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“DIÁLOGO DE SURDOS”: A CIÊNCIA COMO ESCUDO

“Dialogue with the Deaf”: Science as a Shield

“Diálogo de sordos”: la ciencia como escudo

Resumo

Tendo a Análise de Discurso de linha francesa como fundamento, com este ensaio, tenho o objetivo de analisar os discursos de Caroline de Toni, deputada federal pelo Partido Liberal de Santa Catarina, e de José Geraldo de Souza, professor pesquisador sênior da Universidade de Brasília (UnB), na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), ocorrida em 2023, sobre o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST). Pretendo verificar em que consiste a discrepância e a clivagem entre eles, além de detectar o que constitui o funcionamento de cada um. Por fim, volto a atenção ao que motiva o recurso à ciência por parte deles, já que ela aparece sobredeterminada por um efeito de proteção a filiações ideológicas, o que significa que, às vezes, sendo retirada do terreno puramente demonstrativo, a ciência é usada para defesa de pontos de vista.

Palavras-chave:
Discurso; Polêmica; Contradição; Filiação Ideológica; Alienação

Abstract

Based on French discourse analysis, with this essay, I aim to analyze the speeches of Caroline de Toni, federal deputy for the Liberal Party of Santa Catarina, and José Geraldo de Souza, senior professor and researcher at the University of Brasília (UnB), at the Joint Parliamentary Commission of Inquiry (CPMI in Portuguese) on the Landless Rural Workers’ Movement (MST in Portuguese), which took place in 2023. I intend to verify the discrepancy and cleavage between them and examine what constitutes the functioning of each one. Finally, I focus on what motivates their appeal to science since it appears overdetermined by an effect of protecting ideological affiliations, which means that, sometimes, when removed from its purely demonstrative terrain, science is used to defend points of view.

Keywords:
Discourse; Controversy; Contradiction; Ideological Affiliation; Alienation

Resumen

Basado em análisis del discurso francés, con este estudio, objetivo analizar los discursos de Caroline de Toni, diputada federal por el Partido Liberal (Santa Catarina), y de José Geraldo de Souza, profesor investigador sénior de la Universidad de Brasilia (UnB), en la Comisión Parlamentaria Mixta de Investigación (CPMI), que tuvo lugar en 2023, sobre el Movimiento de los Trabajadores Sin Tierra (MST). Pretendo verificar en qué consiste la discrepancia y el clivaje entre ellos, además de detectar en qué constituye el funcionamiento de cada uno. Por último, dirijo mi atención a lo que motiva el recurso de ellos a la ciencia, ya que ésta aparece sobredeterminada por un efecto de protección de las filiaciones ideológicas, lo que significa que, a veces, alejada de su terreno puramente demostrativo, la ciencia es utilizada para la defensa de puntos de vista.

Palabras clave:
Discurso; Polémica; Contradicción; Filiación Ideológica; Alienación

Na raiz do conhecimento, Nietzsche não coloca uma espécie de afeição, de impulso ou de paixão que nos faria gostar do objeto a conhecer, mas, ao contrário, impulsos que nos colocam em posição de ódio, desprezo ou temor diante de coisas que são ameaçadoras e presunçosas (Foucault, 2013FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Eduardo Jardim e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2013., p. 30).

1 INTRODUÇÃO

Em 15 de junho de 2023, sob a conjuntura da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), ocorreu um embate entre a deputada federal Caroline de Toni, filiada ao Partido Liberal (PL) de Santa Catarina, e o professor pesquisador sênior José Geraldo de Souza, da Universidade de Brasília (UnB)1 1 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OlPRGjDVSvs. Acesso em: 10 nov. 2023. . Postados em filiações ideológicas contraditórias, houve, de um lado, um ataque contundente ao movimento, e de outro, o menosprezo em relação à capacidade de compreensão sobre o que constitui a pauta do MST. Nos dois casos, concordando com Bourdieu (2011BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011., p. 145), pode-se perceber a “[...] aplicação de esquemas de construção que, como por exemplo, os pares de adjetivos empregados para enunciar a maior parte dos juízos sociais, são produto da incorporação das estruturas a que eles se aplicam”.

De sua parte, a deputada buscava cercar-se de argumentos para defender sua mirada ideológica, optando por um ângulo de seleção do que seria conveniente mostrar ou apagar, à luz do discurso que a determina; por seu turno, o professor, tendo defendido seu posicionamento, recusou-se a rebater os dados trazidos pela deputada e tergiversou sobre ter o que debater com a parlamentar. Na tentativa inglória de trazer o adversário para o próprio horizonte de percepção, o conflito se reduziu a um falso debate, no qual nenhum dos dois concedeu espaço ao outro, dado que cada um estava inserido, conforme Althusser (2022ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de estado. Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro; introdução crítica de J. A. Guilhon Albuquerque. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2022., p. 90), num “[...] sistema de ideias, de representações que domina o espírito de um homem ou de um grupo social”.

Neste texto, objetivo analisar tanto o discurso da deputada, buscando perceber em que consiste seu funcionamento enquanto injunções que pesam sobre a seleção do que dizer e apagar, como o discurso do docente, no que tange à escolha de não confrontar os fatos trazidos pela parlamentar, recorrendo a uma tese científica para desqualificar a oponente. No limite, argumento que o que ocorreu foi, de acordo com Maingueneau (1989MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Tradução de Freda Indursky. Campinas: Pontes, 1989., p. 120), um “[...] diálogo de surdos”, já que os sujeitos, interpelados ideologicamente, “[...] no interior do mesmo idioma, ‘não falam a mesma língua’”; ou, nas palavras de Pêcheux (1995PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi et al. 2. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 1995., p. 93), “[...] as contradições ideológicas que se desenvolvem através da unidade da língua são constituídas pelas relações contraditórias que mantêm entre si os ‘processos discursivos’”.

Para além da “surdez”, no sentido atribuído por Maingueneau (1989MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Tradução de Freda Indursky. Campinas: Pontes, 1989.), e da alienação que dela decorre, já que tanto a deputada quanto o professor estão encastelados em discursos infensos um ao outro, não suportando o que não é espelho, pretendo chamar a atenção para uma problemática que me parece relevante: o recurso a um postulado cientifico pode ser, às vezes, apenas uma maneira de sustentar uma filiação ideológica por meio do uso do discurso demonstrativo. Em outros termos, às vezes, o discurso da ciência é o alicerce de defesa para a sustentação de um discurso ideológico que denega sua constituição parcial e seletiva.

Antes de passar ao desenvolvimento do trabalho, faço quatro alertas.

O primeiro é que conduzo a escrita ao estilo de um ensaio, o que significa que, mais do que comprovar uma regularidade, busco apontá-la como problemática que pode vir a ser investigada no que tange à recorrência em outros fenômenos observáveis. Neste caso, tem-se, no limite, o que distingue uma dissertação de uma tese, dado que a primeira busca a comprovação sistemática de um fato, enquanto a segunda se destina mais a propor uma questão não bem esquadrinhada ou percebida, embora não se desobrigue de comprovar o que afirma. Ajo, portanto, ao sabor do que afirma Foucault (2013FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Eduardo Jardim e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2013., p. 12), que considera um ensaio como “[...] uma experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação”.

O segundo é relativo à unidade de sentido que busco manter no texto, postulando que o recurso à ciência é, às vezes, uma forma não de considerá-la em seu campo natural de constituição, mas de deslocá-la para outros domínios, tornando-a reforço para posições ideológicas, concebidas por Althusser (2022ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de estado. Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro; introdução crítica de J. A. Guilhon Albuquerque. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2022., p. 203) não como “[...] o sistema das relações reais que governam a existência dos indivíduos, mas sim a relação imaginária desses indivíduos com as relações reais sob as quais vivem”.

O terceiro leva em conta o fato de que o leitor sempre pode encontrar uma via inesperada de intepretação e, portanto, faço este alerta na tentativa (talvez inglória) de garantir minimamente o percurso de reflexão que busco construir. Ao tratar da “ciência como escudo”, o leitor pode ser levado a entender que defendo que a ciência é proteção contra a ideologia, por exemplo. Mas, reitero: o fio de leitura que proponho é que, como o corpus selecionado permite mostrar, muitas vezes a ciência é mobilizada como garantia para uma filiação ideológica considerada melhor do que outra, apagando-se seu valor autóctone e conduzindo a um “diálogo de surdos”.

Por fim, o quarto alerta se refere à escolha de conduzir a discussão de uma forma relativamente livre em termos teóricos, sem a preocupação - que é legítima, mas impede um avanço mais abrangente do conhecimento - de definir, a cada momento, uma palavra, um termo ou um conceito utilizado. Para os iniciados, este cuidado não é tão necessário, já que eles preenchem as lacunas que possam surgir. Para os não-iniciados, a leitura do estudo não me parece comprometida, já que o corpus, enquanto “evidência” prática, dá o suporte necessário para a compreensão. Interessa-me, portanto, sobretudo, apontar o que julgo ser uma problemática presente no material analisado.

2 SOBRE O DISCURSO DA DEPUTADA

Antes de passar ao tratamento específico dos dados, faço um esclarecimento sobre a seleção do corpus e das sequências discursivas utilizadas. Tanto o discurso da deputada quanto o do professor foram publicados no Facebook (ver nota 1). Por não se tratar de analisá-los com exaustão, mas de pinçar o que de sua regularidade de funcionamento revela a tese que defendo, eles serão recortados em fragmentos, mantendo a perspectiva ideológica. Recortá-los em excertos não compromete o todo de que fazem parte e o leitor pode recorrer à postagem para confirmar/refutar a tese. Considerando que os dois discursos são longos, limito-me, pois, a analisar recortes de um e de outro por referência ao objetivo aqui proposto; em última instância, eles quase correspondem ao todo de cada “texto” e permitem fidelidade a suas perspectivas ideológicas.

Nesta seção, analiso o discurso da deputada, para verificar como representa seu outro, seja o MST, seus líderes, sua produção e o professor com quem debate, ou a si mesma e à mirada política de que é suporte (seu Outro ideológico), sob uma avaliação positiva em detrimento da do oponente. Já que analisar discurso exige a observação da materialidade formal de que se reveste, considero a previsão de Eco (1993ECO, H. Interpretação e superinterpretação. Tradução de MF. São Paulo: Martins Fontes, 1993 (Coleção Tópicos)., p. 28) de que “[...] as palavras trazidas pelo autor são um conjunto um tanto embaraçoso de evidências materiais que o leitor não pode deixar passar em silêncio, nem em barulho”. Isso pode (impõe) levá-lo a se aproximar da análise de conteúdo, que não deixa, no limite, de ser uma exigência para alcançar o discurso como uma das formas da “[...] existência material da ideologia” (Althusser, 1990, p. 204), já que “[...] as ‘ideias’ não têm de modo algum, como tende a fazer crer a ideologia da ideia, uma existência ideal [idéale] ideada [idéelle] ou espiritual, mas uma existência material” (p. 176, grifos do autor).

(SD1) Só que nós gostaríamos de fazer um apelo pro senhor, pra que o senhor também, se puder, se for possível, acompanhe in loco, na prática, e não só, saindo um pouco da academia, coisas que nós temos constatado acerca dos movimentos de reforma agrária.

Após breve introdução, a deputada passa a tratar do tema da CPMI por meio de uma cisão entre “nós”, no qual se inclui e é contrário à reforma agrária, e você, “o senhor”, postado no mirante contrário, ocupando a tribuna para defender o movimento. A cisão, que cria um fosso entre os adversários, permite prever que a relação discursiva acontecerá sob o diapasão da discordância e, portanto, da polêmica. O “nós” contrário ao MST está diante de alguém favorável ao movimento e, neste sentido, há uma lacuna instransponível para os colocados à direita e à esquerda passarem a ocupar a posição oposta, cada um definindo “[...] o universo do que pode ser dito e pensado politicamente, por oposição ao que é relegado para o indizível e o impensável” (Bourdieu, 2011BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011., p. 170).

Criado o fosso entre as tomadas de posição e assumindo a que se contrapõe ao MST, o lance seguinte cria uma clivagem2 2 Contra os pressupostos da “[...] existência de uma unidade do espírito humano” ou “[...] a existência de uma unidade disso que chamamos de a sociedade”, Pêcheux (2011, p. 208) defende que se deve “[...] pôr em evidência [...] uma clivagem entre várias maneiras de falar, várias maneiras de entender-se ou de não se entender” (p. 211-212), o que significa que, “[...] no interior de uma mesma língua, existem clivagens devidas ao fato de que certos textos não têm os mesmos referentes, as mesmas relações, as mesmas ancoragens que outros textos, e que o conjunto dos discursos tais como podemos encontrar num momento dado da sincronia de uma língua remete em definitivo a referentes diferentes” e a uma “[...] quebra no nível da referência” (p. 212). que põe uma, a do adversário, sob o diapasão da alienação, e a outra, a “própria”, da lucidez. Quanto ao professor (e seu grupo), caberia sair “um pouco da academia” e tomar pé da realidade, superando o saber pautado na teoria e não na prática (velho chavão do desencontro entre abstração e experiência). Quanto à deputada, ela e o “nós”, submetidos ao Sujeito, teriam o conhecimento verdadeiro das “coisas” constatadas “acerca dos movimentos de reforma agrária”, “in loco, na prática”. Entre o autoelogio e a desqualificação, o discurso criou a fissura desejada para apresentar as “constatações”, ignorando que, em face das injunções ideológicas que assombram os discursos, elas não são o todo, mas pequenos vislumbres metonímicos que, espraiando-se, tratam a parte como o todo, desmerecendo um saber “insustentável”, porque produzido na academia. Assim, é possível prever que o MST e o que a ele se alie será representado de forma invertida, não havendo redenção para nada que ele realize.

Tendo sido interrompida pelo burburinho dos presentes, a deputada retoma a palavra. Reiterando o que já havia dito, introduz um novo ingrediente que, como se percebe, conduzirá o fio de sua reflexão e o conjunto de argumentos de que se valerá.

(SD2) o professor também pra que, se pudesse, acompanhasse um pouco da prática desses movimentos sociais que lutam pela terra e também as estatísticas que venham por meio da reforma agrária.

Ratificando a fissura entre o discurso “esclarecido” e outro “de academia”, o novo ingrediente trazido são “as estatísticas”. Elas confeririam confiabilidade à defesa, pois, matematicamente, apreendem a realidade de modo irrefutável, apagando que a Estatística lida com projeções e previsões e nunca está livre de variáveis ou vieses que podem afetar ou sobredeterminar os percentuais levantados. De toda maneira, o acompanhamento “da prática desses movimentos sociais” por parte do professor, para a deputada, o retiraria da academia e colocaria em contato com a realidade dada por dados estatísticos irrecusáveis,

(SD3) porque os números são bem diferentes desse plano ideal e dessa filosofia que se propaga por meio dos movimentos.

Além de confrontar o professor com “números (que) são bem diferentes”, o que reitera a imputação de alienação e de desconhecimento, se ele estivesse disposto a sair da academia e verificar o que ocorre na prática, superando o “plano ideal” que não resistiria ao crivo da experiência, a deputada poderia revelar o engano em que ele se encontra, por causa desta “filosofia que se propaga por meio dos movimentos”. Que filosofia é essa, ela explicita à frente. O que importa reter, por ora, é o desmerecimento de um discurso considerado teórico e pautado numa filosofia que concebe o professor como encastelado numa prática alienante, que não resistiria ao real, se ouvisse o adversário; e, por óbvio, a deputada, que se crê pautada em casos observados e na Estatística. Estão em jogo, de um lado, uma imagem de saber comprovado, pautado na ciência, e, de outro, uma imagem pejorativa de alienação, alicerçada num “plano ideal”. Trata-se para a deputada, portanto, “[...] de uma luta pelo poder propriamente simbólico de fazer ver e fazer crer, de predizer e de descrever, de dar a conhecer e de fazer reconhecer” (Bourdieu, 2011BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011., p. 174).

Passando a apresentar os dados estatísticos que alegou mostrarem que a reforma agrária não cumpre os objetivos de dar terra às pessoas que necessitam, distribuindo-a, e que, portanto, o MST não cumpre o que promete e o discurso que se produz sobre ele é gerado a partir de gabinetes e não da observação prática, a deputada sustenta que os movimentos não “dão a titulação da terra”:

(SD4) Na verdade, a gente percebe [...] que eles não dão a titulação da terra; menos de 10% de todos os assentamentos foram dados títulos de terra para as pessoas. Ou seja, eles mantêm as pessoas cativas desses movimentos por décadas e não dão titulação de terra pra essas pessoas.

De acordo com a deputada, a titularidade foi concedida em “menos de 10%” dos assentamentos. Isso permite concluir que a propriedade foi mantida sob a posse das associações em mais de 90% dos casos. Se, para a parlamentar, o dado é alarmante, deve-se perceber que é apresentado sem relativização sobre a causa. Não há cotejo com razões para a estratégia, não há referência ao tempo da pesquisa, não há informação sobre o que o percentual representa em termos de quantidade de terra e não há indicação sobre quando os assentamentos foram feitos. Ou seja, o percentual, que pode ser correto, é posto como um dado autoexplicativo e a conclusão não problematiza o que ele significa, servindo sem nenhuma contradição, por sua opacidade, ao objetivo de colocar em dúvida a atuação do MST. O dado é tomado como autossuficiente, assumindo que os números falam por si e não há o que contrapor; em face de sua grandiloquência, neste caso, negativa, lançam-se luzes sobre uma face e apagamento e silenciamento sobre a outra.

(SD5) segundo o censo agrário, agropecuário de 2017, menos de 1% só de toda a produção agropecuária brasileira vem de assentamentos, 1%.

Sob a mesma matriz, amparando-se no “censo pecuário, agropecuário de 2017”, a deputada destaca o percentual inexpressivo da “produção agropecuária brasileira”, no que se refere à provinda de assentamentos: “1%”. Em termos percentuais, é inegável que a produção do MST é relativamente baixa, visto que 99% provêm de outros setores, principalmente do latifúndio, cujos interesses Caroline parece defender, embora não o expresse explicitamente. E, de novo, o dado não é relacionado ao percentual de terras do MST e do empresariado rural, de que tipo de produção se trata, que infraestrutura cada setor tem à disposição e qual é o volume de financiamento destinado a cada um, dentre outras nuances que poderiam mostrar que 1% pode ser mais significativo do que 99%, dependendo da perspectiva. É preciso destacar que, se a deputada abordasse os 99%, ela faria a apologia do capital que defende (o que faz de modo implícito). Ao colocar o foco sobre o 1%, ela tem como construir o efeito demeritório que pretende, por meio da seleção sobre o que esconder e o que mostrar, e como salvaguardar, sem precisar designá-los, o setor que defende e a propriedade individual de seus partidários.

(SD6) [...] e a renda média dessas famílias é menos de um salário mínimo por mês; ou seja, vivem realmente numa situação de miserabilidade.

Sob o mesmo prisma - dado numérico autoexplicativo -, a deputada afirma que “a renda média dessas pessoas é menos de um salário mínimo por mês”, de onde deduz que os assentados “vivem realmente numa situação de miserabilidade”. Há que se perguntar o que significa um salário mínimo por mês para quem tira todo o sustento da terra sem ter de investir em supermercado, por exemplo. A renda é pequena, se considerada em termos absolutos; porém, contingenciada no tocante ao que se destina, pode não ser tão insignificante quanto a deputada pretende. Além disso, o discurso gera um efeito que parece questionável: o de que, já que a renda obtida pelas pessoas não as tira da condição de pobreza, os assentamentos poderiam ser eliminados e, com eles, a reforma agrária proposta pelo MST. O que deveria causar alguma estranheza, neste caso, é a pretensa simpatia para com os assentados, já que, em tese, a deputada estaria preocupada com a “miserabilidade” que os aflige. Sobreviver com um salário mínimo seria degradante, pregando, de contrabando, o fim desses espaços.

(SD7) Além disso, outra estatística: 30% de evasão nos assentamentos.

Posso ser mais conciso neste caso, já que não destoa dos demais. Com o aditivo “além disso”, a deputada apresenta outro dado estatístico. Dado que 30% dos assentados se evadem, a reforma agrária e os assentamentos seriam desnecessários. O que é relegado à sombra é o fato, estatístico também, de que 70% das pessoas permanecem assentadas e, por isso, podem estar em melhores condições do que pessoas desempregadas ou que sobrevivem com subempregos ou na informalidade. Porém, o foco se volta para a evasão e não para a permanência, porque o discurso a partir de um prisma de avaliação negativo vai ao encontro da filiação ideológica que a açambarca, fazendo-a lançar luzes sobre um ângulo de observação e não sobre o outro que faria seu discurso desandar. Se me faço entender, em todas as sequências analisadas, traçando uma “[...] fronteira entre o que é politicamente dizível ou indizível, pensável ou impensável” (Bourdieu, 2011BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011., p. 165), o discurso da deputada lança luzes sobre uma faceta, apagando a contraparte, a serviço da mirada que defende o capital, a propriedade privada e o grupo social que ela representa.

Um último recorte pode ser considerado no intuito de mostrar o desmerecimento das atividades do MST por parte da parlamentar:

(SD8) Não sei se o senhor sabe, mas o TCU gerou vários acórdãos de investigação e, de tantas irregularidades que foram cometidas nesses assentamentos, eles recolheram dessas associações, três bilhões de reais foram devolvidos aos cofres públicos por conta de irregularidades no sistema das associações e cooperativas dos CNPJs vinculados aos assentamentos.

Ao sabor da afirmação de que José Geraldo deveria sair da academia e conhecer a realidade, a deputada começa o enunciado com “Não sei se o senhor sabe”. Além disso, por meio de uma entonação derrisória, ela busca colar ao professor a pecha de desinformado e alheio ao mundo real. Para sustentar a suposta alienação, afirma que o Tribunal de Contas da União (TCU) recolheu das “associações três bilhões de reais”, dadas as “irregularidades no sistema das associações e cooperativas dos CNPJs vinculados aos movimentos”; a denúncia deveria ser averiguada e os responsáveis punidos, mas também considerar que montantes de envergadura igual ou superior foram empregados e criaram assentamentos produtivos e relevantes. Para a parlamentar, esta seria mais uma razão para não haver reforma agrária, embora existam dados mostrando que, apesar de desmandos, os assentamentos cumprem um papel social significativo, mesmo quando o foco de avaliação é produtividade, renda e lucro.

Restam três fios a amarrar no que se refere ao funcionamento do discurso da parlamentar: a acusação de ilegalidade, a qualificação demeritória e a alegação de doutrinação ideológica. No primeiro caso, o MST cometeria crime por fomentar

(SD9) invasão de terra, seja pública ou privada, por um movimento privado, é esbulho processório; o senhor sabe, como jurista também, que invasão de terra é crime. Se não gostam desse termo, mudem o código penal.

Malfadado detalhe, a acusação de “esbulho processório”, definido como o crime que o MST cometeria ao invadir terras, apaga que há jurisprudência determinando que as ações do movimento não são ‘invasão’, mas ‘ocupação’; e que o crime só ocorre se a invasão acontece para fins particulares, o que não é o caso. Uma vez que a parlamentar é advogada, é de se pressupor que conheça as questões que envolvem a acusação que faz; neste sentido, como bumerangue, “Não sei se o senhor sabe” retorna em ricochete.

Como não se trata de desqualificar ponto a ponto o discurso da deputada (não é este o papel do analista), mas de destrinçar as regularidades de funcionamento, importa que a acusação de ilegalidade é um dos fios da trama para defender a mirada ideológica de ataque ao MST e salvaguarda da propriedade privada. Sobre a concepção demeritória, não fossem suficientes os recortes analisados, há outros em que a depreciação é frontal, alcançando um efeito rude e ríspido de calúnia e difamação moral. Arrolo alguns excertos com comentários breves, em face de que eles são autoexplicativos:

(SD10) Além do mais se arrogam justiceiros sociais, movimentos privados, violentos, que querem fazer o papel do Estado, ao fazer listagem de pessoas de forma unilateral. Ferindo o princípio da impessoalidade,

(SD11) o que a gente percebe, realmente, é essa situação de clientelismo, de escravidão, de manipulação e não de emancipação e liberdade, como diz a nossa Constituição Federal, e não acesso à terra, porque não é dado título.

(SD12) o que a gente percebe é que não dão a liberdade pras pessoas, não dão emancipação, não dão título escravizam as pessoas e deixam na miséria. É isso que a gente tem constatado desses movimentos.

Sintagmas como “justiceiros sociais”, “movimentos violentos”, “forma unilateral”, “ferindo o princípio da impessoalidade”, “escravizam as pessoas” e “deixam na miséria” e termos como “clientelismo”, “escravidão” e “manipulação” não têm outro objetivo senão fazer colar às pessoas que dirigem o MST, dada a liberdade assegurada à deputada de, como parlamentar, professar suas crenças na câmara, atribuindo a pecha de criminosos a quem age à revelia da legalidade, explorando e assegurando que pessoas assentadas permaneçam cativas do movimento.

E, por fim, o fio da doutrinação ideológica, que parece ser a premissa determinante de articulação do discurso da deputada, haja vista o excerto a seguir:

(SD13) Ao contrário do que dizem [...] que seria para destinar para a agricultura familiar, para a pequena propriedade, das visitas que a gente tem feito, a gente não vê ensino sobre agricultura familiar e cultivo da terra, o que a gente viu numa dessas visitas foram centros de doutrinação ideológica marxista.

Embora a referência ao marxismo ocorra apenas uma vez, ele é o outro que assombra o discurso da parlamentar, pois, como adversário ideológico, contrapõe o bem da coletividade à propriedade privada, contra a qual o MST cometeria os crimes e as ilegalidades alegadas. Conforme a deputada, nas “visitas”, não se encontraram iniciativas de “agricultura familiar”, “pequena propriedade” e “cultivo da terra”; ao contrário, os assentamentos seriam “centros de doutrinação ideológica marxista”, que feririam os princípios da “transparência, legalidade, impessoalidade, gestão pública eficiente”. Sobre esta questão, é possível ser conciso quanto à contradição: mesmo que a alegação de os assentamentos serem locais de doutrinação tivesse procedência (o que não é o caso), a parlamentar não percebe que “seu” discurso é uma peça de “doutrinação” ideológica neoliberal, fundada na defesa da propriedade privada, da exploração do trabalho, da mais-valia e contra a organização popular. Além disso, malfadado detalhe, a deputada afirma que a “doutrinação” foi constatada “numa dessas visitas”, ingrediente que, apesar de remeter à singularidade de um evento em especial, ela submete a uma generalização apressada que faz a parte ser o todo, porque lhe interessa. Neste caso, no limite, o discurso de Caroline funciona como a ‘língua de Esopo’, isto é: “[...] a linguagem secreta, codificada, indireta” para dar satisfação aos seus (Bourdieu, 2011BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011., p. 177).

Admito que a análise pode criar um efeito de leitura tendenciosa sobre o discurso da deputada, à medida que enviesamentos são mostrados, parecendo inadequado num trabalho que pretende se calcar na objetividade. Todavia, é este o modo de funcionamento pautado na parcialidade que caracteriza os discursos ideológicos como o da parlamentar, haja vista, até, a referência explícita de rejeição à “doutrina” marxista. O que pode parecer uma leitura ideológica de um discurso ideológico não tem este comportamento, porque o percurso quanto ao professor José Geraldo não ocorrerá de modo distinto, em detrimento da parlamentar. Não se trata, pois, de um trabalho que tenha uma posição política; se ela existe, não determina o desenvolvimento da análise. De resto, sobre a indicação das lacunas e das ênfases no discurso “da” deputada (e da polêmica em geral), cabe dar a palavra a Maingueneau (1989MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Tradução de Freda Indursky. Campinas: Pontes, 1989., p. 122): “[...] cada uma das formações discursivas [...] só pode traduzir como ‘negativas’, inaceitáveis, as unidades de sentido construídas por seu Outro, pois é através dessa rejeição que cada uma define sua identidade”.

Espero ter mostrado a filiação de Caroline de Toni à posição ideológica de defesa da propriedade privada e contrária à organização trabalhista, cujo viés conservador é orientado por uma formação discursiva que, conforme a define Pêcheux (1995PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi et al. 2. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 1995., p. 160, grifos do autor), “[...] determina o que pode e deve ser dito [...] a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes”. Sob esta perspectiva, considerando Maingueneau (1989MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Tradução de Freda Indursky. Campinas: Pontes, 1989., p. 125) sobre o que constitui a polêmica, é possível pleitear que o discurso da deputada se pauta na busca “[...] de desqualificar o adversário (e o que representa), custe o que custar”; ou, como sustentado por Pêcheux (2011, p. 222), em face da clivagem social imposta pelo motor ideológico, “[...] os objetos do discurso (não os objetos materiais)” são “[...] aquilo de que se trata no discurso, isto é o objeto construído no discurso”, donde se pode inferir que o MST “é” o que é, para a parlamentar, por causa da filiação ideológica a que ela se submete, embora faça seus os recursos que ilumina ou apaga. E, para manter presente a tese que defendo, para salvaguardar o primado de que ela é suporte, a deputada se ampara na Estatística, considerando-a como argumento de autoridade transparente, especular e literal, mas, no limite, produzindo um simulacro sobre ela e forçando-a a sair de seu terreno de origem para servir, enviezadamente, a interesses ideológicos de determinado grupo.

3 SOBRE O DISCURSO DO PROFESSOR

Levando em consideração o postulado de Althusser (2022ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de estado. Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro; introdução crítica de J. A. Guilhon Albuquerque. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2022., p. 125, grifo do autor) de que, “se os aparelhos ideológicos de Estado têm a função de inculcar a ideologia dominante, isso quer dizer que existe resistência; se há resistência, é porque há luta; e essa luta é [...] o eco [...] próximo ou, em geral, longínquo, da luta de classes”, pleito que Pêcheux (1995PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi et al. 2. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 1995., p. 304) refaz por meio do aforisma “Não há dominação sem resistência”, passo à análise do discurso do docente, cujo posicionamento ideológico (posição sujeito) o coloca em contradição frontal com o de sua oponente, que, como dito, representa um determinado grupo social, tido como de direita conservadora, que se coloca em oposição demeritória e pejorativa ao MST, a seus representantes e a tudo aquilo que poderia ser visto de uma forma mais adequada.

Perguntado pelo condutor dos trabalhos da CPMI se desejava comentar o discurso da deputada, o docente se limitou a uma resposta breve, furtando-se a abordar os dados apresentados por ela. Isso não deixa de gerar um efeito de emparedamento, pois, se essas acusações graves não são rebatidas, há que se presumir que sejam verdadeiras e, portanto, que sirvam, no mínimo, para uma reflexão crítica sobre as atividades do MST, sem que isso signifique eliminar o movimento, o que atenderia à vontade da parlamentar. Enfim, atendo-se ao discurso da parlamentar, o professor também age no sentido de o desqualificar, assim como à produtora, e, por consequência, tudo aquilo que ela representa e de que é porta-voz e suporte.

(SD14) Em respeito à deputada, porque, na verdade, ela não me fez pergunta nenhuma, né? Eu só queria dizer assim:

Atendendo ao questionamento do presidente da mesa, o professor afirma que o fará “em respeito à deputada” (grifo meu), o que não ocorre, haja vista a desqualificação que produz sobre ela e seu discurso. Afirmando que não precisaria responder, pois ela “não (lhe) fez pergunta nenhuma”, o docente, por um lado, cria o efeito de fuga ao embate ideológico, já que, ao produzir afirmações e não perguntas, ela se fecha para réplicas; e, por outro, atenta para o autoritarismo do discurso, em face dos dados estatísticos trazidos como valores absolutos e sem uma complexidade ou relativização. Como não houve pergunta, ele poderia ficar em silêncio; no entanto, afirma: “Eu só queria dizer assim”, em que “assim”, como dêitico catafórico, aponta para o que será produzido crucialmente sobre a parlamentar para desmerecê-la, e “só” antecipa o tópico que será desenvolvido e que se resume na desqualificação do discurso da deputada, criando ante a audiência um efeito de limitação de compreensão por parte dela e lhe impingindo a pecha de incapacidade de maior reflexão. E desde já fica assumido que o discurso do professor também busca instituir “[...] uma realidade usando do poder de revelação e de construção exercido pela objetivação no discurso” (Bourdieu, 2011BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011., p. 116, grifos do autor).

(SD15) Otávio Paz, no “Labirinto da Solidão”, diz que os indígenas, quando Colombo chegou, não viram as caravelas. Não viram; elas estavam ali fundeadas, mas não havia cognição para poder representar cerebralmente uma imagem que era absolutamente incompatível com o quadro mental de uma cultura que não tinha elementos para visualizar.

Ancorado num discurso de autoridade3 3 Entendo por discurso de autoridade o fenômeno de um discurso anterior ser trazido como amparo para a tese que se pretende construir; neste sentido, o discurso prévio é recuperado materialmente no intradiscurso como maneira de trazer eficácia para o efeito de sentido pretendido. Não é nada diferente do que ocorre neste texto, quando me valho de Althusser, Bourdieu, Eco, Foucault, Maingueneau e Pêcheux. , o docente retoma a obra “Labirinto da Solidão”, de Otávio Paz, para dar corpo ao “assim” e ao “só” (SD14). A tese do autor é que, “quando Colombo chegou”, os indígenas “não viram as caravelas”; elas “estavam ali fundeadas”, mas o desconhecimento não permitia acomodá-las no repertório cultural e no conhecimento de mundo disponível. Este é um episódio que ocorre, quando alguém se depara com algo desconhecido e não possui os requisitos necessários para incorporá-lo ao que conhece. Nas palavras do professor, “não havia cognição para poder representar cerebralmente uma imagem compatível com o quadro mental de uma cultura”; e não se pode afirmar que esta teorização contenha algo de afronta, ataque ou ofensa pessoal; é um fato objetivo: científico. No limite, o que ocorreu com os indígenas é o que ocorre quando uma cultura se depara com o que lhe parece estranho. No entanto, a partir deste momento, o discurso do docente passou a ser considerado como manifestação de menosprezo em relação à capacidade cognitiva da deputada e de seu grupo, o que não deixa de estar alicerçado em algumas marcas discursivas posteriores.

(SD16) Eu não tenho como discutir com a deputada, porque a sua visão de mundo, a sua percepção como cosmovisão, só lhe permite enxergar o que a senhora já tem inscrito na sua cognição. Então, a senhora vai ver não é o que existe, mas é o que senhora recorta da realidade. A realidade é recortada por um processo cognitivo de historiabilização.

O acontecimento histórico, como ilustração de uma tese científica com poder de generalização explicativa, foca o efeito sobre a deputada, atribuindo-lhe a limitação dos indígenas, o que foi considerado ofensivo por ela. Para o professor, não haveria como “discutir com a deputada”, pois, cooptada por uma filiação ideológica (“visão de mundo” e “cosmovisão”), ela só veria o que a cognição permite, inviabilizando o debate. Se tudo o que ela tem é um ponto de vista, ela só verá o que “recorta da realidade”, o que, como recorte, é parcial e seletivo. Com a asseveração de que “a realidade é recortada por um processo cognitivo de historiabilização”, o docente fecha a tese da limitação do olhar da deputada, comprovado, por exemplo, pelas estatísticas anguladas, e rejeita o debate, em face da suposta alienação, que, ao sabor desta caracterização, não sairia da sua “visão de mundo” e não veria outra coisa que não o que ela lhe permitiria ver. No limite, a atitude do docente não é substancialmente distinta daquela da parlamentar.

(SD17) Então, eu não posso discutir um tema que contrapõe visão de mundo, concepção de mundo, entendeu? Eu vejo outra coisa; a senhora mereceria... é este o debate que está aqui, né?

Sem rechaçar os dados trazidos pela deputada e pautando-se num discurso de autoridade com efeito de sustentação científica, o professor se nega a “discutir um tema que contrapõe visão de mundo, concepção de mundo”, porque, para ele, dada a injunção que submete a parlamentar, a discussão cairia na polarização irreconciliável, e o docente, provavelmente, não submeteria sua defesa a revisão, uma vez que vê “outra coisa”. Pode parecer que, ao afirmar que vê outra coisa, o professor esteja aberto à revisão, dando-se conta de que está instanciado por uma mirada ideológica, mas o enunciado a seguir mostra que ele julga estar ao lado da verdade e que “a senhora mereceria...”. A interrupção do enunciado, que não traria algo elogiável, liquida a possibilidade de debate, já que a adversária, preenchendo-se as reticências, estaria alienada a uma visão de mundo e tentar convencê-la seria inglório. Limitação da deputada, da ideologia que defende, do seu grupo de simpatizantes e da sua avaliação sobre o MST; esclarecimento e saber do lado do docente, de “sua” ideologia e de seus simpatizantes; nesta toada, não há chance de unificação ou de compreensão mais global, dado que a dialética inexiste.

(SD18) São referenciais que significam que o real não é aquilo que existe, mas é a representação que a gente faz do como a gente vê. Paciência, né?

Neste recorte, mais do que nos outros, o professor enuncia um axioma da Psicologia Social como um aforisma, para a qual o real é subvertido em representações que instituem um imaginário e uma forma de ver a realidade, tornando-se obstáculo para o conhecimento. Ou seja: a deputada, segundo o docente, estaria presa a uma representação que a faz ver o MST de uma forma, sendo infensa a discursos contrários. Com “paciência, né”, em face deste fenômeno, abre-se uma bifurcação de efeitos, que tanto pode se referir a uma fatalidade, dada a lei de que as coisas são assim e se tem que aceitá-las, quanto ao fato de que deve se render à alienação da parlamentar, que ainda pode vir a ter acesso ao real. A marcação prosódica e gestual do docente parece autorizar tanto um efeito quanto o outro, construindo, de toda sorte, uma imagem demeritória da oponente. Se, no discurso da deputada, é o docente que é revestido por uma imagem negativa, no discurso dele é sua oponente que é imaginada como limitada cognitivamente.

(SD19) Mas agradeço, deputada; eu vou mudar meu foco de visão para enxergar essa percepção.

Se pairasse dúvida sobre a discordância do professor quanto ao posicionamento ideológico da deputada, esta sequência a eliminaria, haja vista a entonação irônica que a cerca e que permite inferir que o discurso deve ser lido em seu avesso, com a afirmação gerando um efeito de negação. Considerada a prosódia, a gestualidade e o olhar do docente, fica um tanto evidente que a mudança não acontecerá, até porque ela pode ser deduzida também do que foi materializado no fio do discurso do docente; ele não passaria a concordar com um discurso que ele avalia como limitado e enviesado. A prova disso está na reação dos presentes e da própria deputada que alegou, ao final, ter sido ofendida. Essas consecuções tornam possível levar em consideração o postulado de Maingueneau (2005MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Tradução de Sírio Possenti. Curitiba: Criar Edições, 2005., p. 117) de que “[...] a polêmica, então, só pode ser estéril, resolvendo-se no afrontamento de dois universos incompatíveis”.

E, para retomar a tese que pretendo sustentar, chamo a atenção para o recurso do professor ao postulado da Psicologia Social a fim de desqualificar o discurso da deputada, considerando-a alienada a uma cosmovisão, sem se dar conta de que o pleito que ele pretende que se aplique a ela também vale para ele. Se ela deveria tomar um choque de realidade para que sua concepção de mundo pudesse sofrer algum abalo, não parece ser outra a exigência que se deveria fazer em relação a ele, dada a substancialidade dos dados trazidos pela parlamentar. Não se trata, porém, de julgar ou de pretender indicar o caminho a alguém. Trata-se tão somente de problematizar como a ciência (neste caso, a Estatística e a Psicologia Social) pode, às vezes, ser usada para criar um fosso entre miradas discursivas, tornando-as “surdas” e, por consequência, impedindo que algum avanço significativo possa ser obtido em face da renúncia à dialética da contradição.

4 À GUISA DE ARREMATE: A CIÊNCIA A REBOQUE

Se, de um lado, o “debate” ocorrido entre a deputada e o professor sobre o MST se constrói em torno de um discurso de hostilidade e ignora qualquer dado contraditório, mesmo presente, sem pretender, no discurso próprio, ele acontece, por outro, por meio de um discurso de simpatia com o movimento e que se recusa a considerar alegações que, a não ser que sejam falsas, são bastante sérias para serem ignoradas.

Se os dois discursos colidem por meio da discrepância, da clivagem e da negação, de modo que são constituídos por um hermetismo infenso à penetração pelo outro, não deixam de ter em comum um mesmo tipo de funcionamento: a recusa, a rejeição e o desmerecimento do oponente. Isso é assim porque, conforme Maingueneau (2005MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Tradução de Sírio Possenti. Curitiba: Criar Edições, 2005., p. 123), “[...] o Outro representa esse duplo, cuja existência afeta radicalmente o narcisismo discursivo, ao mesmo tempo em que lhe permite aceder à existência”.

Em última instância, defendo que os dois discursos postos aqui frente à frente não obedecem a princípios de funcionamento diferentes no que se refere à mobilização da ciência. Eles digladiam por meio do desmerecimento do adversário, em que pese se valerem de dados de socorro para validar seus pontos de vista. Os aplausos e as vaias tanto para um quanto para o outro, as reclamações de ofensa e os elogios ou o descrédito, tanto lá quanto cá, mostram que o que está em jogo não é a “conversão” de um grupo ou de outro, mas a vitória obtida em face do discurso com maior potencial de condução ao mutismo. Uns se congratulam e outros se regozijam; uns choram suas perdas e outros tratam suas feridas; mas ambos se conduzem pela atitude de desqualificar o adversário para não ouvir o que ele tem de ameaçador; o desmerecimento do outro autoriza a repetição. O que se encontra em jogo, desse modo, não é mais do que “[...] a força do pré-construído (que), achando-se inscrito ao mesmo tempo nas coisas e nos cérebros, ele se apresenta com as aparências da evidência, que passa despercebida porque é perfeitamente natural” (Bourdieu, 2011BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011., p. 49)

Conduzidos, consoante Pêcheux (1995PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi et al. 2. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 1995., p. 114, grifo do autor), por uma “[...] espécie de cumplicidade entre o locutor e aquele a quem ele se dirige, como condição de existência de um sentido”, enquanto a deputada fala aos partidários a quem, por meio do discurso, presta contas de sua lealdade ideológica, o professor dá satisfação dos seus atos aos que o escolheram como porta-voz e não pode afirmar ou admitir algo inadequado por poder criar crises entre os correligionários. As cumplicidades à direita e à esquerda apoiam-se, portanto, em horizontes discursivos distintos, que, ideologicamente, orientam filiações antagônicas e definem, conforme Pêcheux (1995, p. 114, grifos do autor) a “identificação do locutor”, isto é, a possibilidade de ele pensar o que os convertidos pensariam no seu lugar, mostrando que “alguma coisa fundamental está em jogo antes”, estabelecendo o dizível, em cada caso, para não romper o acordo e manter o “bom” senso, cabendo o “mau” senso sempre ao outro.

Com isso, espero ter atendido ao objetivo de analisar os discursos de Caroline de Toni e José Geraldo, considerando-os à luz da contradição polêmica sobre o MST, entendido como “objeto do discurso”, conforme definido por Pêcheux (1995PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi et al. 2. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 1995.). A despeito da rapidez das análises, postulo que elas revelam traços da contenda entre o que se designa como discurso conservador de direita, que defende a propriedade privada e é contrário às organizações trabalhistas, tendo-as como campos de doutrinação ideológica marxista, e o que se designa como discurso progressista de esquerda, defensor, neste caso, da reforma agrária e dos que lutam por sua implementação. Creio ter mostrado que estes discursos são irreconciliáveis. A liberdade máxima é estar lá ou cá de acordo com o sucesso ou insucesso da interpelação ideológica.

Resta dar conta do uso da ciência como escudo para um posicionamento ideológico que, por natureza, é parcial. Posso ser breve em relação a ele, dado o suporte que a análise e as reflexões permitiram alcançar em relação a esta regularidade. De um lado, está uma deputada de direita, defensora do agronegócio e contra o MST. Para defender sua filiação ideológica, ela se vale da Estatística, uma ciência empírica, que, em tese, ao transmutar a realidade em dados matemáticos, constrói um mundo estabilizado e refratário à negação, à ironia e à polêmica. Encastelados em sua impavidez fatalista, eles permitiriam a refração à contradição por meio de demonstrações grandiloquentes. Apenas o renitente cético ou cínico poderia se contrapor a eles, dado que eles teriam o poder de iluminar a realidade de forma transparente e especular, criando efeitos de literalidade. Se me faço entender, para defender sua filiação partidária, a deputada se vale de uma ciência, deformando-a, à medida que a manipula para fazê-la servir ao viés mais conveniente.

Porém, não me parece que o procedimento do professor seja diferente, na medida em que ele recorre a uma ciência para desqualificar a adversária, supondo-a limitada cognitivamente e alienada por sua visão de mundo. Também aqui há uma filiação ideológica posta em jogo, que é orientada por um parâmetro de esquadrinhamento do mundo e de juízo sobre o adversário, em que pese ser amparada por um postulado da Psicologia Social, que surge como forma de desqualificar o adversário, perspectivando-o como alienado. Como premissa científica, a teoria das representações não parece ser um problema, transmutando-se em um, porém, quando é utilizada para desmerecer o outro, sem perceber que a hipótese também se aplica àquele que a mobiliza. É possível, enquanto posicionamento ideológico, estar mais lá do que cá: mais à direita ou à esquerda; o que não é recomendável, gostaria de crer, é usar a ciência (embora isto aconteça) como escudo para proteger os próprios enviesamentos, deformando-a.

As palavras finais sobre o caso tratado podem ser deixadas ao encargo de Foucault (2013FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Eduardo Jardim e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2013., p. 30) e Bourdieu (1999BOURDIEU, P. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999., p. 100, grifos do autor) a quem faço coro. Para o primeiro, “o conhecimento esquematiza, ignora as diferenças, assimila as coisas entre si, e isto sem nenhum fundamento de verdade. [...] Por outro lado, é sempre algo que visa, maldosa, insidiosa e agressivamente indivíduos, coisas, situações”. Para o segundo, por referência ao confronto e à contradição, sempre é necessário “[...] reconstruir a história do trabalho histórico de des-historicização, ou, se assim preferir, a história da (re)criação continuada das estruturas objetivas e subjetivas da dominação”. Talvez o aprendizado urgente de que o outro pode produzir não só afirmações distorcidas seja uma alternativa para a superação de apreensões ideológicas parciais e seletivas.

REFERÊNCIAS

  • ALTHUSSER, L. Sobre a reprodução. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira, introdução Jacques Bidet. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
  • ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de estado. Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro; introdução crítica de J. A. Guilhon Albuquerque. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2022.
  • BOURDIEU, P. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
  • BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
  • ECO, H. Interpretação e superinterpretação. Tradução de MF. São Paulo: Martins Fontes, 1993 (Coleção Tópicos).
  • FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Eduardo Jardim e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2013.
  • MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Tradução de Freda Indursky. Campinas: Pontes, 1989.
  • MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Tradução de Sírio Possenti. Curitiba: Criar Edições, 2005.
  • PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi et al. 2. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 1995.
  • PÊCHEUX, M. Aplicação dos Conceitos da Linguística para a Melhoria das Técnicas de Análise de Conteúdo. In: PÊCHEUX, M. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. Textos selecionados por Eni Puccinelli Orlandi. 2. ed. Campinas: Pontes Editores, 2011[1981].
  • 1
    Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OlPRGjDVSvs. Acesso em: 10 nov. 2023.
  • 2
    Contra os pressupostos da “[...] existência de uma unidade do espírito humano” ou “[...] a existência de uma unidade disso que chamamos de a sociedade”, Pêcheux (2011, p. 208) defende que se deve “[...] pôr em evidência [...] uma clivagem entre várias maneiras de falar, várias maneiras de entender-se ou de não se entender” (p. 211-212), o que significa que, “[...] no interior de uma mesma língua, existem clivagens devidas ao fato de que certos textos não têm os mesmos referentes, as mesmas relações, as mesmas ancoragens que outros textos, e que o conjunto dos discursos tais como podemos encontrar num momento dado da sincronia de uma língua remete em definitivo a referentes diferentes” e a uma “[...] quebra no nível da referência” (p. 212).
  • 3
    Entendo por discurso de autoridade o fenômeno de um discurso anterior ser trazido como amparo para a tese que se pretende construir; neste sentido, o discurso prévio é recuperado materialmente no intradiscurso como maneira de trazer eficácia para o efeito de sentido pretendido. Não é nada diferente do que ocorre neste texto, quando me valho de Althusser, Bourdieu, Eco, Foucault, Maingueneau e Pêcheux.

Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2024
  • Aceito
    09 Abr 2024
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