Acessibilidade / Reportar erro

O LUGAR DE JOÃO HENRIQUE DE MATOS NA HISTÓRIA DA LÍNGUA APURINÃ: UM ESTUDO DISCURSIVO

The Place of João Henrique de Matos in the History of the Apurinã Language: A Discursive Study

El lugar de João Henrique de Matos en la historia de la lengua apuriná: un estudio discursivo

Resumo

Este trabalho visa indicar, por meio da materialidade histórica do arquivo do século XIX, o lugar do tenente-coronel João Henrique de Matos na história dos conhecimentos sobre a língua apurinã. Analisaram-se formulações do relatório da expedição deste militar pelos afluentes do Alto Amazonas, ocorrida de 1841 a 1843. A partir da ideia de discrepância do Interdiscurso (cf. Pêcheux, 2014), é descrito nestas formulações o encaixe/articulação de palavras de origem indígena, considerando traços de memória de seu exterior específico. Por esse procedimento, conclui-se que o relatório de Matos (1845) não apresenta traços de reflexão sobre a língua apurinã, embora o encaixe/articulação de topônimos indígenas em seu fio discursivo, apresente, como não-ditos, imagens de unidades linguísticas, por onde se sustenta a coerência do termo aporiná.

Palavras-chave:
Gramatização; Interdiscurso; Língua apurinã

Abstract

This work aims to indicate, through the historical materiality of the 19th century archive, the place of Lieutenant Colonel João Henrique de Matos in the history of knowledge about the Apurinã language. Formulations of the report of this military expedition through the tributaries of the Upper Amazon, which took place from 1841 to 1843, were analyzed. Based on the idea of discrepancy in Interdiscourse (cf. Pêcheux, 2014), these formulations describe the fitting/articulation of words of indigenous origin, considering memory traces of their specific exterior. Through this procedure, we conclude that Matos’s report (1845) does not present traces of reflection on the Apurinã language, although the fitting/articulation of indigenous toponyms in its discursive thread has, as unsaid, images of linguistic units, through which sustains the coherence of the term aporiná.

Keywords:
Grammatization; Interdiscourse; Apurinã Language

Resumen

Este trabajo tiene como objetivo señalar, a través de la materialidad histórica del archivo del siglo XIX, el lugar del Teniente Coronel João Henrique de Matos en la historia del conocimiento sobre la lengua Apurinã. Se analizaron las formulaciones del informe de la expedición de este militar por los afluentes del Alto Amazonas, que se desarrolló entre 1841 y 1843. A partir de la idea de discrepancia de Interdiscurso (cf. Pêcheux, 2014), se describe en estas formulaciones el encaje/articulación de palabras de origen indígena, considerando huellas de memoria de su exterior específico. A través de este procedimiento, concluimos que el informe de Matos (1845) no presenta rastros de reflexión sobre la lengua Apurinã, aunque el encaje/articulación de topónimos indígenas en su hilo discursivo tiene, como no dicho, imágenes de unidades lingüísticas, a través de las cuales se sustenta la coherencia del término aporiná.

Palabras clave:
Gramatización; Interdiscurso; Lengua apuriná

1 INTRODUÇÃO

Para elaborar este artigo, partimos da ideia de que a linguagem, capacidade humana de representar simbolicamente o mundo, preexiste à constituição da imagem das línguas enquanto realidades homogêneas. Contudo, no entremeio da linguagem e da produção de uma imagem de língua (circunscrita social ou espacialmente) passa o funcionamento real (empírico e fluido) das línguas, que sempre escapa às fronteiras geográficas e teóricas - real este que corresponde a espaços-tempos de comunicação, caracterizados pela “liberdade de variação” e pelas “descontinuidades dialetais” (Auroux, 2014AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi. 3. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014 [1992]., p. 70). Trata-se de um real que, como afirma Orlandi (2008ORLANDI, E. P. Terra à vista - discursos do confronto: Velho e o Novo Mundo. 2. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2008., p. 86), “não se deixa imobilizar nas redes de sistemas e fórmulas, [por ser] movimento, mudança contínua”.

Sob este prisma, as línguas, já tendo sido recortadas como entidades homogêneas em decorrência de interesses político-sociais, são sempre fabricações atestáveis por meio de distintos instrumentos tecnolinguísticos (cf. Auroux; Mazière, 2006AUROUX, S.; MAZIERE, F. Introduction: Hyperlangues, modèles de grammatisation, réduction et autonomisation des langues. Histoire Épistémologie Langage, Paris, v. 28, n. 2, p. 7-17, 2006.). Trata-se da produção de uma imagem isotópica para uma língua que resulta de um espelhamento pela escrita, ao longo do tempo, em certas sociedades urbanas. Assim, no decorrer da história, as línguas, ao serem tomadas de modo transparente como unidades idênticas a si mesmas, surgem como acontecimentos a exigir nomes. É nessa tensão contraditória entre o real das línguas e sua circunscrição a uma imagem regulada, social e espacialmente, que se sistematizam reflexões metalinguísticas, pelas quais se desenvolvem os processos de gramatização.

A partir desse entendimento sobre a historicidade das línguas, o presente artigo é parte do interesse em discernir os “nós” iniciais da gramatização do apurinã. Ou seja, é parte do interesse em se apreender a produção de sua imagem isotópica, por meio da materialidade histórica na discursividade do arquivo. Para dar homogeneidade à narrativa pela qual esta língua se torna objeto de reflexão na memória ocidental, “vasculhamos” os primeiros documentos a informar o rio Purus, na calha sul da Bacia Amazônica, onde tradicionalmente habita a sociedade que fala esta língua. Dessa incursão no arquivo, o relatório de João Henrique de Matos, de 1845, desponta como primeiro objeto discursivo a significar esta sociedade para o mundo ocidental.

Para dizer o lugar deste autor na história da língua apurinã, analisamos, em seu relatório de 1845, formulações sobre línguas, costumes e ocupações de distintas sociedades indígenas do Alto Amazonas. Procuramos observar como este texto se relaciona à constituição da imagem da língua apurinã enquanto unidade homogênea. Para tanto, investigamos nestas formulações não apenas a utilização de palavras indígenas sob o efeito da literalidade no discurso do colonizador, mas também traços de metalinguagem que se estendessem à constituição da imagem da língua Apurinã, algo que se deu mediante a indicação dos exteriores discursivos dessas palavras, considerando a discrepância do interdiscurso (cf. Pêcheux, 2014PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi et al. 5. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014.). Por meio desse procedimento, procuramos apontar os trajetos iniciais da constituição do observatório ocidental voltado à produção de conhecimentos necessários à colonização no Purus.

2 PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

As noções que apresentamos nas subseções 2.1, 2.2 e 2.3, a seguir, remetem a um espaço epistemológico que resulta da convergência entre Análise de Discurso (AD) e História das Ideias Linguísticas (HIL). Por meio deste entroncamento teórico, instrumentalizamos uma arqueologia textual para a reconstituição de vestígios discursivos que permitam dar homogeneidade à história das ideias sobre a língua apurinã.

2.1 A NOÇÃO DE GRAMATIZAÇÃO: DESCREVER E INSTRUMENTALIZAR UMA LÍNGUA

Estudar a constituição da imagem de uma língua como uma unidade isotópica, homogênea e idêntica a si mesma significa buscar o grafo de seus primeiros artefatos tecnolinguísticos. Ou seja, para dar homogeneidade à história de uma língua e dos conhecimentos sobre ela se faz necessário ir ao encontro das raízes de seu processo de gramatização. Narrar tal história é, do ponto de vista da escrita e do arquivo, apreender o “processo que conduz a descrever e instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário” (Auroux, 2014AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi. 3. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014 [1992]., p. 65, itálicos no texto original).

A noção de gramatização, deste modo, permite compreender como uma massa de regularidades linguísticas referentes a dado espaço-tempo de comunicação se torna uma evidência enquanto unidade isotópica, homogênea e idêntica a si mesma. A expressão mais pertinente da produção dessa evidência são os nomes atribuídos, na história de distintas sociedades, aos recortes imaginários de espaço-tempo de comunicação, em decorrência de condições sociopolíticas: o galego, o galego-português, o português, o português-brasileiro, o chinês, o árabe, o tupi etc.

A constituição da imagem de uma língua, assim, em uma perspectiva discursiva da História das Ideias Linguísticas, se dá por relação a um conjunto de traços metalinguísticos dispersos no arquivo textual de uma época. Podemos mencionar, como artefatos tecnolinguísticos dessa dispersão, as glosas, os paradigmas, as listas de palavras, os dicionários, as gramáticas, por exemplo. São instrumentos que, pela relação contraditória ao funcionamento real/empírico da língua, produzem e reproduzem uma imagem de unidade linguística vinculada a certas fronteiras societárias.

Ao acompanharmos certas séries de arquivo para estudar um processo de gramatização, vemos que uma língua se torna objeto de reflexão sistematizada em dada época, em razão de necessidades e interesses inerentes à organização da vida social. Determinada por fatores sociopolíticos, a produção dos saberes sobre uma língua nos permite vislumbrar que o “modo de existência real [de todo conhecimento] é a temporalidade ramificada da constituição cotidiana do saber” (Auroux, 2014AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi. 3. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014 [1992]., p. 12). Nesse sentido, a metalinguagem, como forma de conhecimento, se institui e se transmite como técnica voltada à resolução de problemas que envolvam, inicialmente, o trabalho ordinário com a língua: cantar, traduzir, ensinar etc. (cf. Auroux, 2014).

Consideramos, portanto, nesse sentido sociopolítico, que os conhecimentos gramaticais e os lexicográficos constituem-se, na longa duração do tempo, pela relação de uma língua com os sujeitos que a falam (ou que a descrevem), bem como pela relação entre tais sujeitos com seus espaços de sociabilidade. Nisso, consideramos, também, que estas três realidades - línguas-sujeitos-espaços - constituem-se num mesmo processo simbólico e político que se dá na história e cujos rastros são apagados, funcionando sob a modalidade do esquecimento. A gramatização é, nestes termos, um fato social, já que suas condições de produção podem ser apreendidas levando-se em conta essas três realidades como efeitos ideológicos.

2.2 A DISCREPÂNCIA DO INTERDISCURSO NAS MODALIDADES DO PRÉ-CONSTRUÍDO E DA ARTICULAÇÃO

Com o intuito de pensar as origens de um processo de gramatização tendo como pressuposto a relação constitutiva língua-sujeito-espaço, tomamos a noção de interdiscurso como noção fundamental para pensar a determinação histórica do conhecimento sobre a língua. Isso porque a descrição e a instrumentalização de uma língua se forjam, em última análise, por meio de uma discursividade metalinguística, a partir de certas condições históricas de produção.

Sendo o interdiscurso a “memória do dizer” (Nunes, 1996NUNES, J. H. Discurso e instrumentos linguísticos no Brasil: dos relatos de viajantes aos primeiros dicionários. Campinas, 1996. 267 f. Tese (Dourado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1996., p. 34), sua essência reside no entrelaçamento entre a materialidade da língua e a materialidade da história, a produzir os processos de significação. Um entrelaçamento que é a condição prévia para que o sujeito, ao tomar a palavra, se inscreva em práticas sociais. Logo, para que a atualidade de uma formulação faça sentido é preciso que o interdiscurso lhe forneça traços de memória - traços que atuam como princípio de legibilidade da formulação. Ou seja, toda palavra, expressão ou proposição, evoca, para ser interpretável, um alhures discursivo, um lastro de memória, uma historicidade. Evoca relações de sentido anteriores e exteriores, forjadas politicamente, que ficam dissimuladas como não-ditos, “implícitos”, à atualidade de cada formulação, de cada dito.

Com efeito, para Pêcheux (2014PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi et al. 5. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014.), ao enunciar, o sujeito o faz por meio de dois efeitos de discrepância de seu dizer em relação ao interdiscurso: o efeito de pré-construído e o efeito de articulação. As designações destes efeitos, em Análise de Discurso, decorrem da percepção da materialidade linguístico-discursiva pelo viés de uma reflexão lógico-filosófica sobre a morfossintaxe e a semântica. O primeiro efeito diz respeito aos processos referenciais pelos quais os nomes vão sendo atribuídos, no decorrer da história. É nesse sentido que Orlandi (2009ORLANDI, E. P. Língua brasileira e outras histórias: discurso sobre a língua e ensino no Brasil. Campinas: Ed. RG, 2009., p. 193) afirma, a respeito do papel da memória, que “o nome é a primeira forma de estabilizar o acontecimento”. O segundo diz respeito ao modo como os nomes se ligam de modo coerente, na cadeia de fala, engendrando a frase, o texto (Pêcheux, 2014, p. 113).

Diante destes dois efeitos do interdiscurso, nossa análise do relatório de João Henrique de Matos volta-se, neste artigo, a formulações sobre a realidade de alguns afluentes do Alto Amazonas. Dentre os dados informadas por este viajante, tais formulações evidenciam aspectos geográficos, étnicos/identitários e linguísticos dessa região. Estas enunciações podem ser tomadas como indicativas dos processos discursivos, anteriores e exteriores, pelos quais se significaram os conhecimentos sobre o rio Purus no discurso das descobertas do Amazonas, no século XIX. Nessa direção, extraímos, desse relatório, formulações contendo nomes indígenas encaixados/articulados a sua sintaxe e que dessem margem à análise de possível funcionamento metalinguístico sobre a língua dos apurinã.

2.3 O INTERDISCURSO E A FORMULAÇÃO METALINGUÍSTICA

Para entender os momentos iniciais da gramatização do apurinã, ao revisitar o arquivo do século XIX mediante processos discursivos que produziram o imaginário da colonização ocidental do Purus, lançamos mão, ao lado da noção de interdiscurso, da noção de metalinguagem. Para instrumentalizar a busca em relação às ideias sobre o apurinã, procuramos pensar o dizer metalinguístico em Matos (1845) em função do interdiscurso. Esse movimento justifica nossa pretensão de basear tal busca na materialidade significante da discursividade do arquivo da época.

Neste rumo, ao remeter a metalinguagem ao funcionamento da interdiscursividade, consideramos o processo de significação das palavras e expressões conforme Authier-Revuz (1998). Para esta autora, o processo pode ser de dois tipos: (a) palavras e expressões podem remeter a elementos do mundo por meio do efeito de literalidade; e (b) palavras e expressões podem remeter não mais aos elementos do mundo, mas às próprias palavras, com seus significados e significantes, ao opacificar um termo ou uma expressão, quebrando o efeito da literalidade de (a).

Para o primeiro processo de significação, temos a produção de signos-padrão (o um do dizer). Para o segundo, a produção de signos-autônimos, opacificados (o não-um do dizer). De todo modo, para estas duas “formas de semiose” (Authier-Revuz, 1998, p. 137) há, igualmente, o funcionamento eterno do interdiscurso, da memória discursiva. Ambos os processos se dão a partir de redes significantes prévias, da história de sentidos das palavras, de relações de predicação anteriores. Isto porque qualquer forma de semiose (de produção do sentido, do um e do não-um do dizer) está eternamente sob a dominância do Interdiscurso.

O dizer a língua joga com a tensão entre literalidade e opacificação. Por esse duelo, na superfície do dito, as tradições gramaticais produzem suas terminologias para tratar fatos fonético-fonológicos, morfológicos, sintáticos etc. Para dizer a história das ideias sobre uma língua, justamente, por meio dessa forma de materialidade cunhamos, do ponto de vista das relações interdiscursivas, a expressão formulação metalinguística. Ela permite pensar a discrepância das formulações sobre a língua, que são paráfrases discursivas dotadas de estabilidade semântica, por relação a espaços de memória. Trata-se de uma expressão guarda-chuva para as formas de modalização autonímica pelo viés da produção material dos sentidos.

3 O RELATÓRIO DE JOÃO HENRIQUE DE MATOS E A CONSTITUIÇÃO DA IMAGEM DA LÍNGUA APURINÃ

O Relatório do estado em que se acha o Alto Amazonas, de 1845, resulta das observações de viagem do Tenente Coronel João Henrique de Matos pelos rios da Amazônia. De 1841 a 1843, esse militar fora designado como comissário de inspeção e exame de fronteiras na então Comarca do Alto Amazonas, subordinada, à época, à província do Pará. Após desempenhar essa função, ele relata ao governo da província a ocupação territorial nessa comarca, chamando atenção para o que considerava a precária situação dos fortes e de suas guarnições militares, bem como para a administração das fazendas reais de gado e para o serviço religioso prestado pela Igreja Católica.

No relatório, “assistimos” ao espraiamento da colonização brasileira nos afluentes do Alto Amazonas, a Oeste. Foi uma marcha que deixou como rastro político uma sucessão de configurações administrativas do espaço amazônico, atestáveis em sucessivas legislações brasileiras: de capitanias, comarcas, províncias e unidades federativas. Nesse avançar, mais precisamente nos interesses por detrás dos fortes, das fazendas e das missões (instâncias pelas quais o governo imperial brasileiro, à época, exercia o poder), se achava o indígena como alteridade observável, administrável e assimilável. No bojo desse rastro político, desse avançar histórico, houve o contato, o estranhamento, o conflito, a pacificação, a conversão, a resistência, a incorporação, o apagamento étnico, o caboclo amazônico na sociedade brasileira.

O relatório se configura, assim, como um observatório das relações entre agentes de Estado (administradores, missionários e militares) e populações indígenas da Amazônia durante o regime imperial brasileiro. Nele, vislumbramos a ação de fortes, de fazendas e de missões no assenhoramento da Amazônia no século XIX. E, no seio dessas relações, vemos emergir como acontecimentos, no discurso colonizador, sujeitos, espaços e línguas indígenas como realidade humana nessa parte do Brasil. O relatório é, assim, uma evidência dos discursos das descobertas no Amazonas.

No seio das relações que produzem estes discursos, as línguas indígenas passam a ser contingenciadas como objeto na reflexão ocidental em virtude da necessidade de contato para o trabalho, para a pregação e para o estudo1 1 O caráter utilitário dessas descrições e instrumentações varia ao longo do tempo, de modo que o trabalho linguístico serve a distintas práticas: proselitismo cristão, categorização naturalista, pedagogia das línguas, pesquisa acadêmica etc. . Surgem, aí, novas interpretações metalinguísticas que dão margem a instrumentações políticas norteadoras das transformações da realidade humana nos afluentes do Amazonas. Como resultado, a passagem do indígena ao caboclo, a passagem do vernáculo indígena ao português e a passagem da maloca à vila, à cidade. As transformações produzirão uma nova sociedade local, com a entrada de línguas na tradição escrita, mediando o contato.

É na forja dessa rede de espaços coloniais (fortes, missões, fazendas etc.) que se encontram, também, os rudimentos de uma transferência cultural no Alto Amazonas. São espaços de contato entre formações sociais, que desencadeiam a produção de um enorme conjunto de conhecimentos, dentre os quais os primeiros saberes metalinguísticos sobre as línguas indígenas aí faladas. Esse processo leva, contraditoriamente, não apenas à produção de saberes metalinguísticos, mas também estabelece, para estas línguas autóctones, uma imagem e um lugar na política estatal: elas eram vistas como inferiores e empurradas ao desaparecimento.

Nessas condições podemos dizer, de modo geral, que o avanço colonizador na Amazônia é o motor da interpretação da língua apurinã enquanto unidade isotópica, bem como de sua inscrição no quadro da gramatização das línguas do mundo. Esse avanço produz interpretações sobre o sujeito apurinã e sobre seu espaço de sociabilidade. Trata-se de um avanço incentivado pelo interesse governamental de consolidar, baseado nos ideais de progresso, de nacionalidade e de patriotismo,2 2 Segundo Orlandi (2008), o poder político nas sociedades capitalistas é exercido pelo amor à pátria como forma de assegurar a submissão do cidadão. Nesse sentido, consideramos que a sociedade brasileira, em 1845, por meio de suas esferas de poder, visaria à consolidação de sua ideologia de Estado, pela manutenção do imaginário de suas fronteiras e pela execução de uma política indigenista voltada à homogeneização social. A meta era que os índios fossem confundidos na massa da população brasileira. A própria política indigenista no século XIX, como instrumento político-ideológico, alimenta o processo de consolidação das fronteiras do país (cf. Henrique, 2018). a ocupação das regiões limítrofes no Norte do Brasil. A partir desse interesse resulta o relatório de Matos (1845), que descreve a realidade fronteiriça nas cabeceiras do rio Branco com a Guiana Inglesa, bem como nas cabeceiras do rio Solimões com o Peru e demais afluentes da calha sul do Amazonas (Juruá, Purus, Madeira e Tapajós).

3.1 O PAPEL DAS NOMEAÇÕES INDÍGENAS NAS FORMULAÇÕES DO RELATÓRIO

O relatório de João Henrique de Matos testemunha, por meio de sua materialidade histórica, a diversidade étnica e linguística na Amazônia do século XIX. Em suas descrições, à ideia de unidade étnica está pressuposta a ideia de unidade de língua. Isso porque o reconhecimento das línguas autóctones configurava-se, para o ocidental, como elemento de saber pelo qual grupos indígenas podiam ser etiquetados, classificados: um saber importante na significação do sujeito indígena e de seus espaços de vida. Compreendemos, a este respeito, que uma formulação como “Os Ipuriná são um povo guerreiro que vive em constante hostilidade com outras tribos vizinhas” (Ehrenreich, 1948EHRENREICH, P. Contribuições para a etnologia do Brasil. Revista do Museu Paulista, São Paulo, v. 2, p. 7-135, 1948., p. 110) pressupõe uma imagem de língua, enquanto fator de identificação/categorização étnica. Uma imagem de unidade linguística implícita à classificação dos apurinã enquanto grupo socialmente distinto.

Tal diversidade étnica e linguística, legível no relatório, pode ser apreendida, notadamente, por meio de palavras indígenas usadas para designar lugares, povos e demais realidades. São nomeações que se apresentam naturalizadas, sob o efeito da obviedade, fazendo sentido no imaginário da Amazônia, nessa época. Um funcionamento linguístico-discursivo permeava a fala cotidiana dos habitantes - indígenas aculturados, coletores, funcionários públicos, práticos de navegação - com os quais o expedicionário fora entrando em contato e coletando informações ao longo de suas viagens. Não se trata apenas de um discurso em que se leem informações sobre indígenas da Amazônia. Trata-se de um discurso apoiado em nomeações indígenas que apontam para a historicidade dos espaços, dos sujeitos e das línguas, nessa região.

De um ponto de vista linguístico-discursivo, o relatório de Matos (1845) apresenta uma série de nomeações indígenas, encaixadas/articuladas a sua sintaxe, que se referem a poucos setores do real. Embora esse relatório seja o primeiro documento a mencionar a sociedade apurinã, nele, no entanto, não encontramos elementos lexicais3 3 Mobilizamos as expressões elementos lexicais e unidades lexicais de modo distinto, a partir de Nunes (2006), para quem, aquela designa a unidade empírica da palavra, e esta, a extensão de uma reformulação metalinguística (auto-representação do dizer), como as glosas ou os verbetes. da língua falada por essa sociedade. Encontramos, contudo, palavras advindas de outras línguas indígenas, assumidas pelo colonizador para nomear. A partir dessas palavras se estabelece uma pequena margem de reformulação metalinguística (ver seção 3.2, abaixo), ou seja, uma margem de unidades lexicais no corpo do relatório.

Por um lado, elementos lexicais de várias origens indígenas encontram-se semanticamente estabilizados no relatório de Matos (1845); por outro, verificamos a formação de unidades lexicais encabeçadas apenas por termos da língua geral amazônica. Tais palavras indígenas, na ausência de nomes ocidentais para dizer o real nesta parte do mundo, encaixam-se/articulam-se como nomes próprios e comuns no dizer do colonizador. De modo geral, nomes de lugares, de animais, de plantas, de objetos, de etnias etc., bem como o saber lexical (reflexivo e opacificante) nos primeiros viajantes e exploradores do Purus, serão materialidades fundadoras das práticas lexicográficas em torno das línguas indígenas da região, dentre as quais o apurinã. Lemos, dispersos nos escritos de muitos outros exploradores, por exemplo, os primeiros dizeres sobre o léxico na região; ou, se preferirmos, lugares primários de interpretação do léxico. Nesses relatórios, podemos estudar tanto o sentido das nomeações indígenas quanto a formação de unidades lexicais, encabeçadas por estas mesmas nomeações.

Dentre as palavras indígenas na escrita desse militar, podemos destacar, de saída, os topônimos e os etnônimos. Tais nomeações de lugares e de povos podem ser tomadas como vestígios linguístico-discursivos de uma ampla cena de contato. Incorporadas na sintaxe do português, estas nomeações testificam as relações entre o indígena e o ocidental na Amazônia oitocentista. São palavras que evocam o dizer dos inúmeros personagens presentes nesses rios. Por meio do relatório, desta maneira, vemos o real da história sendo interpretado; vemos acontecimentos cobrando sentidos, de modo que as relações entre línguas (indígenas ou ocidentais), entre sujeitos (indígenas e não indígenas) e espaços (nômades, seminômades ou sedentários) comparecem na produção de informações ao governo da província do Pará.

Os topônimos e etnônimos, ao explicitarem a geografia e a diversidade étnica da Bacia Amazônica, permitem ao expedicionário informar em suas descrições a identidade indígema das ocupações ao longo dos rios - catalogar, por exemplo: maloca x, família de índios z etc. Assim, tais elementos lexicais funcionam no relatório como pistas que ajudam a compreender como se dava a percepção sobre os grupos indígenas nessa região. Estes elementos são evidências que estão na base da construção do imaginário pelo qual os apurinã, sua língua e suas ocupações, serão representados nos textos de outros viajantes, missionários, estudiosos e colonos no século XIX.

Mesmo que pareçam especificar apenas alguns acidentes geográficos, localidades e povos, estes topônimos e etnônimos apontam para a materialidade histórica das línguas autóctones faladas nos rios amazônicos. Tais palavras, ao serem deslocadas para as línguas ocidentais, mantêm acobertada a produção discursiva de seus referentes na memória discursiva das sociedades indígenas que as utilizavam. Elas são fruto de um conhecimento que precede à chegada do colonizador e que irão exercer um papel fundamental na cartografia e na etnografia desses rios no século XIX. Mas, o que permanece das primeiras cenas do contato são os efeitos da necessidade de dizer o real, o outro, até então estranho, nada familiar.

Assim, pela discrepância (encaixe/articulação) das palavras indígenas em Matos (1845), pontuamos a mesma necessidade de nomear lugares, povos, seres e objetos pelo indígena e pelo colonizador, em seus respectivos vernáculos. Essa necessidade de nomeação sempre se impõe como acontecimento. Entretanto, na cena do contato, os referentes indígenas pelos quais tais nomeações adquiriram sentido são dissimulados na “pura evidência” dos sentidos geográficos e étnicos (e de outros nomes de seres e objetos) a partir do ponto de vista do colonizador. Dizer o Purus no discurso das descobertas se acha apoiado, logo, por séries de efeitos de pré-construído e de articulação, margeados pelo que poderíamos chamar genericamente de ‘espaço de memória indígena’, um alhures, anterior à presença do ocidental na região.

Para demonstrar as discrepâncias de nomes indígenas no dizer do colonizador, exploramos, a seguir, formulações do relatório de Matos, de 1845. Nelas, apresentam-se encaixados/articulados nomes indígenas que permitem pensar a historicidade das línguas nas quais eles foram produzidos, a historicidade de seus sujeitos falantes e a historicidade dos espaços em que habitavam estes sujeitos. A sintagmatização destas palavras no dizer do colonizador nos permite marcar discursivamente não apenas a constituição e a transformação da realidade social no Purus no sentido ocidental, mas, junto a isso, o trajeto de gramatização do apurinã, ao lado da gramatização de outras línguas indígenas (o nheengatu, por exemplo) a partir do contato.

3.2 AS FORMULAÇÕES CARTOGRÁFICAS, ETNOGRÁFICAS E METALINGUÍSTICAS NO RELATÓRIO

Leem-se, no relatório de Matos (1845), sob o efeito da transparência, inúmeros topônimos indígenas, nomes próprios de acidentes geográficos e de localidades. Seus sentidos esboçam uma espacialidade a ser informada em razão da administração pública do Império brasileiro. Trata-se de nomes de rios, de serras, de lagos, de povoados etc. A estabilidade semântica desses topônimos, no discurso do militar, evoca uma exterioridade que remonta a processos de significação em línguas indígenas. A seguir, algumas formulações cartográficas como efeito desse processo na superfície linguística do discurso de Matos (1845):

Quadro 1
Topônimos no relatório de Matos (1845)

Tomemos do quadro 1 o hidrônimos de origem tupi Urariquera como ilustração da discrepância dos topônimos indígenas no dizer do militar. Trata-se do nome próprio de um rio localizado em Roraima. Há controvérsias sobre a origem etimológica desta palavra. Uma das hipóteses, segundo Spotti (2011SPOTTI, C. V. N. Estudo toponímico de origem indígena em Roraima: rio Uraricoera. Cadernos do CNLF, Rio de Janeiro, v. 15, n. 5, t. 2, p. 1759-1791, 2011.), é a de que esse nome é composto por urari (ou curare), que significa ‘veneno’, e pelo morfema -cuera (que se alterna com -puera, -coera, -goera), que significa ‘velho’. A designação do rio Urariquera, portanto, significaria na memória indígena algo como ‘veneno velho’.

Naturalizada no discurso do colonizador, esta nomeação passa a ser lida apenas como referência de um curso fluvial, “esvaziada” de seus sentidos originários, ‘veneno’ e ‘velho’, bem como de outras possíveis relações de sentido. E, em determinadas formulações, sendo encaixada metonimicamente na posição de núcleo de sintagma nominal com sentido de rio, como podemos ler, por exemplo, no discurso etnográfico de Koch-Grünberg ([1917] 2006, p. 143): (a) O Uraricoera está próximo. Pode-se ver, no claro ar matinal, sua escura mata ribeirinha. Ou mesmo no discurso literário de Mário de Andrade (1978ANDRADE, M. de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Edição crítica de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1978., p. 21), ao mencionar o local de nascimento do célebre personagem Macunaíma; (b) Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera que a índia tapanhumas pariu uma criança feia.

O mesmo processo de discrepância é observado na reprodução dos etnônimos em Matos (1845). Eles esboçam, sob o efeito da transparência, a realidade etnográfica dos indígenas da Comarca do Alto Amazonas e Rio Negro, a ser noticiada ao Governo. São nomes próprios de povos, cuja estabilidade semântica se dá, no discurso colonizador, por relação a determinados sentidos, dentre os quais destacamos os de ‘nação’, de ‘tribo’ e de ‘indígenas’, como se pode conferir no quadro 2:

Quadro 2
Etnônimos no relatório de Matos (1845)

Como ilustração da discrepância dos etnônimos indígenas no discurso de Matos (1845), destaquemos a palavra cathuquenas (katukinas) do quadro 2. Desde os primeiros registros de sua circulação nos discursos ocidentais, ela vem designando de modo genérico populações indígenas diferenciadas linguisticamente: (a) os katukina e kanamari da família linguística katukina dos rios Biá e Jutaí e (b) os katukina da família linguística pano dos rios Gregório e Campinas.

Uma explicação etimológica sobre este etnônimo é dada por Carvalho (2019CARVALHO, F. O. de. On the Etymology of the Ethnonym Katukina. Revista Brasileira de Línguas Indígenas, Macapá, v. 2, n. 1, p. 05-16, jan./jun. 2019.). Este linguista reivindica que ‘katukina’ se origina de uma expressão em Aruák. A expressão seria orginalmente ‘katukanɨ, em que ‘ka-’ é o prefixo atributivo das línguas Aruák para expressar posse e ‘-tukanɨ’ é uma raiz de verbo que significa 'falar'. Deste modo, ‘katukanɨ’ significaria algo como 'aquele que tem uma fala (uma língua indígena)’. Adaptado à variedade do português local, considerando-se a adaptação das duas vogais finais por metátese, tem-se, conforme este autor, ‘katukina’ designando ‘falantes de uma língua indígena’, e de maneira mais geral ‘indígenas’.

De um ponto de vista histórico-discursivo, este etnônimo incorporado à fala do não indígena assumiu novos sentidos ao longo do tempo. Ao marcar, incialmente, uma divisão entre não indígenas e indígenas locais, ‘katukina’ passou a designar ‘índios dóceis’ ou ‘amansados’, fazendo oposição a grupos indígenas que o branco considerasse ‘brabos’ ou ‘rebeldes’. Essa interpretação levou certos grupos indígenas, como os da família pano dos rios Gregório e Campinas, a ressignificarem o termo como autodesignação para evitar a violência do contato.

Lida de modo transparente como classificação de uma identidade indígena no discurso ocidental, ‘cathuquenas’ (ou ‘katukinas’) é encaixada metonimicamente na posição de núcleo de sintagma nominal como, por exemplo, no discurso da linguística: (c) Os textos recolhidos com os katukina do Biá foram narrados principalmente pelos falantes mais velhos das aldeias e pelos chefes.4 4 Formulação extraída da Gramática Katukina-Kanamari elaborada por Anjos (2011).

Tendo indicado, nesta formulação, a discrepância de um etnônimo por relação a não-ditos da memória indígena e memória ocidental, cabe destacar também a discrepância do etnônimo aporiná em Matos (1845), que se registra, então, pela primeira vez no arquivo ocidental.

Em uma visada histórica, no registro do contato indígena-ocidental no Purus, é em Matos (1845) que lemos, pela primeira vez, um nome próprio para interpretar a sociedade apurinã. No relatório desse militar, se lê: “Arapá - Ciuni - Aporiná - Canamaré, e nesta Nação o dito Encarnação encontrou... de um Povo já tratável e conhecido” (Matos, 1845, p. 171, grifo meu). Embora, não haja uma explicação etimológica e linguística para a origem e formação da palavra apurinã, há documentos em que se pode depreender o funcionamento histórico-discursivo dessa palavra na memória ocidental. Ehrenreich (1891EHRENREICH, P. Beiträge zur Völkerkunde Brasiliens. Berlin: W. Spemann, 1891.) postula uma origem para o etnônimo apurinã, cujo argumento não é sustentado por procedimentos linguísticos. Para este etnólogo, a denominação seria dada por indígenas autodenominados katawixi da família linguística katukina-kanamari, provavelmente extintos ou isolados (cf. Anjos, 2011ANJOS, Z. dos. Fonologia e Gramática Katukina-Kanamari. Amsterdam, 2011. 430 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Faculteit der Letteren, Vrije Universiteit, Amsterdam, 2011.).

Apurinã seria, conforme Facundes (2000FACUNDES, S. The Language of the Apurinã People of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Lingüística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000., p. 03), “apenas mais um exemplo de um grupo indígena sendo nomeado com base em como foi chamado (geralmente depreciativamente) no passado por um grupo [indígena] vizinho”. Esta citação indica a necessidade de nomear do outro indígena (do povo katawixi) e do outro não indígena (de regatões, de comerciantes, de seringueiros etc.) em decorrência da alteridade do contato. Trata-se de uma nomeação cuja circulação se iniciou fora do espaço de memória da língua apurinã e das línguas ocidentais. Ela não carregaria um sentido territorial ou identitário primeiro, mas a designação de um possível atributo que marcava a distinção dos apurinã dentre os outros indígenas da região.

Na compreensão das relações de sentido que fixaram a intepretação étnica do nome apurinã na cena da colonização, observa-se que outros nomes indígenas para designar o mesmo referente, ‘a sociedade indígena y’, comparecem em escritos da época como alternativa: Kankite, Kankutu, Kankiti, Kankete, Cangiti, Canguite e Kaxarari. Temos, nestas nomeações, uma construção discursiva do referente que expõe o funcionamento que Orlandi (1989ORLANDI, E. P. Silêncio e implícito (produzindo a monofonia). In: GUIMARÃES, E. (org.). História e sentido na linguagem. Campinas: Pontes, 1989. p. 39-46., p. 42) classifica como “política da palavra”, em que “a denominação acarreta um silêncio. Toda fala instala espaços de silêncio e o ato de nomear recorta esses espaços”. Nessas condições históricas, para que o etnônimo apurinã significasse sob o efeito da monofonia, outras nomeações foram silenciadas, tais como “cangyty” (Polak, 1894, p. 3), “kaxarari” (Facundes, 2000FACUNDES, S. The Language of the Apurinã People of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Lingüística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000., p. 3). Os sentidos destas denominações são descartados socialmente, mas significam como “o não-dito não necessário ao dito, o não-dito necessariamente excluído” (Orlandi, 1989, p. 42).

Podemos dizer, ainda, que à evidência do sentido étnico de apurinã no discurso do colonizador do século XIX subjazem, para além do silêncio provocado pela monofonia da palavra, outros não-ditos necessários a sua legibilidade.

Deste modo, ao recorrermos ao processo de reescrituração (cf. Guimarães, 2002GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação. Campinas: Pontes, 2002.) em Matos (1845), constatamos que ‘aporiná’ está ligada a expressões como ‘indígenas já domesticados’, ‘indígenas ainda bravios’, ‘gentilidade bravia’, ‘selvagens’ e ‘bárbaros’. Trata-se de expressões que orientavam a leitura da diversidade étnica nos rios do Amazonas e, por consequência, das sociedades autóctones do Purus. De modo que, atravessados por essas determinações linguísticas, se leem, em documentos posteriores a Matos (1845), formulações tais como: (d) The Hypurinás are the most numerous and most warlike of the Tribe in this region5 5 Formulação da obra Narrative of a visit to indian tribes of the Purus River, Brazil (Steere, 1903). . (e) Os Apurinã são ao longo de todo o Médio Purus os únicos representantes da família linguística Arawak6 6 Formulação da obra Levantamento Etnoecológico das Terras Indígenas do Complexo Médio Purus II: Paumari do Lago Marahã, Paumari do Rio Ituxi e Jarawara/Jamamadi/Kanamati (Schröeder; Costa, 2008). .

Mas recordemos que as palavras e expressões não possuem uma “vida” morfológica ou lexical independente da sintaxe e da semântica. E que aporiná só chega ao seu efeito de pré-construído (enquanto etnônimo) mediado pelas relações predicativas que são anteriores e exteriores à atualidade de sua enunciação no relatório de Matos (1845). Queremos pontuar com isso, de um ponto de vista discursivo, o caráter material do sentido de ‘aporiná’ como nome próprio de uma sociedade no discurso desse militar. Sua estabilidade semântica remonta a uma exterioridade e anterioridade indígena, mesmo que não haja documentos mais antigos por meio dos quais se reconstitua um lastro de memória. Supomos, assim, que antes de tal registro, neste relatório, tal nomeação circulava apenas na oralidade. Mesmo com tal obstáculo documental, o encaixe/articulação do nome próprio ‘aporiná’ em Matos (1845), que já era uma evidência na oralidade, pode ser considerado como uma “abreviação” resultante de operações de predicação anteriores: índios/indígenas que habitam o rio Purus (o N que VN), aqueles que são uma Nação (aqueles que VN) etc.

Além disso, a única ocorrência de aporiná no relatório pode ser ainda interpretada tanto em relação ao sentido da palavra alma7 7 Essa intepretação se constrói na esteira da imagem que os ocidentais fizeram sobre a humanidade dos indígenas no século XVI, sobre serem dotados ou não de alma, conforme afirma Rodríguez-Alcalá (2018, p. 65): “O confronto com esse Outro colocou em xeque a própria concepção de natureza humana, suscitando a dúvida de se esses seres enigmáticos tinham ‘alma’ ou se eles eram simplesmente animais”. , quanto em relação ao sentido da palavra fogos8 8 Conforme lemos em Silva (1823, p. 872) e em Constancio (1836, p. 578), esta palavra designa uma classe de habitante das povoações em uma monarquia. Tratava-se, especificamente, de um casal ou de uma família que, por viver em terras cujo proprietário era o próprio rei ou imperador, deveria pagar anualmente uma espécie de aluguel (em dinheiro ou em mantimento), que era denominado ‘foro’ ou ‘fogo’. Portanto, os ‘fogos’ eram ‘aqueles que pagavam fogos à Coroa’. . Isso porque os indígenas do Purus poderiam ser interpretados pelo viajante por relação a almas, se significados a partir das expectativas de sua conversão, ou significados como fogos, desde que habitassem vilas, povoados e freguesias. Ao se referir à Vila de Barcelos, por exemplo, Matos (1845, p. 147, grifo meu) marca a interpretação de tapuio como fogos: “A População consistia em setenta e quatro fogos, quando na era de 1790 contava com 640 fogos, entre Brancos, Mamelucos, Tapuias, Mestiços e Pretos, e trinta a 40 escravos”. E ao se referir às povoações do Rio Branco, marca os Macuxis e os Oapixanas como almas: “essas Povoações ocupavam em si um total de setenta e dois fogos e novecentos e trinta Almas das nações Macuxis e Oapixanas” (Matos, 1845, p. 149, grifos meus).

Além dos topônimos e dos etnônimos sob o efeito da evidência como discrepância de uma exterioridade indígena, lemos também, no relatório, nomes comuns relacionados a esta mesma exterioridade. Alguns desses nomes são definidos pelo militar no corpo do relatório. Para tais definições há um retorno do autor ao sentido da palavra, isto é, há pontos de formulação metalinguística. Ao destacarmos uma interdiscursividade indígena a partir de discrepâncias caracterizadas por uma heterogeneidade constitutiva (como mostramos no caso de urariquera, cathuquenas e aporiná, acima) damos continuidade, a seguir, à observação de algumas formas de modalização autonímica, que jogam com a heterogeneidade mostrada.

Na direção dos pontos de opacificação em que a língua se torna objeto do dizer, lemos a definição de curral para a palavra caisçara: “É preciso formar currais para deposito do Gado pressionado, a que chamam Caisçara” (Matos, 1845, p. 164, grifos meus). A palavra parunumere (ou paranamery) é definida como rio pequeno e estreito. Podemos lê-la em duas passagens: “Depois deste Rio segue um Parunumere (rio pequeno e estreito) denominado Mereunim” (Matos, 1845, p. 171, grifos meus), e em “O rio é agradável em si [Canumã]; livre de toda praga, e desagua em um paranamery (rio pequeno), que tem de curso até turbar-se com as águas do Amazonas” (Matos, 1845, p. 173, grifos meus).

Existem duas ocorrências da palavra igarapé; em ambas, ela é definida como rio pequeno, a partir de vozes tapuias, segundo o próprio autor: “No pequeno Rio que as Tapuias do País lhe chamam Igarapé denominado Invixi, habitado por indígenas da Nação Guariba, ainda bravios” (Matos, 1845, p. 168, grifos meus) e “No igarapé (rio pequeno) Thuman, habitam as nações Amarunan e Ciriuini, a maior parte destas são bárbaros” (Matos, 1845, p. 172, grifos meus). À palavra canaina, que o viajante diz ser de origem Iaricuna, é atribuído o significado de feiticeiro: “a Nação Iaricuna, vivendo do astucioso sistema de feiticeiro para aterrar as outras Nações incrédulas dizendo, que não é Deus que os mata, que são os feiticeiros dessa nação que lhe dão o nome de Canaina” (Matos, 1845, p, 176, grifos meus).

Do ponto de vista de sua relação com a heterogeneidade, com o interdiscurso, estes desdobramentos metaenunciativos no discurso de Matos (1845) podem ser caracterizados como formas de representação de fatos de não-coincidência do discurso consigo mesmo. Estas glosas ou unidades lexicais dispersas no relatório deste autor “assinalam entre suas palavras a presença estranha de palavras marcadas como pertencendo a outro discurso [...] esboçando em si o traçado de uma interior/exterior” (Authier-Revuz, 1998, p. 23). A fronteira aí estabelecida é do tipo que marca a diferença entre línguas/dialetos. A extensão destas unidades lexicais é composta pelo signo autônimo X assinalado como elemento de empréstimo, pelo seu desdobramento reflexivo opacificante X’ no “discurso interior” e pela especificação da fonte exterior.

Nas retomadas opacificantes de caisçara, parunumere (ou paranamery), igarapé e canaina, seu enunciador reconhece em suas palavras uma fonte estranha. A estrutura dessas modalizações se configura nas seguintes formas: acoplagem centrípeta de elementos, exterior e interior: um Parunumere (rio pequeno e estreito) e igarapé (rio pequeno); e acoplagem centrífuga de elementos, interior e exterior: currais para deposito do Gado pressionado, a que chamam Caisçara; pequeno Rio que as Tapuias do País lhe chamam Igarapé; e os feiticeiros dessa nação que lhe dão o nome de Canaina. As expressões as Tapuias e a Nação Iaricuna são únicas formas de identificação da fonte exterior dentre as formulações metalinguísticas em Matos (1845).

As definições destes nomes são traços importantes de uma discursividade sobre o léxico de origem indígena na Amazônia. A partir delas se destacam saberes linguísticos no discurso das descobertas dessa região. Trata-se de um retorno do sujeito ao sentido das palavras em seu próprio fio discursivo, pelo qual se produz o “enunciado definidor” (Mazière, 1995, p. 14). Caracterizada pela opacificação do dizer, essa forma metalinguística reporta ao leitor uma definição sincrônica em uso. Vê-se, nessa forma, a enunciação de uma palavra ou expressão que “em vez de realizar-se “simplesmente”, no esquecimento que acompanha as evidências inquestionáveis, desdobra-se como um comentário sobre si” (Authier-Revuz, 1998, p. 14).

4 CONCLUSÃO

A eficácia dos pressupostos teórico-metodológicos que adotamos para buscar o momento em que a língua apurinã se torna objeto de reflexão sistemática na memória ocidental se dá por meio de “achados” históricos obtidos na análise das materialidades no discurso das descobertas do rio Purus. Com base nesses achados, é possível indicar o lugar de João Henrique de Matos na história da língua Apurinã, ao apreendermos processos discursivos, considerando o um e o não-um do sentido das palavras e expressões na comunicação (cf. Authier-Revuz, 1998). O cerne desta apreensão está na compreensão de formas de discrepâncias do interdiscurso (efeitos de pré-construído e efeitos de articulação) enquanto formulações cartográficas, formulações etnográficas e formulações metalinguísticas.

Como interpretações acerca de sujeitos, de espaços e de línguas, estas formulações informam sobre modos de ser e estar no mundo, cuja historicidade é outra, com ampla margem de desconhecimento. Assim, diante da cena do contato, as formulações cartográficas e etnográficas para dizer esse outro radical, em Matos (1845), tem sua discrepância em relação ao interdiscurso calcada nos efeitos de pré-construído e de sustentação na ordem do um do sentido, isto é, dos efeitos de literalidade. Já a discrepância das formulações metalinguísticas, neste autor, calca-se nos efeitos de pré-construído e de sustentação na ordem do não-um do sentido, da opacificação. De todo modo, a palavra indígena, nestas duas ordens de significação, comparece como material simbólico na publicização das descobertas do Alto Amazonas.

Nisso, apreendemos certos trajetos de sentido que são estabelecidos por relação a uma memória indígena, como exterior específico do relatório de Matos (1845). São ecos interdiscursivos cujos efeitos ilustramos ao indicarmos as relações semânticas, anteriores e exteriores, das palavras urariquera, cathuquenas e aporiná, bem como ao descrevermos os pontos de reflexividade opacificante sob o quais se estruturam as unidades lexicais no relatório (ver seção 3.2, acima). A caracterização dessa exterioridade, do lado de uma abordagem discursiva da história das ideias linguísticas, dá subsídio para apontar o caráter material da constituição do observatório ocidental das formas de vida no rio Purus, no qual se inscrevem os processos de gramatização do apurinã. Nesse sentido, o arquivo é a base em que se encontram interpretações sobre fatos das línguas, dos sujeitos e dos espaços envolvidos no contato na Amazônia.

Diante disso, embora o relatório de Matos (1845) seja o primeiro documento a registrar o nome da sociedade apurinã (aporiná), não há nele qualquer traço de uma reflexão sistemática sobre a língua apurinã. Neste documento, mais especificamente sobre esta língua, não há unidades lexicais, categorias, exemplos ou regras gramaticais. Contudo, por causa do saber etnográfico que o atravessa, reproduz-se, em sua superfície linguístico-discursiva, indiretamente, uma imagem de unidade isotópica para o apurinã. Isso porque as classificações dos povos autóctones, estabilizadas ao longo do século XIX, pressupõem a percepção de “uma massa linguística de mesma origem” (Auroux, 2014AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi. 3. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014 [1992]., p. 70). Logo, tem-se aí uma imagem-sentido de unidade linguística que funciona como não-dito pelo qual se sustenta a coerência de aporiná, ao lado de outros etnônimos, em Matos (1845).

REFERÊNCIAS

  • ANDRADE, M. de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Edição crítica de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1978.
  • ANJOS, Z. dos. Fonologia e Gramática Katukina-Kanamari. Amsterdam, 2011. 430 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Faculteit der Letteren, Vrije Universiteit, Amsterdam, 2011.
  • AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi. 3. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014 [1992].
  • AUROUX, S.; MAZIERE, F. Introduction: Hyperlangues, modèles de grammatisation, réduction et autonomisation des langues. Histoire Épistémologie Langage, Paris, v. 28, n. 2, p. 7-17, 2006.
  • AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Campinas: Ed. da Unicamp, 1998. (Coleção Repertórios)
  • CARVALHO, F. O. de. On the Etymology of the Ethnonym Katukina. Revista Brasileira de Línguas Indígenas, Macapá, v. 2, n. 1, p. 05-16, jan./jun. 2019.
  • EHRENREICH, P. Beiträge zur Völkerkunde Brasiliens. Berlin: W. Spemann, 1891.
  • EHRENREICH, P. Contribuições para a etnologia do Brasil. Revista do Museu Paulista, São Paulo, v. 2, p. 7-135, 1948.
  • FACUNDES, S. The Language of the Apurinã People of Brazil (Maipure/Arawak). Buffalo, 2000, 674 f. Tese (PhD em Lingüística) - Faculty of the Graduate School, State University of New York, Buffalo, 2000.
  • GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação. Campinas: Pontes, 2002.
  • HENRIQUE, M. C. Sem Vieira nem Pombal: índios na Amazônia no século XIX. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2018.
  • KOCH-GRÜNBERG, T. Os últimos dias Koimélemong e São Marcos. In: KOCH-GRÜNBERG, T. Do Roraima ao Orinoco: observações de uma viagem pelo norte do Brasil e pela Venezuela durante os anos de 1911 a 1913. Trad. de Cristina Alberts-Franco. São Paulo: Unesp, 2006 [1917]. p. 137-150.
  • MATOS, J. H. de. Relatório do estado de decadência em que se acha o Alto Amazonas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 325, out./dez., Brasília, Rio de Janeiro, p. 143-180, 1979 [1845].
  • NUNES, J. H. Dicionários no Brasil: análise e história. Campinas: Pontes, 2006.
  • NUNES, J. H. Discurso e instrumentos linguísticos no Brasil: dos relatos de viajantes aos primeiros dicionários. Campinas, 1996. 267 f. Tese (Dourado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1996.
  • ORLANDI, E. P. Silêncio e implícito (produzindo a monofonia). In: GUIMARÃES, E. (org.). História e sentido na linguagem. Campinas: Pontes, 1989. p. 39-46.
  • ORLANDI, E. P. Discurso e argumentação: um observatório do político. Fórum Linguístico, Florianópolis, n. 1, p. 73-81, jul./dez. 1998.
  • ORLANDI, E. P. Terra à vista - discursos do confronto: Velho e o Novo Mundo. 2. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2008.
  • ORLANDI, E. P. Língua brasileira e outras histórias: discurso sobre a língua e ensino no Brasil. Campinas: Ed. RG, 2009.
  • PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi et al. 5. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2014.
  • RODRÍGUEZ-ALCALÁ, C. Escrita e gramática como tecnologias urbanas: a cidade na história das ideias linguísticas. Caderno de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 53, n. 2, p. 197-217, jul./dez., 2011.
  • SPOTTI, C. V. N. Estudo toponímico de origem indígena em Roraima: rio Uraricoera. Cadernos do CNLF, Rio de Janeiro, v. 15, n. 5, t. 2, p. 1759-1791, 2011.
  • STEERE, J. B. Narrative of a Visit to Indian Tribes of the Purus River, Brazil. Report of the United States National Museum for 1901. Washington: Government Printing Office, 1903. p. 359-393.
  • 1
    O caráter utilitário dessas descrições e instrumentações varia ao longo do tempo, de modo que o trabalho linguístico serve a distintas práticas: proselitismo cristão, categorização naturalista, pedagogia das línguas, pesquisa acadêmica etc.
  • 2
    Segundo Orlandi (2008ORLANDI, E. P. Terra à vista - discursos do confronto: Velho e o Novo Mundo. 2. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2008.), o poder político nas sociedades capitalistas é exercido pelo amor à pátria como forma de assegurar a submissão do cidadão. Nesse sentido, consideramos que a sociedade brasileira, em 1845, por meio de suas esferas de poder, visaria à consolidação de sua ideologia de Estado, pela manutenção do imaginário de suas fronteiras e pela execução de uma política indigenista voltada à homogeneização social. A meta era que os índios fossem confundidos na massa da população brasileira. A própria política indigenista no século XIX, como instrumento político-ideológico, alimenta o processo de consolidação das fronteiras do país (cf. Henrique, 2018HENRIQUE, M. C. Sem Vieira nem Pombal: índios na Amazônia no século XIX. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2018.).
  • 3
    Mobilizamos as expressões elementos lexicais e unidades lexicais de modo distinto, a partir de Nunes (2006NUNES, J. H. Dicionários no Brasil: análise e história. Campinas: Pontes, 2006.), para quem, aquela designa a unidade empírica da palavra, e esta, a extensão de uma reformulação metalinguística (auto-representação do dizer), como as glosas ou os verbetes.
  • 4
    Formulação extraída da Gramática Katukina-Kanamari elaborada por Anjos (2011ANJOS, Z. dos. Fonologia e Gramática Katukina-Kanamari. Amsterdam, 2011. 430 f. Tese (Doutorado em Linguística) - Faculteit der Letteren, Vrije Universiteit, Amsterdam, 2011.).
  • 5
    Formulação da obra Narrative of a visit to indian tribes of the Purus River, Brazil (Steere, 1903STEERE, J. B. Narrative of a Visit to Indian Tribes of the Purus River, Brazil. Report of the United States National Museum for 1901. Washington: Government Printing Office, 1903. p. 359-393.).
  • 6
    Formulação da obra Levantamento Etnoecológico das Terras Indígenas do Complexo Médio Purus II: Paumari do Lago Marahã, Paumari do Rio Ituxi e Jarawara/Jamamadi/Kanamati (Schröeder; Costa, 2008).
  • 7
    Essa intepretação se constrói na esteira da imagem que os ocidentais fizeram sobre a humanidade dos indígenas no século XVI, sobre serem dotados ou não de alma, conforme afirma Rodríguez-Alcalá (2018, p. 65): “O confronto com esse Outro colocou em xeque a própria concepção de natureza humana, suscitando a dúvida de se esses seres enigmáticos tinham ‘alma’ ou se eles eram simplesmente animais”.
  • 8
    Conforme lemos em Silva (1823, p. 872) e em Constancio (1836, p. 578), esta palavra designa uma classe de habitante das povoações em uma monarquia. Tratava-se, especificamente, de um casal ou de uma família que, por viver em terras cujo proprietário era o próprio rei ou imperador, deveria pagar anualmente uma espécie de aluguel (em dinheiro ou em mantimento), que era denominado ‘foro’ ou ‘fogo’. Portanto, os ‘fogos’ eram ‘aqueles que pagavam fogos à Coroa’.

Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2022
  • Aceito
    20 Dez 2023
Universidade do Sul de Santa Catarina Av. José Acácio Moreira, 787 - Caixa Postal 370, Dehon - 88704.900 - Tubarão-SC- Brasil, Tel: (55 48) 3621-3369, Fax: (55 48) 3621-3036 - Tubarão - SC - Brazil
E-mail: lemd@unisul.br