais importante da notícia” (van DIJK, 1991, p. 50). Mas o que é considerado a informação mais importante e por quem? É mais importante de acordo com o jornalista (VAN DIJK, 1991, p. 51), com a política editorial da empresa de comunicação?

Por se tratar de um texto sucinto, a redação de uma manchete envolve escolhas categóricas (van DIJK, 1991; SALLORENZO, 2018SALLORENZO, L. Gramática da manipulação: como os jornais trabalham as manchetes em tempos de eleições (e em outros tempos também). Belo Horizonte: Quintal edições, 2018.). Ao elevar um item da narrativa ao status de manchete, o jornalista pode promover um aspecto da notícia, e, assim, desvalorizar outros aspectos igualmente ou ainda mais elegíveis. A noticiabilidade, ou seja, o valor de um tópico para compor a pauta jornalística, assim como a alocação de informações nos pontos de maior prestígio no espaço midiático, são indiretamente influenciadas pelo contexto social de relações de poder (van DIJK, 1991, p. 51).

4 MÍDIA, DISCURSO E REPRESENTAÇÃO

A relação entre os eventos sociais, o que podemos, em tese, observar (neste caso, o acidente de trânsito), e a estrutura social (neste caso, as relações de classe subjacentes ao evento) é mediada por práticas sociais (neste caso, as práticas de reportar eventos na imprensa brasileira) (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003., p. 23). Essas práticas são estruturadas na forma de gêneros do discurso, ou seja, são atividades sociais mediadas pela linguagem, tais como: boletim de ocorrência, entrevista de testemunhas, chamada ao serviço de emergência, notícia, e editorial.

Gêneros de governança, como a notícia e, por conseguinte, manchete e lide, exercem a função de regular outras práticas sociais (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003., p. 32), e são caracterizados pela apropriação de elementos de uma prática social - o acidente de trânsito e seus desdobramentos - em outra - o relato pela mídia, posicionando aquela no contexto desta última e, assim, transformando-a de modos particulares. A mídia funciona como um dos “aparatos atuais da governança social, ao recontextualizar e transformar outras práticas sociais, incluindo a vida diária, e “contribu[i] para moldar as formas como vivemos e os significados que atribuímos às nossas vidas” (FIGUEIREDO; BONINI, 2017FIGUEIREDO, D. C.; BONINI, A. Recontextualização e sedimentação do discurso e da prática social: como a mídia constrói uma representação negativa para o professor e para a escola pública. D.E.L.T.A, São Paulo, v. 33, n. 3, p. 759-786, 2017., p. 767). Ela reproduz relações de poder, não pelo emprego da repressão ou autoritarismo, mas como um lócus de criação de supostas ‘verdades’ sobre um grupo social que circulam no espaço público com forte poder de convencimento sobre os leitores incluindo o próprio grupo representado na notícia (FIGUEIREDO; BONINI, 2017).

O discurso engendrado na manchete não apenas faz referência a eventos, mas propõe perspectivas a serem assumidas em relação a eles por meio da mobilização de recursos linguístico-discursivos que dissimulam sua motivação social. Fairclough (2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.) propõe que observemos o potencial dos textos para construir perspectivas sobre os eventos “em termos de quais elementos dos eventos são incluídos na representação e quais são excluídos, e quais elementos incluídos recebem maior proeminência ou saliência” (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003., p. 136).

Quanto à representação de um evento (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003., p. 139), podemos investigar: 1) presença, ou seja, que elementos do evento estão presentes/ausentes, e se presentes, proeminentes/ocultos; 2) abstração, ou seja, em que medida eventos concretos são nomeados de modo abstrato ou generalizado; 3) arranjo: como está encadeado internamente ou em relação a outros eventos associados; e 4) adições, na forma de explicações/legitimações (razões, causas, finalidades), avaliações sobre o evento.

Quanto à representação de atores sociais (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003., p. 145-146), na categoria 1) presença, verificamos se a exclusão ocorre por 1.1) supressão, quando o ator não é mencionado no texto, ou por 1.2) dissimulação, quando o ator é mencionado em segundo plano. Além disso, podemos avaliar se a menção a um ator social é realizada 2) por meio de pronome ou substantivo; 3) em qual função gramatical, por exemplo, como Participante ou como Circunstância (ver Seção 5); 4) em qual papel, por exemplo, como agente ou como participante afetado; 5) de modo pessoal ou impessoal; 6) por meio de nome próprio ou termo que denota pertencimento a uma categoria (por exemplo, Ivo Pitanguy Filho x empresário); e 7) em caso de classificação, se específica ou genérica.

5 GRAMÁTICA E REPRESENTAÇÃO DA EXPERIÊNCIA

Os efeitos sociais dos textos são mediados por processos de produção de significados que, por sua vez, são realizados por formas linguísticas distribuídas nos textos (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003., p. 11-12). A gramática sistêmico-funcional é “um recurso valioso para a análise crítica do discurso” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 4) por oferecer uma abordagem e ferramentas analíticas para análise detalhada das formas da língua, mas intrinsecamente orientadas para o caráter social dos textos.

A língua nos permite encapsular a experiência em porções palatáveis, as orações, e, assim, interpretá-la, fazer sentido dela e negociar esses sentidos com os outros (MARTIN; MATTHIESSEN; PAINTER, 2010MARTIN, J.R.; MATTHIESSEN, C. M. I; PAINTER, C. Deploying Functional Grammar. Extensively revised, new edition of 1997 edition. Shanghai: Commercial Press, 2010., p. 101). Em gramática sistêmico-funcional, o sistema responsável pelo potencial da oração em representar a experiência é a Transitividade, que fornece resposta à pergunta: quem faz o quê, para quem e em que circunstâncias? Sob essa perspectiva, a oração é a configuração de um Processo1 1 Seguindo as convenções da Gramática Sistêmico Funcional, adota a inicial maiúscula para Processo, Participantes e Circunstância como categorias lexicogramaticais para diferenciá-las de termos do senso comum usados ao longo do texto. , dos Participantes envolvidos nesse Processo e das Circunstâncias nas quais esse Processo se desenrola.

As orações constroem a experiência a partir de domínios semânticos (MARTIN; MATTHIESSEN; PAINTER, 2010MARTIN, J.R.; MATTHIESSEN, C. M. I; PAINTER, C. Deploying Functional Grammar. Extensively revised, new edition of 1997 edition. Shanghai: Commercial Press, 2010., p. 101). Por exemplo, podemos representar um acidente de trânsito como transformação no mundo físico, a partir do domínio semântico do ‘fazer’ (Ivo atropelou José) ou como relação abstrata entre uma entidade e seu atributo, a partir do domínio semântico do ‘ser’ (O atropelamento foi grave). Cada domínio corresponde a um tipo de Processo, expresso por um conjunto de verbos.

Os principais tipos de Processos são: materiais (domínio do fazer, tipicamente ações concretas, de transformação no mundo físico); mentais (domínio do pensar, perceber, sentir, relativo ao mundo da consciência); e relacionais (domínio do ser e do estar, construindo a experiência como um estado de coisas). Os demais são processos verbais (domínio do dizer), existenciais (domínio do existir) e comportamentais (relativos à manifestação de fenômenos fisiológicos e psicológicos: por exemplo, lacrimejar e chorar).

Ainda que a escolha para representar a experiência em determinado domínio semântico não seja consciente, defendemos2 2 Pesquisadores que adotam a Linguística Sistêmico-Funcional, grupo no qual me incluo. que “modos de dizer são modos de significar” (CLORAN; BUTT; WILLIAMS, 1996CLORAN, C.; BUTT, D.; WILLIAMS, G. (Ed.). Ways of saying: ways of meaning - selected papers of Ruqaiya Hasan. London: Cassel, 1996.). Assim, a escolha de um tipo de processo é interpretada no conjunto das demais escolhas possíveis no contexto da respectiva prática social. No jornalismo, podemos considerar as convenções do gênero (por exemplo, coluna de opinião versus notícia), a linha editorial da empresa de comunicação e a influência de anunciantes. Além disso, a escolha de um tipo de processo implica designar um papel aos participantes envolvidos. Processos materiais requerem um Ator (Ivo), o participante que protagoniza o evento, e podem incluir uma Meta (José), o participante afetado pela ação. Processos relacionais atributivos pressupõem um portador - a entidade descrita ou classificada (o atropelamento) - e um atributo - uma designação de classe ou uma caraterística imputada ao portador (grave).

A Circunstância é o recurso gramatical que amplia o sentido da oração: por exemplo, Circunstância de localização no espaço (no Rio), de localização no tempo (na noite de quinta) e de modo (em estado grave). Por seu papel periférico, as Circunstâncias se aplicam a todos os tipos de Processos (MARTIN; MATTHIESSEN; PAINTER, 2010MARTIN, J.R.; MATTHIESSEN, C. M. I; PAINTER, C. Deploying Functional Grammar. Extensively revised, new edition of 1997 edition. Shanghai: Commercial Press, 2010., p. 102).

Esses três elementos expressam o potencial da oração para representar a experiência humana nos textos. Neste artigo, o sistema de Transitividade será adotado para dar acesso aos mecanismos que textualizam a ausência, presença e saliência dos eventos e atores sociais reportados nas manchetes e lides do corpus.

Durante a análise dos dados, observei um mecanismo de dissimulação fora do escopo da Transitividade. Recorri, então, ao sistema de constituência, que, grosso modo, se refere à hierarquia da oração.

Quanto à estrutura, a oração é constituída de grupos de palavras, tais como sintagma nominal (Participantes), sintagma adverbial ou sintagma preposicional (Circunstâncias). Esses constituintes da oração se encontram em um nível inferior a ela na hierarquia. Mas essa hierarquia permite mobilidade. Uma oração pode ser encaixada em outra, dentro da qual passa a ter status de sintagma (por exemplo, O atropelamento [que vi] foi grave). De modo semelhante, um sintagma pode ser encaixado em outro, adquirindo status de palavra. Por exemplo, no sintagma preposicional após acidente [com morte], o segmento entre colchetes funciona como qualificador de acidente e está subordinado à estrutura que acompanha. Os qualificadores não apenas se encontram em uma posição hierarquicamente inferior na estrutura da oração, mas também têm valor de informação adicional (ver Seção 7).

6 METODOLOGIA

O universo de análise são manchetes e lides no âmbito das hard news, ou seja, notícias sobre um acontecimento inesperado de interesse público e relevância inquestionáveis (SEIXAS, 2013SEIXAS, L. Teorias de jornalismo para gêneros jornalísticos. Galáxia, São Paulo, v. 13, n. 25, p. 165-179, 2013.). Há uma compreensão difundida de que hard news são “histórias ‘sérias’ [produzidas] com o objetivo de informar, com certeza e segurança, os detalhes de um acontecimento” (OLIVEIRA, 2016OLIVEIRA, J. A. É sério?! O Humor no Jornalismo. D.E.L.T.A, São Paulo, v. 32, n. 3, p. 735-747, 2016.).

Considerando a função de síntese da manchete (ECKER et al., 2014, p. 324), assumimos que, em hard news, a manchete antecipa questões centrais e objetivas sobre o evento reportado. Ao delimitar o universo a manchetes e lides de hard news, pretendo mostrar como a redação destes pode construir representações motivadas sobre os eventos mesmo em um gênero que prioriza o relato objetivo dos fatos.

O corpus deste artigo é um conjunto de seis manchetes e seis lides de notícias online sobre um acidente de trânsito. O critério para escolha do tópico foi sua natureza factual, que, em tese, não suscita polêmica. A coleta foi feita no dia seguinte ao evento, a partir de uma navegação preliminar, na qual identifiquei o evento como pauta midiática e cheguei aos dois atores sociais implicados. A partir disso, foi feita uma busca no Google com o nome dos personagens: ‘José Ferreira da Silva’ e ‘Ivo Pitanguy Filho’.

No intuito de simular o padrão de leitura navegador (LIU, 2005), foram coletadas apenas as manchetes e os lides das notícias visíveis na primeira página gerada na busca.3 3 Links de acesso às notícias: globotv.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/v/filho-do-cirurgiao-plastico-ivo-pitanguy-esta-internado-em-estado-grave-no-rio/4410606/ http://g1.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/videos/v/filho-do-cirurgiao-plastico-ivo-pitanguy-esta-internado-em-estado-grave-no-rio/4410606/ http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-08-21/filho-do-cirurgiao-plastico-ivo-pitanguy-se-envolve-em-acidente-na-gavea.html http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/08/homem-morre-apos-ser-atropelado-na-gavea-zona-sul-do-rio.html https://odia.ig.com.br/_conteudo/noticia/rio-de-janeiro/2015-08-21/filho-de-ivo-pitanguy-e-preso-apos-pedestre-ser-atropelado-e-morrer.html https://oglobo.globo.com/rio/justica-concede-liberdade-provisoria-para-atropelador-da-gavea-17302941 Com esse critério, obtive um conjunto de seis manchetes e seis lides. O fato de as notícias serem de uma mesma empresa de mídia é consequência aleatória do critério de coleta. Não houve direcionamento de minha parte.

O texto das manchetes e dos lides foi parcelado em orações, que receberam notação identificando: veículo de comunicação4 4 GN = Globo News; G1 = Globo G1; OG = Jornal O Globo; DIA = Jornal O Dia. , ordem de aparecimento na busca e classificação como manchete ou lide. Por exemplo, GN#1M foi produzida pela Globo News (GN), apareceu em primeiro lugar na busca (1) e constitui a manchete da notícia (M). Caso manchete ou lide fossem compostos de duas orações independentes, a notação receberia um algarismo adicional (1 ou 2). Caso as orações integrassem o mesmo período, a notação receberia a letra grega conforme a relação lógico-semântica na gramática sistêmico-funcional (ver HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. An Introduction to Functional Grammar. London: Routledge, 2004.).

As orações foram analisadas quanto a seu potencial de representar o evento a partir dos seis domínios semânticos (ver Seção 5), por meio do sistema de Transitividade, com identificação do tipo de Processo, Participante e Circunstâncias. Essa análise permitiu responder às perguntas: O que aconteceu? Com quem? Em que circunstâncias?

As respostas a essas perguntas permitiram identificar se o evento principal (o acidente) e os atores sociais nele implicados (José e Ivo) estavam incluídos ou suprimidos do texto e em que medida eram salientados ou dissimulados, conforme a taxonomia de representação dos eventos e atores sociais segundo Fairclough (2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.). Os dados foram interpretados à luz da Análise Crítica de Gênero (van DIJK, 1993; FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.; MOTTA-ROTH, 2008MOTTA-ROTH, D. Análise crítica de gêneros: contribuições para o ensino e a pesquisa de linguagem. D.E.L.T.A, v. 24, n. 2, p. 341-383, 2008.; FIGUEIREDO; BONINI, 2017FIGUEIREDO, D. C.; BONINI, A. Recontextualização e sedimentação do discurso e da prática social: como a mídia constrói uma representação negativa para o professor e para a escola pública. D.E.L.T.A, São Paulo, v. 33, n. 3, p. 759-786, 2017.).

7 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para dar conta do objetivo de investigar como a mídia recontextualiza o evento social - um acidente de trânsito - e seus atores principais - Ivo Pitanguy Filho e José Ferreira da Silva (doravante, ATOR 1 e ATOR 2, respectivamente) -, de modo a construir representações particulares sobre eles em manchetes e lides online, inicio pela análise da transitividade das orações que compõem as manchetes e lides do corpus.

Em tese, podemos afirmar que o ATOR 1 causou o acidente, cuja vítima fatal foi o ATOR 2. Mas de que modo as manchetes e lides recontextualizam esse evento? Em outras palavras, de acordo com as manchetes e lides das seis primeiras notícias disponíveis online, o que aconteceu, com quem e em que circunstâncias?

Nas notícias 1 e 2 (Quadro 1), manchete e lide são realizados por orações relacionais atributivas, que constroem a experiência como um estado de coisas a respeito do ATOR 1. Tanto manchetes (GN#1M e GN#2M) quanto lides (GN#1L e GN#2L) representam o ATOR 1 como portador do atributo ‘internado’. Em contraste com orações materiais, as relacionais representam a experiência como algo impassível, um fluxo contínuo que não envolve empreendimento de energia (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014, p. 211-212), tampouco agentividade. Ivo Pitanguy Filho é representado na condição de paciente em um hospital (internado).

A escolha de orações relacionais retira de pauta os eventos que desencadearam a internação. Ivo poderia ter contraído uma doença. Poderia ter sofrido um trauma causado por outra pessoa. Essas são especulações plausíveis pelo leitor a partir do que expressam manchetes e lides. Para termos uma dimensão do efeito dessas escolhas, podemos refletir sobre a principal pergunta que suscita uma notícia: O que aconteceu? Diante de um acidente com vítima fatal, as primeiras manchetes disponíveis oferecem como resposta O filho de Ivo Pitanguy está internado. Portanto, as notícias 1 e 2 não são sobre o atropelamento e a morte do ATOR 2, mas sobre o estado de saúde do ATOR 1.

Quadro 1
Análise da Transitividade: manchetes e lides das notícias 1 e 2

Nas quatro orações do Quadro 1, a condição do ATOR 1 é incrementada por uma circunstância de modo, mais especificamente a qualidade (em estado grave). Além disso, em três delas (GN#1M, GN#1L e GN#2L), foi empregada uma circunstância de localização espacial (no Rio). Ao representarem o ATOR 1 como portador da condição de internado, potencializada pela circunstância em estado grave, os redatores acionam a solidariedade do leitor, identificando-o como alguém que inspira cuidados e compaixão. Esse tratamento contrasta com aquele dispensado ao ATOR 2, por quem o leitor não tem a oportunidade de exercer empatia, uma vez que, em GN#1 e GN#2, José Ferreira da Silva é suprimido. Para o leitor dessas manchetes, o ATOR 2 não existe.

O evento que desencadeou a internação do ATOR 2 é mencionado tangencialmente por meio de uma Circunstância de causa/razão (após acidente) no lide da primeira notícia (GN#1L) e na manchete da segunda (GN#2M). É interessante notar que o acidente, evento de valor midiático intrínseco para figurar como manchete de uma hard news, tenha sido relegado a terceiro plano como Circunstância. Aqui é importante relembrar que a língua nos fornece opções de como transformar a experiência em significados e estes em palavras e fraseados, ou seja, em modos de dizer ou escrever. Há sempre uma escolha de como representar e, portanto, interpretar a realidade. Na oração, as Circunstâncias são os “elementos que estão menos diretamente envolvidos no Processo” (MARTIN; MATTHIESSEN; PAINTER, 2010MARTIN, J.R.; MATTHIESSEN, C. M. I; PAINTER, C. Deploying Functional Grammar. Extensively revised, new edition of 1997 edition. Shanghai: Commercial Press, 2010., p. 102). Assim, ao frasear o acidente na forma de uma categoria gramatical relativamente periférica na oração, os redatores lhe conferem baixa saliência.

Eventos podem ser excluídos do discurso, ter sua visibilidade salientada ou, neste caso, dissimulada (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003., p. 139). Nas orações do Quadro 1, observamos a alienação do evento acidente da função de Processo na oração, o que lhe garantiria visibilidade e força semântica, em troca de sua menção em terceiro plano, como elemento circunstancial. Além disso, a locução após acidente, pela preposição que remete a temporalidade, dá margem para que o acidente seja interpretado como um evento anterior à internação, associado a ela cronologicamente e não causalmente. Essa escolha, no conjunto das demais, atenua o sentido de causalidade e exime o redator de apontar responsabilidades.

Na manchete da notícia 2 (GN#2M), observamos pela primeira vez menção à fatalidade do acidente. Novamente, essa menção é tangencial por meio do emprego de três recursos.

Primeiro, esse traço semântico não é expresso via Processo, que é o componente de maior evidência na oração. Para uma noção dos efeitos de sentido dessa escolha, consideremos alternativas hipotéticas, tais como João foi atropelado; João morreu; Ivo atropelou e matou João. Em GN#2M, o ATOR 2 foi suprimido do discurso. Se não existe textualmente, ele não existe no discurso, e não existe no perspectiva de realidade para quem se informa a partir dessa manchete.

Segundo, a energia e a dinamicidade dos verbos ‘atropelar/matar/morrer’ são imobilizadas na forma do substantivo ‘morte’. Por meio da nominalização, os redatores transformam um evento concreto em uma entidade abstrata, genérica e com menor potencial de provocar identificação e compaixão por parte dos leitores. Houve uma morte, mas, para fins da manchete, foi irrelevante apontar quem morreu e quem matou.

Terceiro, a opção dos redatores foi por inserir esse traço semântico em um local de baixa hierarquia na estrutura da oração, ou seja, dissimulado em uma locução encaixada em outra locução - após acidente [com morte]. Essa estrutura, por sua vez, realiza a função de Circunstância, elemento periférico na configuração tripartite da oração. As estruturas encaixadas têm status inferior ao do núcleo a que aderem (ver Seção 5). Elas funcionam como informação acessória. O termo com morte fornece uma informação adicional sobre o substantivo acidente, que, por sua vez, figura como uma circunstância relativa ao estado de Ivo Pitanguy Filho. É a gramática empregada como recurso de dissimulação do aspecto mais dramático sobre evento social a ser reportado.

Na terceira notícia (DIA#3), observamos uma mudança. O ATOR 1 figura em uma oração material expressa pelo verbo se envolve (Quadro 2). A locução em acidente funciona como escopo, ou seja, é o Participante que “constrói o domínio em que o processo se desenrola” (FUZER; CABRAL, 2014FUZER, C.; CABRAL, S. R. S. Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras, 2014., p. 50). O verbo envolver-se denota imprecisão sobre a natureza da participação do ator. Na oração em análise, a escolha desse verbo permite que os redatores associem o ATOR 1 nominalmente ao acidente, mas deixem em suspensão a natureza do envolvimento, se como vítima ou agente causador.

Fairclough (2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003., p. 149) pondera sobre as motivações para o tratamento dispensado a determinados atores sociais no discurso. Essas escolhas podem ser motivadas pela redundância ou irrelevância da informação, ou pela responsabilidade da imprensa em não atribuir culpa, antes do devido julgamento pelos órgãos competentes, particularmente no caso de hard news. Mas essas escolhas podem ser política ou socialmente motivadas.

Quadro 2
Análise da Transitividade: manchete e lide da notícia 3

No caso do evento reportado, não havia dúvida sobre o agente causador do acidente, tampouco sobre a principal vítima. Ainda assim, os redatores optaram por não atribuir responsabilidade. Há margem para discussão, mas o zelo para com o ATOR 1 e a supressão do ATOR 2 como participante afetado são sintomáticos de, ao menos, dois padrões. Primeiro, uma visão de que o ATOR 1 é um membro de uma elite social e econômica e isso lhe confere valor midiático intrínseco, a ponto de manchete e lide serem sobre ele e seu estado de saúde. Segundo, a tendência da mídia em superestimar a presunção de inocência para infratores de classes dominantes e subestimar esse mesmo direito para membros de categorias socioeconômicas menos privilegiadas, conforme casos clássicos de nomear como ‘traficante’ o jovem da periferia que comercializa entorpecentes e nomear como ‘jovem’ ou ‘estudante’ o de classe média que comete igual delito.

No lide da terceira notícia (DIA#3L1), observamos a primeira menção ao ATOR 2. Mas, diferentemente do ATOR 1, que é identificado por seu nome, sobrenome e laços de parentesco, José Ferreira da Silva é identificado impessoalmente como ‘pedestre’. São dois seres humanos envolvidos em um evento. Um deles é nomeado; o outro não. Segundo Fairclough (2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003., p. 150), o extremo oposto da impessoalização é a nomeação - representar indivíduos por seu nome. Em tratamento equidistante, ambos os atores seriam identificados pelo mesmo recurso, seja por respectivos nomes e sobrenomes, seja por seu papel relativo no trânsito (condutor e pedestre). A representação impessoal do ATOR 2 tem por efeito desumanizá-lo, tirar o foco dele como pessoa, reduzindo o potencial dos leitores em se identificarem com ele.

No que se refere ao tipo de Processo, em DIA#3L1, observamos a ocorrência de um Processo material (morreu) cujo Ator é Pedestre. Quebrando o padrão das manchetes e lides anteriores, que tratavam de um estado de coisas, DIA#3L1 relata um evento. Ainda assim, é evento do tipo acontecimento (intransitivo) e não ação (transitivo). Verbos intransitivos deixam em aberto a questão de “quem ou o que provocou o acontecimento” (MARTIN; MATTHIESSEN; PAINTER, 2010MARTIN, J.R.; MATTHIESSEN, C. M. I; PAINTER, C. Deploying Functional Grammar. Extensively revised, new edition of 1997 edition. Shanghai: Commercial Press, 2010., p. 111). Enquanto ações implicam a presença de um agente empreendendo energia e impactando outro ser ou a si próprio, o acontecimento sugere espontaneidade. É como se o pedestre fosse o agente de sua própria morte ou como se a morte tivesse causas naturais.

Obviamente a oração do lide será interpretada no contexto de sua manchete, pela qual o leitor toma conhecimento de que o filho de Ivo Pitanguy se envolveu em um acidente e, posteriormente, na oração seguinte do lide, que um pedestre morreu. Mas para que o ATOR 1 seja identificado como provocador da morte, o leitor precisa fazer duas inferências: 1) ele era o condutor do carro no acidente; e 2) ele atropelou e matou o pedestre. Informações que demandam inferência envolvem um nível mais sofisticado de leitura, nem sempre acessível para leitores inexperientes e no padrão de leitura do tipo “navegador” (YADAMSUREN; ERDELEZ, 2011YADAMSUREN, B.; ERDELEZ, S. Online news reading behavior: From habitual reading to stumbling upon news. Proceedings of the American Society for Information Science and Technology, v. 48, n. 1, 2011.).

Essas inferências são, no entanto, confirmadas na oração que completa o período do lide (DIA#3L). Nela, tomamos conhecimento de que o pedestre morreu após ser atingido na calçada por carro dirigido por Ivo N. de Campos Pitanguy, 59 anos. Ainda assim, essa estrutura continua apontando uma tendência em mitigar a responsabilização direta ao ATOR 1. Primeiro, por meio do uso da voz passiva, os redatores distanciam o ator da ação que ele provocou, postergando sua menção. A ênfase recai sobre o evento ‘morreu’ em detrimento do agente causador. Segundo, no grupo de palavras que identifica o agente, Ivo Pitanguy não é gramaticalizado como Participante da oração. Ele não figura como núcleo do grupo nominal, mas em uma oração encaixada que fornece informação acessória ao núcleo que constitui o agente da passiva. Em outras palavras, de acordo com o lide, quem atingiu o pedestre, e, portanto, provocou sua morte, não foi a ação de Ivo Pitanguy Filho, mas do carro.

Novamente podemos discutir as motivações, conscientes ou não, que levam a imprensa a mitigar e postergar a responsabilização ao ATOR 1 pelo acidente. De todo modo, são evidentes os recursos lexicogramaticais que promovem a supressão do ATOR 2 como vítima fatal do acidente, e a supressão ou distanciamento do ATOR 1 de funções gramaticais que o denotariam como imputável pelo homicídio culposo de José Ferreira da Silva.

É preciso considerar que um mesmo recurso lexicogramatical pode ter motivações e efeitos distintos. O que garante maior robustez à interpretação sobre o emprego de determinado recurso é considerar o efeito interdependente e cumulativo dos recursos mobilizados no texto em relação ao contexto. Na notícia em questão, Ivo Pitanguy Filho é um dos atores sociais relevantes e, inequivocamente, o provocador do evento, o que justificaria sua representação como ator em processos materiais na voz ativa. Ao deslocá-lo para estruturas encaixadas, de menor impacto na hierarquia gramatical e ao final da oração, os redatores postergam e dissimulam a responsabilidade desse ATOR SOCIAL. O conjunto das escolhas pela supressão e dissimulação do agente que efetivamente causou a morte do ATOR 2 “são sintomáticas de uma visão de redundância como algo que acontece com as pessoas ao invés de algo que é feito com as pessoas - uma calamidade ao invés de um crime, para colocar em termos relativamente dramáticos” (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003., p. 149).

Na quarta notícia, a manchete é realizada por um complexo oracional composto da oração dominante (G1#4Mα) Homem morre e da oração dependente (G1#4M1β) após ser atropelado na zona sul do Rio (Quadro 3). Semelhante ao lide da notícia 3 (Quadro 2), tanto em estrutura quanto em domínio semântico, essa manchete inclui o ATOR 2, mas o identifica de modo impessoal, por meio de sua designação de gênero, menos específica ainda do que pedestre. Na oração que completa o período (G1#4M2), toma-se conhecimento de que a morte ocorreu por atropelamento, o que envolve a relação entre um condutor e um pedestre. Diferentemente do lide 3 (DIA#3Lβ, no Quadro 2), em que o ATOR 1 é mencionado, ainda que de forma indireta, como agente da passiva, a manchete 4 suprime o ATOR 1, representando-o como um “ninguém”. Ainda que permita ao leitor inferir a existência de um agente causador, a manchete não o identifica.

Quadro 3
Análise da Transitividade: manchete e lide da notícia 4

O lide da notícia 4 é constituído por duas orações independentes: O operário José da Silva foi atingido na Gávea na noite de quinta (20) e O motorista, Ivo Nascimento de Campos Pitanguy, também ficou ferido. Pela primeira vez no corpus, observamos a inclusão de ambos os ATORES SOCIAIS implicados no evento e sua identificação de modo pessoal por meio de seus respectivos nomes e sobrenomes. O ATOR 2 é adicionalmente classificado por sua categoria profissional (operário) e o ATOR 1 por sua condição nas relações de trânsito (motorista). Em G1#4L1, temos uma oração material, uma ação física expressa pelo verbo ‘atingir’, que por estar conjugado na voz passiva, coloca em evidência o fato, identificando o Participante afetado e suprimindo o agente responsável. A seguir, em G1#4L2, observamos uma oração relacional que representa um estado de coisas no qual o ATOR 2 é o portador do Atributo ferido.

Em G1#4L1, o verbo atingir tem baixo índice de avaliatividade, ou seja, não tem carga positiva ou negativa, tampouco a dramaticidade de outras opções plausíveis, tais como atropelar ou matar. Atingir não informa sobre a gravidade do impacto e, por consequência, tem potencial relativo de acionar a empatia do público leitor para com o ATOR 2.

Em G1#4L2, o ATOR 1 é portador de uma condição pela qual ele não é apresentado como responsável. No conjunto do lide, ele é, ou suprimido, ou mitigado como agente provocador, seja de sua própria condição de ferido, seja do atropelamento do ATOR 2. Por fim, a escolha do atributo também ferido para descrever o estado do ATOR 1 sugere que ambos os ATORES foram impactados de modo equivalente e podem angariar o mesmo nível de identificação e empatia por parte da audiência.

O conjunto dessas escolhas indica investimento por parte dos veículos de imprensa para administrar o potencial de identificação e de empatia a ser angariada com relação aos dois ATORES SOCIAIS. Uma vez que essa manipulação de empatias favorece o representante da classe dominante, estamos diante de mais uma evidência de que o grupo midiático em questão contribui para a manutenção de uma estrutura social elitista. Nessa estrutura, é possível desumanizar o operário e representar sua morte como menos impactante socialmente, enquanto se amenizam as responsabilidades de um membro da classe dominante, apresentando-o como notório5 5 Ainda que à sombra de seu pai, o cirurgião plástico Ivo Pitanguy. e mais próximo do leitor.

As notícias 5 e 6 tratam de desdobramentos judiciais do evento principal (Quadro 4). A quinta manchete é expressa por oração material na voz passiva, que coloca em evidência a prisão do ATOR 1. Se, por um lado, ele é representado como Meta de um processo material que, em tese, desabona sua reputação (preso), por outro lado continuamos observando mecanismos de dissimulação de responsabilidade.

Quadro 4
Análise da Transitividade: manchetes e lides das notícias 5 e 6

Semelhante a GN#1L e GN#2M, o motivo da prisão é mencionado de forma tangencial como parte de uma Circunstância, elemento periférico na oração. Além disso, como já discutido anteriormente, a preposição após sinaliza uma relação lógico-semântica ambígua: o atropelamento do pedestre é evento cronologicamente anterior à prisão ou é evento motivador? Ainda, semelhante a DIA#3L e G1#4M (Quadro 2), a oração encaixada pedestre ser atropelado na Gávea segue a estratégia de humanização desequilibrada entre os atores implicados: enquanto o ATOR 1 é representado de modo pessoal, por seu nome, o ATOR 2 é um pedestre, cujo nome é irrelevante para ocupar o espaço privilegiado da manchete.

As ambiguidades da manchete 5 são esclarecidas no lide que a segue. Aqui a redatora adota as convenções das hard news ao empregar um Processo verbal, domínio do dizer, na voz passiva (é acusado), que tem por efeito eximi-la da responsabilidade pelo conteúdo da afirmação. Essa responsabilidade é transferida, provavelmente, às autoridades judiciais, pois ainda que o dizente6 6 Dizente equivale a Ator em orações verbais. tenha sido suprimido da oração, ele pode ser subentendido como agente da passiva oculto. Em que medida a imprensa adota esse mesmo distanciamento para diferentes categorias de atores sociais é questão em aberto.

Além disso, por inferência, no lide 5 o leitor depreende que o ATOR 1 dirigiu embriagado, atropelou um pedestre e, a partir do termo ‘homicídio’, pode interpretar que o ATOR 2, o pedestre, morreu.

Na manchete 6, observamos a inclusão7 7 Esse ator estava subentendido no lide 5, como agente suprimido da voz passiva em “é acusado”. de um terceiro ATOR SOCIAL - os agentes do sistema judiciário, nomeados de forma impessoal e genérica como “Justiça”, na função de ator em um Processo material - Justiça concede liberdade provisória para atropelador da Gávea. O ATOR 1 figura como Beneficiário de uma concessão judicial. Diferentemente das manchetes e lides anteriores, em que é identificado por seu nome, em OG#6M ele é representado via grupo nominal impessoal e genérico, a partir das relações de trânsito: o atropelador da Gávea. É a primeira ocasião em que observamos o ATOR 1 figurando como responsável inequívoco pelo acidente. No entanto, manchete e lide da notícia 6 não mencionam o nome do atropelador. Podemos especular até que ponto essa escolha foi motivada por redundância, sob o argumento de que a identidade do atropelador seria de conhecimento público, ou, por outro lado, foi motivada pela relutância em associar, na manchete, um ato delituoso a um notório representante da elite.

Finalmente, o lide 6 trata exclusivamente de um desdobramento do EVENTO SOCIAL sob análise. Como não menciona o acidente ou qualquer dos atores sociais nele implicados, essa oração não será explorada na análise, exceto pela manutenção do padrão em nomear o ATOR 1 com o mesmo grupo nominal adotado na manchete, sem identificá-lo por seu nome próprio.

De modo global, a análise das seis manchetes e seis lides do corpus permite apontar três padrões na recontextualização do evento social pelo relato jornalístico.

O primeiro padrão é redução da dinamicidade e dramaticidade do EVENTO e de seu impacto por meio da mobilização interdependente e cumulativa dos seguintes recursos gramaticais:

  • a) Processo relacional em lugar de Processo material, retirando o foco do evento de valor midiático intrínseco para descrever a condição resultante para o ator menos negativamente impactado pelo evento;

  • b) Acontecimentos no lugar de ações: em orações materiais, escolha de verbos com imprecisão agentiva (envolver-se, morrer), que desoneram o redator da tarefa de apontar o agente provocador do EVENTO;

  • c) Nominalização: transformação de ações (matar) em substantivos abstratos (morte);

  • d) Circunstancialização: representação de um evento ou ação na forma de Circunstância, categoria de função periférica na oração;

  • e) Encaixe: deslocamento de um item de alto valor midiático para estruturas em estruturas encaixadas, de menor status na hierarquia da oração.

O segundo padrão é a dissimulação da agentividade para o ATOR SOCIAL 1, provocador do EVENTO, por meio da mobilização interdependente e cumulativa dos seguintes recursos gramaticais:

  • a) Passivização: opção pela voz passiva, especialmente com supressão do ator (agente da passiva);

  • b) Nominalização: transformação de um evento em substantivo como forma de prescindir do participante/agente;

  • c) Distanciamento gramatical: colocação de um participante como componente de estrutura encaixada, na função de qualificador, obtendo o efeito de distanciá-lo do evento no qual está diretamente implicado e/ou dissimular sua agentividade.

O terceiro padrão é a invisibilização do ATOR 2, seja por supressão ou dissimulação de sua condição mais imediatamente observável, e manipulação da empatia potencial da audiência por meio da mobilização interdependente e cumulativa dos seguintes recursos gramaticais:

  • a) Ausência de qualquer referência, direta ou indireta (manchetes 1, 2 e 3 e lides 1 e 2);

  • b) Identificação (im)pessoal: quando incluído nas manchetes e lides, o ATOR 2 é representado de forma dissimulada por meio de substantivos impessoais, relativos a categoria (pedestre) ou a gênero (homem), em contraste com a representação pessoal do ATOR 1;

  • c) Uso de atributos que exploram o afeto em favor do ATOR 1 (internado em estado grave; também ficou ferido) e em detrimento do ATOR 2

Se usar a linguagem é a forma mais comum de comportamento social e a forma na qual mais recorremos a pressuposições do senso comum (FAIRCLOUGH, 1989FAIRCLOUGH, N. Language and Power. London/New York: Longman, 1989., p. 2), então é preciso identificar como tais pressuposições se manifestam via sistema da língua. Assim, ao identificar a gramática da (in)visibilização, busquei estabelecer conexões entre a microestrutura da língua (nível da descrição), seus sentidos em relação ao contexto (nível da interpretação) e as macroestruturas das instituições sociais (nível da explicação), pois, como sintetizado por Hasan (CLORAN; BUTT; WILLIAMS, 1996CLORAN, C.; BUTT, D.; WILLIAMS, G. (Ed.). Ways of saying: ways of meaning - selected papers of Ruqaiya Hasan. London: Cassel, 1996., p. 1): “eu tenho a impressão de que há uma continuidade da vivência da vida, por um lado, diretamente até o morfema, por outro lado”.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, investiguei como a mídia recontextualizou um acidente de trânsito nas manchetes e lides das seis primeiras notícias disponíveis online sobre o tópico, construindo representações seletivas sobre o EVENTO e sobre o papel dos dois principais ATORES SOCIAIS envolvidos. De modo geral, a análise revela estratégias que resultam, por um lado, na invisibilização do ATOR 2 como vítima fatal do acidente e, por outro, mitigação da responsabilidade do ATOR 1 como provocador do acidente. É importante compreender “como os textos representam e constroem grupos e comunidades” (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003., p. 149). Como esses dois atores epitomam duas classes sociais polarizadas, defendo que o modo como eles são representados é indicativo de uma tendência para que o grandes veículos de mídia reforcem e naturalizem estruturas sociais desiguais. Na redação das manchetes e lides, observamos a manipulação de estratégias discursivas e lexicogramaticais que propõem um enquadramento de leitura favorável à maior identificação e solidariedade do leitor com o representante da classe dominante.

Primeiro, é visível uma tendência à alienação entre os papéis sociais imediatamente observáveis no acidente de trânsito de sua função gramatical intrínseca em um relato de hard news. Evidência disso é que nenhuma das manchetes aponta o ATOR 1 de forma explícita como agente provocador do acidente, menos ainda da morte do ATOR 2. Nas orações, ele nunca figura como ator de Processo material, do tipo ação (verbo transitivo), com traço semântico negativo, na voz ativa, e identificado pelo nome próprio. A identificação de homicídio culposo por embriaguez ao volante que resultou no atropelamento e morte do ATOR 2 é postergada e mitigada nas manchetes e lides por meio do emprego de um conjunto de recursos lexicogramaticais e discursivos, conforme detalhado na seção anterior.

Segundo, é possível apontar um desequilíbrio na representação dos atores sociais envolvidos, com favorecimento ao ATOR 1. Isso se manifesta por meio da construção de uma pretensa simetria na condição de ambos (em estado grave, também se feriu) e por meio da nomeação personalizada do ATOR 1 em oposição à supressão ou impessoalidade na identificação do ATOR 2. A representação impessoal do operário José Ferreira da Silva contribui para desumanizá-lo, tirar o foco dele como pessoa, representá-lo, neste caso, instrumental e estruturalmente como uma pertencente a uma categoria de menor interesse pela audiência.

A significância do conjunto dessas opções gramaticais pode ser assim resumida:

onde atores sociais são predominantemente ativos, sua capacidade para a ação agentiva, para fazer as coisas acontecerem, para controlar os outros é acentuada; onde eles são predominantemente passivos, o que é acentuado é sua submissão aos processos, sendo eles afetados pela ação dos outros (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003., p. 150).

No contexto das mídias digitais, particularmente no padrão de leitura navegador (LIU, 2005), o conjunto das seis manchetes e seis lides do corpus predispõem a audiência a não interpretar o ATOR 1 como imediata e inequivocamente responsável pela morte do ATOR 2.

As manchetes (e lides) analisados não contêm inverdades; elas contêm silêncio, ou seja, falta-lhes a íntegra da verdade. Conforme acredito ter demonstrado na análise, oferecem uma descrição particularmente motivada, embora plausível, sobre o evento e sobre o papel dos atores sociais implicados, projetando relações de maior ou menor identificação com o leitor. “[O] uso e a escolha de determinadas construções enfatiza este ou aquele viés e cria nos leitores uma sensação de fundamentação, quando o que se observa é manipulação ideológica” (SALLORENZO, 2018SALLORENZO, L. Gramática da manipulação: como os jornais trabalham as manchetes em tempos de eleições (e em outros tempos também). Belo Horizonte: Quintal edições, 2018., p. 13). E a sensação gerada pelas manchetes e lides é de que pessoas como o ATOR 2 simplesmente morrem. Sem um responsável direto quando este for representante de uma categoria invisível.

Ao alçar aspectos periféricos sobre o evento, em uma luz favorável ao representante da classe dominante, à posição privilegiada de manchete e lide, os redatores menosprezam a importância do evento principal. Com base em van Dijk (1991, p. 51), podemos concluir que os veículos apresentam uma definição subjetiva sobre o evento, que tem influência poderosa sobre os leitores. De imediato, essa definição subjetiva influencia a interpretação que os leitores farão da notícia e do evento em si. A médio prazo, essa definição é incorporada no entendimento da audiência sobre as práticas de relato de eventos, a ponto de muitos de nós passarmos a não questionar manchetes como essas, atribuindo-as à objetividade jornalística. A longo prazo, essa definição passa a sustentar nossa visão de mundo, ou seja, o(s) valor(es) que damos às vidas humanas conforme classe social, ocupação, procedência, e a pautar nosso engajamento na sociedade com base nesses valores naturalizados, mas não necessariamente naturais.

Quanto mais sutis as direções de sentido presentes na manchete, maior a chance de que sejam mantidas como ângulo de leitura, seja do texto da notícia que segue ou do que chamamos realidade, caso a leitura se encerre na manchete ou lide.

Se o título for tendencioso, a aquisição da informação por parte do leitor será tendenciosa, quer ela se dê pela leitura da notícia completa, quer pela inferência do conteúdo da notícia, uma vez que quem lê uma manchete de jornal não vai necessariamente ler a notícia (SALLORENZO, 2018SALLORENZO, L. Gramática da manipulação: como os jornais trabalham as manchetes em tempos de eleições (e em outros tempos também). Belo Horizonte: Quintal edições, 2018., p. 26).

Particularmente em casos de direcionamento não óbvio, os leitores tendem a não notar inconsistências e, portanto, a não identificar necessidade de reparação (van DIJK, 1991, p. 51; ECKERT et al. 2014ECKERT, U. K. H.; LEWANDOWSKY, S.; CHANG, E. P.; PILLAI, R. The effects of subtle misinformation in news headlines. Journal of Experimental Psychology: Applied, v. 20, n. 4, p. 323-335, 2014., p. 332).

Se considerarmos que a leitura de notícias online ocorre predominantemente sem uma decisão consciente (YADAMSUREN; ERDELEZ, 2011YADAMSUREN, B.; ERDELEZ, S. Online news reading behavior: From habitual reading to stumbling upon news. Proceedings of the American Society for Information Science and Technology, v. 48, n. 1, 2011.), e que cerca de 60% da audiência se limita à leitura da manchete (GABIELKOV et. al., 2016GABIELKOV, M.; RAMACHANDRAN, A.; CHAINTREAU, A.; LEGOUT, A. Social Clicks: What and Who Gets Read on Twitter? In: 2016 INTERNATIONAL CONFERENCE ON MEASUREMENT AND MODELING OF COMPUTER SCIENCE (SIGMETRICS ’16). Proceedings… New York, USA: Association for Computing Machinery, 2016. p. 179-192.), o enquadramento criado pela manchete tem grande chance de persistir como informação dada, de não ser contestado em sua essência. No caso específico das três primeiras notícias, o ATOR 1, Ivo Pitanguy Filho, pode ser interpretado como vítima de uma enfermidade ou de um acidente, cuja responsabilidade não é esclarecida. O ATOR 2, José Ferreira da Silva, é suprimido discursivamente uma vez que não figura como participante das orações e, assim, não existe para fins do enquadramento oferecido na manchete e daqueles que se detêm na leitura incidental dela. José Ferreira é atropelado e morto na realidade observável e metaforicamente no discurso.

O poder das elites e seus discursos não seriam tão influentes sem a função mediadora e naturalizadora da mídia hegemônica. Manchetes e lides, como gêneros jornalísticos, “refletem crenças e valores que assumem uma condição de verdade para determinadas comunidades e práticas específicas” (OLIVEIRA, 2016OLIVEIRA, J. A. É sério?! O Humor no Jornalismo. D.E.L.T.A, São Paulo, v. 32, n. 3, p. 735-747, 2016.). Desnaturalizar essas crenças e valores e os mecanismos lexicogramaticais e discursivos engendrados para tal pode contribuir para uma educação linguística crítica, em que as relações entre linguagem e sociedade sejam cada vez mais explicitadas e em que os leitores possam questionar os valores postos nos textos, particularmente quando estes reforçam relações sociais assimétricas.

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos pareceristas da revista pelas contribuições e revisões no texto original, o que contribuiu de forma decisiva para a qualidade final do manuscrito.

REFERÊNCIAS

  • CLORAN, C.; BUTT, D.; WILLIAMS, G. (Ed.). Ways of saying: ways of meaning - selected papers of Ruqaiya Hasan. London: Cassel, 1996.
  • ECKERT, U. K. H.; LEWANDOWSKY, S.; CHANG, E. P.; PILLAI, R. The effects of subtle misinformation in news headlines. Journal of Experimental Psychology: Applied, v. 20, n. 4, p. 323-335, 2014.
  • FAIRCLOUGH, N. Language and Power. London/New York: Longman, 1989.
  • FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.
  • FIGUEIREDO, D. C.; BONINI, A. Recontextualização e sedimentação do discurso e da prática social: como a mídia constrói uma representação negativa para o professor e para a escola pública. D.E.L.T.A, São Paulo, v. 33, n. 3, p. 759-786, 2017.
  • FUZER, C.; CABRAL, S. R. S. Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa. Campinas: Mercado de Letras, 2014.
  • GABIELKOV, M.; RAMACHANDRAN, A.; CHAINTREAU, A.; LEGOUT, A. Social Clicks: What and Who Gets Read on Twitter? In: 2016 INTERNATIONAL CONFERENCE ON MEASUREMENT AND MODELING OF COMPUTER SCIENCE (SIGMETRICS ’16). Proceedings… New York, USA: Association for Computing Machinery, 2016. p. 179-192.
  • HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. An Introduction to Functional Grammar. London: Routledge, 2004.
  • MARTIN, J.R.; MATTHIESSEN, C. M. I; PAINTER, C. Deploying Functional Grammar. Extensively revised, new edition of 1997 edition. Shanghai: Commercial Press, 2010.
  • MOTTA-ROTH, D. Análise crítica de gêneros: contribuições para o ensino e a pesquisa de linguagem. D.E.L.T.A, v. 24, n. 2, p. 341-383, 2008.
  • OLIVEIRA, J. A. É sério?! O Humor no Jornalismo. D.E.L.T.A, São Paulo, v. 32, n. 3, p. 735-747, 2016.
  • SALLORENZO, L. Gramática da manipulação: como os jornais trabalham as manchetes em tempos de eleições (e em outros tempos também). Belo Horizonte: Quintal edições, 2018.
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  • YADAMSUREN, B.; ERDELEZ, S. Online news reading behavior: From habitual reading to stumbling upon news. Proceedings of the American Society for Information Science and Technology, v. 48, n. 1, 2011.
  • 1
    Seguindo as convenções da Gramática Sistêmico Funcional, adota a inicial maiúscula para Processo, Participantes e Circunstância como categorias lexicogramaticais para diferenciá-las de termos do senso comum usados ao longo do texto.
  • 2
    Pesquisadores que adotam a Linguística Sistêmico-Funcional, grupo no qual me incluo.
  • 3
    Links de acesso às notícias:
    1. globotv.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/v/filho-do-cirurgiao-plastico-ivo-pitanguy-esta-internado-em-estado-grave-no-rio/4410606/

    2. http://g1.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/videos/v/filho-do-cirurgiao-plastico-ivo-pitanguy-esta-internado-em-estado-grave-no-rio/4410606/

    3. http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-08-21/filho-do-cirurgiao-plastico-ivo-pitanguy-se-envolve-em-acidente-na-gavea.html

    4. http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/08/homem-morre-apos-ser-atropelado-na-gavea-zona-sul-do-rio.html

    5. https://odia.ig.com.br/_conteudo/noticia/rio-de-janeiro/2015-08-21/filho-de-ivo-pitanguy-e-preso-apos-pedestre-ser-atropelado-e-morrer.html

    6. https://oglobo.globo.com/rio/justica-concede-liberdade-provisoria-para-atropelador-da-gavea-17302941

  • 4
    GN = Globo News; G1 = Globo G1; OG = Jornal O Globo; DIA = Jornal O Dia.
  • 5
    Ainda que à sombra de seu pai, o cirurgião plástico Ivo Pitanguy.
  • 6
    Dizente equivale a Ator em orações verbais.
  • 7
    Esse ator estava subentendido no lide 5, como agente suprimido da voz passiva em “é acusado”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2020
  • Aceito
    26 Ago 2021
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