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RAÍZES DO BRASIL E A MONTANHA MÁGICA

ROOTS OF BRAZIL AND THE MAGIC MOUNTAIN

Resumo

Este artigo busca examinar a influência do romance A montanha mágica (1924) sobre o livro Raízes do Brasil (1936). Propõe-se que Sérgio Buarque se apropria do romance de Thomas Mann na montagem dos capítulos finais de seu ensaio, transpondo para o contexto da cultura brasileira os debates em que Lodovico Settembrini e Leo Naphta competem pela primazia na educação do protagonista Hans Castorp. Com isso, busca-se, além de demonstrar a hipótese da procedência romanesca de alguns aspectos da narrativa de Sérgio Buarque, situar a ideia de formação ou Bildung (em detrimento da política) no centro da discussão do livro.

Palavras-chave:
Sérgio Buarque de Holanda; Thomas Mann; Literatura alemã; Pensamento Social Brasileiro; Modernismo

Abstract

The article seeks to examine Thomas Mann’s The magic mountain (1924) influence over the book Roots of Brazil (1936). We propose that Sérgio Buarque draws on Thomas Mann’s novel in making the final chapters of his essay, transposing the debates in which Lodovico Settembrini and Leo Naphta compete for the primacy in the education of the protagonist Hans Castorp to the context of Brazilian culture. Thus, in addition to presenting the hypothesis of the novelistic origin of certain aspects of Sérgio Buarque’s narrative, we seek to demonstrate the centrality of Bildung or self-cultivation (as opposed to politics) in the book’s argument.

Keywords:
Sérgio Buarque de Holanda; Thomas Mann; German Literature; Brazilian Social Thought; Modernism

É conhecido entre os estudiosos da obra de Sérgio Buarque de Holanda o importante papel do escritor Thomas Mann na sua formação intelectual. A ser verdade o que relata o próprio Sérgio Buarque, ele fora um dos poucos jornalistas a conseguirem uma entrevista em Berlim com o autor d’A montanha mágica, logo após sua premiação com o Nobel de Literatura de 1929, graças ao desejo que Mann tinha de falar ao público do Brasil, onde nascera sua mãe (Holanda, 1989HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1989. Thomas Mann e o Brasil. In: BARBOSA, Francisco de Assis (org.). Raízes de Sérgio Buarque de Holanda . Rio de Janeiro: Rocco , p. 199-204.). Mais recentemente, num artigo em que fornece importantes subsídios para a compreensão da argumentação de Raízes do Brasil em sua versão de 1936, Sérgio da Mata (2016MATA, Sérgio da. 2016. Tentativas de desmitologia: a revolução conservadora em Raízes do Brasil . Revista Brasileira de História, v. 36, n. 73, p. 63-87. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbh/a/tYGGjRBkSjkB4KZ9ksVV6mM/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 19 ago. 2021.
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) investigou traços inexplorados da predileção que o historiador manteve ao longo de sua vida pelo escritor alemão. Numa investigação realizada na biblioteca de Sérgio Buarque preservada na Unicamp, o pesquisador encontrou alguns grifos e anotações altamente sugestivos para a interpretação de Raízes num exemplar das Considerações de um apolítico, ensaio escrito por Mann durante a Grande Guerra. A leitura desse livro, somada ao interesse que Sérgio Buarque dedicava em sua temporada berlinense a pensadores como Oswald Spengler, Carl Schmitt, Ernst Kantorowicz e Kurt Breysig, levanta fortes indícios de uma filiação de certos passos da argumentação de Raízes do Brasil ao movimento da intelectualidade alemã que ficou conhecido como “revolução conservadora”.1 1 Não nos ocuparemos com a discussão travada na fortuna crítica de Raízes do Brasil sobre a situação do livro no espectro político brasileiro em 1936, senão de forma subordinada ao argumento principal do artigo, que diz respeito à proposta, no ensaio de Sérgio Buarque, de um ideal de formação, ou Bildung, particular à cultura brasileira. Ainda assim, devemos estabelecer nossa dívida para com comentários anteriores. Sucintamente, podemos dizer que o ponto de vista segundo o qual a argumentação de Raízes do Brasil estaria nos antípodas de toda forma de pensamento autoritário, tomando posição em favor da democracia e realizando uma análise orientada por um quadro teórico predominantemente weberiano da formação brasileira, rejeitando a Lebensphilosophie com que o autor teria flertado em sua temporada alemã de 1929-31, proposto na consagrada leitura de Antonio Candido (2016 [1969]) e, posteriormente, reforçado pelo cuidadoso estudo de Pedro Meira Monteiro (2021 [1999]) - ponto de vista amplamente disseminado na fortuna crítica do livro até os anos 2010 - vem encontrando uma robusta oposição desde os estudos seminais de Leopoldo Waizbort (2011) - que iluminou a ascendência nietzschiana sobre o livro, a qual o afinaria com um estilo de pensamento conservador - e João Kennedy Eugênio (2011) - que demonstrou extensivamente o quanto o autor de Raízes estava longe de ter superado, na primeira edição de seu livro, o “organicismo” que Candido (1982) supunha inteiramente alheio à argumentação do livro (para Eugênio, a referência-chave para se compreender a armação teórica de Raízes já não seria Nietzsche, mas o filósofo vitalista Ludwig Klages, cuja presença em Raízes Waizbort não deixou de notar). Não há exagero em dizer que esses dois trabalhos de 2011 abriram o caminho para o estado atual da discussão em torno de Raízes do Brasil. Estudos de qualidade realizados posteriormente por Luiz Feldman (2016) e Rogério Schlegel (2017) deram seguimento à exploração da possibilidade de um Raízes do Brasil conservador, buscando esclarecer a inserção das posições antiliberais de Sérgio Buarque no contexto do pensamento político brasileiro. Em todos os casos, foi decisiva a recuperação da primeira edição de Raízes. De modo geral, em confronto com as edições posteriores, a versão de 1936 revela não propriamente argumentos substancialmente diferentes, mas certamente outro livro, dada a forma e a situação nas quais os mesmos argumentos aparecem - quanto a isso, ver os já citados trabalhos de Waizbort, Schlegel e, em especial, Eugênio e Feldman. Como nota Waizbort (2011, p. 59), o relativamente extenso incremento de erudição histórica na edição de 1948 é “funcional para ensombrecer a dimensão política” do ensaio em sua primeira versão. Descaracterizada a feição altamente sintética do texto “original”, o leitor fica como que despistado da argumentação principal. Convém lembrar ainda o texto de Angela de Castro Gomes (1990), que, duas décadas antes do início da onda revisionista e sem recurso à edição princeps, já notava certa ambiguidade de Raízes diante do problema da adaptação do país à democracia, mostrando suas afinidades com a interpretação do país por Oliveira Vianna.

O exemplar das Considerações de um apolítico legado pelo espólio de Sérgio Buarque à Unicamp, data de 1956, ano da terceira edição de Raízes do Brasil. Sabemos, porém, que já em 1929, Sérgio reputava “admiráveis” (Holanda, 1989HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1989. Thomas Mann e o Brasil. In: BARBOSA, Francisco de Assis (org.). Raízes de Sérgio Buarque de Holanda . Rio de Janeiro: Rocco , p. 199-204., p. 200) os apontamentos desse livro de 1918, um eloquente (e muito prolixo) protesto contra a iminente democratização e “ocidentalização” da Alemanha. Compreendendo a Primeira Guerra Mundial como um choque entre culturas nacionais, Thomas Mann via na vitória da coalizão franco- britânica contra a Alemanha guilhermina o triunfo da civilisation sobre os ideais de Bildung e Kultur, que encontrava no país a acolhida entusiasmada do “literato da civilização” [Zivilisationsliterat], personagem que Thomas Mann ataca virulentamente ao longo do livro, tendo em mente seu irmão Heinrich. Os elementos ideológicos às vezes chocantes dessa obra escapam ao escopo deste artigo, mas quem conheça as Considerações e a primeira edição de Raízes do Brasil não terá dificuldade em identificar muitas afinidades entre o Mann conservador e “apolítico” de 1918 e o Sérgio Buarque de 1936. Sucintamente, a propósito das reverberações do livro de 1918 sobre o de 1936, pode-se falar numa deflação da legitimidade do governo das maiorias, numa equiparação entre a política democrática e a retórica, isto é, à mentira ou, na melhor das hipóteses, ao voluntarismo inócuo e, em contrapartida, na crença em um mundo de verdades superiores inacessíveis à razão e à ciência, mas permeáveis à intuição artística. Para Mann, no extremo oposto da política estaria o “esteticismo” (Mann, 2002MANN, Thomas. 2002. Considérations d’un apolitique. Paris: Grasset., pp. 193-194). Mas, diferentemente do que se dá no ensaio, cuja estridência é compreensível se levarmos em conta seu contexto, Raízes do Brasil desdobra sua narrativa num tom irônico2 2 Sobre a ironia como tropo matricial da construção de Raízes do Brasil, ver o estudo de Julio Bentivoglio (2018). e distanciado que apenas encontraríamos numa obra a que Mann deu a forma definitiva em 1924, alguns anos depois das Considerações: A montanha mágica.

Neste artigo, procura-se propor a hipótese de que a montagem dos capítulos finais de Raízes do Brasil, em especial “Novos Tempos” e “Nossa Revolução”, tenha incorporado alguns símiles e, sobretudo, certa atmosfera romanesca do grande romance de 1924. Antecipando brevemente o que se segue, propõe-se que as alternativas culturais e políticas apresentadas diante do Brasil, em 1936, são figuradas pelo ensaísta a partir do modelo d’A montanha mágica, no qual o narrador apresenta, em forma de paródia, o confronto entre o progressismo liberal e racionalista, personificado no romance pelo enciclopedista Lodovico Settembrini, e a ideologia sincrética de Leo Naphta, que mescla elementos reacionários e socialistas, mas é consistentemente antiburguesa e antiliberal. Assim, conforme queremos propor, em Raízes do Brasil, o liberalismo progressista e o conservadorismo tradicionalista são compreendidos, antes de mais nada, como alternativas pedagógicas, estando o debate propriamente político subordinado a esse filtro, configurado à maneira distanciada e irônica do narrador da longa temporada alpina de Hans Castorp - personagem que, em sua incapacidade de compreender o significado das doutrinas que lhe oferecem os pedagogos rivais, Naphta e Settembrini, se assemelha em mais de um aspecto ao retrato que Sérgio Buarque traça da intelectualidade brasileira em Raízes do Brasil.

Pode-se opor contra essa hipótese o fato de que A Montanha mágica não está citada em Raízes do Brasil; na verdade, nem mesmo o nome de Thomas Mann é ali mencionado. A convicção que levou à apresentação desta pesquisa provém de que, no convívio com os textos de Sérgio Buarque, seu autor percebeu algumas características peculiares nas maneiras em que o intelectual paulista mobiliza - e dissimula - suas referências. Em Sérgio Buarque, o importante nem sempre é o que está citado. Além disso, dos textos efetivamente citados, o trecho aludido nem sempre é o que mais importa. Isso torna o trabalho de verificação e qualificação de influências e diálogos extremamente difícil. Às vezes esse trabalho é facilitado pelo hábito que o autor tinha de reproduzir detalhadamente raciocínios extraídos de outros escritores, sem apresentar qualquer referência - nem sempre, há boas razões para suspeitar, por mera displicência. A leitura e interpretação cuidadosas desses textos de origem permitem uma reconstrução aproximada dessas apropriações, auxiliando, por vezes, a compreender ideias que o texto de Sérgio Buarque nem sempre apresenta com toda clareza. Cabe ao leitor decidir se a tentativa de reconstrução que se segue é ou não persuasiva.

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A certa altura de Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda desfere um ataque desconcertante contra a ideologia do progresso. Desconcertante, sobretudo, porque desprovido de qualquer sustentação factual e direcionado especificamente contra a universalização do letramento. “Um exemplo fácil” de certa maneira de pensar, característica da intelectualidade bem-pensante brasileira seria, para o autor, a “miragem da alfabetização”:

Quanta inútil retórica se tem desperdiçado para mostrar que todos os nossos males seriam resolvidos de um momento para o outro, no dia em que estivessem difundidas as escolas e a instrução popular! Certo publicista [...] afirma que se fizermos nesse ponto como os Estados Unidos, “em vinte anos o Brasil estará alfabetizado e, assim, ascenderá à posição de segunda ou terceira grande potência no mundo.” […] Imagine-se como não ficariam desapontados ou indignados esses crédulos predicadores do progresso, se lhes fossem dizer que essa alfabetização em massa, que propugnam como o nec plus ultra do adiantamento e da civilização, não é, talvez, uma coisa absolutamente essencial e mesmo que não é, em si, um benefício sem par. Basta-lhes, porém, que esse suposto instrumento de prosperidade seja um dos sinais visíveis da importância de outros povos poderosos, para que no-lo recomendem com alarde. (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., pp. 128-130)3 3 Na segunda edição de Raízes do Brasil, de 1948, Sérgio Buarque cita em apoio a sua crítica à alfabetização o livro Theories of social progress, de Arthur James Todd (1918), lembrando a existência de uma cidade no meio-oeste americano conhecida por seu alto nível cultural, na qual era alto o número de crianças em idade escolar não matriculadas no sistema municipal de educação, dando a entender que essa coincidência demonstraria a independência das duas variáveis (nível cultural geral e universalização do letramento) (Holanda, 2016a, p. 291). Ocorre que Sérgio deixa de mencionar que esse fato é lembrado por Todd (que não identifica a cidade nem sua fonte) para lamentar o atraso dos EUA em alfabetizar sua população (Todd,1918, pp. 522-523). Registre-se que essa citação é, salvo engano, o único acréscimo de 1948 que vem reforçar uma posição da primeira edição contrária ao Iluminismo ou ao liberalismo.

O tom irônico, lúdico mesmo, com que são apresentadas ao longo do livro duas atitudes político-pedagógicas, a progressista e a conservadora4 4 Esta é o alvo principal do primeiro capítulo, onde a predileção da direita católica pela ideia hierárquica da sociedade desenvolvida pela filosofia escolástica, concepção “que nossa época já não quer compreender em sua essência”, é denominada uma “paixão de professores” (Holanda, 1936, p. 9). , opostas entre si, mas ambas igualmente ineficazes, dá um sabor especial a passagens como a que se acabou de ler, que são talvez mais interessantes, e até substancialmente mais bem elaboradas, do que as considerações um pouco herméticas e com algum sabor de conjuntura do capítulo final, “Nossa Revolução”, sobre a alternativa entre democracia liberal, caudilhismo e fascismo. É de se perguntar onde Sérgio Buarque teria ido buscar modelos para o senso de humor irônico e para os tipos construídos em passagens como a supracitada, que consta do penúltimo capítulo de Raízes (“Novos tempos”). É possível que não tenha sido em nenhum tratado de teoria política ou filosofia da educação, mas numa obra de ficção de um autor que abordou algumas vezes a questão da formação pedagógica, e que era dos preferidos de Sérgio Buarque: A montanha mágica, de Thomas Mann.

Na esteira do insight de Franco Moretti (2020MORETTI, Franco . 2020. O romance de formação. São Paulo: Todavia.), que identificou no romance de formação a “forma simbólica” da modernidade, bem como da linha de estudos hoje plenamente consolidada em torno dos aspectos poético-narrativos dos textos historiográficos, Henrique Estrada Rodrigues (2015RODRIGUES, Henrique Estrada. 2015. O conceito de formação na historiografia brasileira. In: MEDEIROS, Bruno et al. (org.). Teoria e historiografia: debates contemporâneos. Jundiaí: Paco Editorial, p. 253-275.) notou como as narrativas ensaísticas da formação nacional brasileira - como é manifestamente o caso de Raízes do Brasil - se apropriam de certos lugares literários e, sobretudo, da estrutura narrativa e argumentativa dos romances de formação. Para o autor, as sínteses da formação nacional surgidas dos anos 1920 até o final dos anos 1950 são expressões de uma época de quebra de paradigmas tradicionais, quando intelectuais interessados em contribuir para uma agenda de pesquisas e ações para o país intervinham no debate público com obras que, conceitualmente fundamentadas na problemática da formação, ganhavam corpo numa modalidade ensaística estruturalmente análoga ao romance de formação [Bildungsroman]. Assim, combinava-se o imperativo de redefinir a identidade nacional e as instituições políticas, econômicas e culturais em função da relação tensa com a modernização, adotando, ainda que implicitamente, uma estrutura argumentativa na qual o corpo nacional em formação se encontrava diante de situações semelhantes àquelas que interpelam os jovens de destino ainda indeterminado que se encontram costumeiramente no princípio dos romances de formação.

Não deveria ser motivo de surpresa, portanto, que um admirador tão devoto de Thomas Mann como Sérgio Buarque - que reproduz em seu livro de estreia algumas opiniões e, sobretudo, certa atitude antiprogressista do escritor alemão colhidas, conforme já se notou acima, nas Considerações de um apolítico - tenha se apropriado também de alguns traços da sua prosa de ficção. Uma ficção, aliás, manifestamente aproximada do ensaio, da filosofia e até da sociologia5 5 Sobre as relações entre a forma do romance e os fundamentos epistemológicos das ciências sociais modernas, ver Lepenies, 1990. No caso de Mann, a proximidade entre a ficção e a sociologia contemporânea é especialmente flagrante, pois o próprio autor estava ciente dos paralelos entre seus romances e as teorias sociológicas de Max Weber e Werner Sombart sobre a personalidade burguesa, e acreditava tê-las antecipado intuitivamente nos Buddenbrook (Cf. Mann, 2002, pp. 128-129). As afinidades entre as reflexões de Mann e Weber foram analisadas por Harvey Goldman em dois importantes estudos (Goldman, 1989, 1992). .

É preciso advertir, porém, que uma aproximação entre A Montanha Mágica e Raízes do Brasil impõe algumas dificuldades. A primeira delas é que a obra de Mann, como já notaram muitos intérpretes, é um composta em forma de paródia do gênero romance de formação (Cf. Caldas, 2014CALDAS, Pedro Spinola Pereira. 2014. O murmurante evocador do passado. A montanha mágica e o romance de formação após a Primeira Guerra Mundial. História da Historiografia, v. 7, n. 16, p. 107-120. Disponível em: Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/802 . Acesso em 19/08/2021.
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)6 6 O artigo parte dessa constatação para proceder a uma crítica da noção de paródia e das ideias comuns sobre sua valência cultural e existencial, chegando a conclusões bastante estimulantes, que poderiam ser aplicadas, com alguns reparos, à própria historiografia de Sérgio Buarque. Esta ideia será retomada ao final deste artigo. . No contexto entreguerras, e ainda mais no caso de Sérgio Buarque, a recepção do significado desse elemento paródico, em se tratando de sua apropriação numa obra historiográfica ou de interpretação sociológica, como Raízes do Brasil, fica sempre ameaçada pelo risco de superinterpretações, ou mesmo de erros de leitura. Mesmo assim, não se pode perder a oportunidade inédita, na fortuna crítica de Raízes, de tentar reconstituir alguns símiles literários e argumentativos que Sérgio Buarque poderia ter extraído do grande livro de Thomas Mann, além de suas possíveis reverberações num ensaio relativamente curto como aquele de 1936.

Na verdade, uma boa parte das correspondências com A montanha mágica que vamos encontrar em Raízes do Brasil também pode ser verificada nas Considerações de um apolítico, livro cuja influência sobre a argumentação de Raízes do Brasil pode ser verificada sem maiores dificuldades. O livro de 1918 é um longo ataque, oscilando entre o virulento e o resignado, contra o que o autor percebe como a democratização iminente da Alemanha em moldes progressistas e “ocidentais” (isto é, franceses) ao final da Primeira Guerra Mundial. Vários passos desse livro são ecoados em Raízes do Brasil, e a presença de elementos próximos d’A montanha mágica pode, em alguma medida, ser explicada pelo fato de que as Considerações participam da preparação do romance de 1924 - há mesmo uma menção explícita à sua elaboração nas Considerações7 7 “Antes da guerra, eu começara a escrever um pequeno romance, uma espécie de história educativa, onde um jovem homem atirado pela vida num lugar moralmente perigoso se encontra entre dois educadores bizarros; um, italiano, humanista, retor e homem do progresso; o outro, um místico um pouco suspeito, reacionário e defensor do irracionalismo. Ele é chamado a escolher, o bom rapaz, entre as forças da virtude e da sedução, entre o dever e o serviço da vida, de um lado, e de outro a fascinação da decomposição, à qual ele não era insensível, e a expressão ‘simpatia pela morte’ formava um componente temático da obra” (Mann, 2002, p. 354, tradução própria). . Contudo, a torção irônica efetuada pela versão ficcionalizada das ideias e tensões já lançadas nas Considerações dá à Montanha mágica um traço empolgante de suspense e indeterminação que a argumentação de Raízes parece se comprazer em reproduzir, especialmente nos capítulos finais.

Para fins da realização desta análise, importa sobretudo a segunda metade do romance; mesmo assim, um conhecimento básico da trama é necessário para contextualizar os comentários que se seguem. Hans Castorp é um órfão rico de uma família de comerciantes de Hamburgo, destinado a uma carreira de engenheiro naval. No começo do livro, Castorp exibe uma alienação da tradição cultural que patenteia a crise do paradigma de formação humanística da burguesia alemã, fato amplamente percebido já havia algum tempo (pense-se, por exemplo, nas Considerações extemporâneas de Nietzsche). Castorp já é um jovem adulto, mas seu comportamento e suas falas ao longo do livro, especialmente na primeira metade, revelam uma compreensão profundamente incompetente do mundo, especialmente de tudo relacionado às expressões do espírito - indicativo disso é o fato de que seus hábitos de leitura se limitam, nos meses iniciais de sua estada nos Alpes suíços, onde se desenrola o romance, a revistas especializadas de construção naval. Sua mediocridade é ao menos parcialmente devida à tendência moderna de especialização na divisão do trabalho e à sua condição de órfão. Mas o livro é todo permeado por uma atmosfera atormentada pela percepção de um esgotamento da cultura burguesa europeia que florescera ao longo do século XIX.

No momento em que chega ao hotel-sanatório de tuberculosos de Davos, onde está internado seu primo Joachim Ziemssen, militar, igualmente pouco culto e desinteressado por qualquer coisa estranha a sua profissão, Hans Castorp aparenta não ter tido nenhuma iniciação consistente na cultura não-utilitária, nem qualquer tipo de “educação estética”, tal como imaginada por Schiller (2002SCHILLER, Friedrich. 2002. A educação estética do homem numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras.) como antídoto para as tendências reificadoras da vida moderna. Com sua estadia prolongada por motivos (ou pretextos) médicos, Castorp começa a receber no sanatório a educação estética e sentimental que não tivera, por uma via dupla e concorrente. De um lado, o jovem é iniciado no amor romântico pela russa Clawdia Chauchat, personagem cercada de conotações “orientais” e vagamente irracionais, mas casada com um francês, em aceno à geopolítica ideologicamente contraintuitiva do pré-Primeira Guerra; o nome Chauchat - que os leitores do período entreguerras terão prontamente associado ao modelo de metralhadora leve de fabricação francesa amplamente usado a partir de 1915 - convida ainda a pensamentos lúbricos, ao contrair chaud, “quente”, e chatte, “gata”, mas também “boceta”. De outro, Castorp adquire uma espécie de formação humanística em suas longas conversas com o livre-pensador italiano Lodovico Settembrini, homem idoso cuja ocupação principal é a escrita de verbetes para um projeto de enciclopédia - não se poderia imaginar um emblema mais ostensivo do racionalismo iluminista, que, no entanto, representava, já naquela época, um ideal bastante desmoralizado, especialmente no contexto alemão. Settembrini é uma caricatura do liberal-progressismo caduco que alimentava a propaganda dirigida pela Entente contra a aliança austroalemã durante a Primeira Guerra, a própria encarnação romanesca dos “literatos da civilização” tão duramente criticados nas Considerações de um apolítico - o termo ali é endereçado em particular a Heinrich Mann e, de modo mais geral, a todos os que defendiam o progresso e a democracia, isto é, o mundo burguês criado pela Revolução, que o autor associa à “literatura”. Pouco depois da metade da narrativa, entretanto, Settembrini ganha um rival no plano intelectual e pedagógico, um representante das “sombras” contra as suas “luzes”: o jesuíta de origem judaica (nascido em algum vilarejo não nomeado entre a Galícia e a Volínia, isto é, na fronteira entre os impérios austro-húngaro e russo) Leo (nascido Leib) Naphta, que não deixa de ser, como todas as personagens do romance, caricato, mas inegavelmente mais cativante do que Settembrini.

Os confrontos retóricos entre Naphta e Settembrini dominam a narrativa até o retorno de Clawdia Chauchat, que deixara o sanatório logo após Castorp lhe ter confessado seu amor - logo antes, aliás, do aparecimento de Naphta - e que agora retorna acompanhada de um novo amante, o holandês Mynheer Peeperkorn, que, com sua personalidade primária mas absorvente, acaba neutralizando os debates entre os dois. A rivalidade esfria, até que, depois de um período descrito como de “grande irritação” na atmosfera do sanatório, uma discussão acaba levando Naphta a desafiar Settembrini para um duelo. Diante da recusa do italiano - que declara escrúpulos humanitários - em disparar contra Naphta, o jesuíta tira a própria vida. Em seguida, o leitor é transportado ao front - não se especifica qual - da Grande Guerra, onde, entre explosões e tiros, Hans Castorp cantarola o Lied Der Lindenbaum, de Franz Schubert.

É preciso ressaltar, mais uma vez, que essa reconstituição hipotética da composição de Raízes do Brasil a partir de lugares literários d’A montanha mágica não é passível de comprovação documental inequívoca; e que, embora a convicção do autor deste estudo seja de que entre os fatores que presidiram, conscientemente ou não8 8 Um caso de apropriação inconsciente de símile ficcional na explicação de fenômenos sociais foi demonstrado de forma persuasiva por Carlo Ginzburg num estudo sobre como a leitura de um conto de Robert Louis Stevenson teria suscitado a Malinowski sua interpretação sobre o kula trobriandês (Ginzburg, 2004). , a escrita de Raízes do Brasil, está a leitura deste romance de Thomas Mann, a análise que se segue só pode proceder por meio de aproximações e está especialmente sujeita ao risco do erro, que entretanto vale a pena correr. Comprovações documentais são especialmente difíceis com o material à disposição, principalmente porque o campo mais fértil para a verificação documental, na ausência de indicações textuais do autor, seria o exemplar d’A montanha mágica lido por Sérgio Buarque, e esse não consta na biblioteca que os detentores de seu espólio legaram à Unicamp. O exemplar que lá se encontra data de 1943, de modo que não é possível consultar eventuais grifos e anotações que poderiam ajudar a corroborar a hipótese de que tal ou qual trecho poderia ter sido especialmente marcante para Sérgio em suas leituras até 1936.

De todo modo, o que está fora de dúvida é que a personagem de Leo Naphta exerceu um fascínio persistente sobre Sérgio Buarque de Holanda, a ponto de ele não ter se furtado a referi-lo, citando textualmente A montanha mágica na dissertação de mestrado que apresentou em 1958 à Escola de Sociologia e Política de São Paulo, intitulada Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos descobrimentos. À primeira vista, essa referência pareceria disparatada numa dissertação de mestrado em ciências sociais sobre Portugal do fim da Idade Média até o século XVII, mas se justifica quando se tem em mente uma das teses principais desse trabalho: para Sérgio Buarque, a presença judaica e mourisca - isto é, “semítica”, ou, de modo mais amplo, “oriental” - na formação portuguesa teria deixado um sedimento profundo nas sociedades portuguesa e brasileira modernas, sedimento esse ocultado, porém, pelo empenho do Estado português, já na época da Contrarreforma, em extirpar do Reino e das colônias elementos que ameaçassem a supremacia católica. Esse esforço não conseguira, porém, apagar algumas evidências mais antigas, denunciadas por “aquele non placet Hispania” [“não gosto da Espanha”, isto é, segundo o uso da época, da Península Ibérica] que Erasmo de Roterdã escreveu numa carta a Thomas More, (Holanda, 1958HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1958. Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. São Paulo: Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo., p. 17), ou a “identidade entre ser português e ser judeu, no conceito popular” (Holanda, 1958HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1958. Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. São Paulo: Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo., p. 73) na Europa Central e mesmo na América Espanhola, ou ainda a alcunha de Rex Judaeorum conferida ao rei de Portugal (Holanda, 1958HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1958. Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. São Paulo: Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo., p. 75). E é a persistência dessa associação entre a Península Ibérica e o judaísmo no imaginário europeu de além-Pirineus que a citação que Sérgio faz d’A montanha mágica vem atestar:

A esse respeito, não parece descabido lembrar certa passagem de um escritor dos mais ilustres do nosso tempo, o qual, descendente de luso-brasileiros, do lado materno, se viu alvo, por sinal, de críticas de antissemitas que pareciam querer atribuir-lhe sangue judaico. Apenas é de notar que no trecho lembrado, os lusitanos ou melhor luso-brasileiros, já não surgem assimilados aos judeus, segundo o velho costume. Estes, sim, e a circunstância não deixa de ser igualmente significativa, é que irão parecer menos judeus, em confronto com aquela gente. De um de seus personagens, Leo Naphta, cristão novo e jesuíta, escreve, com efeito, Thomas Mann, que tivera a vocação sacerdotal estimulada pelo ambiente tolerante e democrático de um pensionato que frequentou na Alemanha, mantido por padres da Companhia, cujo cosmopolitismo tornava despercebidos seus traços raciais: entre os discípulos do mesmo Naphta havia gente de lugares exóticos, sul-americanos de origem portuguesa que se diria mais “judeus” que ele próprio, filho, no entanto, de um schochet da Galícia, rigorosamente adstrito, em seu ofício, aos preceitos talmúdicos. (Holanda, 1958HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1958. Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. São Paulo: Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo., pp. 100-101) 9 9 É bem possível que o interesse de Sérgio Buarque pelo tema da passagem aludida d’A montanha mágica tenha sido incitado por sua própria experiência de sul-americano na Europa Central. Recorde-se a anedota relatada em 1933 pelo pintor Emiliano Di Cavalcanti numa crônica do Diário da noite (Di Cavalcanti, 1933). Numa discussão sobre a perseguição aos judeus na Alemanha desde a tomada do poder por Hitler (que, no relato, simpatizantes do integralismo buscavam minimizar com seguranças de que tudo não passaria de “intriga”, supostamente fornecidas diretamente a Plínio Salgado por Hermann Göring), Sérgio Buarque teria atestado a realidade do perigo pelo qual passavam os judeus daquele país, com um relato do que acontecera a ele próprio. Caminhando por uma “rua escusa de Berlim”, Sérgio teria sido interpelado por um grupo de nazistas. Tomando-o por judeu, os “facínoras” estariam prestes a espancá-lo, do que teriam sido dissuadidos pelo seu “chefete”, supostamente perito em assuntos judaicos. Após cheirar minuciosamente o jovem Sérgio (que vinha evitando o banho havia alguns dias por conta de um resfriado), constatou que o jovem brasileiro exalava o mais conspícuo “cheiro de nazista”. Sérgio da Mata (2016, p. 73) questiona, com boa razão, a veracidade da anedota. Mesmo que inteiramente inventada, porém, ela certamente se refere a um elemento real da experiência - a persistente “identidade entre ser português [no caso, ibero-americano] e ser judeu, no conceito popular” dos povos europeus.

Provavelmente, o que Sérgio Buarque viu de instigante em Naphta quando escrevia Raízes do Brasil não terá sido tanto sua origem judaica, mas sua doutrina pedagógica, além de sua posição política radical diante daquilo que percebia como o esgotamento da cultura humanística e burguesa da Europa do século XIX. O fato de a segunda metade do romance ter como tema central uma alternativa política, espiritual e pedagógica, que se desenha nas discussões entre Naphta e Settembrini, é o elemento da intriga que parece ter sido transposto, de maneira consciente ou não, em Raízes. Hans Castorp, o jovem ainda indeterminado e inculto, é o objeto de uma disputa, ao fim e ao cabo fatal entre os dois pedagogos.

Essa circunstância aproxima a situação do protagonista ao impasse da cultura brasileira figurado por Sérgio Buarque. A ideia do brasileiro como um povo jovem e inexperiente, por sinal, para além de ser um lugar comum da época, já frequentara as reflexões de Sérgio Buarque: mesmo sendo engenheiro e alemão, o protagonista do romance de Mann não deixa de estar numa situação mais ou menos análoga àquele “estouvamento de povo moço e sem juízo” de que falava Sérgio Buarque, referindo-se aos brasileiros, em “O lado oposto e outros lados” (Holanda, 1996aHOLANDA, Sérgio Buarque de. 1996a O lado oposto e outros lados. In: PRADO, Antonio Arnoni (org.). O espírito e a letra: estudos de crítica literária (1920-1947). São Paulo: Companhia das Letras , p. 224-228. Volume 1., p. 224), artigo em que procurava acertar as contas com certas correntes do movimento modernista que ele então julgava excessivamente voluntaristas em sua ânsia de edificar o Brasil à imagem de um programa escolar predefinido. Nos capítulos finais de Raízes do Brasil, a pedagogia e a política se entrelaçam no núcleo da problemática da adaptação aos novos tempos, com vantagem para a primeira. É como se o Brasil, à maneira de Hans Castorp, estivesse diante da necessidade de tomar uma decisão para poder superar um estágio de estagnação, de uma forma de vida já esgotada (no caso do Brasil, a ordem rural e patriarcal) para alcançar a maturidade e a autonomia. No caso de Hans Castorp, essa indefinição assume ares nitidamente alegóricos e prenunciadores dos dois blocos políticos representativos dos complexos ideológicos que se enfrentarão na Primeira Guerra Mundial10 10 É com uma solenidade um pouco patética, mas que não deixa de ser comovente para os leitores que já conhecem o desenlace histórico do problema da indecisão alemã entre o Ocidente e aquilo que a Settembrini se apresenta como “a Ásia” - isto é, o despotismo, o irracionalismo, e também a ambiguidade moral encarnada por Mme. Chauchat - que o beletrista se dirige a Hans Castorp: “Caro amico! Será necessário tomar decisões, decisões de importância inestimável para a felicidade e o futuro da Europa, e elas caberão ao seu país. Situado entre o Oeste e o Leste, terá de escolher […] por uma ou outra das esferas que lhe disputam a natureza. O senhor é jovem. O senhor participará dessa decisão, sua vocação é influir sobre ela.” (Mann, 2016, p. 594). . Assim, as alternativas que se apresentam sob roupagens políticas são formas de pedagogia, no sentido mais amplo possível do termo, isto é, na medida em que são pensadas como as condições de reprodução das dinâmicas sociais, culturais e econômicas - assim, não admira que Sérgio fale na “prosperidade” como signo abarcador de uma “pedagogia”, conforme se lê no trecho de Raízes do Brasil sobre o suposto erro da crença na alfabetização como solução milagrosa para o atraso nacional.

E é uma perspectiva parecida com a de Naphta, muito mais do que com a de Settembrini, que vamos ver reproduzida nos capítulos finais de Raízes do Brasil - mesmo que suas opiniões não sejam todas vaticinadas, até por se tratar de uma figura dada aos mais diversos exageros, geralmente visando a efeitos polêmicos. São a personagem do pedagogo jesuíta e o universo cultural e ideológico por ele mobilizado que podem ter pautado alguns momentos importantes do livro, e não só o final. A presença de Settembrini também pode ser adivinhada aqui e ali, mas sempre mediada pelo olhar mordaz de Naphta. Independentemente da eventual intenção de Thomas Mann, que na altura da publicação d’A montanha mágica já não sustentava tão peremptoriamente todas as opiniões antidemocráticas e anti-iluministas de suas Considerações de guerra, não é difícil chegar à conclusão de que Naphta leva sempre a melhor nos debates que trava com seu oponente italiano. Dito isto, quem ler atentamente os debates perceberá uma ênfase provavelmente deliberada da narração em destacar um grau apreciável de dependência mútua, e mesmo elementos coconstitutivos, entre as ideias do jesuíta e as do enciclopedista. Sempre que a confrontação de ideias entre os dois chega a certo ponto - ou ao menos assim o percebe o despreparado Hans Castorp, cujas intervenções costumam demonstrar uma crassa incompetência em atinar o significado dos discursos que concorrem por sua simpatia - já não é possível perceber facilmente qual o conteúdo das ideias de cada um, e ainda menos o que as opõe, uma vez que a dialética entre as duas posições foi levada a um momento em que são estranhamente indistinguíveis11 11 Sobre um desses debates, o narrador conclui que “não resultou clareza nem ordem, nem ao menos uma ordem de caráter dualista e militante; pois as posições não somente eram opostas, mas confundiam-se”, e que Settembrini e Naphta, “ao invés de se limitar a combater-se reciprocamente, amiúde contradiziam-se a si próprios”. (Mann, 2016, p. 535). Mais tarde, lemos que outra conversa, precisamente a que parece ser a mais decisiva para Raízes do Brasil, iria “embocar naquela confusão já mencionada” (Mann, 2016, p. 603). . Para ser mais preciso, depois de um primeiro retrato otimista e progressista da história ocidental como superação da menoridade humana, traçado por Settembrini, Naphta vem relativizar esse quadro, fazendo frequentemente o elogio dos elementos “superados” e revelando a complexidade e, sobretudo, a ambiguidade do mundo moderno - mundo esse que ele espera ver ruir com o advento de uma Revolução ao mesmo tempo proletária e católica.

O que Hans Castorp consegue extrair dessas lições, o leitor pode apenas tentar adivinhar, mas o certo é que o jovem nem sempre compreende adequadamente o que está em jogo no duelo de posições travado com o fim exclusivo de disputar sua simpatia12 12 Referindo-se à última fase das contendas entre os dois eruditos, o narrador faz uma observação que talvez pudesse se aplicar a um período maior, considerando indicações dadas anteriormente: “Era claro que Hans Castorp só podia falar das discussões a que assistia. Mas o jovem tinha quase certeza de não haver perdido uma sequer, pois sua presença, ao tratar-se de um tema pedagógico, era indispensável para dar grandeza aos colóquios” (Mann, 2016, p. 798). . A certa altura, ele expõe, para grande apreensão de Settembrini - que parece muito pouco seguro da superioridade propagandística de seu próprio ideal, dado seu constante empenho em privar de seu jovem pupilo a oportunidade de ouvir seu rival - um raciocínio que mescla de modo contraditório os ensinamentos que recebera do mestre italiano com algumas das novidades mais picantes apresentadas pelo jesuíta, ao afirmar sobre determinado aspecto da doutrina maçônica (a qual ele, Castorp, entende singelamente pela “ideia de riscar Deus”) que seria, a seu ver, “uma ideia sumamente católica” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 593), numa de muitas interpretações desajeitadas de ideias que recebe de seus mestres bem-formados. Elas lembram a confusão daqueles intelectuais brasileiros de Raízes do Brasil que, não sendo capazes de compreender a necessidade das ideias e a lógica que lhes dá coerência, são levados a professar “doutrinas dos mais variados matizes”, sendo capazes de sustentar, simultaneamente, as “convicções mais díspares”, desde que “se possam impor à imaginação por uma roupagem vistosa - palavras bonitas ou argumentos sedutores” (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., p. 114). Pelo menos num primeiro momento, Hans Castorp se deixa guiar bovinamente pela argumentação de Settembrini, sobretudo pelas aparências impressionantes produzidas por sua suposta excelência retórica13 13 Ao final de um dos primeiros embates, uma longa declamação de Settembrini é seguida da observação do narrador, que exprime, em discurso indireto livre, a opinião de Hans Castorp: “Seria impossível falar de forma mais clara e mais elegante do que o Sr. Settembrini acabava de fazer” (Mann, 2016, p. 474). Settembrini é reiteradamente qualificado ao longo do livro como um mestre da palavra - embora nem tanto do pensamento; esse posto caberia antes a Naphta. Noutra parte, uma das perorações de Settembrini é classificada pelo narrador como um “panegírico apologético” (Mann, 2016, p. 601) [apologetischer Lobgesang] (Mann, 1988, p. 552); logo mais, Naphta qualifica de “literário” e mentiroso o espírito do palavrório de Settembrini, opondo-o à “vida” e à “natureza” (Mann, 2016, p. 602), ecoando os ataques que o próprio Thomas Mann desferira contra os “literatos da civilização” nas Considerações de um apolítico. - excelência que empalidecerá ao longo do convívio com Naphta. Em Raízes, vamos ver entrelaçados justamente a maçonaria, sociedade da qual participa Settembrini14 14 A natureza arquetípica desse traço da personalidade de Settembrini, bem como de sua origem italiana e do fato de seu pai ter sido um carbonário, é clara; lembre-se o que Mann escreve sobre a maçonaria nas Considerações de um apolítico, livro que, como já se notou, contém em esboço boa parte das ideias que entram em cena, ficcionalizadas, na Montanha mágica: “Se quero ler algo que me revolve as entranhas, que provoca sem dúvida em minha pessoa um sobressalto de protesto […], abro o volume de Mazzini que um belo dia, sem que eu o tivesse procurado, me caiu às mãos. […] Ali aprendi a entender que o ‘espírito’ é algo de intermediário entre o Grande Oriente e o clube jacobino, como ele quer e deve ser compreendido mais uma vez hoje, depois da reabilitação da virtude” (Mann, 2002, p. 330, tradução própria). , e o catolicismo, elemento central da identidade de Naphta, de maneira a exemplificar um problema característico das contradições suscitadas pelo imbricamento histórico de tendências opostas no episódio da chamada Questão Eclesiástica (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., p. 108). No romance de Mann, ao menos se pensarmos em como ele teria sido lido depois de 1945 e das posições que o autor manifestaria antes e no decurso da Segunda Guerra, está claro que a alternativa entre Naphta e Settembrini é, de certo modo, falsa, na medida em que ambos representam as duas faces de uma modernidade burguesa moralmente esgotada, inclusive em seus elementos antitéticos internos - mesmo o terror revolucionário desejado por Naphta tem seu potencial redentor desmentido, salvo engano, pelo fim da narrativa. Talvez isto não estivesse tão claro para Sérgio Buarque, que parece reproduzir, em alguns passos da argumentação de Raízes, um ponto de vista próximo daquele do jesuíta, principalmente a verve de suas invectivas contra os “crédulos predicadores do progresso” (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., p. 129).

Tal opinião não é de se admirar, se lembrarmos como são vivas as tintas com que Mann carrega o retrato de Naphta. Várias de suas opiniões ou elementos que lhe dizem respeito têm ecos diretos ou indiretos em Raízes do Brasil. A doutrina filosófica de Naphta, espécie de síntese entre filosofia tomista e um marxismo um tanto hermético, aparenta ter um forte componente hegeliano - ainda que se trate de uma apropriação pouco convencional do pensamento do filósofo. Ouve-se dele - contra a asserção de Settembrini de que “o espírito” e “a natureza” são idênticos - que o espírito tem um “princípio motor, passional, dialético”, baseado no “dualismo” e na “antítese”, e que “todo monismo é fastidioso”. Naphta faz questão de atribuir esses argumentos, em sua origem, a Aristóteles (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., pp. 432-433). Baseado em Tomás de Aquino e Boaventura, o jesuíta opõe o “mundo” ao “divino” - o leitor de Raízes do Brasil se lembrará aqui do capítulo inicial, “Fronteiras da Europa”, no qual se lê que os princípios hierárquicos sobre os quais a filosofia escolástica pretendia erigir a ordem terrena eram uma “força inimiga […] do mundo e da vida” (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., pp. 8-9). Crítico do Estado liberal e do progressismo burguês, Naphta acredita, em perspectiva afinada com a de Raízes do Brasil, que as formas políticas sucedem-se, na História, pela superação do antigo pelo advento de forças transcendentes; em suas palavras, “a república universal capitalista” apregoada pelo iluminista Settembrini, “tem algo de transcendente” e também o “Estado universal é a transcendência do Estado secular”15 15 O leitor de Raízes não deixará de notar a afinidade, não só de conteúdo, mas também de estilo, entre semelhantes formulações e a passagem do primeiro parágrafo do capítulo sobre o “homem cordial” onde se lê que, na ordem que é própria do Estado, aquela ligada à família é “abolida por uma transcendência” (Holanda, 1936, p. 94). , mas essa transcendência não será alcançada, como pretende o rival italiano, por meios democráticos e pacíficos. Ecoando Jacob Burckhardt, Naphta sustenta que “o poder é mau”; daí a “necessidade do terror”. “Para que chegue o reino”, diz Naphta, “é preciso suspender momentaneamente [vorübergehend aufgehoben] o dualismo entre bem e mal, aquém e além, espírito e arbítrio [Geist und Macht], e uni-lo em um princípio que reúna o ascetismo e o domínio” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 463, 1988MANN, Thomas. 1988. Der Zauberberg. Frankfurt: S. Fischer., p. 424).

Sobre o conteúdo desse mundo ideal, Naphta se estende mais longamente em outra de suas palestras: “a Igreja, como encarnação da ideia religiosa-ascética”, estava longe de se empenhar em salvar o mundo que insistia em resistir à marcha das novas forças sociais, ou seja, era inimiga exatamente da “formação secular” e das “ordenações jurísticas do Estado”, e “arvorava a bandeira da revolução mais radical”, de modo que “o Estado e a família, a arte e a ciência seculares, tudo isso sempre estivera em oposição […] à ideia religiosa, à Igreja”. Esta tinha por “objetivo inalterável” a “dissolução de todas as ordenações seculares e a reorganização da sociedade segundo o modelo da Cidade de Deus, ideal e comunista” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 677). Se em alguma parte de Raízes do Brasil se pode encontrar o mesmo tom de fascinação quase reverente pelo poder e pela dominação como manifestações de uma vontade férrea e cruel - mas também de uma força transcendente e necessária à ordem num mundo inerentemente mau - é, por certo, quando se fala nos jesuítas, ali comparados, aliás, aos “comunistas” e aos teóricos do “Estado totalitário”16 16 “Nenhum ditador moderno, nenhum teórico do comunismo ou do Estado totalitário, chegou a vislumbrar a possibilidade desse prodígio de racionalização que puderam conseguir os padres da Companhia de Jesus em suas missões.” (Holanda, 1936, pp. 14-15) - Naphta encerra em si os três termos da comparação. E uma descrição semelhante do “prodígio de racionalização” se pode encontrar nas páginas d’A montanha mágica onde se aprende um pouco sobre a formação jesuítica de Naphta17 17 “As terras do educandário” onde Naphta foi acolhido “eram tão extensas quanto os seus edifícios, que podiam abrigar aproximadamente quatrocentos alunos. O conjunto abrangia bosques e prados, meia dúzia de campos de jogo, celeiros, estábulos, para centenas de vacas. O instituto era ao mesmo tempo um pensionato, uma granja-modelo, uma academia de esportes, uma escola de sábios e um templo das Musas; pois, sem cessar, havia representações teatrais e concertos. A vida era senhoril e claustral”. (Mann, 2016, p. 511). Compare-se o trecho com a avaliação das reduções jesuíticas em Raízes: animados pelo pensamento de que “o homem pode intervir arbitrariamente e com sucesso no curso das coisas e de que a história não somente ‘acontece’. mas também pode ser dirigida e até fabricada”, os jesuítas “não só o introduziram na cultura material das missões guaranis, ‘fabricando’ cidades geométricas, de pedra lavrada e adobe, numa região rica em lenho e paupérrima em pedreiras, como estenderam-no até as instituições. Tudo estava tão bem regulado nessas missões - refere um depoimento - ‘ut secundum morem in Bolivia traditum conjuges indiani media nocte sono tintinnabuli ad exercendum coitum excitarentur’ [“que, segundo o costume na Bolívia, à meia-noite os casais de índios são despertados com sinos, a fim de realizarem o coito”].” (Holanda, 1936, p. 65). , que conseguira a simpatia de um membro da ordem após impressioná-lo em uma conversa sobre Hegel, filósofo que ele considerava “católico”, pois, sendo ele o “filósofo oficial” do Estado prussiano, e estando “o conceito do político” (“der Begriff des Politischen”, exatamente como no título de Carl Schmitt, posterior em alguns anos à publicação d’A Montanha mágica) “psicologicamente vinculado ao de católico”, isto é, direcionado ao mundo objetivo e a “tudo que produzisse efeitos externos”, em evidente oposição à “esfera pietista, protestante, que tinha sua origem na mística”, Hegel tinha de ser considerado, por força, um católico “no sentido religioso, embora naturalmente não no sentido eclesiástico-dogmático”. E o jovem Naphta concluía afirmando que era no jesuitismo que “tornava-se evidente a natureza político-pedagógica do catolicismo”, concluindo, por um raciocínio análogo àquele aplicado a Hegel, que Goethe, por seu objetivismo e sua doutrina da ação, era “quase jesuíta como educador” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., pp. 509-510, 1988MANN, Thomas. 1988. Der Zauberberg. Frankfurt: S. Fischer., p. 467). A estranha filosofia política de Naphta, porém, ainda que sirva de base teórica a ideais comunistas, não é só antiburguesa, como marcadamente antimoderna, pois para ele, “a questão da liberdade, ou a questão das cidades” estaria “historicamente ligada à mais desumana degeneração da moral econômica, a todas as atrocidades das corporações modernas de comerciantes e especuladores, com o domínio satânico exercido pelo dinheiro e pelos negócios”, fato que deveria levar ao abandono do “medo covarde ante a ideia de ‘reação’” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 467). Na formação jesuítica de Naphta não deixa de entrar certo elemento iberizante, que se mostra em seu uso frequente de expressões castelhanas (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 515), além do legado de um ideal pedagógico altamente dependente de noções de autoridade férrea e obediência - noções aludidas, mas severamente criticadas, em Raízes do Brasil. No primeiro capítulo, afirma-se a sua obsolescência; no quinto, elas são rechaçadas por uma citação a Knight Dunlap, um dos “pedagogos e psicólogos mais venerados de nossos dias” (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., p. 96), cuja proposta de estímulo à autonomia na educação infantil se opõe diametralmente àquilo que Naphta diz, quando expõe sua pedagogia “terrorista”:

O princípio da liberdade cumpriu o seu destino e chegou a ser antiquado nos últimos quinhentos anos. Uma pedagogia que ainda hoje pretende ser a filha do racionalismo [Aufklärung] e vê os seus meios formativos na crítica, na libertação e no culto do eu, na destruição de formas de vida determinadas de um modo absoluto, ora, tal pedagogia pode obter ainda hoje triunfos retóricos passageiros, porém o seu caráter atrasado é óbvio para os espíritos avisados. Todas as organizações verdadeiramente educadoras sempre souberam qual deve ser o objetivo último da pedagogia, afinal: a autoridade absoluta, a obrigação de ferro, a disciplina, o sacrifício, a renúncia a si próprio, o domínio da personalidade. Em última análise, desconhece e não ama a juventude quem pensa que ela sente prazer diante da liberdade. O que ela aprecia mais é a obediência. […] O segredo e a existência [Gebot] da nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do eu. O que ela necessita, o que ela deseja, o que criará é… o terror. (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 461, 1988MANN, Thomas. 1988. Der Zauberberg. Frankfurt: S. Fischer., p. 422)

Compare-se o que se leu acima com a passagem em que aparece o único ideal que dá ordem à “cultura da personalidade” ibérica descrita no primeiro capítulo de Raízes do Brasil. Ela replica, quase que ponto por ponto, a exposição pedagógica de Naphta:

À autarquia do indivíduo, à exaltação extrema da personalidade, paixão fundamental e que não tolera compromissos, só pode haver uma alternativa: a negação e a renúncia a essa mesma personalidade em vista de um bem maior. Por isso mesmo que rara e difícil, a obediência aparece, por vezes, entre os povos ibéricos, como a virtude suprema entre todas. E não é estranhável que essa obediência - obediência cega, que difere do ideal germânico e feudal da lealdade - tenha sido até agora para eles o único princípio político verdadeiramente forte. […] As ditaduras e o Santo Ofício constituem formas tão típicas de seu caráter como a inclinação para a anarquia e a desordem, não existe para os povos ibéricos outra sorte de disciplina concebível, além da que se funde na excessiva centralização e na obediência, ainda que só por exceção se manifeste.

Foram ainda os jesuítas que representaram, melhor de [sic] que ninguém, esse princípio da disciplina pela obediência. Mesmo em nossa América do Sul, eles deixaram disso um exemplo memorável com suas antigas reduções. Nenhum ditador moderno, nenhum teórico do comunismo ou do Estado totalitário, chegou sequer a vislumbrar a possibilidade desse prodígio de racionalização que puderam conseguir os padres da Companhia de Jesus em suas missões. (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., pp. 14-15)

Outra arenga pedagógica de Naphta que encontra correspondência negativa - mas igualmente precisa - em Raízes do Brasil é sua tese sobre os castigos corporais. Depois de ouvir um relato das surras humilhantes que Hans Castorp havia recebido na infância, o jesuíta replica, para o horror de Settembrini, que, em pedagogia, “o conceito de dignidade humana defendido por aqueles que queriam excluir os castigos corporais”, enraizado no “individualismo liberal da época burguesa e humanitária, no absolutismo esclarecido do eu”, estava, por isso mesmo, destinado à superação por “ideias sociais menos efeminadas, que já se achavam iminentes; ideias de disciplina e docilidade, de coação e obediência, às quais era inerente uma sagrada crueldade” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 524). É no capítulo sobre o “homem cordial” que se vai ler em Raízes do Brasil a defesa de uma pedagogia diretamente oposta a essa, ainda que Sérgio Buarque preste uma homenagem a tempos passados, em que ainda parecia razoável o ideal caduco da obediência introjetada por meio de castigos corporais, em sua referência ao “prodigioso Dr. Johnson”, que fazia a seu biógrafo, James Boswell, a “apologia crua dos castigos corporais para os educandos e recomendava a vara” - e aqui, em citação irônica mas reverente à biografia de Samuel Johnson por Boswell, a frase conclui com palavras que caberiam muito bem numa das tiradas sentenciosas e polêmicas de Naphta - “para o terror geral de todos” (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., pp. 98-99).

Da crítica de Naphta ao liberalismo e à ideologia moderna e cosmopolita, especialmente a certos dogmas iluministas bastante enraizados entre os bem-pensantes, por outro lado, Raízes do Brasil partilha ao menos uma parte significativa. Embora Settembrini talvez o pressinta - dada sua apreensão em todas as ocasiões em que Hans Castorp está exposto às doutrinações de seu rival - Naphta é a personagem do livro que desvela um dos elementos centrais à urdidura da trama e ao significado do romance: a noção de que os ideais pedagógicos do humanismo burguês e, por extensão, toda a cultura europeia, se mantinham em funcionamento por forças meramente inerciais, e careciam da convicção e da energia vital com que se haviam edificado em sua fase propriamente heroica - as épocas de Voltaire, Diderot e Rousseau, e, um pouco mais tarde, de Goethe, Schiller e Hegel. Depois de chamar Virgílio, poeta predileto de Settembrini, de um “francês de peruca empoada em plena era de Augusto”, Naphta afirma, ante a lembrança pelo adversário de ser, ele próprio, professor de latim, que “exercia com toda a necessária reservatio mentalis aquela profissãozinha burguesa”, e que “[n]ão era sem ironia que se enquadrava num sistema de ensino clássico- retórico, ao qual nem os maiores otimistas podiam prometer mais que alguns decênios de duração” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 598). Chocado, como costuma ficar em suas confrontações com o ardiloso adversário, Settembrini acusa nessa profecia um anseio por “apocalipses proletários”, ao que, num dos paradoxos a que semelhantes discussões levam de forma recorrente no livro, Naphta responde que o italiano tinha excessiva confiança em seu “conservadorismo latino”. Enquanto Settembrini, “esse servidor declarado do progresso”, prepara sua resposta a essa “grande insolência”, Naphta continua seu ataque demolidor, afirmando que a cultura erudita era, já naqueles temos, motivo de riso entre os populares, e descarta a “ilusão insana de que a cultura popular era uma forma diluída da cultura erudita”, concluindo que a educação das futuras gerações proletárias deveria abandonar seu esqueleto medieval e se dar na forma de um “ensino livre, acessível a todos por meio de conferências públicas, exposições, cinemas etc., […] muitíssimo superior a qualquer ensino escolar”. É então, e finalmente chegamos ao momento de mais flagrante coincidência entre as doutrinações de Leo Naphta e o Sérgio Buarque de Raízes do Brasil, que Settembrini tenta constranger Naphta e, imaginando apelar para sua sensibilidade de erudito, acusa nele uma “instintiva tendência de envolver o povo e o mundo nas trevas do analfabetismo” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 599). A resposta de Naphta é bem reminiscente do ataque de Sérgio Buarque aos “crédulos predicadores do progresso”, feito no mesmo tom polêmico e sarcástico:

Naphta sorriu. O analfabetismo! Com isso seu interlocutor pensava, sem dúvida, ter pronunciado uma verdadeira palavra de horror, persuadido de que todo mundo, ciente de seu dever, empalideceria em face dessa cabeça de Górgona. Ele, Naphta, lamentava ter de desapontar seu oponente ao dizer-lhe que o pavor dos humanistas ante o conceito de analfabetismo fazia-o rir, e nada mais. Era preciso ser um […] precioso, um homem do Secento, um marinista, um palhaço do estilo culto, para atribuir às artes de ler e escrever toda essa exagerada primazia pedagógica, a ponto de se imaginar que reinariam as trevas do espírito onde faltasse o conhecimento de ambas. O Sr. Settembrini se recordava de que o maior poeta da Idade Média, Wolfram von Eschenbach, tinha sido analfabeto? Naquela época julgava-se vergonhoso na Alemanha enviar à escola um menino que não quisesse ser padre, e esse menosprezo aristocrático e popular pelas artes literárias fora em todos os tempos um sinal de nobreza fundamental da alma, ao passo que era na verdade o literato, esse filho genuíno do humanismo e da burguesia, quem sabia ler e escrever. O que ele sabia e entendia de tudo que havia no mundo, afinal, era mesmo coisa nenhuma, e não passava, isso sim, de um latinista doidivanas que dominava a língua e deixava a vida a cargo de pessoas honradas… E por isso fazia da política algo vão, isto é, algo cheio de vã retórica e belas-letras, o que no linguajar dos partidos se denomina radicalismo e democracia […]. (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., pp. 599-600)

O retrato que Naphta traça dos literatos, dos “latinistas doidivanas”, que nada sabem das coisas deste mundo, reclusos em suas bibliotecas, é precedido, aliás, em muitas páginas, por uma visão muito mais positiva desses mesmos tipos, exposta, naturalmente, por Settembrini, nessa altura ainda despreocupado da influência nefasta de Naphta sobre seu jovem amigo, que aqui ainda não conhece o jesuíta. Estamos no capítulo em que Settembrini fala a Hans Castorp sobre seus trabalhos de enciclopedista. Diz o italiano:

Sou humanista, […] pois sou amigo do homem, […] um enamorado da humanidade e de sua nobreza. Essa nobreza, no entanto, acha-se encerrada no espírito, na razão, e por isso seria em vão se o senhor me acusasse de obscurantismo cristão […]… seria absurdamente em vão o senhor me acusar disso […] só porque um belo dia o humanismo, no seu nobre orgulho, chegou a se dar conta da humilhação, da ignomínia que reside no espírito estar ligado ao corpo, à natureza. O senhor tem conhecimento de que nos foi transmitido um dito do grande Plotino, segundo o qual ele sentia vergonha de ter um corpo? […] É uma sentença absurda, se assim quiser. Mas o absurdo é a honestidade espiritual, e no fundo não há nada mais nobre que a objeção do absurdo, nos casos em que o espírito procura manter sua dignidade em face da natureza […]. (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 288)

Raízes do Brasil, num passo sobre os homens de letras encerrados em suas bibliotecas, exemplares da vida intelectual que dá as costas para a realidade, responde a essas duas passagens, quase ponto por ponto, reproduzindo uma perspectiva bastante afinada com as críticas de Naphta à alienação dos intelectuais pelas coisas do mundo e do povo. É a figura de Plotino, que Settembrini qualifica de “grande”, que Sérgio Buarque invoca para encerrar o parágrafo:

Ainda quando se punham a legiferar e a cuidar da organização e outras coisas práticas, os nossos homens de ideias eram puros homens de palavras e livros; não saíam de si mesmos, de seus sonhos e imaginações. Tudo assim se engenhava na fabricação de uma realidade artificiosa e livresca, onde nossa vida verdadeira morria de asfixia. Comparsas desatentos do mundo que habitávamos, quisemos viver fervorosamente contra nós mesmos, viver pelo espírito e não pelo sangue. Como Plotino de Alexandria, que sentia vergonha do próprio corpo, acabaríamos por esquecer tudo quanto fizesse pensar em nossa própria riqueza emocional, a única força criadora que ainda nos restava, para nos submetermos à palavra escrita, à gramática, ao Direito abstrato. (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., p. 126)

Antes de concluir este estudo, convém perguntar pelo significado mais amplo dessa apropriação, que, a esta altura, espera-se ter estabelecido como plausível. Em primeiro lugar, considerando o destaque que a figura de Leo Naphta ganhou até aqui na construção dos paralelos entre Raízes e o romance de 1924, seria o caso de conduzi-los para uma conclusão em torno do caráter geral de sua reverberação no conteúdo e na forma do ensaio de Sérgio Buarque. A estar correta nossa hipótese, é a Naphta que se deve muito da verve com que o ensaísta brasileiro denuncia a credulidade ingênua dos pensadores políticos brasileiros, em especial os liberais. É possível, porém, apontar para uma conclusão mais ampla. Naphta, cuja fala desembaraçada, sem papas na língua, contrasta com a empolação palavrosa de Settembrini, de modo a torná-lo um avatar da desmistificação da ideologia burguesa e da revelação das verdades desagradáveis que seu rival iluminista se empenha em escamotear, serve como modelo da postura cética e do espírito crítico da voz narrativa de Raízes - esta o emula, geralmente sem se comprometer abertamente com nenhuma posição em particular, à diferença de Naphta, que é portador de um programa ideológico obscuro, mas substantivo. Nas mãos do jesuíta, esse espírito crítico investe na dúvida sistemática e no questionamento do senso comum como disparadores do processo formativo18 18 Na altercação que precede o duelo final, a um Settembrini ultrajado, que o acusa de corromper a juventude com “indecências”, Naphta diz: “Quando, na nossa função de educadores, semeamos a dúvida, uma dúvida mais profunda do que jamais pôde imaginar o seu modesto espírito esclarecido, sabemos perfeitamente o que estamos fazendo. É apenas do ceticismo radical, do caos moral, que nasce o absoluto, o terror sagrado de que carece o nosso tempo.” (Mann, 2016, p. 807) , chegando a questionar as pretensões do pensamento à compreensão da realidade.19 19 Assim o narrador d’A Montanha mágica caracteriza o tom geral e o tema da última das palestras eruditas de Naphta (à qual voltaremos abaixo): “A palestra vagava livremente pela esfera do espírito, roçando isso e aquilo, empenhada, essencialmente, em demonstrar, de forma desanimadora, a ambiguidade dos fenômenos espirituais da vida, bem como a natureza irisante e a debilidade combativa das grandes ideias derivadas deles. Esforçava-se por tornar evidente que o absoluto se apresentava neste mundo em roupas muitíssimo cambiantes” (Mann, 2016, p. 803). Parece que Sérgio Buarque se empenhou continuamente, com sua militância intelectual, em desenvolver esse tipo de atitude, que se inscreve num processo de automodelagem20 20 Sobre a escrita histórico-ensaística como locus de automodelagem a partir do influxo de estímulos artísticos modernistas, ver o livro de Ricardo Benzaquen (Araújo, 1994), no qual analisa o caso de Gilberto Freyre. Em chave parecida, tratando da antropologia de Malinowski e da ficção de Conrad, ver o estudo de Clifford (1988). Mais recentemente, Dalton Sanches (2021, 2022) examinou em detalhes o processo no qual Sérgio Buarque procurou se distanciar, ao longo dos anos de 1940 e 1950, da figura de Freyre, que funciona como projeção negativa da imagem que Sérgio Buarque busca construir para si de intelectual ligado à “nova” ciência social universitária, científica, objetiva e sistemática, oposta ao “ensaísmo” que atribui a Freyre (e a si mesmo, quando da publicação da primeira edição de Raízes) - operação que incide tanto sobre a visão da sua própria formação quanto sobre aquela do pensamento sociológico brasileiro, de modo a situar o procedimento “ensaístico” num passado em vias de superação. de sua imagem como intelectual independente e intempestivo, agindo à maneira de um “franco-atirador” e recusando-se a “abdicar de sua liberdade” (Barbosa, 1989BARBOSA, Francisco de Assis. 1989. Introdução In: Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, p. 11-35., p. 29)21 21 Para Jackson e Moraes (2021), a oscilação ambígua de Raízes entre o saudosismo pelo mundo aristocrático do Nordeste açucareiro e o elogio da modernização capitalista sediada em São Paulo seria como que a expressão interpretativa da trajetória dos Buarque de Holanda em sua transição do primeiro contexto (no qual representavam a oligarquia) para o segundo (no qual se firmariam no estrato superior das camadas médias assalariadas). Assim, a trajetória familiar e pessoal de Sérgio Buarque apresentaria estreita correspondência com a ambiguidade de uma cultura “fronteiriça” (como é caracterizada a portuguesa) e “desterrada”, em transição para o mundo moderno. Note-se que a origem fronteiriça, a reconfiguração das condições de vida por meio da ascensão profissional adquirida mediante a aquisição de bens culturais (em paralelo com a trajetória que Moraes e Jackson identificam entre os Buarque de Holanda do final do século XIX a meados do XX), com o resultado de um estilo de pensamento e expressão profundamente ambíguo (e resultante de um empenho consciente de estilização) são traços distintivos da personalidade de Naphta. Uma conexão direta entre o fascínio por Naphta e o interesse de Sérgio Buarque pelo repertório semântico associado à figura do judeu na cultura europeia é textualmente verificável na passagem supracitada de sua dissertação de mestrado de 1958 - interesse que, incitado por elementos da experiência alemã do próprio Sérgio, vem reforçar a presente hipótese de que Naphta tenha servido estímulo ficcional para operações de automodelagem (ver nota 9). Outra personagem de Mann em que há o mesmo motivo da ambiguidade da pertença à cultura alemã, essa já ostensivamente inspirada na experiência do próprio escritor, é Tonio Kröger, filho de distinta família hanseática, mas de mãe nascida “lá embaixo no mapa” (Mann, 2015, p. 92), constantemente atormentado pelo pensamento de ser confundido com um “cigano numa carroça verde” (Mann, 2015, pp. 92, 96, 106, 128). Ainda em 1929, Sérgio Buarque escreve que Tonio Kröger e A morte em Veneza são “duas obras-primas, apenas comparáveis em sua perfeição a certas novelas curtas de Tolstói”; as duas novelas de Mann teriam elevado o gênero a uma “perfeição cristalina” (Holanda, 1989, pp. 199-200). . O cultivo dessa imagem precede sua leitura d’A montanha mágica - algumas de suas expressões mais características aparecem já em ensaios críticos dos anos 1920, como o explosivo “O lado oposto e outros lados” - mas possivelmente Sérgio Buarque terá encontrado na figura de Naphta um subsídio altamente sugestivo para essa operação de autoformação, ou Bildung.

Em segundo lugar: como o ponto de vista de Raízes do Brasil sobre a história brasileira pode estar atrelado, no plano formal, a uma leitura d’A montanha mágica? A pergunta é particularmente inquietante, porque, por mais que se admita uma estrutura tomada de empréstimo do romance de formação num ensaio histórico composto com traços largos, mais eminentemente interpretativo do que estritamente factual e narrativo, A montanha mágica está longe de ser um romance de formação convencional. Mesmo que possa ter escapado a Sérgio Buarque alguma parte da complexidade do romance, com seus diferentes níveis de ironia22 22 Lembre-se outra vez do estudo de Pedro Caldas (2014). , ele certamente terá notado que o livro de 1924 é uma obra na qual sempre somos lembrados das vicissitudes do ideal de Bildung, e na qual a crise da modernidade é vista sob um ponto de vista ostensivamente pedagógico. Por outro lado, em Raízes do Brasil, por mais irônica que seja a narrativa, ela participa de um anseio de formação nacional. Com efeito, se pensarmos na recepção e nas constantes reapropriações do livro por outros autores, quer dizer, no seu próprio papel formativo para a intelectualidade brasileira no século XX, o valor de Raízes se revela sobretudo na medida em que o grande êxito do livro foi ter apresentado ferramentas para a inteligibilidade da história brasileira. É essa a chave de leitura de Antonio Candido (2016CANDIDO, Antonio. 2016. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 355-370.) em seu prefácio a Raízes, com toda a justiça o texto mais conhecido da fortuna crítica do livro, e é por esse acerto não tão valorizado quanto outras dimensões do prefácio - hoje amplamente contestadas - que ele exerce uma influência tão persistente não só na fortuna crítica de Raízes do Brasil, mas na identidade disciplinar das ciências sociais brasileiras. Na constelação dos autores alemães mais influentes para o livro - em ordem cronológica e não necessariamente exaustiva: Hegel, Nietzsche, Weber e Spengler, além do próprio Thomas Mann - preponderam os pensadores da crítica e da crise da Bildung, mas isso não necessariamente descarta uma visão otimista da formação brasileira. As perspectivas concorrem entre si, sem necessariamente anularem-se umas às outras - pode-se mesmo identificar no flagrante ecletismo teórico do livro uma séria restrição à eficácia argumentativa do ensaio. O ponto de partida do livro é uma pergunta pela existência ou inexistência de “um tipo próprio de cultura” (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., p. 3), pergunta cuja resposta não é muito clara, e que continua pairando até o final do livro.

Nesse caso, é preciso tomar precauções ao se tentar explicar o texto sociológico ou historiográfico a partir do romance, pois o esquema retórico-poético do material eventualmente apropriado não necessariamente é reproduzido no texto de destino, ainda que elementos superficiais ou mesmo estruturais dele o sejam - ou, em havendo uma apropriação estrutural, esta pode ser limitada ou mesmo ter consequências bem diferentes daquelas que a mesma estrutura engendra na ficção. Sucintamente, podemos compreender a transposição (ou, falando de modo mais prudente, repercussão) da estrutura narrativa do romance no ensaio de Sérgio Buarque da seguinte maneira: a encruzilhada ideológica diante da qual a intelectualidade brasileira se encontra, em suas aspirações à realização de um Brasil moderno, se desenvolve em paralelo à situação de Hans Castorp ao longo do livro.

Inexperiente e ingênuo, incapaz de compreender muito bem as ideias que lhe são apresentadas por seus dois mestres rivais, no curso da narrativa ele conquista, apesar de tudo, os rudimentos daquela forma de vida autodeterminada e autocrítica cultivada pelo pensamento alemão, na qual o indivíduo reconhece sua alienação de si mesmo, encontrando nesse reconhecimento o caminho para superá-la - isto é, o caminho de sua Bildung (cf. Koselleck, 2020KOSELLECK, Reinhart. 2020. Sobre a estrutura antropológica e semântica do conceito de Bildung. In: Histórias de conceitos. Estudos sobre a semântica e pragmática da linguagem política e social. Rio de Janeiro: Contraponto, p. 115-168., p. 131). Se conseguiu isso, não foi somente em virtude de seus contatos com os ideais concorrentes da luz e da sombra encarnados pelos dois pedagogos, mas também (ou sobretudo) de sua experiência amorosa com Clawdia Chauchat, de uma educação não puramente intelectual, mas também sentimental (tema igualmente ressaltado na tradição em torno do conceito de Bildung).23 23 Em sua síntese histórico-conceitual da Bildung, Koselleck (2020, p. 130) lembra que o desenvolvimento desse conceito abre para o amor um “novo espaço de experiências”, no qual uma ideia de “amor sexual”, liberada dos compromissos teológicos e estamentais associados à ideia tradicional de casamento, se torna um elemento dinâmico que remete o intelecto à sensualidade (e vice-versa), gerando um processo comum no qual os amantes se formam reciprocamente. A ideia é bem ilustrada por uma das últimas observações do narrador d’A montanha mágica: “Certas aventuras da carne e do espírito, que sublimaram sua singeleza, fizeram seu espírito sobreviver ao que sua carne dificilmente sobreviverá [a Grande Guerra]. Momentos houve em que, cheio de pressentimentos e absorto em seu reinar, você viu brotar da morte e da luxúria do corpo um sonho de amor” (Mann, 2016, p. 827). Sem o amor “pelo que é humano, vivo e comum” ao qual aspira Tonio Kröger, o artista que pena em se conciliar com a vida burguesa, um homem “não passa de bronze que soa e címbalo que tine”, escreveu um Thomas Mann inspirado por Paulo de Tarso (Mann, 2015MANN, Thomas. 2015. A morte em Veneza e Tonio Kröger. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 146; v. 1 Cor 13:1). Se não se pode dizer de Hans Castorp que ele, como Wilhelm Meister, “foi à procura das jumentas de seu pai e encontrou um reino”, na analogia bíblica com a história de Saul, de que o romance de Goethe (2009GOETHE, Wolfgang von. 2009 Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo: 34 , 2009., p. 575) se vale para ilustrar o coroamento do processo formativo (pois o que Hans Castorp efetivamente encontra é a provação diante do perigo de morte), o certo é que o narrador d’A montanha mágica deposita no amor suas esperanças para a civilização europeia, ao perguntar-se, na última frase do livro, se ele ainda poderá surgir após terminada a “festa mundial da morte” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 827).

O impasse final de Raízes do Brasil, ainda que não reproduza estritamente a alternativa entre as luzes de Settembrini e as sombras de Naphta (ou entre a civilisation anglo-francesa e a Kultur alemã), apresenta o desnorteio da jovem intelectualidade brasileira diante de ideais díspares - liberalismo, fascismo, comunismo, em suma, receitas importadas de além-mar para uma passagem à modernidade. O autor indica que não é propriamente o caso de escolher e incorporar integralmente algum deles, no “compasso mecânico” de uma “harmonia falsa”. A tarefa da “realização completa” da sociedade só se concretizará quando forem descobertos aqueles elementos espirituais eventualmente compatíveis com as “essências mais íntimas”, com o “ritmo espontâneo” e com as “necessidades específicas” da vida brasileira - quando uma forma própria emergir a partir de um “contraponto” que torne o quadro social “coerente consigo mesmo” (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., pp. 160-161). Ou, em paráfrase, quando a alienação de si engendrar o processo autocrítico de uma Bildung genuinamente nacional. Isso exigiria que a intelectualidade brasileira confrontasse a realidade afetiva que se empenha em reprimir por meio de reformas inócuas, com sua cordialidade e seu coração indomado que, apesar de poder se exprimir de forma pouco harmônica, ainda poderá produzir uma “contribuição para a civilização”, conforme o trecho que põe em cena o conceito que encabeça o quinto capítulo da obra (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., p. 101). Para tanto, porém, há que conformar o “espírito” à “vida” - não bastam o puro pensamento ou o puro afeto, e sim o pensamento firmemente enraizado na experiência, mediante o aprendizado de uma arte de viver, conversão ativa e reflexiva da vida em forma.24 24 Em sua clássica reflexão sobre a Educação estética do homem (Cartas XIV e XV), Schiller (2002, p 73-81) localiza no “impulso lúdico” (Spieltrieb), que faz coincidir vida e forma, o núcleo do processo subjetivo que preside a concreção da obra de arte.

É nítido em Raízes o desdobramento da reflexão desenvolvida por Sérgio Buarque durante a década de 1920 sobre a arte brasileira. Se, até fins dos anos 1920, sua postura consistia numa forma de pensamento estetizante, refratária às injunções da moral burguesa, cuja inspiração estaria em autores como André Gide e Thomas Mann (além de Nietzsche), caracterizada por Tristão de Athayde como uma “disponibilidade gidiana” - ou seja, na aguda expressão de Sérgio da Mata (2016MATA, Sérgio da. 2016. Tentativas de desmitologia: a revolução conservadora em Raízes do Brasil . Revista Brasileira de História, v. 36, n. 73, p. 63-87. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbh/a/tYGGjRBkSjkB4KZ9ksVV6mM/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 19 ago. 2021.
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, p. 66), por certo “indecisionismo”-, em Raízes do Brasil as coisas mudam de figura. O impasse diante da decisão pendente continua, mas fica sugerido que um “encontro consigo mesmo” (em contraste com a disponibilidade característica das reverberações da cordialidade na vida intelectual) poderia resultar na descoberta de uma voz ou estilo próprio dos brasileiros. A pretendida “organização da desordem” nacional, aventada no capítulo final - “Nossa Revolução” -, diz respeito ao desenho institucional da sociedade e à sua conformação com as instituições políticas, mas depende, em primeiro lugar, da definição de um rumo para a “personalidade”, isto é, da autoconstrução de um self eticamente disciplinado por um ideal superior como condição à busca por uma conduta dotada de sentido próprio.25 25 A despeito das restrições que oponham à linha de interpretação de Raízes que privilegia a interlocução do livro com a obra de Max Weber como chave explicativa - a saber que o papel de Weber seria secundário na armação teórica do livro ou de que se trataria antes de desleitura do que de leitura de Weber (cf. Mata, 2021) -, Sérgio Buarque parece partilhar, em sua preocupação com a conformação da personalidade brasileira, a visão de que certos “tipos de homem” surgidos em situações históricas e sociais podem abrir o caminho para mudanças históricas extraordinárias, como Weber buscou demonstrar na Ética prostestante, onde o princípio disciplinador e formador da personalidade moderna é identificado na vocação profissional. Lembrem-se, a propósito, as palavras com que Weber encerra sua famosa conferência sobre a “ciência como vocação”: o indivíduo moderno não encontrará a solução para os dilemas impostos por um mundo desencantado na esperança em salvadores e profetas, mas na descoberta do “demônio [daimon] que sustém o fio de sua vida” (Weber, 2013, p. 431) - linguajar que a página conclusiva de Raízes do Brasil ecoa, colocando em cena um demônio pérfido (Holanda, 1931, p. 161), que pressupõe, em contrapartida, um daimon da retidão, como aquele que o indivíduo deve encontrar, segundo o Weber pedagogo. Ver a interpretação de Harvey Goldman (1988, pp. 18-21) sobre a “descoberta”, por Max Weber, do conceito de vocação (Beruf) como solução para o esvaziamento do sentido na vida moderna, e também a análise de Sérgio da Mata sobre a funcionalidade do conceito carlyliano de “herói” numa “filosofia da história” weberiana (Mata, 2020, pp. 79-95).

É provável que a superação por Sérgio Buarque da postura “disponível” ou “indecisionista” tenha passado pela leitura de uma obra que se contrapõe nitidamente ao elogio do esteticismo “apolítico” por Thomas Mann em suas Considerações de 1918: o Romantismo político de Carl Schmitt (1986SCHMITT, Carl. 1986. Political Romanticism. Cambridge: The MIT Press. [1919]). Ali, o romântico é caracterizado por um “ocasionalismo” resultante da compreensão dos fenômenos em termos de sua apreensão estética pela subjetividade, de modo a tornar-se incapaz de uma conduta politicamente eficaz - caracterização praticamente idêntica àquela que Sérgio Buarque faz da vida intelectual brasileira durante o século XIX, no penúltimo capítulo de Raízes do Brasil: “[t]odo o nosso pensamento dessa época revela a mesma fragilidade, a mesma inconsistência íntima, a mesma indiferença, no fundo, ao corpo social; todo pretexto estético pode servir-lhe de conteúdo” (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., p. 126).26 26 Este trecho, que está longe de ser marginal à argumentação principal de Raízes, desmente a afinidade que Sérgio da Mata busca estabelecer entre o Sérgio Buarque de 1936, o “esteticismo como visão de mundo” e o “paradoxo como estilo de pensamento”, ambos associados à influência de Gide, Nietzsche e Mann (Mata, 2016, p. 69). O esteticismo e a indiferença à coerência lógica no pensamento são traços que Raízes atribui à intelectualidade brasileira (e que se aplicam tranquilamente ao Sérgio Buarque da segunda metade dos anos 1920), denunciando-os como sintomas da incapacidade formativa da cultura brasileira. É claro que aqui se trata da ideia que o autor fazia de suas próprias posições, o que não nos impede, como leitores, de verificar suas eventuais inconsistências e insuficiências. De todo modo, é preciso ter em mente que a precariedade lógica e a tendência à incorporação irrefletida do pensamento alheio são compreendidas em Raízes como função do esteticismo inerente à vida num “mundo sem forma”, onde o indivíduo tem o caminho desimpedido para “se abandonar a todo o repertório de ideias e de gestos que encontra em seu meio, ainda quando obedeçam ao mais rigoroso formalismo” (Holanda, 1936, pp. 108-110). O livro de Schmitt não é citado (como é característico da disposição do autor de Raízes com relação à apresentação de referências), mas esse diagnóstico está claramente vinculado à discussão sobre o enraizamento do romantismo na vida intelectual brasileira que o precede. Ao se articular com a incorporação de uma reflexão sobre a formação do self, sobre uma Bildung brasileira, a exigência formativa que Sérgio Buarque passa a opor à sua postura anterior de “disponibilidade” (que agora ele atribuirá à intelectualidade nacional) não corresponde à opção pelas alternativas efetivamente disponíveis no mercado de ideias políticas de 1936 (liberalismo, fascismo e comunismo), pois nenhuma delas, conforme a argumentação de “Nossa Revolução”, exprime a descoberta de uma “virtude própria” que aflore de sua “vida”, isto é, nas palavras de Leopoldo Waizbort (2011WAIZBORT, Leopoldo. 2011. O mal-entendido da democracia: Sergio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil , 1936. Revista Brasileira de ciências sociais , v. 26, n. 76. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/7PSTjpHyVFPXrqgP65ky5CP/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 jun. 2022.
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, p. 43), de um “imperativo categórico do povo brasileiro”- isso teria de passar por um exame profundo da vida mesma.

Outro obstáculo considerável com que deparamos quando tentamos dar contornos mais precisos à reverberação do romance no ensaio é imposto pela extraordinária plasticidade formal com que o gênero do romance de formação se adapta às contradições internas da vida moderna (Cf. Moretti, 2020MORETTI, Franco . 2020. O romance de formação. São Paulo: Todavia., p. 37), chegando mesmo a sobreporem-se diversas camadas de sentido narrativo - há o romance de formação, a paródia, e, finalmente, a estar correta uma interpretação como a de Pedro Caldas (2014CALDAS, Pedro Spinola Pereira. 2014. O murmurante evocador do passado. A montanha mágica e o romance de formação após a Primeira Guerra Mundial. História da Historiografia, v. 7, n. 16, p. 107-120. Disponível em: Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/802 . Acesso em 19/08/2021.
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), uma espécie de “paródia da paródia”, que afirma a persistência do passado como matéria “angustiada” na psicologia do protagonista. Assim, A montanha mágica primaria pela internalização formal das contradições próprias da crise da cultura burguesa no pré-Primeira Guerra, sem que essas dessem necessariamente lugar a uma “solução”. A cena de Hans Castorp murmurando a canção Der Lindenbaum ao final da narrativa pode, a propósito, dar margem às mais variadas hipóteses sobre qual seria a “lição” para seus “anos de aprendizado”. Não deixa de ser sedutora a possibilidade de Raízes do Brasil se construir como um palimpsesto argumentativo indeciso entre três estratégias retóricas - afinal, o impasse que se delineia no final é mesmo uma tônica das interpretações do livro.

Muito mais do que a ausência de um “fecho programático”, a ambiguidade do próprio teor, esse não prescritivo, mas descritivo-interpretativo, da argumentação, é o aspecto mais desafiador do texto de Raízes do Brasil. Sob a égide de uma afirmação geral da cultura (seja qual for o seu conteúdo ou caráter eventualmente contraditório), encontramos um primeiro nível em que o fundo cultural arcaico se vê diante da necessidade de modernização; num segundo, especialmente saliente nos dois últimos capítulos, essa modernização encontra uma negação irônica, depois da qual não está certo exatamente o que poderá restar - além de uma alternativa endógena às estratégias imitativas de modernização, que, entretanto, ainda não aparecera -; finalmente, num terceiro nível, dificilmente intencional, haveria a angústia diante das dores do parto de um mundo novo completamente imprevisível, nascendo em descompasso com tudo quanto já se conhecia. Diante disso, uma conclusão possível sobre o efeito tencionado por uma tal estratégia retórica seria a de que livro solicita ao leitor a tarefa de produzir, na reflexão sobre sua forma e conteúdo, o sentido da narrativa.

Quanto à interpretação que o próprio autor (como leitor) teria formado de seu livro ao longo dos anos posteriores, parece haver uma inclinação pela via da permanência angustiante da matéria morta - isso, a despeito de ter famosamente declarado seu “homem cordial” um “pobre defunto” (Holanda, 2016bHOLANDA, Sérgio Buarque de. 2016b. Carta a Cassiano Ricardo. In: Raízes do Brasil . São Paulo: Companhia das Letras , p. 399-401., p. 401), pois o atestado de óbito manifesta justamente o incômodo com sua permanência enquanto fantasma. É o que pode sugerir a fixação quase obsessiva - às vezes indisfarçadamente rancorosa - de Sérgio Buarque pelas mais diversas manifestações da persistência dos arcaísmos lusitanos em sua produção intelectual posterior a 1936, cuja expressão máxima é Visão do paraíso27 27 Muitos exemplos poderiam ser elencados aqui. Uma lista restrita às manifestações puramente intelectuais e literárias desse ponto até Visão do paraíso (Holanda, 1959) incluiria, por ordem cronológica, o estudo do romantismo brasileiro no prefácio de 1939 a Suspiros poéticos e saudades de Gonçalves de Magalhães (Holanda, 1996b), o ensaio biográfico de 1944 que serve de prefácio às obras econômicas de José Joaquim de Azeredo Coutinho (Holanda, 1996c), a seção sobre o “realismo português”, acrescentada à segunda edição (1948) de Raízes do Brasil (Holanda, 2016a, pp. 195-205) - que já prenuncia a problemática de Visão e as análises da literatura colonial reunidas em Capítulos de literatura colonial (Holanda, 1991), especialmente as conclusões de Sérgio Buarque no que diz respeito às persistências “barrocas” no arcadismo brasileiro. A datação dos textos reunidos em Capítulos de literatura colonial é incerta; provavelmente a maioria deles remonta ao começo da década de 50, como mostram diversas passagens publicadas na imprensa. Para uma reconstrução mais detalhada da origem desses textos, a referência obrigatória é o livro de Thiago Nicodemo (2014). . Noutras palavras, a estrutura argumentativa internamente contraditória ou polivalente, tal como visada pelo autor na escrita de Raízes, terá evoluído, não “dentro do texto” - embora nele se sintam as consequências, com a revisão de 1948, e, novamente, em 1956, com a descaracterização final do parágrafo de abertura (Cf. Holanda, 2016aHOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil . 2016a. São Paulo: Companhia das Letras ., pp. 39-40) - mas na própria continuação da reflexão de Sérgio Buarque sobre o Brasil. E evoluiu, não numa solução de compromisso ou na verificação de uma mutação civilizacional, como se poderia depreender das páginas finais da primeira edição, que apontam tal possibilidade como alternativa à modernidade europeia, mas num enrijecimento cada vez mais pessimista com as possibilidades de futuro do Brasil28 28 Pode-se fazer uma exceção parcial aos textos sobre a expansão paulista, ou ainda, sobre a sociedade das Minas no século XVIII (Cf. Rodrigues, 2008). De todo modo, a tônica geral é bem pessimista. .

Em 1936, porém, ainda se abriam perspectivas mais otimistas para o desenvolvimento de uma forma própria - aventada no primeiro parágrafo do livro - em tempos vindouros. Esse é o ponto de fuga do último capítulo, que dá fortes indicações no sentido de que o “tipo próprio” de cultura, ainda que não se desse a ver nas manifestações mais ostensivas da vida nacional, estaria destinado a aparecer. O título “Nossa Revolução”, amplamente discutido nos comentários a Raízes do Brasil, leva a uma última remissão à Montanha mágica. Lembre-se que o romance termina com Hans Castorp enviado à França, ou à Rússia - as duas “pátrias” de Mme. Chauchat, unidas por uma entente antialemã à qual Settembrini reage com a confusão típica dos estágios mais avançados de seus debates com Naphta (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., pp. 821-822) - para combater pela Alemanha. Esse desenlace é antecipado, porém, pelo sinistro duelo entre Settembrini e Naphta, que termina com o suicídio deste último. O estopim desse confronto final é de especial interesse para Raízes do Brasil. Trata-se de uma constrangedora “conferência” que Naphta dá para Hans Castorp na presença de Settembrini e outros dois convivas no refeitório de uma estalagem em Monstein, vilarejo próximo a Davos. Ignorando completamente os outros membros da excursão, Naphta se põe a pontificar para Hans Castorp sobre “o problema da liberdade”, o conceito de “revolução” e o romantismo. Ao romantismo, Naphta atribui uma “inerente” e “fascinante” ambiguidade, “em face da qual fracassariam conceitos como ‘reação’ ou ‘revolução’, a não ser que se unissem sob um conceito superior”. “Revolucionário” era um termo, segundo o jesuíta, completamente indiferente ao “progresso” e ao “esclarecimento” triunfantes no começo do século XIX alemão, pois, considerado o contexto das Guerras de Libertação, época dos “entusiasmos fichteanos” - Naphta certamente se refere aos Discursos à Nação Alemã - ficaria patente que os levantes populares se opunham precisamente à “tirania insuportável” das “ideias da Revolução”, o que dava a ver “a diferença, ou talvez a oposição, entre a liberdade exterior e a interior” - a primeira, a das Luzes; a segunda, a do Romantismo. A consideração dessa diferença deveria levar o “jovem ouvinte” a se confrontar com a “escabrosa questão de saber que forma de servidão é a mais ou menos compatível […] com a honra de uma nação” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 803). A distinção estabelecida por Naphta entre as duas liberdades (“interior” e “exterior”) opera no sentido de desmoralizar a pretensão iluminista ao monopólio da bandeira da “liberdade”. Mas Naphta vai além, declarando que, “[e]m última análise, a liberdade seria antes um conceito do Romantismo e não tanto da Época das Luzes; pois com aquele ela tinha em comum o entrelaçamento inextricável dos impulsos de expansão coletiva e do ensimesmamento apaixonadamente individualístico”, o que tornaria o individualismo um conceito “romântico-medieval”, do qual “teriam resultado a doutrina da imortalidade da alma, a teoria geocêntrica e a astrologia”, que teriam sido, afinal, as células originárias do encarecimento moderno da interioridade humana. Já o individualismo, como “aspecto do humanismo de tendências liberalistas”, era uma manifestação completamente diversa, que “penderia para a anarquia e pretenderia, em todo caso, proteger o indivíduo contra o destino de ser imolado à coletividade” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 804). Pode-se daí depreender, portanto, que haveria uma Revolução burguesa e democrática das liberdades do indivíduo, e outra, bem diferente, de inspiração simultaneamente religiosa e popular, coletivista, mas nem por isso inimiga da liberdade “interior”, e que representaria a superação da modernidade burguesa, com sua ideologia liberal e humanitária. Naphta prossegue num crescendo de artimanhas retóricas anti-iluministas, até que Settembrini o interrompe, chamando de “infâmia” sua tentativa de doutrinação da “juventude indefesa” com “palavras ambíguas” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 805). A reação de Naphta é pedir satisfações a sua honra num duelo, mas não sem complementar o chamado a liquidar as diferenças “em lugar adequado” com suas últimas palavras contra a ideologia liberal-progressista de Settembrini:

[O] seu temor devoto pela ideologia [Begriffsstaat] escolástica da revolução jacobina [!] vê um crime pedagógico na minha maneira de introduzir a juventude a duvidar, de derrubar as categorias e privar as ideias da dignidade acadêmica da virtude. Esse temor é por demais compreensível, pois sua humanidade saiu de moda, tenha certeza disso […]! Hoje em dia já não passa de um rabicho, de uma sensaboria classicista, um ennui espiritual que faz bocejar, e que a nova, a nossa Revolução [die neue, unsere Revolution], senhor, está a ponto de abolir. […] É apenas do ceticismo radical, do caos moral, que nasce o absoluto, o terror sagrado de que carece o nosso tempo. (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., pp. 806-807, 1988MANN, Thomas. 1988. Der Zauberberg. Frankfurt: S. Fischer., pp. 737-738)29 29 Alterou-se, na transcrição, a versão brasileira de Herbert Caro, no trecho sobre a “nossa Revolução”, pois Caro inverte a ordem de “nova” e “nossa” na oração e retira a ênfase de “nossa” (“a nova Revolução, a nossa”) (Mann, 1988, p. 738).

É evidente que a “Nossa Revolução” de Raízes do Brasil não se confunde com a “revolução jacobina” e “escolástica” de Naphta. Mas é possível que esse discurso tivesse causado uma forte impressão em Sérgio Buarque, na medida em que abre a perspectiva de uma alternativa a um paradigma liberal e ocidental de modernização, cuja tradução para o Brasil o escritor brasileiro considerava problemática e inautêntica, como se pode perceber em sua crítica à democracia e ao papel da intelectualidade na construção de instituições, especialmente a partir da Proclamação da República. Naphta abre aqui a possibilidade de uma outra revolução, nossa, e não importada. O problema é que Sérgio Buarque não chega a traçar contornos normativos para essa alternativa, limitando-se a assinalar sua possibilidade. De toda maneira, este Naphta furioso está bem afinado com o tom de “Nossa Revolução”, texto que polemiza de forma estridente e às vezes pouco compreensível com o liberalismo - mas, também, com o fascismo e o comunismo. Convém lembrar, em conclusão, da frase que Sérgio Buarque de Holanda escolheu como epígrafe do capítulo final de seu primeiro livro, extraída da seção 11 do Anticristo de Nietzsche e transcrita em alemão, sem tradução. Grave e resoluta, ela contrasta com o tom irônico de parte das reflexões a que serve de emblema. Em meio a uma polêmica contra Kant, o enfermiço ex-professor de filologia escrevera: “Ein Volk geht zugrunde, wenn es s e i n e Pflicht mit dem Pflichtbegriff überhaupt verwechselt [Um povo perece quando confunde seu dever com o conceito de dever em geral]” (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., p. 133)30 29 A ênfase em seine não é transcrita por Sérgio Buarque. .

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  • WEBER, Max. 2013. Ciência como vocação. In: BOTELHO, André (org.). Essencial sociologia. São Paulo: Companhia das Letras .
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    Não nos ocuparemos com a discussão travada na fortuna crítica de Raízes do Brasil sobre a situação do livro no espectro político brasileiro em 1936, senão de forma subordinada ao argumento principal do artigo, que diz respeito à proposta, no ensaio de Sérgio Buarque, de um ideal de formação, ou Bildung, particular à cultura brasileira. Ainda assim, devemos estabelecer nossa dívida para com comentários anteriores. Sucintamente, podemos dizer que o ponto de vista segundo o qual a argumentação de Raízes do Brasil estaria nos antípodas de toda forma de pensamento autoritário, tomando posição em favor da democracia e realizando uma análise orientada por um quadro teórico predominantemente weberiano da formação brasileira, rejeitando a Lebensphilosophie com que o autor teria flertado em sua temporada alemã de 1929-31, proposto na consagrada leitura de Antonio Candido (2016CANDIDO, Antonio. 2016. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 355-370. [1969]) e, posteriormente, reforçado pelo cuidadoso estudo de Pedro Meira Monteiro (2021MONTEIRO, Pedro Meira. 2021. A queda do aventureiro: aventura, cordialidade e novos tempos em “ Raízes do Brasil”. Belo Horizonte: Relicário. [1999]) - ponto de vista amplamente disseminado na fortuna crítica do livro até os anos 2010 - vem encontrando uma robusta oposição desde os estudos seminais de Leopoldo Waizbort (2011)WAIZBORT, Leopoldo. 2011. O mal-entendido da democracia: Sergio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil , 1936. Revista Brasileira de ciências sociais , v. 26, n. 76. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/7PSTjpHyVFPXrqgP65ky5CP/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 jun. 2022.
    https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/7PSTjpH...
    - que iluminou a ascendência nietzschiana sobre o livro, a qual o afinaria com um estilo de pensamento conservador - e João Kennedy Eugênio (2011)EUGÊNIO, João Kennedy. 2011. Um ritmo espontâneo: organicismo em Raízes do Brasil , de Sérgio Buarque de Holanda. Teresina: EDUFPI. - que demonstrou extensivamente o quanto o autor de Raízes estava longe de ter superado, na primeira edição de seu livro, o “organicismo” que Candido (1982)CANDIDO, Antonio. 1982. Sérgio em Berlim e depois. Novos Estudos Cebrap, v. 1, n. 3, p. 4-9. supunha inteiramente alheio à argumentação do livro (para Eugênio, a referência-chave para se compreender a armação teórica de Raízes já não seria Nietzsche, mas o filósofo vitalista Ludwig Klages, cuja presença em Raízes Waizbort não deixou de notar). Não há exagero em dizer que esses dois trabalhos de 2011 abriram o caminho para o estado atual da discussão em torno de Raízes do Brasil. Estudos de qualidade realizados posteriormente por Luiz Feldman (2016)FELDMAN, Luiz. 2016. Clássico por amadurecimento: estudos sobre Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: Topbooks. e Rogério Schlegel (2017)SCHLEGEL, Rogério. 2017. Raízes do Brasil , 1936: o estatismo orgânico como contribuição original. Revista Brasileira de ciências sociais , v. 32, n. 93, e329307. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/qjL7PjggtY5g5yvkpVgK56F/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 jun. 2022.
    https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/qjL7Pjg...
    deram seguimento à exploração da possibilidade de um Raízes do Brasil conservador, buscando esclarecer a inserção das posições antiliberais de Sérgio Buarque no contexto do pensamento político brasileiro. Em todos os casos, foi decisiva a recuperação da primeira edição de Raízes. De modo geral, em confronto com as edições posteriores, a versão de 1936 revela não propriamente argumentos substancialmente diferentes, mas certamente outro livro, dada a forma e a situação nas quais os mesmos argumentos aparecem - quanto a isso, ver os já citados trabalhos de Waizbort, Schlegel e, em especial, Eugênio e Feldman. Como nota Waizbort (2011WAIZBORT, Leopoldo. 2011. O mal-entendido da democracia: Sergio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil , 1936. Revista Brasileira de ciências sociais , v. 26, n. 76. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/7PSTjpHyVFPXrqgP65ky5CP/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 jun. 2022.
    https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/7PSTjpH...
    , p. 59), o relativamente extenso incremento de erudição histórica na edição de 1948 é “funcional para ensombrecer a dimensão política” do ensaio em sua primeira versão. Descaracterizada a feição altamente sintética do texto “original”, o leitor fica como que despistado da argumentação principal. Convém lembrar ainda o texto de Angela de Castro Gomes (1990)GOMES, Angela de Castro. 1990. A dialética da tradição. Revista Brasileira de ciências sociais, v. 5, n. 12, p. 15-27. Disponível em: Disponível em: http://www.anpocs.com/images/stories/RBCS/12/rbcs12_02.pdf . Acesso em: 22 jun. 2022.
    http://www.anpocs.com/images/stories/RBC...
    , que, duas décadas antes do início da onda revisionista e sem recurso à edição princeps, já notava certa ambiguidade de Raízes diante do problema da adaptação do país à democracia, mostrando suas afinidades com a interpretação do país por Oliveira Vianna.
  • 2
    Sobre a ironia como tropo matricial da construção de Raízes do Brasil, ver o estudo de Julio Bentivoglio (2018)BENTIVOGLIO, Julio. 2018. Uma reverência à Meta-história e a Hayden White: o passado como sátira irônica e liberal em Sérgio Buarque de Holanda. ArtCultura, v. 20, n. 37, p. 51-65. Disponível em: Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/artcultura/article/view/47239 . Acesso em 19/08.2021.
    http://www.seer.ufu.br/index.php/artcult...
    .
  • 3
    Na segunda edição de Raízes do Brasil, de 1948, Sérgio Buarque cita em apoio a sua crítica à alfabetização o livro Theories of social progress, de Arthur James Todd (1918)TODD, Arthur James. 1918. Theories of social progress. A critical study on the attempts to formulate the conditions of human advance. Nova York: Macmillan., lembrando a existência de uma cidade no meio-oeste americano conhecida por seu alto nível cultural, na qual era alto o número de crianças em idade escolar não matriculadas no sistema municipal de educação, dando a entender que essa coincidência demonstraria a independência das duas variáveis (nível cultural geral e universalização do letramento) (Holanda, 2016aHOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil . 2016a. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 291). Ocorre que Sérgio deixa de mencionar que esse fato é lembrado por Todd (que não identifica a cidade nem sua fonte) para lamentar o atraso dos EUA em alfabetizar sua população (Todd,1918TODD, Arthur James. 1918. Theories of social progress. A critical study on the attempts to formulate the conditions of human advance. Nova York: Macmillan., pp. 522-523). Registre-se que essa citação é, salvo engano, o único acréscimo de 1948 que vem reforçar uma posição da primeira edição contrária ao Iluminismo ou ao liberalismo.
  • 4
    Esta é o alvo principal do primeiro capítulo, onde a predileção da direita católica pela ideia hierárquica da sociedade desenvolvida pela filosofia escolástica, concepção “que nossa época já não quer compreender em sua essência”, é denominada uma “paixão de professores” (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., p. 9).
  • 5
    Sobre as relações entre a forma do romance e os fundamentos epistemológicos das ciências sociais modernas, ver Lepenies, 1990LEPENIES, Wolf. 1990. Les trois cultures: entre science et litterature, l’avènement de la sociologie. Paris: Maison des Sciences de l’Homme.. No caso de Mann, a proximidade entre a ficção e a sociologia contemporânea é especialmente flagrante, pois o próprio autor estava ciente dos paralelos entre seus romances e as teorias sociológicas de Max Weber e Werner Sombart sobre a personalidade burguesa, e acreditava tê-las antecipado intuitivamente nos Buddenbrook (Cf. Mann, 2002MANN, Thomas. 2002. Considérations d’un apolitique. Paris: Grasset., pp. 128-129). As afinidades entre as reflexões de Mann e Weber foram analisadas por Harvey Goldman em dois importantes estudos (Goldman, 1989, 1992GOLDMAN, Harvey. 1992. Politics, death, and the devil: self and power in Max Weber and Thomas Mann. Berkeley: University of California Press .).
  • 6
    O artigo parte dessa constatação para proceder a uma crítica da noção de paródia e das ideias comuns sobre sua valência cultural e existencial, chegando a conclusões bastante estimulantes, que poderiam ser aplicadas, com alguns reparos, à própria historiografia de Sérgio Buarque. Esta ideia será retomada ao final deste artigo.
  • 7
    “Antes da guerra, eu começara a escrever um pequeno romance, uma espécie de história educativa, onde um jovem homem atirado pela vida num lugar moralmente perigoso se encontra entre dois educadores bizarros; um, italiano, humanista, retor e homem do progresso; o outro, um místico um pouco suspeito, reacionário e defensor do irracionalismo. Ele é chamado a escolher, o bom rapaz, entre as forças da virtude e da sedução, entre o dever e o serviço da vida, de um lado, e de outro a fascinação da decomposição, à qual ele não era insensível, e a expressão ‘simpatia pela morte’ formava um componente temático da obra” (Mann, 2002MANN, Thomas. 2002. Considérations d’un apolitique. Paris: Grasset., p. 354, tradução própria).
  • 8
    Um caso de apropriação inconsciente de símile ficcional na explicação de fenômenos sociais foi demonstrado de forma persuasiva por Carlo Ginzburg num estudo sobre como a leitura de um conto de Robert Louis Stevenson teria suscitado a Malinowski sua interpretação sobre o kula trobriandês (Ginzburg, 2004GINZBURG, Carlo. 2004. Tusitala e seu leitor polonês. In: Nenhuma ilha é uma ilha. Quatro Visões da literatura inglesa. São Paulo: Companhia das Letras , p. 91-113.).
  • 9
    É bem possível que o interesse de Sérgio Buarque pelo tema da passagem aludida d’A montanha mágica tenha sido incitado por sua própria experiência de sul-americano na Europa Central. Recorde-se a anedota relatada em 1933 pelo pintor Emiliano Di Cavalcanti numa crônica do Diário da noite (Di Cavalcanti, 1933DI CAVALCANTI, Emiliano. 1933. O cheiro nazista. Diário da noite (RJ), 25 ago., p. 2.). Numa discussão sobre a perseguição aos judeus na Alemanha desde a tomada do poder por Hitler (que, no relato, simpatizantes do integralismo buscavam minimizar com seguranças de que tudo não passaria de “intriga”, supostamente fornecidas diretamente a Plínio Salgado por Hermann Göring), Sérgio Buarque teria atestado a realidade do perigo pelo qual passavam os judeus daquele país, com um relato do que acontecera a ele próprio. Caminhando por uma “rua escusa de Berlim”, Sérgio teria sido interpelado por um grupo de nazistas. Tomando-o por judeu, os “facínoras” estariam prestes a espancá-lo, do que teriam sido dissuadidos pelo seu “chefete”, supostamente perito em assuntos judaicos. Após cheirar minuciosamente o jovem Sérgio (que vinha evitando o banho havia alguns dias por conta de um resfriado), constatou que o jovem brasileiro exalava o mais conspícuo “cheiro de nazista”. Sérgio da Mata (2016MATA, Sérgio da. 2016. Tentativas de desmitologia: a revolução conservadora em Raízes do Brasil . Revista Brasileira de História, v. 36, n. 73, p. 63-87. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbh/a/tYGGjRBkSjkB4KZ9ksVV6mM/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 19 ago. 2021.
    https://www.scielo.br/j/rbh/a/tYGGjRBkSj...
    , p. 73) questiona, com boa razão, a veracidade da anedota. Mesmo que inteiramente inventada, porém, ela certamente se refere a um elemento real da experiência - a persistente “identidade entre ser português [no caso, ibero-americano] e ser judeu, no conceito popular” dos povos europeus.
  • 10
    É com uma solenidade um pouco patética, mas que não deixa de ser comovente para os leitores que já conhecem o desenlace histórico do problema da indecisão alemã entre o Ocidente e aquilo que a Settembrini se apresenta como “a Ásia” - isto é, o despotismo, o irracionalismo, e também a ambiguidade moral encarnada por Mme. Chauchat - que o beletrista se dirige a Hans Castorp: “Caro amico! Será necessário tomar decisões, decisões de importância inestimável para a felicidade e o futuro da Europa, e elas caberão ao seu país. Situado entre o Oeste e o Leste, terá de escolher […] por uma ou outra das esferas que lhe disputam a natureza. O senhor é jovem. O senhor participará dessa decisão, sua vocação é influir sobre ela.” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 594).
  • 11
    Sobre um desses debates, o narrador conclui que “não resultou clareza nem ordem, nem ao menos uma ordem de caráter dualista e militante; pois as posições não somente eram opostas, mas confundiam-se”, e que Settembrini e Naphta, “ao invés de se limitar a combater-se reciprocamente, amiúde contradiziam-se a si próprios”. (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 535). Mais tarde, lemos que outra conversa, precisamente a que parece ser a mais decisiva para Raízes do Brasil, iria “embocar naquela confusão já mencionada” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 603).
  • 12
    Referindo-se à última fase das contendas entre os dois eruditos, o narrador faz uma observação que talvez pudesse se aplicar a um período maior, considerando indicações dadas anteriormente: “Era claro que Hans Castorp só podia falar das discussões a que assistia. Mas o jovem tinha quase certeza de não haver perdido uma sequer, pois sua presença, ao tratar-se de um tema pedagógico, era indispensável para dar grandeza aos colóquios” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 798).
  • 13
    Ao final de um dos primeiros embates, uma longa declamação de Settembrini é seguida da observação do narrador, que exprime, em discurso indireto livre, a opinião de Hans Castorp: “Seria impossível falar de forma mais clara e mais elegante do que o Sr. Settembrini acabava de fazer” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 474). Settembrini é reiteradamente qualificado ao longo do livro como um mestre da palavra - embora nem tanto do pensamento; esse posto caberia antes a Naphta. Noutra parte, uma das perorações de Settembrini é classificada pelo narrador como um “panegírico apologético” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 601) [apologetischer Lobgesang] (Mann, 1988MANN, Thomas. 1988. Der Zauberberg. Frankfurt: S. Fischer., p. 552); logo mais, Naphta qualifica de “literário” e mentiroso o espírito do palavrório de Settembrini, opondo-o à “vida” e à “natureza” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 602), ecoando os ataques que o próprio Thomas Mann desferira contra os “literatos da civilização” nas Considerações de um apolítico.
  • 14
    A natureza arquetípica desse traço da personalidade de Settembrini, bem como de sua origem italiana e do fato de seu pai ter sido um carbonário, é clara; lembre-se o que Mann escreve sobre a maçonaria nas Considerações de um apolítico, livro que, como já se notou, contém em esboço boa parte das ideias que entram em cena, ficcionalizadas, na Montanha mágica: “Se quero ler algo que me revolve as entranhas, que provoca sem dúvida em minha pessoa um sobressalto de protesto […], abro o volume de Mazzini que um belo dia, sem que eu o tivesse procurado, me caiu às mãos. […] Ali aprendi a entender que o ‘espírito’ é algo de intermediário entre o Grande Oriente e o clube jacobino, como ele quer e deve ser compreendido mais uma vez hoje, depois da reabilitação da virtude” (Mann, 2002MANN, Thomas. 2002. Considérations d’un apolitique. Paris: Grasset., p. 330, tradução própria).
  • 15
    O leitor de Raízes não deixará de notar a afinidade, não só de conteúdo, mas também de estilo, entre semelhantes formulações e a passagem do primeiro parágrafo do capítulo sobre o “homem cordial” onde se lê que, na ordem que é própria do Estado, aquela ligada à família é “abolida por uma transcendência” (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., p. 94).
  • 16
    “Nenhum ditador moderno, nenhum teórico do comunismo ou do Estado totalitário, chegou a vislumbrar a possibilidade desse prodígio de racionalização que puderam conseguir os padres da Companhia de Jesus em suas missões.” (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., pp. 14-15)
  • 17
    “As terras do educandário” onde Naphta foi acolhido “eram tão extensas quanto os seus edifícios, que podiam abrigar aproximadamente quatrocentos alunos. O conjunto abrangia bosques e prados, meia dúzia de campos de jogo, celeiros, estábulos, para centenas de vacas. O instituto era ao mesmo tempo um pensionato, uma granja-modelo, uma academia de esportes, uma escola de sábios e um templo das Musas; pois, sem cessar, havia representações teatrais e concertos. A vida era senhoril e claustral”. (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 511). Compare-se o trecho com a avaliação das reduções jesuíticas em Raízes: animados pelo pensamento de que “o homem pode intervir arbitrariamente e com sucesso no curso das coisas e de que a história não somente ‘acontece’. mas também pode ser dirigida e até fabricada”, os jesuítas “não só o introduziram na cultura material das missões guaranis, ‘fabricando’ cidades geométricas, de pedra lavrada e adobe, numa região rica em lenho e paupérrima em pedreiras, como estenderam-no até as instituições. Tudo estava tão bem regulado nessas missões - refere um depoimento - ‘ut secundum morem in Bolivia traditum conjuges indiani media nocte sono tintinnabuli ad exercendum coitum excitarentur’ [“que, segundo o costume na Bolívia, à meia-noite os casais de índios são despertados com sinos, a fim de realizarem o coito”].” (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., p. 65).
  • 18
    Na altercação que precede o duelo final, a um Settembrini ultrajado, que o acusa de corromper a juventude com “indecências”, Naphta diz: “Quando, na nossa função de educadores, semeamos a dúvida, uma dúvida mais profunda do que jamais pôde imaginar o seu modesto espírito esclarecido, sabemos perfeitamente o que estamos fazendo. É apenas do ceticismo radical, do caos moral, que nasce o absoluto, o terror sagrado de que carece o nosso tempo.” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 807)
  • 19
    Assim o narrador d’A Montanha mágica caracteriza o tom geral e o tema da última das palestras eruditas de Naphta (à qual voltaremos abaixo): “A palestra vagava livremente pela esfera do espírito, roçando isso e aquilo, empenhada, essencialmente, em demonstrar, de forma desanimadora, a ambiguidade dos fenômenos espirituais da vida, bem como a natureza irisante e a debilidade combativa das grandes ideias derivadas deles. Esforçava-se por tornar evidente que o absoluto se apresentava neste mundo em roupas muitíssimo cambiantes” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 803).
  • 20
    Sobre a escrita histórico-ensaística como locus de automodelagem a partir do influxo de estímulos artísticos modernistas, ver o livro de Ricardo Benzaquen (Araújo, 1994ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. 1994. Guerra e paz: Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. São Paulo: 34.), no qual analisa o caso de Gilberto Freyre. Em chave parecida, tratando da antropologia de Malinowski e da ficção de Conrad, ver o estudo de Clifford (1988)CLIFFORD, James. 1988. On Ethnographic self-fashioning: Conrad and Malinowski. In: The predicament of culture: twientieth-century culture, ethnography, literature, and art. Cambridge: Harvard University Press, p. 92-113.. Mais recentemente, Dalton Sanches (2021SANCHES, Dalton. 2021. Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre: das competições literárias ao anátema histórico-ensaístico. História da historiografia, v. 14, n. 35, p. 255-285. Disponível em: Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1781/936 . Acesso em: 17 jun. 2022.
    https://www.historiadahistoriografia.com...
    , 2022SANCHES, Dalton. 2022. Sérgio Buarque de Holanda e o mal-estar da profissionalização: entre o ensaio e a diferença. Revista de história (São Paulo), n. 181, a14020. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rh/a/ZcrNGYZsLwG3YXZ9FW44ZpK/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 jun. 2022.
    https://www.scielo.br/j/rh/a/ZcrNGYZsLwG...
    ) examinou em detalhes o processo no qual Sérgio Buarque procurou se distanciar, ao longo dos anos de 1940 e 1950, da figura de Freyre, que funciona como projeção negativa da imagem que Sérgio Buarque busca construir para si de intelectual ligado à “nova” ciência social universitária, científica, objetiva e sistemática, oposta ao “ensaísmo” que atribui a Freyre (e a si mesmo, quando da publicação da primeira edição de Raízes) - operação que incide tanto sobre a visão da sua própria formação quanto sobre aquela do pensamento sociológico brasileiro, de modo a situar o procedimento “ensaístico” num passado em vias de superação.
  • 21
    Para Jackson e Moraes (2021)MORAES, Monica Isabel de; JACKSON, Luiz Carlos. Açúcar e café: ambiguidade de Raízes do Brasil . Lua nova, n. 113, p. 325-352. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/jYR54t3NsCf7JZTfFpwZh7L/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 jun. 2022.
    https://www.scielo.br/j/ln/a/jYR54t3NsCf...
    , a oscilação ambígua de Raízes entre o saudosismo pelo mundo aristocrático do Nordeste açucareiro e o elogio da modernização capitalista sediada em São Paulo seria como que a expressão interpretativa da trajetória dos Buarque de Holanda em sua transição do primeiro contexto (no qual representavam a oligarquia) para o segundo (no qual se firmariam no estrato superior das camadas médias assalariadas). Assim, a trajetória familiar e pessoal de Sérgio Buarque apresentaria estreita correspondência com a ambiguidade de uma cultura “fronteiriça” (como é caracterizada a portuguesa) e “desterrada”, em transição para o mundo moderno. Note-se que a origem fronteiriça, a reconfiguração das condições de vida por meio da ascensão profissional adquirida mediante a aquisição de bens culturais (em paralelo com a trajetória que Moraes e Jackson identificam entre os Buarque de Holanda do final do século XIX a meados do XX), com o resultado de um estilo de pensamento e expressão profundamente ambíguo (e resultante de um empenho consciente de estilização) são traços distintivos da personalidade de Naphta. Uma conexão direta entre o fascínio por Naphta e o interesse de Sérgio Buarque pelo repertório semântico associado à figura do judeu na cultura europeia é textualmente verificável na passagem supracitada de sua dissertação de mestrado de 1958 - interesse que, incitado por elementos da experiência alemã do próprio Sérgio, vem reforçar a presente hipótese de que Naphta tenha servido estímulo ficcional para operações de automodelagem (ver nota 9 9 É bem possível que o interesse de Sérgio Buarque pelo tema da passagem aludida d’A montanha mágica tenha sido incitado por sua própria experiência de sul-americano na Europa Central. Recorde-se a anedota relatada em 1933 pelo pintor Emiliano Di Cavalcanti numa crônica do Diário da noite (Di Cavalcanti, 1933). Numa discussão sobre a perseguição aos judeus na Alemanha desde a tomada do poder por Hitler (que, no relato, simpatizantes do integralismo buscavam minimizar com seguranças de que tudo não passaria de “intriga”, supostamente fornecidas diretamente a Plínio Salgado por Hermann Göring), Sérgio Buarque teria atestado a realidade do perigo pelo qual passavam os judeus daquele país, com um relato do que acontecera a ele próprio. Caminhando por uma “rua escusa de Berlim”, Sérgio teria sido interpelado por um grupo de nazistas. Tomando-o por judeu, os “facínoras” estariam prestes a espancá-lo, do que teriam sido dissuadidos pelo seu “chefete”, supostamente perito em assuntos judaicos. Após cheirar minuciosamente o jovem Sérgio (que vinha evitando o banho havia alguns dias por conta de um resfriado), constatou que o jovem brasileiro exalava o mais conspícuo “cheiro de nazista”. Sérgio da Mata (2016, p. 73) questiona, com boa razão, a veracidade da anedota. Mesmo que inteiramente inventada, porém, ela certamente se refere a um elemento real da experiência - a persistente “identidade entre ser português [no caso, ibero-americano] e ser judeu, no conceito popular” dos povos europeus. ). Outra personagem de Mann em que há o mesmo motivo da ambiguidade da pertença à cultura alemã, essa já ostensivamente inspirada na experiência do próprio escritor, é Tonio Kröger, filho de distinta família hanseática, mas de mãe nascida “lá embaixo no mapa” (Mann, 2015MANN, Thomas. 2015. A morte em Veneza e Tonio Kröger. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 92), constantemente atormentado pelo pensamento de ser confundido com um “cigano numa carroça verde” (Mann, 2015MANN, Thomas. 2015. A morte em Veneza e Tonio Kröger. São Paulo: Companhia das Letras ., pp. 92, 96, 106, 128). Ainda em 1929, Sérgio Buarque escreve que Tonio Kröger e A morte em Veneza são “duas obras-primas, apenas comparáveis em sua perfeição a certas novelas curtas de Tolstói”; as duas novelas de Mann teriam elevado o gênero a uma “perfeição cristalina” (Holanda, 1989HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1989. Thomas Mann e o Brasil. In: BARBOSA, Francisco de Assis (org.). Raízes de Sérgio Buarque de Holanda . Rio de Janeiro: Rocco , p. 199-204., pp. 199-200).
  • 22
    Lembre-se outra vez do estudo de Pedro Caldas (2014).
  • 23
    Em sua síntese histórico-conceitual da Bildung, Koselleck (2020KOSELLECK, Reinhart. 2020. Sobre a estrutura antropológica e semântica do conceito de Bildung. In: Histórias de conceitos. Estudos sobre a semântica e pragmática da linguagem política e social. Rio de Janeiro: Contraponto, p. 115-168., p. 130) lembra que o desenvolvimento desse conceito abre para o amor um “novo espaço de experiências”, no qual uma ideia de “amor sexual”, liberada dos compromissos teológicos e estamentais associados à ideia tradicional de casamento, se torna um elemento dinâmico que remete o intelecto à sensualidade (e vice-versa), gerando um processo comum no qual os amantes se formam reciprocamente. A ideia é bem ilustrada por uma das últimas observações do narrador d’A montanha mágica: “Certas aventuras da carne e do espírito, que sublimaram sua singeleza, fizeram seu espírito sobreviver ao que sua carne dificilmente sobreviverá [a Grande Guerra]. Momentos houve em que, cheio de pressentimentos e absorto em seu reinar, você viu brotar da morte e da luxúria do corpo um sonho de amor” (Mann, 2016MANN, Thomas. 2016. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 827).
  • 24
    Em sua clássica reflexão sobre a Educação estética do homem (Cartas XIV e XV), Schiller (2002SCHILLER, Friedrich. 2002. A educação estética do homem numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras., p 73-81) localiza no “impulso lúdico” (Spieltrieb), que faz coincidir vida e forma, o núcleo do processo subjetivo que preside a concreção da obra de arte.
  • 25
    A despeito das restrições que oponham à linha de interpretação de Raízes que privilegia a interlocução do livro com a obra de Max Weber como chave explicativa - a saber que o papel de Weber seria secundário na armação teórica do livro ou de que se trataria antes de desleitura do que de leitura de Weber (cf. Mata, 2021MATA, Sérgio da. 2021. Dossiê “A queda do aventureiro”, de Pedro Meira Monteiro. Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social. Disponível em: Disponível em: https://blogbvps.wordpress.com/2022/01/27/dossie-a-queda-do-aventureiro-de-pedro-meira-monteiro/ . Acesso em: 23 jun. 2022.
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    ) -, Sérgio Buarque parece partilhar, em sua preocupação com a conformação da personalidade brasileira, a visão de que certos “tipos de homem” surgidos em situações históricas e sociais podem abrir o caminho para mudanças históricas extraordinárias, como Weber buscou demonstrar na Ética prostestante, onde o princípio disciplinador e formador da personalidade moderna é identificado na vocação profissional. Lembrem-se, a propósito, as palavras com que Weber encerra sua famosa conferência sobre a “ciência como vocação”: o indivíduo moderno não encontrará a solução para os dilemas impostos por um mundo desencantado na esperança em salvadores e profetas, mas na descoberta do “demônio [daimon] que sustém o fio de sua vida” (Weber, 2013WEBER, Max. 2013. Ciência como vocação. In: BOTELHO, André (org.). Essencial sociologia. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 431) - linguajar que a página conclusiva de Raízes do Brasil ecoa, colocando em cena um demônio pérfido (Holanda, 1931, p. 161), que pressupõe, em contrapartida, um daimon da retidão, como aquele que o indivíduo deve encontrar, segundo o Weber pedagogo. Ver a interpretação de Harvey Goldman (1988GOLDMAN, Harvey. 1988. Max Weber and Thomas Mann: calling and the shaping of the self. Berkeley: University of California Press., pp. 18-21) sobre a “descoberta”, por Max Weber, do conceito de vocação (Beruf) como solução para o esvaziamento do sentido na vida moderna, e também a análise de Sérgio da Mata sobre a funcionalidade do conceito carlyliano de “herói” numa “filosofia da história” weberiana (Mata, 2020MATA, Sérgio da. 2020. A fascinação weberiana: as origens da obra de Max Weber. 2. Ed. Porto Alegre: EdPUCRS., pp. 79-95).
  • 26
    Este trecho, que está longe de ser marginal à argumentação principal de Raízes, desmente a afinidade que Sérgio da Mata busca estabelecer entre o Sérgio Buarque de 1936, o “esteticismo como visão de mundo” e o “paradoxo como estilo de pensamento”, ambos associados à influência de Gide, Nietzsche e Mann (Mata, 2016MATA, Sérgio da. 2016. Tentativas de desmitologia: a revolução conservadora em Raízes do Brasil . Revista Brasileira de História, v. 36, n. 73, p. 63-87. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbh/a/tYGGjRBkSjkB4KZ9ksVV6mM/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 19 ago. 2021.
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    , p. 69). O esteticismo e a indiferença à coerência lógica no pensamento são traços que Raízes atribui à intelectualidade brasileira (e que se aplicam tranquilamente ao Sérgio Buarque da segunda metade dos anos 1920), denunciando-os como sintomas da incapacidade formativa da cultura brasileira. É claro que aqui se trata da ideia que o autor fazia de suas próprias posições, o que não nos impede, como leitores, de verificar suas eventuais inconsistências e insuficiências. De todo modo, é preciso ter em mente que a precariedade lógica e a tendência à incorporação irrefletida do pensamento alheio são compreendidas em Raízes como função do esteticismo inerente à vida num “mundo sem forma”, onde o indivíduo tem o caminho desimpedido para “se abandonar a todo o repertório de ideias e de gestos que encontra em seu meio, ainda quando obedeçam ao mais rigoroso formalismo” (Holanda, 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1936. Raízes do Brasil . Rio de Janeiro: José Olympio., pp. 108-110).
  • 27
    Muitos exemplos poderiam ser elencados aqui. Uma lista restrita às manifestações puramente intelectuais e literárias desse ponto até Visão do paraíso (Holanda, 1959HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1959. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio .) incluiria, por ordem cronológica, o estudo do romantismo brasileiro no prefácio de 1939 a Suspiros poéticos e saudades de Gonçalves de Magalhães (Holanda, 1996bHOLANDA, Sérgio Buarque de. 1996b. Suspiros poéticos e saudades. In: Livro dos prefácios. São Paulo: Companhia das Letras , p. 353-370.), o ensaio biográfico de 1944 que serve de prefácio às obras econômicas de José Joaquim de Azeredo Coutinho (Holanda, 1996cHOLANDA, Sérgio Buarque de. 1996c. Obras econômicas de J.J. da Cunha de Azeredo Coutinho (1794-1804). In: Livro dos prefácios. São Paulo: Companhia das Letras , p. 52-98.), a seção sobre o “realismo português”, acrescentada à segunda edição (1948) de Raízes do Brasil (Holanda, 2016aHOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil . 2016a. São Paulo: Companhia das Letras ., pp. 195-205) - que já prenuncia a problemática de Visão e as análises da literatura colonial reunidas em Capítulos de literatura colonial (Holanda, 1991HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1991. Capítulos de Literatura Colonial. São Paulo: Brasiliense.), especialmente as conclusões de Sérgio Buarque no que diz respeito às persistências “barrocas” no arcadismo brasileiro. A datação dos textos reunidos em Capítulos de literatura colonial é incerta; provavelmente a maioria deles remonta ao começo da década de 50, como mostram diversas passagens publicadas na imprensa. Para uma reconstrução mais detalhada da origem desses textos, a referência obrigatória é o livro de Thiago Nicodemo (2014)NICODEMO, Thiago. 2014. Alegoria moderna: crítica literária e história da literatura na obra de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Unifesp..
  • 28
    Pode-se fazer uma exceção parcial aos textos sobre a expansão paulista, ou ainda, sobre a sociedade das Minas no século XVIII (Cf. Rodrigues, 2008RODRIGUES, Henrique Estrada. 2008. Os sertões incultos e o ouro do passado. In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGÊNIO, João Kennedy. Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas. São Paulo: Unicamp; Rio de Janeiro: Eduerj, p. 63-82.). De todo modo, a tônica geral é bem pessimista.
  • 29
    Alterou-se, na transcrição, a versão brasileira de Herbert Caro, no trecho sobre a “nossa Revolução”, pois Caro inverte a ordem de “nova” e “nossa” na oração e retira a ênfase de “nossa” (“a nova Revolução, a nossa”) (Mann, 1988MANN, Thomas. 1988. Der Zauberberg. Frankfurt: S. Fischer., p. 738).
  • 29
    A ênfase em seine não é transcrita por Sérgio Buarque.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2021
  • Aceito
    14 Jun 2022
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