Acessibilidade / Reportar erro

A polêmica sobre o poder Bolchevista: Kautsky, Lenin, Trotsky

The polemic over the bolchevist power

Resumos

O caráter do poder bolchevista é examinado com base em textos de um seu crítico eminente, Karl Kautsky, e de duas das suas maiores figuras, Lenin e Trotsky (este também na sua lase pré-bolchevique). Questões como a da ditadura, a do terror revolucionário e a do poder burocrático são objeto dessa polêmica.


The character of the bolclievist power is examined on the basis of texts of one of its main critics, Karl Kautsky, and of two of its leading figures, Lenin and Trotsky (including Trotsky's pre-bolchevist phase). Such issues as dictatorship, revolutionary terror and bureaucratic power are dealt with in this polemic.


A polêmica sobre o poder Bolchevista* * Nota do editor: O presente texto, redigido originalmente em francês, foi apresentado a um coloquio consagrado a Marx, realizado em Paris há três anos. A tradução é do autor. Feita em São Paulo sob premência de tempo para publicação em Lua Nova, pode apresentar uma ou outra insuficiência nas referências às fontes. A revista, que estabeleceu os prazos, assume a responsabilidade por esses casos. (Kautsky, Lenin, Trotsky)

The polemic over the bolchevist power

Ruy Fausto

Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e professor da Universidade de Paris

RESUMO

O caráter do poder bolchevista é examinado com base em textos de um seu crítico eminente, Karl Kautsky, e de duas das suas maiores figuras, Lenin e Trotsky (este também na sua lase pré-bolchevique). Questões como a da ditadura, a do terror revolucionário e a do poder burocrático são objeto dessa polêmica.

ABSTRACT

The character of the bolclievist power is examined on the basis of texts of one of its main critics, Karl Kautsky, and of two of its leading figures, Lenin and Trotsky (including Trotsky's pre-bolchevist phase). Such issues as dictatorship, revolutionary terror and bureaucratic power are dealt with in this polemic.

A bruma que envolve a história do movimento socialista no século XX é muito mais espessa do que se supõe em geral, e há materiais importantes enterrados sob o peso de mitologias ainda poderosas. Há autores que não se lê, partidos e organizações que não deixaram ou quase não deixaram traços, há acontecimentos quase esquecidos. Mesmo a desmistificação do stalinismo, que começou nos anos 20 e que se impôs nas últimas décadas, teve um papel contraditório. Se ela pôde desmascarar a versão stalinista da história da esquerda no século XX, ela não deixou de ter ao mesmo tempo um papel de ocultação. Dir-se-ia mesmo que a profissão de fé antistalinista se transformou numa garantia de objetividade, sob a qual se ocultam novas lendas. Denunciar os crimes de Stalin tornou-se um bom instrumento para afirmar que o autocratismo bolchevique foi o resultado da guerra civil, que não poderia haver governo de coalizão porque os outros partidos de esquerda se haviam alinhado com a contra-revolução etc. A tendência mais recente de acoplar a crítica do stalinismo com a do leninismo, mas sem fazer as distinções sempre necessárias (mesmo se tem o mérito de não cair mais no antigo corte apologético) também não foi muito útil. O laço entre o autocratismo burocrático e o despotismo genocidário deve ser estabelecido com rigor, sem fazer com que o primeiro seja absorvido pelo último, mas também sem inocentar o primeiro porque ele não foi até o genocídio. A história conheceu e conhece muitos regimes abomináveis que não foram genocidários, mesmo se às vezes abriram o caminho para o genocídio.

Este artigo tratará do bolchevismo a partir de certos textos, escritos, respectivamente, por um crítico do poder bolchevista, Karl Kautsky, e pelas duas maiores figuras do bolchevismo, Lenin e Trotsky. Na realidade, o seu objeto é uma discussão – em parte encarada intencionalmente como tal pelos seus participantes, em parte simplesmente objetiva – que envolve também outras figuras do bolchevismo, cujos textos me limitarei a mencionar. Se não abandono a leitura dos textos, a realidade histórica ela própria aparecerá evidentemente através deles, e mais do que isto, será analisada, em algumas passagens, de forma mais ou menos autônoma. O leitor deve ler presente que o autor deste artigo não é nem um historiador nem um cientista político.

Karl Kautsky, teórico bem conhecido do partido social-democrata alemão e da segunda Internacional, consagrou ao bolchevismo uma série de escritos que ele redigiu a partir do ano que sucede à tomada do poder pelos bolcheviques. O primeiro texto de Kautsky sobre o assunto, A ditatura do proletariado (publicado em 1919), provocou uma resposta de Lenin, a muito célebre A revolução proletária e o renegado Kautsky (1918). Kautsky escreveu em seguida Terrorismo e comunismo (1918-1919), que foi objeto de uma resposta de Trotsky, em um livro que tem o mesmo título (1920). Kautsky replica com Da democracia ao trabalho escravo, uma discussão com Trotsky (1920). Do lado bolchevique, houve outras respostas a Kautsky, entre as quais a de Karl Rádek (Ditadura do proletariado e terrorismo, 1920) e a de Bukharin (A teoria da ditadura do proletariado, 1919).1 1 Ver H. Draper, Karl Marx's Theory of Revolution, vol. III, The 'dictatorship of the proletariat' (with the assistance of Stephen F. Diamond). New York. Monthly Review, 1986, p. 332, nota. H. Draper refere-se ainda a A ditadura do proletariado de I. Kamenev, e sugere que poderia ter havido outras respostas. Kautsky escreverá ainda outros textos sobre o bolchevismo entre os quais O bolchevismo no impasse (1930).

Kautsky não foi evidentemente o único socialista que criticou o bolchevismo. Mas ele oferece o interesse de pertencer ao grupo daqueles socialistas que de um modo ou de outro criticaram tanto o bolchevismo como a direção social-democrata do seu país. Ele faz parte (pelo menos me parece razoável situá-lo aí, o que raramente se faz) da galáxia, muito heterogénea sem dúvida, dos socialistas que pelo menos em algum momento tomaram distância tanto em relação ao bolchevismo como em relação à social-democracia oficial. A meu ver, essa galáxia – se for válido cònsiderá-la em conjunto – com suas diferenças e suas contradições, suas qualidades e seus defeitos, é de uma atualidade excepcional. No seu espaço, Kautsky representa o setor mais próximo da social-democracia (se se quiser, o mais "à direita", mas o termo nesse contexto é em alguma medida ambíguo). Rosa Luxemburgo é, nesse universo, quem está mais à esquerda. Entre os que criticaram tanto a social-democracia oficial como o bolchevismo seria preciso citar Martov, figura muito importante e mais ou menos esquecida de menchevique internacionalista2 2 Entre os mencheviques que escreveram contra o bolchevismo, é preciso citar evidentemente Axclrod, a quem o jovem Trotsky dedica Nossas tarefas políticas. Axelrod era muito ligado a Kautsky. Theodor Dan estava próximo de Martov depois de outubro de 17, e lhe sucedeu na direção do movimento menchevista. Claro que a "disputa" dos mencheviques com o bolchevismo teve uma dimensão muito diferente de uma simples querela teórica. Nesse .sentido, eles são mais importantes do que Kautsky, que era uma espécie de "velho sábio" da social-democracia alemã. , e tomando alguma liberdade com a cronologia também o jovem Trotsky (de antes de 1917), autor do notável Nossas tarefas políticas.

Se se comparar a situação de Kautsky com a das outras figuras que mencionei, poder-se-ia dizer que ela é fragilizada pela sua posição durante a guerra. Não que se possa legitimar as invectivas de Lenin, e a legenda do "renegado Kautsky" – de resto, a posição de Lenin relativamente à guerra não pode ser sem mais avalizada. Mas a posição de Kautsky, em particular no que se refere à votação dos créditos de guerra pelo Partido Social-Democrata alemão em 1914, foi efetivamente muito problemática3 3 Kautsky, que não pertencia à fração social-democrata do Reichstag, foi convidado a participar da reunião que deveria decidir da posição do Partido em relação aos créditos de guerra. Inicialmente, ele era favorável à abstenção (anteriormente, ele era talvez pela recusa). Mas verificando que a imensa maioria era favorável à aprovação dos créditos de guerra, propôs que se apresentasse um certo número de exigência ao governo relativas ao caráter da guerra e à maneira de conduzi-la, sendo a aceitação delas condição para um voto favorável. A fração rejeitou a proposição de Kautsky. Mas este aceitou participar da comissão que redigiria as considerações do voto favorável. Na comissão, Kautsky obtém que se inclua uma cláusula proscrevendo as anexações. Entretanto, mesmo esta foi finalmente retirada a pedido do governo a quem a direção do Partido transmitira o documento, antes da seção do Reichstag. Alguns meses mais tarde, Kautsky – como também Bernstein, o qual, membro da fração, votara favoravelmente aos créditos de guerra – toma posição contra a guerra, dado o seu caráter ofensivo. A oposição à guerra ganha então cada vez mais peso no país e no interior do partido. Como a direção estava ligada de pés e mãos ao governo e aos militares, o processo conduziria a uma cisão, que daria origem ao Partido Social-Democrata Independente. Kautsky, mas também, um momento, Luxemburgo e Bernstein, farão parte dele. .

Entretanto, apesar de tudo, e em parte por isto mesmo, o interesse que oferece Kautsky é considerável, e sob certos aspectos é superior ao dos outros. Digamos primeiro que o fato de ter sido "alemão" (em todo caso, de viver na Alemanha, ele nascera em Praga), é, sob um aspecto, interessante. Na medida em que a crise da social-democracia foi, com o bolchevismo, um dos dois grandes problemas – diria, um dos dois pecados originais – do socialismo dos primeiros 25 anos do século XX, Kautsky, "alemão" e crítico do bolchevismo, está de certo modo duplamente no centro dessa historia. Que ele tenha sido logo marginalizado tanto pelos bolcheviques como pelos social-democratas, inclusive por urna parte dos independentes, não põe em questão o que acabo de dizer. Em segundo lugar, em relação a outros sociais-democratas alemães e austríacos que escreveram sobre o bolchevismo, e depois sobre o stalinismo, Kautsky teve sem dúvida o mérito da firmeza. Ao contrário de outros social-democratas, ele nunca aceitou a teoria com ressaibos colonialistas segundo a qual o bolchevismo era ruim para o europeus mas bom para os russos. Finalmente, Kautsky viveu até quase o fim dos anos trinta – Luxemburgo foi assassinada em 1919, Martov morreu em 1923 – o que lhe permitiu acompanhar a história do bolchevismo, e depois do stalinismo até às vésperas da segunda guerra mundial.

Não entrarei em todos os detalhes da polêmica. Kautsky começa às vezes por considerações retóricas sem interesse, sem falar das longas teorizações antropológicas de valor duvidoso. Mas os livros que examinaremos contêm elementos críticos muito importantes. Com os seus defeitos, esses livros são notáveis. Como eles são pouco conhecidos – conhece-se bem "o renegado Kautsky", mas não o próprio Kautsky – e além disso são pouco acessíveis, será preciso citar muito. Do laclo bolchevique, os textos ficam no limite da invectiva e também da ação. Num caso, o da resposta de Lenin, a escrita é interrompida pelas exigências da ação. Quanto ao texto de Trotsky (Terrorismo e comunismo), será necessário examiná-lo com cuidado: ele contém uma espécie de teoria do ultra-bolchevismo.

A POLEMICA

Kautsky: violência e direito4 4 Kautsky, Die Diktatur des Proletariats, Wien, I. Band, 1919. Utilizarei a edição da Dietz, Berlim, 1990, que abreviarei por DP (K). (Utilizarei igualmente as traduções francesa, La dictature du prolétariat em Lénine, La Dictature du proletariat et le renégar Kautsky, UGD, 10/18, 1972, inglêsa The dictatorship of proletariat, Michigan, 1964); e Lénine, La dictature du prolétariat et le rénégat Kautsky, que abrevio por RPRK (L) em Lénine, Oeuvres Choisies, vol. 3, Moscou, Éditions du Progrès, 1968.

A ditadura do proletariado de Kaulsky trata do partido e da classe, da democracia e da ditadura, da ditadura do proletariado, da questão do direito e da violência. O livro se ocupa dos nove primeiros meses da revolução bolchevique, mas tem também uma dimensão mais geral. Pouco depois da revolução alemã de novembro de 1919 Kautsky publicará uma versão resumida e um pouco modificada do livro, para uso dos alemães, em que as partes mais especificamente russas serão eliminadas. Dentre os temas do livro há um, de resto presente ao longo de toda a polêmica, que poderia servir como ponto de partida, e tanto mais que ele, de certo modo, penetra todo o resto: o tema da violência e do direito.

No contexto de uma explicação sobre o conceito de "ditadura do proletariado" em Marx, Kautsky é levado a dar uma definição de "ditadura" (noção que serve de título ao capítulo). "Tomada de modo literal, a palavra [ditadura] significa supressão da democracia. Mas tomada de modo amplo, ela significa também soberania de uma única pessoa, que não está ligada a nenhuma lei" (DP (K)), Dietz, 1990, p. 31, tradução inglesa p. 43). Fixar-me-ei apenas sobre essa última parte da definição: ditadura é a "soberania" que não está ligada a nenhuma lei. Evidentemente, essa definição poderia ser discutida. Se toda ditadura passa pela transgressão de certas leis, uma vez instalada – se tomarmos o termo "lei" no sentido puramente positivo de uma norma editada formalmente por um poder, qualquer que seja a "legitimidade" dessa lei – haverá ditaduras mais ou menos legalistas. Porém o que nos interessa aqui é primeiro o fato de que Kautsky acentua o caráter anti-jurídico que têm (pelo menos numa certa fase) as ditaduras, definição – caso raro – que Lenin aceita. Depois de ter recusado várias afirmações de Kautsky, Lenin escreve no seu estilo agressivo: "Como um cãozinho cego que ao acaso fareja aqui e lá, Kautsky caiu sem querer sobre uma idéia justa (...). A ditadura é um poder que se apoia diretamente sobre a violência e não está ligada por nenhuma lei. A ditadura revolucionária do proletariado é um poder conquistado e mantido pela violência, que o proletariado exerce sobre a burguesia, poder que não está ligado a nenhuma lei" (RPRK (L) Oeuvres Choisies 3, op.cit., p. 1071).

Lenin e Kautsky estão assim, excepcionalmente, de acordo no que concerne àquela definição. Mas eles se separam evidentemente no que toca à posição de cada um diante do objeto definido. Na realidade, a definição se constitui a partir da dualidade violência/ lei. Lenin "toma o partido" da primeira. Kautsky, o da última. Essa definição tem um sentido profundo na sua relação com a história do poder bolchevique. É que a ditadura bolchevique no seu início, e num período considerável, foi marcada por uma tendência antijurídica. Antijundismo que aparece, no início, no fato de que os bolcheviques "deixam que as massas pratiquem" as suas ações violentas. Ele está presente ainda, mais tarde, nas leis que, paradoxalmente, dão uma grande latitude à arbitrariedade (leis que declaram a legalidade de uma certa ausência de legalidade, se assim se pode dizer). Um exemplo: Kautsky cita uma artigo da Constituição Soviética de 1918, aprovada pelo Conselho dos Sovietes, após a expulsão de mencheviques e sociais revolucionários, artigo que concerne às eleições para os sovietes, e observa o caráter vago e pouco formalizado do procedimento: "Não encontrei uma determinação que invista em uma autoridade específica que deve verificar o voto de cada pessoa, que estabeleça a lista de votantes» e o procedimento da eleição, se ela será por votação secreta ou levantando a mão" (DP(K), idem p. 52, tradução inglesa p. 83). Kautsky continua, citando um discurso de Lenin de 28/8 /1918, onde se diz – Kautsky resume o texto de Lenin – a propósito dos votantes e do procedimento em conexão com o caráter socialista dos sovietes: I) os votantes são as massas exploradas e trabalhadoras, sendo excluídos os burgueses; 2) toda formalidade burocrática cessa. As massas elas próprias decidem sobre o procedimento e a data das eleições"5 5 Cf Lenin, Oeuvres Choisies, 2, pp. 102, 68, 105 e 125. . O que merece o seguinte comentário de Kautsky: "Parece, pois, que qualquer agrupamento de eleitores pode organizar o procedimento eleitoral, conforme o seu capricho. Através disso, aumenta ao máximo a arbitrariedade, e a possibilidade de se desembaraçar de todo elemento inconveniente da oposição no interior do próprio proletariado" (idem, p. 53, tradução inglesa p. 83).

Como se vê, instaura-se uma querela entre o direito e a violência, que é ao mesmo tempo uma discussão sobre a forma e o conteúdo. Depois de citar o texto que acabo de transcrever, Lenin o comenta do seguinte modo: "O que é isso, senão considerações de um empregado escriba (tradução francesa valet de plume) contratado pelos capitalistas e que, por ocasião de uma greve, grita forte conta a violência exercida pela massa sobre os operários zelosos que 'desejam trabalhar"? Por que o modo de eleição estabelecido pelos funcionarios burgueses na democracia burguesa 'pura' não é arbitrario? Por que o sentido da justiça das massas que se mobilizam para a luta contra os seus exploradores de sempre, das massas esclarecidas e aguerridas por esta luta sem limite (tradução francesa à outrance) deve ser menor do que a de um punhado de funcionários, de intelectuais e de advogados formados no espírito dos preconceitos burgueses?" (RPRK (L), in Oeuvres Choisies, 3, p. 194, grifado por L). As formas são formas burguesas; o "poder proletario" é o inimigo das formas, ou então instaura formas que legitimam a liberdade relativamente às formas. Mas a que nos conduz tudo isto?

Kautsky: classe, partido, governo; ditadura do proletariado.

Retomemos a discussão por um outro lado, que constitui de fato o seu núcleo. Os primeiros capítulos do livro de Kautsky são consagrados à democracia e à ditadura, mas desde o início vê-se o que está em jogo mais precisamente, a relação entre classe e partido e a questão do caráter do poder revolucionário nas suas relações com as classes e os partidos. Kautsky é levado a estabelecer distinções e definições que podem parecer formais (o que, bem entendido, lhe será cobrado), mas que, por trás da sua banalidade e formalismo, fornecem elementos para uma crítica: "Um partido (...) não é sinônimo de uma classe, ainda que, em primeira instância, ele represente um interesse de classe. Um mesmo interesse de classe pode ser representado de várias maneiras, por diversos métodos táticos. Segundo a sua variedade, os representantes de um mesmo interesse de classe se dividem em diferentes partidos" (DP (K), idem, p. 25 inglesa p. 3 1). "Partidos e classes podem não coincidir. Uma classe pode se dividir em diferentes partidos, um partido pode consistir em membros de diferentes classes" (DP (K), idem, p. 26, inglesa p. 32). Se ninguém afirma que partido é a mesma coisa que classe, essa insistência "formal" sobre a não coincidência dos dois toca num ponto sensível: a pretensão de um partido de ser o representante de uma classe. Ela problematiza essa relação. E imediatamente se vê que conclusões ele tira relativamente à ditadura do proletariado: "Se o proletariado está dividido em vários partidos (...) a ditadura de um desses partidos não é mais de modo algum a ditadura do proletariado, mas a ditadura de uma parte do proletariado sobre uma outra parte. A situação se complica ainda mais se os partidos socialistas estiverem divididos conforme as suas relações com os elementos não proletários (...)" (idem, p. 33, inglesa p. 46). A observação é de alcance geral, mas visa em particular o caso russo: "Começando pela pretensão de representar a ditadura do proletariado, [o regime russo] era desde o início a ditadura de um partido no interior do proletariado" (idem, p. 54, inglesa, p. 85)."(...) a ditadura da classe (...) é na realidade a ditadura de um partido" (idem p. 78-9, inglesa p. 132, cf. p. 50, inglesa p. 78: "(...) ditadura certamente. Mas (...) do proletariado?"6 6 Essas teses são reforçadas pela idéia de que uma classe pode dominar mas não pode governar. São os partidos que governam, a menos que se trate do governo de "cliques" ou de um poder individual. Isso quer dizer que, mesmo nas condições ideais, o poder só pode pertencer ao "proletariado" de um modo mediato, circunstância da qual se extrai não a idéia de que o governo de um só partido é inevitável, mas pelo contrário, a de que é necessário multiplicar as garantias para bem afrontar os riscos inerentes a tal mediação. Essas teses são reforçadas pela idéia de que uma classe pode dominar mas não pode governar. São os partidos que governam, a menos que se trate do governo de "cliques" ou de um poder individual. Isso quer dizer que, mesmo nas condições ideais, o poder só pode pertencer ao "proletariado" de um modo mediato, circunstância da qual se extrai não a idéia de que o governo de um só partido é inevitável, mas pelo contrário, a de que é necessário multiplicar as garantias para bem afrontar os riscos inerentes a tal mediação. Kautsky justifica pois a necessidade da participação do governo de outros partidos socialistas, ou pelo menos a necessidade de assegurar a representação desses partidos nas assembléias eleitas. Por outro lado, sem discutir a questão da liberdade para os partidos não socialistas (Kautsky parece ser favorável, em princípio), ele se manifesta claramente, como veremos, em favor da garantia do exercício dos direitos políticos para o conjunto dos cidadãos. Tudo isto seria compatível com a idéia de "ditadura do proletariado", tal como ela se encontra em Marx e Engels? A esse respeito Kautsky propõe uma leitura dos textos de Marx e de Engels. Quando eles falam em "ditadura do proletariado", visam, segundo Kautsky, não "uma forma de governo, mas uma condição (Zustand) que deve ocorrer necessariamente cada vez que o proletariado conquistou o poder político" (idem, p. 31, inglesa p. 43, grifado por K). Kautsky retoma o tema mais adiante: "[Empregando a fórmula (Wörtchen) 'ditadura do proletariado'], Marx quis somente descrever uma condição política, não uma forma de governo" (idem, p. 83, inglesa p. 140, grifado por K). Isto significa que a "ditadura do proletariado" seria a contrapartida da "ditadura da burguesia", ela designaria a dominação do proletariado após a vitória da revolução, sem visar a forma precisa que tomaria essa dominação. Observe-se que, mais a propósito de Engels do que a Marx, esta interpretação será retomada por Martov, em seu livro O bolchevismo mundial7 7 Dada a importância deste livro, creio que convém dar as seguintes indicações: a obra foi escrita em 1919 (fora um apêndice que é de 1918) e foi publicada pouco depois da morte de Martov em 1922. Cito a tradução francesa de V. Mayer, que contem um texto preliminar (1923) e uma introdução biográfica mais longa (1934) ambos de Theodor Dan, além de um prefácio de J. Lebas (Paris, Société dÉdition Nouveau Promethée, 1934). (Com vistas à utilização que se poderá fazer dessa tradução convém levar em conta uma observação de Dan, do final da nota biográfica de 1934: "A obra de Martov foi escrita no momento em que o socialismo democrático estava ainda dividido em dois campos inimigos [digamos, os sociais-nacionalistas de um lado e os internacionalistas como Martov de outro – RF]. Em conseqüência, é natural que, nessas condições, o polemista mordaz que era Martov lance às vezes apreciações muitos duras a propósito da corrente socialista, que tampouco o poupava. Pensamos que era possível abandonar as expressões às vezes um pouco vivas do polemista, como o teria feito, sem dúvida, o próprio Martov" (p. 28). . Depois de citar um passo do célebre prefácio de Engels à Guerra civil na França de Marx, passo em que Engels faz do sufrágio universal uma das garantias da submissão do novo poder à sociedade, e lembrando que Engels reconheceu na Comuna de Paris a ditadura do proletariado, Martov escreve: "Não é evidente que, exprimindo-se assim e identificando, ao mesmo tempo, tal república democrática com a ditadura do proletariado, Engels não se serve dessa última expressão para designar uma forma de governo mas para designar a estrutura social do poder de Estado? Kautsky com razão insistiu nisso na sua brochura A ditadura do proletariado, quando disse que, em Marx, não se tratava da forma do governo, mas da sua natureza" (Martov, op. cit., p. 120, grifado por Martov).8 8 Esta é também, de fato, o núcleo da posição de H. Draper em Karl Marx's Theory of Revolution, vol. III, citado (ver por exemplo, pp. 305-306) mesmo se ele tem uma atitude muito crí tica em relação a Kautsky. Comentarei em outro lugar o seu The Dictatorship of the Proletariat from Marx to Lenin. New York, Monthly Review Press, 1987.

Kautsky: a liquidação da Assembléia Constituinte; o soviet e a democracia

A ditadura do proletariado foi escrita no verão de 1918 (na p. 73, inglesa p. 121, do livro, Kautsky diz pelo menos que está escrevendo na data de 5 de agosto), portanto pouco depois do início da guerra civil. No que concerne às medidas repressivas e de limitação das liberdades, ele está diante de dois acontecimentos principais: o "fechamento" da Assembléia Constituinte no dia 19 de janeiro de 1918 (6 de janeiro pelo antigo calendário, substituído em fevereiro de 1918)9 9 A Assembléia Constituinte havia sido eleito a 25 de novembro de 1917 (novo calendario), portanto pouco depois da tomada do poder pelos bolcheviques. As eleições haviam dado a vitória aos sociais-revolucionários. , e a expulsão dos mencheviques e de parte dos sociais-revolucionários do Comitê Executivo Central dos sovietes a 14 de junho de 1918. Eis aí os dois pólos em torno dos quais vão girar as oposiçoes (no plano propriamente político; no plano geral das liberdades, eles lutam pela liberdade de imprensa, contra as violências da Vetcheca, instituída em dezembro de 1917, etc): de um lado a luta pela eleição de uma Assembléia Constituinte, de outro a luta pelas liberdades nos sovietes. Em A ditadura do proletariado Kautsky ocupa-se tanto de uma coisa como da outra.

Sabe-se que o fechamento da Assembléia Constituinte dera origem a críticas por parte do socialismo internacional10 10 Ver a respeito Trotsky, De la révolution d'octobre à la paix de brest-Litowsk. Trotsky defende evidentemente a posição oficial. . Deixarei de lado certos aspectos da discussão, outros serão introduzidos mais adiante. Por ora, limito-me a um ponto que é interessante, pelas razões que veremos. Kautsky lembra uma resolução do Comitê Executivo Central datada de 7 de dezembro (novo calendário), na qual se diz que uma assembléia qualquer, inclusive a Assembléia Constituinte, só poderá ser considerada como "realmente democrática" e realmente representativa "da vontade do povo", se os eleitores tiverem o direito de chamar de volta os seus representantes, sob certas condições. Ora, num texto publicado pela Pravda de 26 de dezembro de 1917 (n.c), texto que prepara o fechamento da Assembléia, Lenin se vale entre outras coisas do fato de que as listas dos candidatos do partido majoritário, o partido social-revolucionário, haviam sido organizadas antes da ruptura mais ou menos definitiva entre a direita e a esquerda desse partido, sendo assim listas comuns, o que lançava dúvidas sobre a legitimidade dos resultados. Kautsky observa que se tal era o caso, era preciso convocar "novas eleições (...) nos distritos que haviam escolhido os sociais-democratas" (idem, p. 45, inglesa, p. 68), em lugar de fechar pura e simplesmente a Assembléia Constituinte. O argumento de Kautsky foi formulado também por Rosa Luxemburgo no seu ensaio sobre A revolução russa: "Dado que a Assembléia Constituinte fora eleita muito antes do giro decisivo, a reviravolta de Outubro, e refletia na sua composição a imagem de [um] passado [já] superado, e não do novo estado de coisas, impunha-se por si mesma a conclusão de que exatamente era preciso quebrar a velha constituinte caduca e natimorta, e convocar sem demora novas eleições para obter uma nova Assembléia Constituinte (...). Em lugar disto, Trotsky concluiu da insuficiência particular da Assembléia Constituinte reunida em outubro11 11 Ela foi eleita em novembro, segundo os dois calendários. a inutilidade de toda assembléia constituinte em geral, e mesmo, generalizando, a não validade de toda representação popular nascida do sufrágio popular universal, em [tempo de] revolução".12 12 Rosa Luxemburg, Zur Russisclien Revolution (1918, publicado em 1921) em Gesammelte Werke, vol. 4,Berlim, Dietz, 1974, p. 353-4. Discute-se em que medida Rosa Luxemburgo, nos seus últimos meses de v ida, teria mudado de posição relativamente ao bolchevismo, e a questão específica do fechamento da Assembléia Constituinte. Na sua biografia de Luxemburgo, J.P. Nettl afirma que ela muda de posição em rejação ao problema específico, mas que este é o único ponto em que Luxemburgo se desdiz no que se refere à crítica do bolchevismo. Mais do que isto, a tese de que ela mudou de posição relativamente à questão específica da dispersão da assembléia russa deve se apoiarem algo mais sólido do que o fato de que ela foi contrária à convocação de uma Assembléia Constituinte na Alemanha.

À "democracia burguesa" encarnada pela Assembléia Constituinte os bolcheviques opõem os sovietes, que não comportam representação burguesa. Mas pelo menos no interior do círculo restrito da representação soviética, as regras democráticas seriam respeitadas? O artigo 20 do documento citado afirma que "(...) no que concerne à classe operária e os camponeses mais pobres, ele têm a mais completa liberdade" (idem, p. 86, inglesa p. 145). Kautsky pergunta: " Possuem eles efetivamente a completa liberdade?" (ib.). Kautsky se fixará sobretudo sobre a decisão do Comitê Executivo Pan-russo dos Sovietes (14 de junho de 1918) de expulsar os mencheviques e os social-revolucionários (do centro e de direita), e recomendar a todos os sovietes que façam o mesmo (ver ib., p. 53, inglesa, p. 84), observando que essa medida não visava indivíduos que haviam cometido atos ilegais, mas partidos. E que com ela, os proletários que haviam votado nesses partidos perdiam seu direito de voto, "seus votos não contam mais" (ib.). Kautsky conclui: "Assim, mesmo no interior do próprio proletariado, o círculo daqueles que dispõem de direitos políticos, sobre os quais repousa o regime bolchevista, se estreita cada vez mais" (idem, p. 54, inglesa, p. 85).

Lenin: A Revolução proletária e o renegado Kautsky

A resposta de Lenin, num pequeno livro que se tornou célebre, e que esmagou de fato a crítica de Kautsky, fundamenta-se em três elementos. Primeiro, numa leitura diferente da "ditadura do proletariado" em Marx e Engels. Segundo, numa crítica da "democracia burguesa". Terceiro, numa tentativa, que não será a de Trotsky um ano mais tarde, de legitimar a posição bolchevista mediante argumentos ainda democráticos: os bolcheviques disporiam do apoio da maioria da população pobre, as massas russas gozariam de muita liberdade etc. Esse texto, conhecido demais para ser bem estudado, merece uma análise ao mesmo tempo interna e externa. É preciso pô-lo em relação com o que se sabe da realidade russa nos dois primeiros anos após a revolução, e a partir disso fazer uma análise ideológica interna do texto. Isto é, tentar revelar as regras que permitem ocultar a realidade social e legitimar o poder autocrático. Seria preciso comparar as regras e mecanismos de tal discurso ideológico com as regras e mecanismos que se encontram no discurso ideológico burguês, pois o funcionamento das duas ideologias não é o mesmo. Isto como programa de trabalho. Aqui só darei algumas indicações.

Passo rapidamente sobre a leitura que faz Lenin da "ditadura do proletariado" em Marx e Engels. "A ditadura revolucionária do proletariado – escreve Lenin a partir do que teria escrito Marx – é um poder conquistado e mantido pela violência, que o proletariado exerce sobre a burguesia (...)" (Oeuvres Choisies 2, p. 71). O que significaria que a "ditadura do proletariado" segundo Marx seria mesmo uma forma ditatorial de poder do proletariado, e não um "estado" em que o proletariado domina, qualquer que seja a forma desta dominação. Trata-se em seguida de mostrar a superioridade da ditadura do proletariado sobre a democracia burguesa, e em particular, a superioridade do poder bolchevique que se supõe encarne a primeira diante da democracia burguesa. Por um lado, a argumentação de Lenin é um raciocínio negativo, que supõe uma espécie de lei do terceiro excluído. Ele quer mostrar que a democracia burguesa é uma falsa democracia, o que levaria à conclusão – esta constelação é sugerida pela argumentação – de que por isso a ditadura do proletariado (tal como ele a entende) e o poder bolchevique lhe seriam superiores: "A democracia burguesa, que comparada com a Idade Média constitui um grande progresso, permanece sempre – e no capitalismo ela não pode absolutamente ser outra coisa – estreita, limitada, falsa, mentirosa, um paraíso para os ricos, um ardil e um engano para os explorados, para os pobres" ( Oeuvres Choisies, 2, p. 77). No Estado burguês mais democrático as massas oprimidas entram em choque constante com a contradição gritante entre a igualdade formal proclamada pela "democracia" dos capitalistas e as milhares de restrições e manipulações efetivas que fizeram dos trabalhadores escravos assalariados. Precisamente esse contradição abre os olhos das massas sobre o quanto o capitalismo é pobre, mentiroso e hipócrita" ( Oeuvres Choisies 2, p. 79, grifado por Lenin). É importante pôr em evidencia essa lógica do terceiro excluído, dado que ela desempenha papel considerável na justificação dos sistemas burocráticos. Voltarei a isso. Mas a justificação é também positiva. Alguns exemplos: "A democracia proletária, da qual o poder dos sovietes é urna das formas, trouxe precisamente para a imensa maioria da população, para os explorados e os trabalhadores, um desenvolvimento e uma ampliação nunca vistos no mundo" (Oeuvres Choisies, 2, p. 79). "Os sovietes são a organização imediata das massas trabalhadoras e exploradas elas próprias, que lhes facilita organizar elas mesmas o Estado e governar em cada forma possível. Precisamente a vanguarda dos trabalhadores e explorados, o proletariado urbano, se beneficia com isto porque nas grandes empresas ele é o mais unido; ele é o que pode eleger com mais facilidade, e melhor controlar os deputados eleitos" (Oeuvres Choisies, 2, p. 80). "A liberdade de imprensa deixa de ser uma hipocrisia, pois a burguesia é despojada das impressoras e do papel" (Oeuvres Choisies, 2, p. 80-81). Por ter despojado a burguesia das melhores construções, "o poder soviético tornou um milhão de vezes mais democrático para as massas o direito de reunião, aquele direito sem o qual a democracia é um engodo (Oeuvres Choisies, 2, p. 81). "Entre os países burgueses mais democráticos, há um só no mundo onde o simples trabalhador do campo ou o semi-proletário do campo em geral (isto é, o representante da massa oprimida, da imensa maioria da população), goze que seja aproximadamente de uma liberdade de se reunir nos melhores edifícios, de uma tal liberdade de dispor, para exprimir suas idéias, e defender seus interesses, das mais vastas impressoras e os melhores estoques de papel, de uma tal liberdade de confiar precisamente a homens da sua classe a direção e a 'administração' do Estado?". "As eleições indiretas para os sovietes não locais facilitam a convocação dos congressos dos sovietes, tornam o conjunto do aparelho menos custoso e mais móvel, e mais acessível aos operários e aos camponeses, e isto num tempo em que a vida se agita e importa ter a possibilidade de revocar rapidamente seu deputado local ou de enviá-lo ao congresso geral dos sovietes" (ib.). Em conclusão: "A democracia proletária é um milhão cie vezes mais democrática do que qualquer democracia burguesa; o poder dos sovietes e um milhão de vezes mais democrático do que a mais democrática democracia burguesa" (ib., grifado por Lenin).

Ora, em que medida esse quadro corresponde à situação da Rússia no final de 1918, e ao que se passou nos dois anos que sucedem à tomada do poder pelos bolcheviques em outubro/ novembro de 1917?

Tomo como referências sobretudo dois livros. Uma obra clássica já antiga, As origens do absolutismo comunista — os bolcheviques e a oposição (1917-1922) de Leonard Shapiro13 13 Utilizo a tradução francesa de Serge Legran, Paris, Albatros, Les Îles d'or, 1957. , e um livro mais recente, The Menchevistas after October de, V. Brovkin14 14 Stanford, California, Stanford University Press, 1977. , dois trabalhos muito escrupulosos e bem informados. No que se refere à liberdade para a imprensa socialista, eis o que escreve Shapiro: "Desde os primeiros dias da revolução os jornais socialistas não dispuseram de nenhuma segurança e, em várias ocasiões, foram vítimas, de confiscações brutais e arbitrárias por ordem do Comitê Militar Revolucionário" (Shapiro, op. cit., p. 75). É verdade que "até a metade do ano de 1918, a imprensa menchevique ainda era bastante abundante" (Idem, p. 167). Como a guerra civil começa de fato em junho de 1918, a explicação corrente que liga a repressão à guerra civil poderia ter uma aparência de justificação. Entretanto, como já se escreveu, a repressão contra a esquerda não comunista começa bem antes da guerra civil, na realidade ela começa com a própria tomada do poder.15 15 Tentou-se justificar essa política dizendo que a repressão das outras tendências socialistas era normal :os bolcheviques acabavam precisamente de derrubar um governo em que estavam representados mencheviques e sociais-revolucionários, sendo esse ato político, ele próprio, legitimado pelo caráter "reacionário" ou imobilista da política de uns e de outros, sobretudo no que concerne à guerra e a questão agrária. O projeto de "derrubar" o governo provisório poderia se justificar: mas por que métodos e com que fim? A esquerda menchevique não pregava outra coisa desde havia algum tempo (mas não por meio de uma insurreição), e o Comitê Central menchevique acabara aceitando essa perspectiva – tarde demais entretanto. Os bolcheviques derrubaram Kerensky para governar como partido único (a aliança com os sociais-revolucionários de esquerda, segundo os próprios bolcheviques – ver Trotsky – era tática e transitória). Ora, a pretensão a se apresentar como o partido da classe – veremos pouco a pouco – só podia conduzir a um encadeamento de violências. Outra tentativa de justificação se apoiaria na posição dos social-revolucionários e mencheviques durante a primeira fase da guerra civil (segundo semestre de 1918). No que se refere aos mecheviques, .seria preciso dizer que só uma parte dos mencheviques das províncias, mas não o Comitê. Central menchevique se levanta contra o poder bolchevique.16 16 Quando, por volta do final do ano, depois do golpe de Estado do almirante Koltchak, a direita e a extrema direita passam a dominar os movimentos antibolchcviques,o CC menchevique não só apoia o lado vermelho na guerra civil, como incita os seus membros a participar da guerra desse lado. Em conseqüência dessa política os mencheviques são. de novo legalizados (30 de novembro de 1918). Mas "esta medida não mudava grande coisa no plano prático. Nos sovietes locais á 'maioria revolucionária' não aplicava o decreto e as autoridades policiais continuavam a prender os mencheviques sem fornecer qualquer justificação (...) Um dos seus jornais reapareceu mas foi de novo proibido um mês um mês e 14 números depois. Como se mantiveram as prisões em série e algumas execuções, a medida de 'legalização' parece ter provocado espanto entre os partidários de Lenin, pois ele se dispôs a explicá-la (...)" (Shapiro, op.cit., p. 170). A atitude dos outras se explica, em parte pelo menos, pela política bolchevique (fechamento de jornais, prisões, dispersão da Assembléia Constituinte). Assim, as afirmações de Lenin no Renegado Kautsky são falsas, mesmo para o período anterior a junho de 1918.

Lenin pretende que os bolcheviques contavam com o apoio da maioria do povo ou pelo menos do proletariado. Kautsky havia escrito na Ditadura do proletariado que, se a ditadura "pôde representar durante um período a ditadura da maioria do proletariado sobre a minoria (...) hoje mesmo isso se tornou duvidoso" (DP (K), p. 54, inglesa , p. 85). Lenin fornece dados relativos ao volume das delegações de partidos no dois congressos dos sovietes de junho de 1917 a julho de 1918. Segundo os seus dados os bolcheviques tinham 13 % dos delegados em junho de 17 (velho estilo), 51% em outubro (id) ,61% em janeiro, 64% em março e 66% em julho (Ver RPRK (L), Dietz, p. 131 Oeuvres Choisies, 2, p. 100). Disto Lenin conclui o seguinte: "Basta olhar esses números para compreender porque a defesa da Assembléia Constituinte ou o discurso [daqueles que] (como Kautsky) [pretendem] que os bolcheviques não teriam atrás de si a maioria da população, não provoca entre nós mais do que riso" (RPRK (L), Oeuvres Choisies, 2, p. 100). E ainda: "(...)a experiência de mais de seis meses (tempo considerável para uma revolução) da atividade conciliadora dos mencheviques, de tentativas de conciliar o proletariado com a burguesia, convenceram o povo da vanidade dessa tentativa e afastaram o proletariado dos mencheviques" (RPRK (L), Oeuvres Choisies, p. 99, grilado por L).

Ora, Lenin "simplifica" a curva, e só examina uma parte do período a analisar (o livro foi terminado em dezembro de 1919). Que ocorreu efetivamente de junho de 1917 a novembro de 1918? Sem dúvida, entre junho de 1917 e fevereiro de 1918 o peso dos mencheviques cai vertiginosamente, primeiro por causa do apoio dado pela direção menchevique ao governo provisório, do qual participavam mencheviques (Martov e o grupo intemacionalista eram contra esse apoio), depois por causa do sucesso das primeiras medidas do governo bolchevique em favor da paz, da terra e o controle operário.17 17 Ver a respeito Brovkin, op. cit., p. 51 Mas em seguida, parece evidente que houve uma inversão da tendência. O terceiro congresso dos sovietes, em janeiro de 1918 se reuniu já em condições muito particulares.18 18 Veja-se o que escreve a esse respeito Brovkin, visando em particular mas não exclusivamente os mencheviques: "Os bolcheviques convocaram o terceiro congresso (...) como um contrapeso à Assembléia Constituinte, para demonstrar que as massas os apoiavam ainda. A pequena fração menchevique (50 membros) nesse congresso reunido rapidamente o qualificou de escárnio (mockery), estratagema (ploy) destinado a cobrir o crime bolchevique (o fechamento da Assembléia Constituinte] com o manto da legilimidade(...). A dispersão não foi debatida. Os representantes dos partidos da oposição não foram admitidos na comissão de poderes. Tanto os mencheviques como os sociais-revolucionários reclamaram do fato de que foi recusada de maneira arbitrária a admissão ao Congresso de vários delegados provinciais pertencentes aos seus partidos. O governo bolchevique não prestou contas ao Congresso da sua política a partir de outubro. Em compensação, as orquestras locavam canções revolucionárias, e os bolcheviques fizeram discursos sobre a inevitabilidade da revolução mundial" (Brovkin, op. cit., p. 62). O mesmo tipo de irregularidade teria ocorrido no quarto Congresso, reunido em março, que deveria ratificar o Tratado de Brest-Litovsk.19 19 Ver Brovkin, op. cit., p. 70: " (...) O CC menchevique enviou um protesto veemente ao CC bolchevique, mas sem resultado. O aparelho administrativo (machinery) de convocação e de direção do congresso era controlado pelos bolcheviques". Os números que concernem ao peso relativo das frações são, por isso, pouco expressivos.

Mais importante ainda, os historiadores nos fornecessem dados bastante completos sobre o resultado das eleições para os sovietes das cidades de província, na primavera de 1918. Os bolcheviques foram derrotados quase por todo lado, em benefício dos mencheviques , e isto apesar das condições muito desfavoráveis em que se realizaram as eleições. E cada vez que os mencheviques são vitoriosos, o governo bolchevique intervém de uma forma ou de outra. Por outro lado, à medida em que os bolcheviques deixam de ser representativos, surge, impulsionada pelos mencheviques (principalmente, parece, pela "direita" menchevique, mas o movimento contava com muita gente sem partido ou de outras tendências) um grande movimento de assembléias operárias independentes. O desenvolvimento desse movimento, de um lado, e a ameaça de uma derrota dos bolcheviques no Congresso dos sovietes, de outro, estão entre as razões da expulsão dos mencheviques e dos sociais-revolucionários do Conselho Executivo dos sovietes, em julho de 1918. (Os sociais-revolucionários de esquerda, que haviam participado de um governo de coalizão com os bolcheviques, e que se haviam separado destes após o Tratado de Brest-Litovsk, foram expulsos, por sua vez, algum tempo mais tarde).20 20 Ao contrário dos mencheviques, eles tinham tentado sublevar-se contra os bolcheviques. Para julgar essa política é preciso não esquecer o que foi a prática governamental bolchevique nesse período.

Kautskty. Terrorismo e comunismo

Terrorismo e Comunismo21 21 Termrismus und Kommunisimus. Ein Beitrag zur Natureschichte der Revolution. Berlin. E. Berger, s/d. Cito a edição Dietz, Berlim. Abrevio por TK (K). , escrito entre agosto-setembro de 1918 e junho de 1919, não se refere, aparentemente, ao Renegado Kautsky. Há referências a um outro texto de Lenin, As tarefas imediatas do poder soviético. A Ditadura do proletariado foi publicada no inicio da guerra civil, e pouco depois da expulsão dos partidos de oposição do Comitê Executivo dos Sovietes. O texto não fala, ou fala muito pouco, da guerra civil. Terrorismo e Comunismo trata, pelo contrário, da política bolchevique durante a guerra civil22 22 A guerra civil começa propriamente no verão de 18, com o levante da Legião Tcheca (tropa constituída em parte por ex-soldados de origem tchecoslovaca do exército austríaco, aprisionados pelos russos) apoiado pelos sociais-revolucionários. Um governo de maioria SR é constituído em Samara. Outros governos, mais à direita, serão constituídos em outras cidades. e, como o seu título o indica, em particular do terrorismo. Por outro lado, nesse livro o autor continua a analisar as limitações da democracia, no interior do sistema dos sovietes (vimos que Kautsky era favorável à eleição de uma Assembléia Constituinte, mas isso não o impede de criticar de dentro os defeitos da versão russa, do sistema dos sovietes).23 23 O livro foi escrito, ou pelo menos terminado, depois da revolução alemã de novembro de 1918 (Kautsky diz ter interrompido a sua redação no momento da revolução), e após a ruptura da coalizão entre os sociais-democratas e os sociais-democratas independentes (SPDU, partido ao qual Kautsky pertence desde 1917). Os dois partidos dividem o poder durante um período bastante curto, depois da vitória da revolução de 1918 e da proclamação da república. O livro é também posterior ao assassinato de Luxemburg e de Liebknecht (janeiro de 1919), mas é anterior à adesão da maioria dos sociais-democratas independentes à Terceira Internacional. Mas a obra oferece ainda o interesse de apresentar uma análise do que Kautsky considera como o sistema de classes na Rússia bolchevista.

Kautsky afirma visar não tal ou qual erro inevitável (o que seria cômodo, acrescenta, para alguém que está longe das "penas e perigos" (TK (K), Dietz, p, 293, fr. p. 170, ), mas dos erros que "nascem necessariamente (mit Notwendigkeit) de uma falsa concepção de princípio. Esses erros só podem ser evitados superando-se essa concepção; eles põe em perigo todo futuro movimento revolucionário se se deixar que elas passem sem crítica, ou mesmo se elas forem embelezados e glorificados – no suposto interesse da revolução" (TK (K), Dietz, p. 294, fr. p. 170).

O que parece chocante a Kautsky é a brutalidade da explosão e o fato de que ela degenera em "terrorismo", isto é, que ela não se abate apenas sobre os que combatem do outro lado, ou sobre os que, de um modo ou de outro, agem contra o chamado poder "soviético", mas também, de modo indistinto, sobre aqueles que, dada a sua origem, se supõe estejam do outro lado.24 24 Se, em certo sentido, o terror havia começado antes (desde o início tinha havido repressão de massa contra os oficiais) a repressão muda de caráter no verão de 1918 (cf. Brovkin, op.cti., p. 280, "a aplicação do terror" muda): "Em junho de 1918, a lista de inimigos do bolchevismo incluía não só ex-policiais, oficiais, proprietários e os "Cadetes" (membros do Partido Constitucional Democrático), mas também camponeses ricos, pequenos comerciantes, e operários que sustentavam os mencheviques e os sociais-revolucionários" (Brovkin, op. cit., p. 280). E Brovkin cita uma entrevista de Dzerzhinskii publicada pela Novaia Zliizu de 19/6/18: "A sociedade e a imprensa não compreendem corretamente as tarefas e o caráter de nossa comissão [extraordinária]. Eles concebem a luta conta a contra-revolução em termos da polícia de Estado normal, e é por isso que eles reclamam garantias, tribunais, enquetes, investigações etc. Nós não temos nada em comum com os tribunais militares revolucionários. Nós representamos o terror organizado. Isso deve ser dito com franqueza – o terror é absolutamente necessário nas circunstâncias presentes. Nossa tarefa é lutar contra os inimigos do poder soviético. Nós aterrorizamos os inimigos do poder soviético de maneira a esmagar o crime no seu berço". (Brovkin, op. cit., p. 281). Kautsky cita por sua vez uma declaração assinada por Dzerzhinsky, onde se diz: "(...) a Comissão extraordinária pan-russa declara (...) que ela não fará nenhuma diferença entre os guardas brancos das fileiras das tropas de Krasnov e os guardas brancos dos partidos menchevique e social-revolucionário de esquerda. A férula da Comissão extraordinária atingirá com o mesmo rigor uns e outros. Os socialistas revolucionários de esquerda e os mencheviques por nós aprisionados serão [considerados como] reféns, e o seu destino dependerá do comportamento dos dois partidos" (extraído do Izvestia do Comitê executivo central pan-russo, n.o 59, de 1.o de março de 1919, citado por Kautsky, (TC (K), Dietz, p. 333, fr. , p: 224). Em Da democracia ao trabalho escravo, o livro que ele publicará em 1920, réplica a Terrorismo e comunismo de Trotsky, que comentarei mais adiante, Kautsky escrevera a propósito do terrorismo: "(...) mesmo aquele que crê no levante armado como salvação terá escrúpulos [em admitir] que o terror é a continuação do levante, do qual ele não se distingue. O levante vai contra as tropas de um governo. Gente armada luta contra gente armada. O terror assassina [gente| sem defesa. Ele deve ser posto no mesmo plano da execução de prisioneiros na guerra. Ou isto é também 'somente uma continuação direta da guerra"? Sou suficientemente [um] quaker hipócrita para responder de maneira decisiva pela negativa a esta questão" (DDTE (K), p. 124).

Passamos pois a um novo grau. Depois de ter citado um texto da Situação das classes trabalhadoras na Inglaterra de Engels, no qual se trata do "rancor" do proletariado, e no qual Engels afirma que o rancor é um estímulo importante no início do movimento operário mas que, em seguida, este o ultrapassa, pois o movimento operário representa a causa da humanidade e não só a dos operarios, Kautsky escreve: "O bolchevismo superou seus adversários socialistas elevando a selvageria e a brutalidade 'do início do movimento operário' à ordem de força motriz da revolução" (TC (K), fr. p. 191). Assim, ele transformou "a luta socialista pela emancipação e pela reedificação da humanidade inteira em uma explosão de ódio e de vingança dirigida contra indivíduos, e expondo estes últimos aos piores tratamentos e às piores torturas, longe de elevar o proletariado a um grau moral superior, o bolchevismo, pelo contrário, o desmoralizou" (idem, p. 191). A esse respeito, poder-se-ia lembrar o que diz Victor Serge em Memórias de um Revolucionário sobre os velhos ressentimentos que se manifestaram de maneira brutal. Vê-se também a brutalidade do ressentimento na maneira pela qual Zinoviev comenta a miséria da porção que cabe aos burgueses segundo as regras do racionamento pós-revolucionário.25 25 Ver Brovkin, op. cit., p. 193. E Kautsky conclui: "Esses marxistas, esses revolucionários e inovadores ousados não souberam encontrar nada [como meio de inocular a moral comunista às massas] além dos meios lamentáveis com a ajuda dos quais a velha sociedade havia procurado se desembaraçar dos frutos dos seus próprios pecados: o tribunal, a prisão, a pena de morte. Por outras palavras, o terror" (TC (K), p. 192).26 26 "Os tribunais revolucionários e as comissões extraordinárias se tornaram armas do terror. Tanto uns como os outros se impuseram violentamente, sem contar as expedições de represálias militares cujas vítimas são numerosas. O número de vítimas das comissões extraordinárias será sempre difícil de estabelecer. Houve milhares delas. O cálculo mais moderado dá o número de 6.000. Outros testemunhos dão o dobro, mesmo o triplo desse número. É preciso acrescentar inúmeras vítimas arbitrariamente aprisionadas, maltratadas ou torturadas até a morte" (idem, p. 220, 221).

Além da denúncia do terrorismo, Kautsky procede a uma análise das relações sociais na Rússia bolchevista. De resto, os dois temas estão ligados. O "rancor" em relação aos ex-privilegiados (ci-devants) tem o seu lado objetivo na nova hierarquia social, que é em parte, mas não inteiramente, uma inversão da antiga. Será necessário extrair longas passagens dessa análise importante: "Basta analisar as formas sociais que se desenvolveram fatalmente sob o regime bolchevista a partir do momento em que se aplicaram métodos bolchevistas (...). Encontramos na atual Rússia bolchevista urna classe camponesa com base numa propriedade privada não limitada e de uma produção doméstica fechada. Esta classe leva urna existencia à parte, sem ligação orgânica com a indústria urbana (...) Ao lado desse sistema pequeno-burguês do campo se eleva na cidade uma sociedade que pretende ser socialista. Ela quis abolir as diferenças de classe. Começou por rebaixar e destruir as classes superiores e chegou a uma nova sociedade de classes. Esta contêm três classes. A classe inferior compreende os antigos 'burgueses' capitalistas, pequeno-burgueses intelectuais, desde que não tenham espírito de oposição. Privados de todos os direitos políticos, despojados de todos os meios de existência, são de tempos em tempos obrigados a fazer os trabalhos mais repugnantes para receber em troca rações de alimento as mais lamentavelmente insuficientes, ou antes verdadeiras rações de fome. O inferno em que vivem esses hi lotas só pode ser comparado com os fenômenos mais horrendos que o capitalismo já engendrou. A criação desse inferno é o ato de violência próprio ao bolchevismo, seu primeiro passo importante em direção à emancipação da humanidade. A classe média está formada por operários assalariados. Eles são politicamente privilegiados. Seguindo a letra da Constituição só eles dispõem, nas cidades, de direitos eleitorais, da liberdade de imprensa e de coalizão (...) ou antes deveria ser assim (...) Para salvar a industria [dado o nível da grande massa dos assalariados russos] foi necessário superpor aos operários uma nova classe de funcionários que se arrogou cada vez mais o poder real e tornou ilusórias as liberdades dos operários. Naturalmente, isto não aconteceu sem resistência por parte dos operários (...) O absolutismo do tchine (graduado) da antiga burocracia reaparece sob um novo invólucro, mas (...) de modo algum melhorado" (TC (K), p. 210-212).

Kautsky tentará dar uma caracterização geral da nova sociedade russa, fazendo ao mesmo tempo o balanço dos seus inconvenientes em relação à sociedade anterior a Outubro: "Só a grande propriedade fundiária e feudal desapareceu. Para isso, as condições necessárias estavam amadurecidas na Rússia (...) O capitalismo privado (...) reveste as formas mais lamentáveis e abjetas do comércio clandestino e da especulação financeira. O capitalismo industrial de privado que era tornou-se capitalismo de Estado. Outrora, a burocracia do Estado e a do capital privado mantinham, uma em relação à outra, uma atitude crítica, e mesmo hostil. O operário tinha então alguma possibilidade de ter ganho de causa, ora contra uma ora contra outra. Hoje a burocracia do Estado e a do capital estão unificadas: este é o resultado final da grande transformação socialista introduzida pelo bolchevismo. Isto significa o despotismo mais opressor que a Rússia já conheceu" (TC (K), p. 213).

Essa análise da estrutura das classes está articulada com a crítica da "democracia soviética" que Kautsky havia começado a fazer em A ditadura do proletariado. Assim, a análise da sociedade civil se prolonga na dos fundamentos do poder de Estado na Rússia bolchevique: "O poder absoluto dos conselhos operários se desenvolveu assim em um poder absoluto de uma nova burocracia, em parte saída desses conselhos, em parte nomeada por eles, e em parte imposta. Esta burocracia representa a [classe] superior das três classes urbanas, a nova classe dominante que se constitui sob a égide dos antigos idealistas e militantes comunistas" (idem, p. 212). "A substituição da democracia pela.dominação arbitrária dos conselhos operários que deviam expropriar os expropriadores levou assim à dominação arbitrária de uma nova burocracia e reduziu a democracia a letra morta, mesmo para os operários, pois estes caem na maior servidão econômica que já suportaram. Ao mesmo tempo, a perda da sua liberdade não é absolutamente compensada por um acréscimo de bem-estar" (TC (K), tr. fr., p. 213).

Tudo isto só foi possível através das medidas repressivas mais violentas, tomadas não só contra os partidos burgueses, mas igualmente contra os partidos socialistas: "(...) a severidade com a qual os bolcheviques amordaçam a imprensa está dirigida não só contra a imprensa burguesa, mas contra toda imprensa que não jura pelo regime existente:" (idem, p. 187). "O pecado mortal do bolchevismo é o esmagamento da democracia por um poder ditatorial que não se deixa conceber senão como um regime absoluto de violência de um indivíduo ou de uma pequena organização solidamente construída" (idem, p. 228).

O quadro converge com um diagnóstico que não atinge apenas os métodos do bolchevismo: "(...) a própria finalidade do terror bolchevista não é sem reproche. Sua tarefa imediata é manter no poder o aparelho de dominação militar e burocrática que os bolcheviques criaram" (idem, p. 221). Os bolcheviques estabeleceram "sua própria ditadura sob o letreiro da ditadura do proletariado" (idem, p. 220). Eis ai o que escrevia o "renegado Kautsky" em 1919.

Trotsky: Terrorismo e Comunismo

Se Terrorismo e comunismo de Kautsky não é uma réplica ao Renegado Kautsky de Lenin, Terrorismo e Comunismo de Trotsky27 27 Terrorisimis und Kommunismus, 1920, abreviarei por TC (T). Tradução inglesa: Terrorism und Communism, Michigan University Press, 1961. Utilizei ainda duas traduções francesas, uma editada pela Promethée, e outra que é de A. Rosmer (salvo indicação expressa, a tradução francesa utilizada é a primeira). O posfácio à introdução tem a data de 29 de maio de 1.920, e o epílogo a de 12 de junho do mesmo ano. é explicitamente uma resposta ao livro homônimo de Kautsky.

A novidade desta nova fase da discussão é que do lado bolchevique se abandona toda veleidade democrática. Não se procura mais legitimar o bolchevismo como representando a política de uma '"maioria", trate-se da "maioria" do "povo" ou mesmo da maioria do proletariado. Pelo contrário, afirmar-se com todas as letras o direito do partido de vanguarda – seja ele majoritário ou minoritário – de "representar" o proletariado. Isto se explica sem dúvida pela dificuldade crescente que encontra o bolchevismo em se apresentar como partido majoritário. Pode ser que a mudança tenha alguma coisa a ver também, mas de um modo secundário, com as diferenças entre Lenin e Trotsky; no essencial eles estão de acordo. Porém em 1920 Trotsky professa uma espécie de ultra-bolchevismo28 28 A expressão é utilizada por Michael Lowy na parte final do seu livro La théorie de la révolution chez le jeune Marx, Paris, Maspero, 1970. Toda essa parte final do livro foi omitida na edição brasileira, o que a meu ver se justifica pelas razões indicadas pelo autor. O reverso da moeda é o desaparecimento de importante análise crítica, em estilo luxemburguista, do Trotsky do inicio dos anos 20. , e sobretudo, mais do que Lenin, aprecia definir a sua posição – por "brutal" que ela seja – com toda a clareza, o que, diga-se de passagem, não é em si mesmo (ou não é suficientemente) uma virtude.

"O papel excepcional29 29 O texto inglês diz "exclusivo". que desempenha o Partido Comunista nas condições de uma revolução proletária vitoriosa – escreve Trotsky – é bem compreensível. A questão e a da ditadura de uma classe. Na composição desta classe entram elementos variados, estados de espírito heterogêneos, diferentes níveis de desenvolvimento. Mas a ditadura pressupõe unidade de vontade, unidade de direção, unidade de ação. Por que outra via poderia ela se realizar? A dominação revolucionária do proletariado pressupõe no interior do próprio proletariado a supremacia30 30 O texto ingles diz "dominação". de um partido que dispõe de um programa de ação claro, e de uma disciplina interna sem falha" (TC (T), tr. inglesa p. 108 Ir.. fr. p. 118).

Vê-se assim. Da idéia de uma ditadura de classe, Trotsky deduz de certo modo a dominação (ou a "supremacia", mas o contexto não deixa lugar à dúvida) do Partido. O apoio da maioria (no interior não só do "povo" mas mesmo do proletariado) será obtido depois. Os métodos democráticos "retardam" no que se refere ao processo revolucionário. "Se o regime parlamentar –escreve Trotsky – mesmo no período de desenvolvimento 'pacífico' estável era antes um método 'grosseiro' de descobrir a opinião no país, na época da tempestade revolucionária ele perdeu completamente a sua capacidade de acompanhar o curso da luta e o desenvolvimento da consciência revolucionária. (...) O regime soviético, que está ligado da maneira mais estreita, orgânica31 31 O texto inglês diz "direta". , mais honesta, com a maioria do povo que trabalha, encontra a sua significação não de maneira estática, refletindo estáticamente uma maioria, mas a criando de maneira dinâmica. Tendo entrado na via da ditadura revolucionária, a classe operária russa significou através disso mesmo que, no período de transição, ela não edifica a sua política sobre a arte inconstante de rivalizar com os partidos camaleões, na caça aos votos camponeses, mas sobre a participação efetiva das massas camponesas, lado a lado com o proletariado, no trabalho de dirigir o país em função dos verdadeiros interesses das massas trabalhadoras. Esta democracia é muito mais profunda do que o parlamentarismo" (TC (T), inglesa, p. 45, fr. ed. Prométhée, p. 55).

O que significa: o método parlamentar é grosseiro. Há um outro método mais rigoroso, o que dá o poder a minorias que "devem" se tornar maiorias... Tudo isto em nome dos "verdadeiros interesses da classe operária". Não haveria aí "substituismo"? Trotsky responde: "Acusaram-nos mais de uma vez de ter substituído a ditadura dos sovietes pela ditadura do nosso partido. E entretanto pode-se dizer com completa justiça que a ditadura dos sovietes só se tornou possível graças à ditadura do partido. É graças à clareza de sua visão teórica e à sua forte organização revolucionária que o partido assegurou aos sovietes a.possibilidade de se transformar de informes parlamentos operários em um aparelho da dominação do trabalho. Nessa 'substituição' do poder da classe pelo poder do partido não há nada de acidental, e na realidade não há lá nenhuma substituição. Os. comunistas exprimem os interesses fundamentais da classe operária. É totalmente natural que no período em que a história põe na ordem do dia esses interesses em toda a sua extensão os comunistas se tornem os representantes reconhecidos da classe operária na sua totalidade" (TC (T), tr. inglesa p. 109, tr. IV. p. 119).

Esses textos são de uma clareza extraordinária. Parte-se da idéia de que os "comunistas [e somente os comunistas, RF] exprimem os interesses da classe operária". Uma vez admitido esse axioma, que seria evidente em si mesmo e que, como todo axioma, não exige prova, conclui-se o resto. Como exprime os interesses da classe operária o poder comunista não tem necessidade de uma outra legitimação, sobretudo não tem necessidade da legitimação que viria de um sufrágio qualquer. Pelo contrário, a questão se inverte. Se quisermos que a maioria (do povo ou pelo menos do proletariado) esteja com o partido que exprime os verdadeiros interesses do proletariado, é necessário que esse partido esteja no governo e de preferência esteja só ele no governo. Portanto, a ditadura do Partido é a ditadura da classe, o "substituismo" é uma lenda democrática. Q.E.D.

O texto de Trotsky é canônico. Qualquer que tenha sido o seu destino, poder-se-ia dizer que ele, Trotsky, forneceu o modelo para todas as justificações futuras da ditadura burocrática.

A esse propósito, seria preciso fazer duas ordens de considerações. Primeiro sobre a relação entre esta posição e a política de Marx. Em grandes linhas, seria bem difícil querer justificar esta posição a partir de Marx/mesmo se certos textos, sobretudo a "Moção da direção central da Liga dos Comunistas" (1850) poderia fornecer alguns elementos de justificação. Leonard Schapiro (op. cit., p. 44) observa o interesse de Lenin pela carta de Marx a Engels de 16 de abril de 185632 32 E não de 1865, como se lê na tradução francesa do livro de Schapiro. A carta, escrita numa mistura de alemão, inglês e francês, evoca a situação dos jacobinos alemães de Mogúncia, os quais, após a ocupação da cidade pelas tropas napoleônicas, proclamaram a república e declararam a anexação dela a França, mas que por falta de apoio popular foram esmagados pelos prussianos em l793:"Dependerá do curso das coisas em Berlim [saber] se nós não seremos obrigados a chegar a uma posição semelhanie à dos "clubistas" de Mainz, na antiga revolução. Tudo na Alemanha vai depender da possibilidade de fornecer apoio à revolução proletária através de algum tipo de segunda edição da guerra dos camponeses. Então, a coisa será excelente" (Werke, Berlin, Dietz, vol. 29, p. 47). , onde se trata da questão da possibilidade, para a Alemanha, de que a revolução proletária se apoie "sobre uma nova versão da Jacquerie". Lenin se apoiava nesse carta para afirmar que um partido bem organizado devia tentar tomar o poder imediatamente.33 33 Nos textos oficiais da Terceira Internacional encontrar-se-á a idéia de que um governo revolucionario não tem necessidade de contar imediatamente com o apoio da maioria dos explorados: "(...) a idéia habitual dos velhos partidos e dos velhos lideres da Segunda Internacional, de que a maioria dos trabalhadores e dos explorados pode, em regime capitalista, sob o jugo escravista da burguesia (...) adquirir urna plena consciência socialista, a firmeza socialista, convicções e caráter; essa idéia, nós dizemos, engana os trabalhadores. Na realidade, é só depois que a vanguarda proletária sustentada pela única classe revolucionária ou pela sua maioria, tiver derrubado os exploradores, os tiver quebrado, houver libertado os explorados das suas servidões (...) é só então e ao preço da mais dura guerra civil, que a educação, a instrução, a organização das mais amplas massas em torno do proletariado, sob a sua influência e a sua direção, poderá ser feita, e que será possível vencer o egoísmo delas, seus vícios, suas fraquezas, sua falta de coesão, alimentados pelo regime da propriedade privada, e transformá-las em uma vasta e livre associação de trabalhadores livres" ("Les taches principales de I'Internationale Communiste" em Theses, conditions et status de I'Internationale Communiste, texto oficial votado no segundo Congresso Mundial da I.C., Bibliotèque Communiste Normande, s/d, s/ lugar de publicação, p. 3 e 4). Literalmente, o texto só exclui a necessidade do apoio do conjunto dos explorados. Mas dada a maneira pela qual ele está construído –o sujeito é a vanguarda e não a classe, a tese a refutar é a "dos velhos lideres da Segunda Internacional", os quais, parece, nem sempre insistiram na necessidade de um apoio majoritário mais vasto do que o do proletariado –, ele legitima de fato uma posição "vanguardista". Esta é, de resto, afirmada em outros textos da mesma coletânea, relativos ao exercício do poder revolucionário, em que o partido é posto acima de todas as formas de organização proletária: " (...) o trabalho nos Sovietes, como nos sindicatos de indústria que se tornaram revolucionários deve ser invariável e sistematicamente dirigido pelo partido do proletariado, isto é, pelo partido comunista. Vanguarda organizada da classe operária, o partido comunista responde igualmente às necessidades econômicas, políticas e espirituais do conjunto da classe operária. Ele deve ser a base dos sindicatos e dos Sovietes, assim como de todas as outras formas de organização proletária" (Thèses ..., op. cit., p. 29). Trata-se evidentemente de recusar todo tipo de regime "parlamentar" e "toda ficção de vontade popular" ("Os partidos comunistas e o parlamentarismo", idem, p. 48). Quanto à organização interna dos partidos comunistas, os documentos propõem não só a centralização mais estrita, mas uma disciplina quase ou pura e simplesmente militar: "(...) Os partidos que pertencem à Internacional Comunista devem ser edificados sobre o princípio do centralismo democrático. Na época atual de guerra civil encarniçada o partido comunista não poderá cumprir o seu papel se ele não for organizado da maneira mais centralizada, se nele não for admitida uma disciplina de ferro beirando a disciplina militar e se seu organismo central não for munido de amplos poderes, exercer uma autoridade incontestada, beneficiar da confiança unânime dos militantes" ("Conditions d'admission de partis dans l'I.C", idem, p. 22). Em segundo lugar, seria preciso observar a oposição entre essas teses e as posições anteriores de Trotsky a esse respeito.

Na realidade, esses textos contradizem diretamente – e de maneira consciente, sem dúvida – as teses do jovem Trotsky sobre o "substituismo", tais como elas aparecem sobretudo em Nossas tarefas políticas.34 34 Trotsky, Nos tâches politiques, tradução de D. Fraenkel, Paris, Gonlhier, coleção Mediations, 1971. Nesse livro notável, ao qual voltarei em outro lugar, trata-se em grande parte dos métodos internos ao partido, da relação entre o conjunto do partido e a sua direção. Mas nele se fala também da relação entre o partido e "as massas", e entre o partido e as outras organizações. Embora não de modo imediatamente evidente, o problema interno está ligado aos problemas externos. O jovem Trotsky comenta principalmente um documento dos bolcheviques do Ural. Eis esse documento, citado por Trotsky: "Se a Comuna de Paris de 1871 fracassou – dizem os marxistas do Ural – é porque nela estavam representadas diferentes tendências, porque havia nela diversos representantes, freqüentemente opostos e em contradição (...) houve muitas disputas e pouco ação (...) É preciso dizer, não somente da Rússia, mas do proletariado mundial, que ele deve estar preparado e se preparar para receber uma organização forte e poderosa. A preparação do proletariado para a ditadura é uma tarefa organizacional tão importante que todas as outras devem lhe ser subordinadas" (Nos tâches politiques, p. 208). E eis o comentário de que ele é objeto, por parte do jovem Trotsky: "Em todo caso, os autores desse documento tiveram a coragem de afirmar bem alto que a ditadura do proletariado lhes aparece com os traços da ditadura sobre o proletariado: Não é a classe operária que, por sua ação autônoma, tomou nas mãos o destino da sociedade, mas uma 'organização forte e poderosa' que, reinando sobre o proletariado e através dele sobre a sociedade, assume a passagem ao socialismo" (idem, p. 209). "Para preparar a classe operária para a dominação política é indispensavel desenvolver e cultivar a sua auto-atividade, o hábito de controlar ativamente, em permanência, todo o pessoal executivo da Revolução...Mas para os "jacobinos sociais-democratas", para os intrépidos representantes do substituismo político, a enorme tarefa social e política que é a preparação de uma classe para o poder de Estado é substituída por uma tarefa organizacional-tática: a fabricação de um aparelho de poder" (ib.).35 35 Cf. idem, p. 121 "(...) em política "externa" esses métodos [os do "substituismo" interno, RF] se manifestam nas tentativas de lazer pressão sobre as outras organizações sociais, utilizando a força abstrata dos interesses de classe do proletariado, e não a força real do proletariado consciente dos seus interesses de classe".

Não é isso o que diz o mesmo Trotsky, menos de duas décadas depois. A propósito da aliança com os sociais-revolucionários de esquerda no primeiro semestre de 1918, ele escreve, depois de afirmar que se tratava de uma aliança "tática" na qual os bolcheviques não assumem "riscos excessivos": "Não obstante, o episódio dos SR de esquerda mostra de maneira suficientemente clara que o regime de compromissos, acordos, concessões mútuas (...) não pode durar muito tempo numa época em que as situações se alteram com uma extrema rapidez, e na qual a unidade suprema de ponto de vista é necessária para tornar possível a unidade da ação" (TC) (T), tr. inglesa. 109). A perspectiva é a mesma em relação aos sindicatos: "Tanto quanto a política de coalizão a 'independência' contínua do movimento sindicalista no período da revolução proletária é uma impossibilidade. Os sindicatos tornam-se os órgãos econômicos mais importantes do proletariado no poder. Com isso, eles caem sob a direção do Partido Comunista. Não só as questões de princípio no movimento sindical mas sérios conflitos de organização no seu interior são decididos pelo Comitê Central do nosso Partido" (TC (T), tradução inglesa p. 110).

Trotsky é levado a colocar a questão da garantia de que de fato é o Partido que exprime os interesses do proletariado. A reposta é brutal. "Mas onde está a garantia, nos pedirão certos homens sensatos, de que é justamente o vosso partido que exprime os interesses do desenvolvimento histórico? Destruindo e pondo na ilegalidade outros partidos, vocês impediram que eles entrassem em competição com vocês, e em conseqüência privaram-se [da possibilidade] de testar a vossa linha de ação". Eis a resposta: "Esta idéia é ditada por uma concepção puramente liberal do curso da revolução. Num período no qual todo antagonismo assume um caráter aberto, e a luta política passa rapidamente à guerra civil, o partido dirigente tem materiais suficientes para testar a sua linha de ação, sem que os jornais mencheviques tenham a possibilidade de circular. Noske esmaga os comunistas, mas eles crescem. Nós suprimimos os mencheviques e os SR – e eles desapareceram. Esse critério nos é suficiente. De qualquer modo, nosso problema não é, a cada momento, o de medir estatisticamente o agrupamento das tendências; mas o de assegurar a vitória da nossa tendência. Porque essa tendência é a tendência da ditadura revolucionária" (TC (T), tr. inglesa p. 109). O que esse texto diz é simplesmente falso. Como vimos, os mencheviques não se enfraqueceram. Enquanto havia um mínimo de vida democrática eles pelo contrário se reforçaram, e seu reforço é sem dúvida um dos motivos do agravamento da sua situação. Uma vez esmagados pelas medidas de polícia (medidas sem dúvida mais eficazes do que as que foram tomadas contra os comunistas pelos "socialistas" de Weimar), eles, por assim dizer, desapareceram... Tomar uma "desaparição" como esta como critério para o estabelecer um juízo político, eis algo que é pelo menos estranho.36 36 Poder-se-ia citar nesse contexto um discurso pronunciado por Trotsky no décimo congresso do Partido Comunista (o discurso é de 14 de março de 1921). Trata-se de responder à "oposição operária", que propõe uma certa autonomia das bases operárias (segundo Schapiro, op. cit., tratava-se de qualquer maneira de uma democratização muito limitada, no sentido de que ela tocariam essencialmente nas relações entre a base e a direção do Partido): "(...) a oposição operária veio com slogans perigosos, no sentido de que eles transformaram em fetiche os princípios democráticos. Eles puseram acima do Partido os direitos dos operários de eleger representantes para as organizações de operários, como se o paitido não tivesse o direito de assegurar a sua ditadura mesmo no caso em que esta ditadura se choca de modo temporário com o estado de espírito cambiante da democracia operária. Em Petrogrado o camarada Zinoviev declarou, com algum exagero, que se permitirmos a reunião do "Congresso dos Produtores" de Schlyapnykov, 99 % será constituído por gente sem partido, por SR e por mencheviques. Isto é um exagero monstruoso e deve ser imediatamente riscado do registro. O que significa para a ilustração da Internacional que nossa 'democracia dos operários' consiste em 1% que votam pelos outros 99%? Isto é um exagero monstruoso! Mas mesmo se nós reduzirmos bastante os 99% de Zinoviev, sobrará ainda um número substancial [de pessoas insatisfeitas, RF]. As informações que chegam das províncias mostram que os comunistas locais não dispõem de ajuda para resistir à pressão dos elementos anárquicos (...) É essencial estar consciente do direito de nascimento revolucionário-histórico, que tem o Partido, de sustentar a sua ditadura, sem olhar para as vacilações temporárias das massas amorfas, sem olhar mesmo para as vacilações temporárias da classe operária. Esta consciência é essencial à nossa coesão; sem isto, o Partido corre o perigo de morrer em cada virada" (Discurso pronunciado por Trotsky no dia 14 de março de 1921, por ocasião do décimo Congresso do Partido. Citado por James Bunyan, The Origins of Forced Labor in the Soviet State 1917-1921. Documents and Materials. Baltimore, John Hopkins University Press, 1967, p. 251 (em cooperaçã o com o Hoover Instituí on War, Revolution and Peace, Stanford, Califórnia). Leíamos ainda uma passagem: "Em nenhum momento a ditadura se baseia no princípio formal da democracia dos operários. Sem dúvida a democracia operária é o único método pelo qual as massas podem ser introduzidas cada vez mais na luta política [o texto se interrompe, RF]. Isto é um truismo, e estou de acordo que as vezes esse truismo foi esquecido. Isto deve ser corrigido e devemos usar de novos métodos de propaganda, mas com a condição de que o conjunto do partido esteja unido na compreensão de que acima e abaixo (over and above) do aspecto formal está a ditadura do Partido, que salvaguarda os interesses de base da classe operária, mesmo quando os estados de espírito desta classe vacilam de modo temporário. Se a assim chamada oposição operária não entende isto conseqüências severas resultarão provavelmente desse fracasso" (idem, p. 252). "(...) queremos conservar a ditadura do Partido (...) (ib.). "Afirmamos que os interesses econômicos da classe operária estão acima do critério formal da democracia dos operários" (¡b). "É preciso que o nosso partido seja o único partido no país e que toda insatisfação seja introduzida através do partido (...)" (idem, p. 253).

Trotsky não toma somente a defesa da ditadura do partido mas também a defesa do terrorismo (a justificação do terrorismo não está propriamente presente no Renegado Kautsky de Lenin). "Será que ainda é necessário justificar o "terrorismo revolucionário?", pergunta-se Trotsky no prefácio seu livro (TC (T), tradução inglesa p. 9). A justificação do terrorismo funda-se num "dado de fato", que contém implicitamente um espécie de elogio – ambíguo – dos adversários, a saber, da direita extrema. O que diz Trotsky é que, para a esquerda como para a direita, a democracia não existe mais no mundo (e implicitamente, que é " racional" que seja assim): "(...) é em vão que buscaremos hoje no mundo inteiro um regime que, para se manter, não recorra a uma terrível repressão de massa. É que as forças das classes inimigas, rasgado o envoltório de todos os direitos inclusive os da democracia,37 37 A tradução francesa diz "des droits démocratiques". tendem a determinar suas novas relações através de uma luta impiedosa" (TC (K), tradução inglesa, p. 15, francesa, p. 24).

Ao longo de todo o seu livro Trotsky opõe a democracia ao que ele chama de "poder do proletariado" (ou alguma coisa análoga), poder que é de fato o do partido bolchevique. Um exemplo: "(...) este é hoje o papel de Kautsky e dos seus discípulos. Eles ensinam o proletariado a não crer em si mesmo, mas a crer que é verdadeira a imagem que lhe envia o espelho deformante da democracia, hoje reduzida a migalhas pela bota do militarismo. Se acreditarmos neles, a política revolucionária do proletariado não deve ser determinada pela situação internacional, pelo desabamento real do capitalismo, pela ruína social que resulta disto, pela necessidade objetiva da dominação da classe operária que clama sua revolta nos escombros esfumaçados da civilização capitalista; nada disto deve determinar a política do partido revolucionário proletário; ela depende unicamente do número de votos que lhe reconhecem, segundo seus sábios cálculos, os escribas do parlamentarismo" (TC (T), tradução inglesa p. 19, tradução fi*. p. 28, 29, Rosmer, p. 44, 45). Trotsky opõe de um lado a crença do proletariado "nele mesmo", a determinação da política revolucionária do proletariado "pela situação internacional" e "a necessidade objetiva da dominação da classe operária nos escombros (...) da civilização capitalista", e de outro "o número de votos" calculados pelos "escribas do parlamentarismo". Qual o valor de uma contraposição como esta? A "dominação da classe operária" se reduz em última instancia, segundo o próprio Trotsky, na dominação do partido comunista, um partido certamente minoritário na Rússia em 1920, e isto mesmo se fizermos abstração dos votos burgueses (ele deve ter sido minoritário mesmo no interior da classe operária). Se "os escribas do parlamentarismo" fazem cálculos dos votos, que tipo de cálculo fazem os bolcheviques? Mas continuemos. "(...) é evidente que se nos propusermos como tarefa a abolição da propriedade individual dos meios de produção, não há outro modo de realizá-la se não a concentração de todos os poderes do Estado nas mãos do proletariado e a instauração durante o período de transição de um regime de exceção (...)" (TC (T), tradução inglesa p. 20, tradução francesa, p. 30). A necessidade de um "regime de exceção" é aqui deduzida do projeto de abolição da propriedade individual dos meios de produção. Em um regime "de transição" como este concentram-se "todos os poderes do Estado nas mãos do proletariado". Que quer dizer aqui "proletariado"? Voltamos à questão posta pelo próprio Trotsky ( mas que ele responde apenas com um apelo dogmático e brutal à situação de fato e à força): com que direito ele identifica a ação do partido comunista e a ação do "proletariado"? A anfibología eclode nos textos seguintes: "O poder exclusivo do proletariado38 38 Tradução inglesa: "the dictatorship of the proletariat". não exclui evidentemente a possibilidade de acordos parciais ou de grandes concessões, principalmente em relação à pequena burguesia e a classe camponesa. Mas o proletariado só pode concluir esses acordos depois de ter se apropriado do aparelho material do poder, de ter assegurado a possibilidade de decidir livremente as concessões a fazer ou a recusar no interesse da causa socialista"39 39 Tradução inglesa: "of the general socialist task". (TC (T), tradução inglesa p. 20, tradução francesa, p. 30). "O proletariado" sempre esconde – e revela – o partido. E essa substituição vai junto com a legitimação do "terrorismo" como método de governo: "Aquele que renuncia por princípio ao terrorismo, isto é, às medidas de intimidação e de repressão em relação à contra-revolução encarniçada e armada, deve também renunciar à dominação política da classe operária, à sua ditadura revolucionária. Quem renuncia à ditadura do proletariado renuncia à revolução social e faz uma cruz sobre o socialismo" (TC (T), tradução fr., p. 33, tradução inglesa p. 23). Simplesmente isto. "O terror vermelho, esta arma empregada contra uma classe destinada a desaparecer [que quer dizer aqui, precisamente, "desaparecer"?, RFj e que não se resigna a isto (...) o terror vermelho precipita a morte da burguesia" (idem, tradução fr. p. 74, tradução inglesa p. 64). Encontramos a mesma ambigüidade – sinistra – no texto seguinte" "Se os poderosos kulaks não foram completamente aniquilados, eles foram profundamente abalados e perderam a confiança em si mesmos" (idem, tradução fr. p. 123, tradução inglesa p. 113). A quinta essência dessas teses é a recusa da democracia em nome de um bem curioso "mecanismo proletário". "Mas a parábola40 40 Tradução inglesa: "path". ideológica do socialismo, que se desenha a despeito de todos os desvios, quedas e mesmo traições, leva inevitavelmente à rejeição da democracia41 41 Tradução inglesa: "to throw democracy aside". e à sua substituição por um mecanismo proletario, desde [o momento em] que a classe operária tem as forças necessárias" (idem, tradução inglesa p. 41, tradução francesa p. 51, Rosmer, p. 74).

A parte final do livro de Trotsky é uma "defesa e ilustração" da militarização do trabalho. Como explica L. Schapiro42 42 Ver Schapiro, op. cit., cap. XIV, p. 212 e seguintes. , a "militarização do trabalho" "não consistia somente em empregar militares para a realização de certas tarefas industriais". Tratava-se de um projeto muito mais ambicioso de mobilização militar do conjunto da população de certas regiões, visando realizar finalidades industriais. Encontra-se em Terrorismo e Comunismo uma justificação desse projeto. Para esse fim, Trotsky faz uma longa citação do discurso que ele havia pronunciado no terceiro congresso pan-russo dos sindicatos, estofando o texto desse discurso com extratos dos relatórios apresentados por ele mesmo ao Congresso pan-russo dos conselhos econômicos e ao nono congresso do partido comunista. Ele escreve: "Se toda forma anterior de sociedade estava baseada na organização do trabalho no interesse da minoria que organizava o aparelho de Estado para a opressão da maioria esmagadora dos trabalhadores, nós fazemos a primeira tentativa na história universal de organizar o trabalho no interesse da maioria que ela mesma trabalha. Entretanto, isto não exclui o elemento de coerção sob todas as formas, das mais suaves às mais rudes" (TC (T), tradução inglesa p. 133, Rosmer, p. 202). Ele acrescenta que "o elemento de coerção" desempenhará durante "um período considerável um papel extremamente importante" (ib.)

Depois de fazer certas considerações sobre a preguiça inerente ao homem etc. ele indica a solução, que já eslava prevista pela Constituição, mas de maneira muito geral: "A única solução para as dificuldades econômicas que é correta tanto do ponto de vista do princípio como do ponto de vista da prática é tratar a população do conjunto do país como um reservatório necessário de força de trabalho – um reservatório quase inesgotável — e em organizar numa ordem rigorosamente estabelecida o recenseamento, a mobilização e a utilização dele" (TC (T), tradução inglesa, p. 125, Rosmer, p. 205). "(...) é indispensável impregnar-se de uma vez por todas desta idéia de que o próprio princípio da obrigação do trabalho substituiu de maneira tão radical e sem volta o princípio da contratação voluntária43 43 Tradução inglesa: "free hiring". quanto a socialização dos meios de produção substituiu a propriedade capitalista" (TC (T), tradução inglesa p. 137, Rosmer, p. 208).

Esta proposição provoca sem dúvida "clamores da oposição", mas é preciso vencer essas "superstições". E necessário sobretudo bem distinguir "a forma proletária ou socialista" das formas burguesas da militarização que foram tentadas anteriormente no ocidente ou na Rússia (deve-se tratar da utilização do exército em tarefas industriais). A confusão entre as duas coisas se encontra na base da posição dos mencheviques, esses "Kautskys russos" (idem, p. 138). 'Toda a questão é saber quem exerce uma coerção, contra quem e por que" (TC (T), p. 217, tradução ing. p. 144). "A fundação da sociedade socialista significa a organização dos trabalhadores sobre novas bases, a sua adaptação a estas últimas, sua reeducação com o fim de aumentar constantemente a produtividade. A classe operária, sob a direção da sua vanguarda [numa outra passagem se lê: "na pessoa do seu Partido Comunista, idem, p. 152, Rosmer, p. 229] deve fazer ela próprio a sua reeducação socialista" (TC (T), tradução inglesa p. 146, Rosmer, p. 221).

Parte-se da idéia clássica de que o trabalho assalariado não representa a realização da liberdade. A liberdade do trabalho sob a burguesia é uma ficção. É preciso abolir esta ficção. Mas substituindo-a por que? Por um princípio de liberdade? Não, pelo princípio de "coerção". "Se uma organização sistemática da economia publica é impossível sem a obrigação do trabalho, esta última é entretanto irrealizável sem a abolição da ficção da liberdade do trabalho, sem a sua substituição pelo princípio da obrigação, que completa a realidade da coerção (TC (T), tradução inglesa, p. 142, Rosmer, p. 215). Assim, a ficção da não liberdade é substituída pela realidade da não liberdade. "É – do ponto de vista liberal – uma 'violência' contra a liberdade individual" (idem, tradução inglesa, p. 168, Rosmer, p. 252). Vê-se facilmente porque se fala de "militarização". "Nenhuma organização social, fora o exército, se julgou no direito de subordinar os cidadãos a tal ponto, e de coagi-los a um tal grau pelos objetivos dela, como o Estado da ditadura proletária considera justificado fazê-lo, e o faz [efetivamente]. Só o exército – porque à sua maneira ele decidia das questões de vida ou de morte das nações, estados e classes dominantes – era dotado dos poderes de pedir de cada um uma completa subordinação aos seus problemas e às suas ordens" (idem, tradução inglesa, p. 141, Rosmer, p. 213, 214). O caminho da liberdade é nesse sentido o caminho da escravidão. "Na realidade, sob o socialismo, não haverá o próprio aparelho de coerção, isto é o Estado: ele se fundirá inteiramente em uma comuna de produção e consumo. Não obstante, o caminho do socialismo passa por um período de intensificação a mais alta possível do principio do Estado. (...) Do mesmo modo que o lampião antes de se apagar, brilha com uma flama mais viva, o Estado, antes de desaparecer, reveste a forma da ditadura do proletariado, do governo mais impiedoso que existe, que envolve de maneira autoritaria a vida de todos os cidadãos" ( idem, tradução inglesa p. 170, Rosmer, p. 254). Eis a que está reduzida "a poesia do futuro" de que falava Marx... Os que não estão convencidos pela imagem do lampião que se acende ao máximo para se extinguir (e se por acaso, ele se acendesse... para se acender) perdem-se em "analogias"44 44 Rosmer: "banalités". democráticas e em "abstrações socialistas" (idem, tradução inglesa p. 170, Rosmer, p. 255).

Quando o menchevique Abramovitch evoca "o escravo egípcio" (idem, tradução inglesa p. 171, Rosmer, p. 255), Trotsky responde que "a coerção é aplicada por um governo operário e camponês em nome dos interesses das massas trabalhadoras" (idem, tradução inglesa, p. 171, Rosmer, p. 255). E ele nos assegura: "Quanto mais avançarmos, mais fácil será a tarefa, mais livre se sentirá todo cidadão, mais imperceptível será a coerção do Estado proletário" (idem, tradução inglesa, p. 175, Rosmer, p. 262). O que permitirá talvez a legalização dos mencheviques "admitindo que nessa época ainda haja mencheviques" (ib). E Trotsky faz valer como argumento a superioridade numérica dos bolcheviques presentes, como se esta superioridade tivesse sido obtida através de uma verdadeira consulta democrática, e não fosse o resultado da aplicação de métodos policiais de governo. É preciso citar o seguinte texto particularmente terrível, em que o opressor legitima a opressão pelo fato de que ela tornou impossível a expressão e a representação do oprimido. Nele, de fato, a opressão se justifica pela opressão, mas interpolando o fantasma de uma escolha pretensamente livre: "Não é ao mesmo tempo monstruoso e ridículo ouvir nesse Congresso em que estão reunidos 1500 representantes da classe operária russa, em que os mencheviques só figuram na proporção de 5%, enquanto os comunistas figuram numa proporção de 9/10 da assembléia [mas em que condições foram eleitos os delegados? — RFJ, não é monstruoso e ridículo ouvir Abramovitch nos aconselhar a "não nos entusiasmar por semelhantes métodos, enquanto uma pequena minoria isolada substitui o povo". Todo o povo, diz o representante dos mencheviques, não queremos tutores da massa trabalhadora... (...) Mas olhem pois essa sala: eis aqui a classe. [Trotsky enxerga a "classe" na representação de uma minoria cuidadosamente selecionada e transformada em maioria – RFJ A classe operária está diante de nós (...) e são vocês, pequeno punhado de mencheviques [que puderam ter acesso à sala – RFJ que tentam convencer com argumentos pequeno-burgueses [defender a democracia, no caso aliás uma democracia revolucionária, não tem nada de pequeno-burguês, o futuro o mostraria à saciedade – RF]. São vocês que querem ser os tutores desta classe (...) mas ela os rejeitou [falso, não foi a "classe" mas uma outra "força" que os "rejeitou" – RF] desejando avançar no seu próprio caminho" (idem, tradução inglesa, p. 175, Rosmer, p. 262-263). O que se pode dizer de um texto como este senão que ele é moralmente ignóbil, e que, politicamente, ele exprime a ideologia de um poder aulocrático e virtualmente totalitário?

Kautsky: Da democracia à escravidão de Estado 45 45 Von der Democratic zur Staats-Sklaverei. Eine Auseinandersetzung mit Trotsky. Berlim, Verlaggenossenschaft Freiheit, 1921. Abrevio por DSS (K). O livro não está traduzido nem em francês nem em inglês.

No último livro que examinarei aqui 46 46 Nessa primeira versão do presente texto omito a análise de Der Bolclievismus in der Sackgasse, Berlim, Dietz, 1930 (traduçã o francesa Le bolclievisme dans limpasse, editado pelas Presses Universitaires de France em 1981, sob a direção de H. Weber), livro com o qual deveria terminar a discussão da polêmica entre Kautsky e os bolcheviques. reencontramos a crítica da "representação" , mas igualmente uma análise mais geral do bolchevismo, a qual relaciona o bolchevismo dos anos 20 com o do início do século. Kautsky retoma também a questão da guerra. Porém no centro do texto está a crítica da militarização do trabalho.

Vimos que no Renegado Kautsky Lenin tentava ainda dar uma legitimação à ditadura em termos de "maiorias": o partido bolchevique teria a maioria entre aqueles que votam para os Sovietes. Trotsky havia abandonado esse escrúpulos, mesmo se ele utiliza esse argumento, de maneira pouco sólida como vimos, nas suas invectivas contra os mencheviques a propósito da militarização do trabalho. Em geral, já vimos, Trotsky prega "a autonomia" política do Partido , mas reconhecendo, ao mesmo tempo nesse último ( sem melhores explicações) a vanguarda do proletariado. Kautsky tira as conseqüências: "Os Bukharin, Lenin, Trotsky não ficam atrás de um Bourbon, um Habsburgo, de um Hohenzolern, na sua ligação tenaz com a sua onipotência. Não há grande diferença, se eles derivam a soberania da graça de Deus ou da graça do proletariado. Porque esse proletariado que deve lhes ter transferido para sempre a ditadura é uma grandeza tão fictícia como o deus cuja representação na terra as referidas dinastias assumiram" (VDSS (K), p. 80). Em outras palavras, o bolchevismo não conseguiu justificar o papel de representante do proletariado, que ele se atribui. A ligação entre representante e representado é tão fictícia nesse caso como no das monarquias de direito divino. Trotsky pode falar do Estado dele (proletariado) do Partido Comunista dele (proletariado). 'Trotsky se engana quando pretende que o Estado socialista possui internamente uma força mágica que concilia o proletariado com o trabalho forçado. O proletariado se eleva contra todo tipo de escravidão, |e) também contra a escravidão de Estado, sem levar em consideração se. o intendente dos escravos brande o seu chicote em nome dos escravos ou em nome do proletariado" (idem, p. 122).47 47 "Uma nuance, de fato! Toda baixeza se transforma numa façanha majestosa quando um comunista a pratica. Toda bestial idade é permitida, quando ela é executada em nome do proletariado. Assim, os Conquistadores espanhóis praticavam também atos sangrentos, na América do Sul, em nome de Deus" (idem, p. 125). E "se o bolchevismo representa na Rússia uma ditadura sobre o proletariado, ele é na Internacional uma conjuração contra o proletariado" (idem, p. 70). E aqui Kautsky acentua a ruptura que representa o bolchevismo em relação à idéia marxista de autodeterminação do proletariado. "A divisa da primeira e da segunda Internacional, [segundo a qual] a. libertação da classe operária só pode ser obra da própria classe operária, é plenamente negada pela prática da terceira Internacional, levada avante a partir do princípio segundo o qual a libertação da classe operária mundial só pode resultar da ditadura do CC do PC da Russia: (idem, p. 70, 71).

Kautsky remete à figura histórica do bolchevismo para criticar a figura que ele toma após a revolução. "Uma nova burocracia se instalou no Estado, inteiramente sob o modelo que Lenin havia instituído em 1904 para a organização do Partido. Se conforme este modelo as autoridades centrais do Partido deviam vigiar, dirigir e determinar todas as expressões de vida dos camaradas do Partido e do movimento operária em geral a nova burocracia devia vigiar, dirigir e determinar todas as expressões de vida do conjunto da população, não só na vida do Estado mas também no processo de produção e de circulação, mesmo toda a vida social, todo pensamento e todo sentimento das massas" (idem, p. 69). Se, segundo a Bíblia, a simples queda de um pardal depende da vontade de Deus, nem "um prego pode ser posto num muro" sem o assentimento da "onipotente e omnisciente burocracia soviética" (idem).

Kautsky serve-se nesse contexto da crítica luxemburgista do bolchevismo, sem se deter nas diferenças que o separam das posições de Rosa Luxemburg (ver idem, p. 70). Ele se refere a ela a propósito da crítica luxemburguista a Um passo avante e dois atrás de Lenin, mas sobretudo utiliza um "lugar" crítico importante do qual Luxemburg se havia servido. Diz-se a propósito do terror – observa Kautsky – que "jamais as revoluções foram feitas com água de rosa" (idem, p. 71, 72). Comentário: "(...) se o regime bolchevista de sangue e de ferro, de fome e de medo, tivesse dado um só passo adiante no caminho de uma (...) condição social mais elevada, poderíamos, deveríamos, nos acomodar a ele, como a uma operação, dolorosa sem dúvida, mas que [seria] a única capaz de dar saúde e força ao paciente; mas infelizmente o procedimento bolchevique pertence a esse 'tratamento cavalar' que, no final, significa o seguinte: operação brilhantemente bem sucedida, paciente morto" (idem, p. 72).

Mas o assunto central do livro, já disse, é a crítica da militarização do trabalho proposta por Trotsky. Na sua justificação da militarização do trabalho Trotsky serve-se primeiro do argumento geral da exigência de trabalho para todos. Kautsky responde: "A palavra [de ordem] 'quem não trabalha, não come' não diz de forma alguma quem não trabalha lá onde ordena o Ministro da Guerra não deve comer, e diz menos ainda aquele que não executa tal trabalho não só perderá suas rações de meios de vida, mas será [também] remetido ao código penal militar para que se mantenha a disciplina" (idem). Trotsky escreveu (é Kautsky que o cita) que "a classe operária, sob a direção da sua vanguarda, deve se reeducar a si mesma na base do socialismo. Quem não compreendeu isto não compreendeu nem a tábua de multiplicação da construção socialista". Kautsky comenta: "A auto-educação através do 'trabalho forçado' executado pela vanguarda, essa tábua de multiplicação do socialismo, eu a compreendo tanto quanto a tábua de multiplicação das feiticeiras no Fausto de Goethe". Trotsky declara que para essa auto-educação os bolcheviques não precisam "nem de lendas de padres, nem de lendas liberais, nem de lendas kautskianas". Esta estranha "auto-educação" é explicada por Trotsky da seguinte maneira: "Para nós a execução da obrigação do trabalho só é pensável pela mobilização sobretudo das forças de trabalho camponesas sob a direção dos operários avançados". Kautsky observa: "Portanto, servidão para os camponeses e transformação dos operários 'avançados' em intendentes de escravos. Uma fina educação para uns e outros" (idem, p. 89).

Kautsky não acredita que os operários do Ocidente possam aceitar tais limitações da liberdade (De imediato, mas não a longo prazo, o julgamento de Kautsky se revelou, infelizmente, otimista demais). Ele faz questão de desmascarar a anfibología que consiste em denunciar pura e simplesmente as conquistas que são sem dúvida criticáveis, mas somente enquanto elas são insuficientes. "Diga-se a um operário da Europa ocidental que numa comunidade socialista as autoridades recebem o poder de arrancar da família cada operário do qual ela tem necessidade, o poder de metê-lo numa expedição militar, de transferi-lo administrativamente pelo tempo que se quiser, e ter-se-á a experiência de uma recusa dessa forma de socialismo moscovita, [recusa] à qual não deve faltar nada em matéria de clareza" (idem, p. 105). Quanto ao estatuto das liberdades: "Sem dúvida, liberdade de circulação e de domicílio, liberdade de escolher a sua profissão e o seu serviço são liberdades 'liberais', assim como a liberdade de imprensa e de reunião etc. Mas isto não quer dizer que os operários renunciam a essas liberdades, mas que elas não lhes são suficientes, [isto quer dizer] que eles pedem ainda liberdades maiores à sua comunidade socialista" (idem, p. 105). A tentativa de justificar o trabalho forçado é uma boa prova do fracasso da experiência iniciada: "O trabalho forçado não significa [uma] condição indispensável ao socialismo, mas a confissão do desabamento da forma no qual se queria realizá-lo" (Idem, p. 115).

Da democracia ao trabalho escravo tem o interesse de voltar ao problema da guerra e da revolução. Com a hegemonia da leitura bolchevique do marxismo no século XX, a posição de Lenin a propósito da guerra – o derrotismo revolucionário – tornou-se uma espécie de modelo de intransigência revolucionária. Kautsky tem o mérito de pô-la em discussão: "Nos estados vitoriosos a guerra não tornou os operários revolucionários, mas ébrios da vitória. Quase por todo lado, esta (...) enfraqueceu, no primeiro ano depois da guerra, o movimento socialista. Nos Estados dos vencidos a derrota dissolveu os exércitos, e com isto ajudou provisoriamente o proletariado [a chegar] ao poder). Mas, ao mesmo tempo, a guerra o dividiu em frações inimigas, degradou moral, intelectual e fisicamente várias das suas camadas, aumentou ao máximo a criminalidade e a crueldade, a fé cega na violência, enchendo as cabeças com as ilusões mais desprovidas de sentido. Assim o proletariado não pode em lugar nenhum guardar as posições de poder [que ele havia] ganho, e menos do que tudo na Rússia, onde logo ele teve de remetê-lo a urna nova burocracia e a um novo exército. Na realidade, considerar a guerra como algo que educa para o socialismo é uma idéia digna de um Ministro da Guerra, não de um socialista" (id, p. 29). Não farei aqui uma discussão do derrotismo revolucionário de Lenin, mas seria bom lembrar qüe Luxemburg, Trotsky e Martov, sendo contrários à aprovação dos créditos de guerra, tinham entretanto posições diferentes das de Lenin. O principal argumento –há outros – que se pode opor ao derrotismo revolucionário é na realidade o que Kautsky emprega: a vitória se torna mais provável, mas é uma vitória frágil e cheia de perigos.

Kautsky ataca em particular dois aspectos da violência bolchevique: seu caráter terrorista, e o fato de que ela também atinge os socialistas. Aceitar o caráter inevitável da revolução violenta (Kautsky não o aceita), não significa entretanto o mesmo que aceitar o terrorismo. Por outro lado, quaisquer que sejam os seus métodos, o bolchevismo não atinge só os "inimigos de classe": "O bolchevismo (...) pregou desde o início a liquidação (Vernichtung) de todos os outros partidos socialistas por todos os meios, calúnias e metralhadoras, conforme a situação" (idem, p. 127). [Trotsky] fala somente da execução de 'proprietários fundiários, capitalistas, generais, que se dispuseram a restabelecer a ordem capitalista. Sobre a execução de socialistas e de proletários, que desejavam o socialismo talvez mais ardentemente do que o Trotsky de hoje, ele não diz nada" (idem, p. 125).

Assim, o poder bolchevique não aparece como uma ditadura do proletariado, nem mesmo como uma ditadura revolucionária. Tem-se lá uma ditadura reacionária sui generis, que deve ser condenada pelos socialistas, tanto por razões morais como por razões políticas. "Na realidade, não encontramos precisamente, na Rússia, nenhum ditadura da cidade sobre o campo, mas uma ditadura que domina tanto a cidade como o campo, e oprime os dois" (idem, p. 46). Esta ditadura "não tem igual na história – pelo menos na história do século passado" (idem, p. 46). "O desprezo pela personalidade constitui a característica do bolchevismo. Desdém pela personalidade dos próprios adeptos, que devem ser avaliados simplesmente como instrumentos, como carne de canhão. Desdém, sobretudo, por aqueles que não se deixam utilizar como instrumentos, e por isso mesmo são utilizados sem distinção como inimigos, que se deve dobrar ou quebrar por todos os meios" (idem, p. 123). O bolchevismo tem um caráter reacionário (ele voltará a isso no Bolchevismo no Impasse), e por essa razão a massa do proletariado internacional se afastará dele: "É esse caráter reacionário explícito do bolchevismo que, com sua brutalidade e sua sede de dominação, afasta do bolchevismo círculos cada vez mais amplos de proletários" (idem, p. 127, grifado por Kautsky). "O bolchevismo (...) constituirá uma mancha sombria na história do socialismo. Já atualmente a massa do proletariado internacional se afasta dessa [gente que] assassina irmãos por avidez de poder" (idem, p. 123).

Depois da experiência negativa do bolchevismo, e mesmo se Marx e Engels dava um outro sentido à expressão (ou pelo menos a deixavam mais ou menos indeterminada), será preciso, segundo Kautsky, abandonar a palavra de ordem estratégica de "ditadura do proletariado": "Diante disto, a palavra de ordem de ditadura do proletariado, mesmo se Marx e Engels a aceitaram, deve cair em grande descrédito (...) As palavras de ordem políticas tomam o seu significado muito mais da história do que do dicionário. A história fez da expressão 'ditadura do proletariado' uma característica do bolchevismo, que aos olhos das massas é tão inseparável dele como a caracterização de comunista" (idem, p. 83, 84).

O bolchevismo no impasse de Kautsky fornece de algum modo a síntese desses argumentos. Como indiquei, essa obra será analisada em outra oportunidade. Para os propósitos deste artigo as posições e os argumentos básicos desse debate foram apresentados, restando agora aprofundá-los.

  • 1 Ver H. Draper, Karl Marx's Theory of Revolution, vol. III, The 'dictatorship of the proletariat' (with the assistance of Stephen F. Diamond). New York. Monthly Review, 1986, p. 332, nota. H.
  • 4 Kautsky, Die Diktatur des Proletariats, Wien, I. Band, 1919.
  • Utilizarei a edição da Dietz, Berlim, 1990, que abreviarei por DP (K). (Utilizarei igualmente as traduções francesa, La dictature du prolétariat em Lénine, La Dictature du proletariat et le renégar Kautsky, UGD, 10/18, 1972,
  • inglêsa The dictatorship of proletariat, Michigan, 1964);
  • e Lénine, La dictature du prolétariat et le rénégat Kautsky, que abrevio por RPRK (L) em Lénine, Oeuvres Choisies, vol. 3, Moscou, Éditions du Progrès, 1968.
  • 5Cf Lenin, Oeuvres Choisies, 2, pp. 102, 68, 105 e 125.
  • 8 Esta é também, de fato, o núcleo da posição de H. Draper em Karl Marx's Theory of Revolution, vol. III, citado (ver por exemplo, pp. 305-306) mesmo se ele tem uma atitude muito crí
  • tica em relação a Kautsky. Comentarei em outro lugar o seu The Dictatorship of the Proletariat from Marx to Lenin. New York, Monthly Review Press, 1987.
  • 10 Ver a respeito Trotsky, De la révolution d'octobre à la paix de brest-Litowsk.
  • 12 Rosa Luxemburg, Zur Russisclien Revolution (1918, publicado em 1921) em Gesammelte Werke, vol. 4,Berlim, Dietz, 1974, p. 353-4.
  • 13 Utilizo a tradução francesa de Serge Legran, Paris, Albatros, Les Îles d'or, 1957.
  • 21Termrismus und Kommunisimus. Ein Beitrag zur Natureschichte der Revolution. Berlin. E. Berger, s/d.
  • 24 Se, em certo sentido, o terror havia começado antes (desde o início tinha havido repressão de massa contra os oficiais) a repressão muda de caráter no verão de 1918 (cf. Brovkin, op.cti., p. 280, "a aplicação do terror" muda): "Em junho de 1918, a lista de inimigos do bolchevismo incluía não só ex-policiais, oficiais, proprietários e os "Cadetes" (membros do Partido Constitucional Democrático), mas também camponeses ricos, pequenos comerciantes, e operários que sustentavam os mencheviques e os sociais-revolucionários" (Brovkin, op. cit., p. 280). E Brovkin cita uma entrevista de Dzerzhinskii publicada pela Novaia Zliizu de 19/6/18: "A sociedade e a imprensa não compreendem corretamente as tarefas e o caráter de nossa comissão [extraordinária]. Eles concebem a luta conta a contra-revolução em termos da polícia de Estado normal, e é por isso que eles reclamam garantias, tribunais, enquetes, investigações etc. Nós não temos nada em comum com os tribunais militares revolucionários. Nós representamos o terror organizado. Isso deve ser dito com franqueza o terror é absolutamente necessário nas circunstâncias presentes. Nossa tarefa é lutar contra os inimigos do poder soviético. Nós aterrorizamos os inimigos do poder soviético de maneira a esmagar o crime no seu berço". (Brovkin, op. cit., p. 281). Kautsky cita por sua vez uma declaração assinada por Dzerzhinsky, onde se diz: "(...) a Comissão extraordinária pan-russa declara (...) que ela não fará nenhuma diferença entre os guardas brancos das fileiras das tropas de Krasnov e os guardas brancos dos partidos menchevique e social-revolucionário de esquerda. A férula da Comissão extraordinária atingirá com o mesmo rigor uns e outros. Os socialistas revolucionários de esquerda e os mencheviques por nós aprisionados serão [considerados como] reféns, e o seu destino dependerá do comportamento dos dois partidos" (extraído do Izvestia do Comitê executivo central pan-russo, n.o 59, de 1.o de março de 1919,
  • 27Terrorisimis und Kommunismus, 1920, abreviarei por TC (T). Tradução inglesa: Terrorism und Communism, Michigan University Press, 1961.
  • 28 A expressão é utilizada por Michael Lowy na parte final do seu livro La théorie de la révolution chez le jeune Marx, Paris, Maspero, 1970.
  • 32 E não de 1865, como se lê na tradução francesa do livro de Schapiro. A carta, escrita numa mistura de alemão, inglês e francês, evoca a situação dos jacobinos alemães de Mogúncia, os quais, após a ocupação da cidade pelas tropas napoleônicas, proclamaram a república e declararam a anexação dela a França, mas que por falta de apoio popular foram esmagados pelos prussianos em l793:"Dependerá do curso das coisas em Berlim [saber] se nós não seremos obrigados a chegar a uma posição semelhanie à dos "clubistas" de Mainz, na antiga revolução. Tudo na Alemanha vai depender da possibilidade de fornecer apoio à revolução proletária através de algum tipo de segunda edição da guerra dos camponeses. Então, a coisa será excelente" (Werke, Berlin, Dietz, vol. 29, p. 47).
  • 33 Nos textos oficiais da Terceira Internacional encontrar-se-á a idéia de que um governo revolucionario não tem necessidade de contar imediatamente com o apoio da maioria dos explorados: "(...) a idéia habitual dos velhos partidos e dos velhos lideres da Segunda Internacional, de que a maioria dos trabalhadores e dos explorados pode, em regime capitalista, sob o jugo escravista da burguesia (...) adquirir urna plena consciência socialista, a firmeza socialista, convicções e caráter; essa idéia, nós dizemos, engana os trabalhadores. Na realidade, é só depois que a vanguarda proletária sustentada pela única classe revolucionária ou pela sua maioria, tiver derrubado os exploradores, os tiver quebrado, houver libertado os explorados das suas servidões (...) é só então e ao preço da mais dura guerra civil, que a educação, a instrução, a organização das mais amplas massas em torno do proletariado, sob a sua influência e a sua direção, poderá ser feita, e que será possível vencer o egoísmo delas, seus vícios, suas fraquezas, sua falta de coesão, alimentados pelo regime da propriedade privada, e transformá-las em uma vasta e livre associação de trabalhadores livres" ("Les taches principales de I'Internationale Communiste" em Theses, conditions et status de I'Internationale Communiste, texto oficial votado no segundo Congresso Mundial da I.C., Bibliotèque Communiste Normande, s/d, s/ lugar de publicação, p. 3 e 4).
  • 34 Trotsky, Nos tâches politiques, tradução de D. Fraenkel, Paris, Gonlhier, coleção Mediations, 1971.
  • 36 Poder-se-ia citar nesse contexto um discurso pronunciado por Trotsky no décimo congresso do Partido Comunista (o discurso é de 14 de março de 1921). Trata-se de responder à "oposição operária", que propõe uma certa autonomia das bases operárias (segundo Schapiro, op. cit., tratava-se de qualquer maneira de uma democratização muito limitada, no sentido de que ela tocariam essencialmente nas relações entre a base e a direção do Partido): "(...) a oposição operária veio com slogans perigosos, no sentido de que eles transformaram em fetiche os princípios democráticos. Eles puseram acima do Partido os direitos dos operários de eleger representantes para as organizações de operários, como se o paitido não tivesse o direito de assegurar a sua ditadura mesmo no caso em que esta ditadura se choca de modo temporário com o estado de espírito cambiante da democracia operária. Em Petrogrado o camarada Zinoviev declarou, com algum exagero, que se permitirmos a reunião do "Congresso dos Produtores" de Schlyapnykov, 99 % será constituído por gente sem partido, por SR e por mencheviques. Isto é um exagero monstruoso e deve ser imediatamente riscado do registro. O que significa para a ilustração da Internacional que nossa 'democracia dos operários' consiste em 1% que votam pelos outros 99%? Isto é um exagero monstruoso! Mas mesmo se nós reduzirmos bastante os 99% de Zinoviev, sobrará ainda um número substancial [de pessoas insatisfeitas, RF]. As informações que chegam das províncias mostram que os comunistas locais não dispõem de ajuda para resistir à pressão dos elementos anárquicos (...) É essencial estar consciente do direito de nascimento revolucionário-histórico, que tem o Partido, de sustentar a sua ditadura, sem olhar para as vacilações temporárias das massas amorfas, sem olhar mesmo para as vacilações temporárias da classe operária. Esta consciência é essencial à nossa coesão; sem isto, o Partido corre o perigo de morrer em cada virada" (Discurso pronunciado por Trotsky no dia 14 de março de 1921, por ocasião do décimo Congresso do Partido. Citado por James Bunyan, The Origins of Forced Labor in the Soviet State 1917-1921. Documents and Materials. Baltimore, John Hopkins University Press, 1967, p. 251 (em cooperaçã
  • 45Von der Democratic zur Staats-Sklaverei. Eine Auseinandersetzung mit Trotsky. Berlim, Verlaggenossenschaft Freiheit, 1921.
  • 46 Nessa primeira versão do presente texto omito a análise de Der Bolclievismus in der Sackgasse, Berlim, Dietz, 1930 (traduçã
  • o francesa Le bolclievisme dans limpasse, editado pelas Presses Universitaires de France em 1981, sob a direção de H. Weber),
  • *
    Nota do editor: O presente texto, redigido originalmente em francês, foi apresentado a um coloquio consagrado a Marx, realizado em Paris há três anos. A tradução é do autor. Feita em São Paulo sob premência de tempo para publicação em
    Lua Nova, pode apresentar uma ou outra insuficiência nas referências às fontes. A revista, que estabeleceu os prazos, assume a responsabilidade por esses casos.
  • 1
    Ver H. Draper,
    Karl Marx's Theory of Revolution, vol. III,
    The 'dictatorship of the proletariat' (with the assistance of Stephen F. Diamond). New York. Monthly Review, 1986, p. 332, nota. H. Draper refere-se ainda a
    A ditadura do proletariado de I. Kamenev, e sugere que poderia ter havido outras respostas.
  • 2
    Entre os mencheviques que escreveram contra o bolchevismo, é preciso citar evidentemente Axclrod, a quem o jovem Trotsky dedica
    Nossas tarefas políticas. Axelrod era muito ligado a Kautsky. Theodor Dan estava próximo de Martov depois de outubro de 17, e lhe sucedeu na direção do movimento menchevista. Claro que a "disputa" dos mencheviques com o bolchevismo teve uma dimensão muito diferente de uma simples querela teórica. Nesse .sentido, eles são mais importantes do que Kautsky, que era uma espécie de "velho sábio" da social-democracia alemã.
  • 3
    Kautsky, que não pertencia à fração social-democrata do
    Reichstag, foi convidado a participar da reunião que deveria decidir da posição do Partido em relação aos créditos de guerra. Inicialmente, ele era favorável à abstenção (anteriormente, ele era talvez pela recusa). Mas verificando que a imensa maioria era favorável à aprovação dos créditos de guerra, propôs que se apresentasse um certo número de exigência ao governo relativas ao caráter da guerra e à maneira de conduzi-la, sendo a aceitação delas condição para um voto favorável. A fração rejeitou a proposição de Kautsky. Mas este aceitou participar da comissão que redigiria as considerações do voto favorável. Na comissão, Kautsky obtém que se inclua uma cláusula proscrevendo as anexações. Entretanto, mesmo esta foi finalmente retirada a pedido do governo a quem a direção do Partido transmitira o documento, antes da seção do
    Reichstag. Alguns meses mais tarde, Kautsky – como também Bernstein, o qual, membro da fração, votara favoravelmente aos créditos de guerra – toma posição contra a guerra, dado o seu caráter ofensivo. A oposição à guerra ganha então cada vez mais peso no país e no interior do partido. Como a direção estava ligada de pés e mãos ao governo e aos militares, o processo conduziria a uma cisão, que daria origem ao Partido Social-Democrata Independente. Kautsky, mas também, um momento, Luxemburgo e Bernstein, farão parte dele.
  • 4
    Kautsky,
    Die Diktatur des Proletariats, Wien, I. Band, 1919. Utilizarei a edição da Dietz, Berlim, 1990, que abreviarei por DP (K). (Utilizarei igualmente as traduções francesa,
    La dictature du prolétariat em Lénine,
    La Dictature du proletariat et le renégar Kautsky, UGD, 10/18, 1972, inglêsa
    The dictatorship of proletariat, Michigan, 1964); e Lénine,
    La dictature du prolétariat et le rénégat Kautsky, que abrevio por RPRK (L) em Lénine,
    Oeuvres Choisies, vol. 3, Moscou, Éditions du Progrès, 1968.
  • 5
    Cf Lenin,
    Oeuvres Choisies, 2, pp. 102, 68, 105 e 125.
  • 6
    Essas teses são reforçadas pela idéia de que uma classe pode dominar mas não pode governar. São os partidos que governam, a menos que se trate do governo de "cliques" ou de um poder individual. Isso quer dizer que, mesmo nas condições ideais, o poder só pode pertencer ao "proletariado" de um modo mediato, circunstância da qual se extrai não a idéia de que o governo de um só partido é inevitável, mas pelo contrário, a de que é necessário multiplicar as garantias para bem afrontar os riscos inerentes a tal mediação. Essas teses são reforçadas pela idéia de que uma classe pode dominar mas não pode governar. São os partidos que governam, a menos que se trate do governo de "cliques" ou de um poder individual. Isso quer dizer que, mesmo nas condições ideais, o poder só pode pertencer ao "proletariado" de um modo mediato, circunstância da qual se extrai não a idéia de que o governo de um só partido é inevitável, mas pelo contrário, a de que é necessário multiplicar as garantias para bem afrontar os riscos inerentes a tal mediação.
  • 7
    Dada a importância deste livro, creio que convém dar as seguintes indicações: a obra foi escrita em 1919 (fora um apêndice que é de 1918) e foi publicada pouco depois da morte de Martov em 1922. Cito a tradução francesa de V. Mayer, que contem um texto preliminar (1923) e uma introdução biográfica mais longa (1934) ambos de Theodor Dan, além de um prefácio de J. Lebas (Paris, Société dÉdition Nouveau Promethée, 1934). (Com vistas à utilização que se poderá fazer dessa tradução convém levar em conta uma observação de Dan, do final da nota biográfica de 1934: "A obra de Martov foi escrita no momento em que o socialismo democrático estava ainda dividido em dois campos inimigos [digamos, os sociais-nacionalistas de um lado e os internacionalistas como Martov de outro – RF]. Em conseqüência, é natural que, nessas condições, o polemista mordaz que era Martov lance às vezes apreciações muitos duras a propósito da corrente socialista, que tampouco o poupava. Pensamos que era possível abandonar as expressões às vezes um pouco vivas do polemista, como o teria feito, sem dúvida, o próprio Martov" (p. 28).
  • 8
    Esta é também, de fato, o núcleo da posição de H. Draper em
    Karl Marx's Theory of Revolution, vol. III, citado (ver por exemplo, pp. 305-306) mesmo se ele tem uma atitude muito crí tica em relação a Kautsky. Comentarei em outro lugar o seu
    The Dictatorship of the Proletariat from Marx to Lenin. New York, Monthly Review Press, 1987.
  • 9
    A Assembléia Constituinte havia sido eleito a 25 de novembro de 1917 (novo calendario), portanto pouco depois da tomada do poder pelos bolcheviques. As eleições haviam dado a vitória aos sociais-revolucionários.
  • 10
    Ver a respeito Trotsky,
    De la révolution d'octobre à la paix de brest-Litowsk. Trotsky defende evidentemente a posição oficial.
  • 11
    Ela foi eleita em novembro, segundo os dois calendários.
  • 12
    Rosa Luxemburg,
    Zur Russisclien Revolution (1918, publicado em 1921) em
    Gesammelte Werke, vol. 4,Berlim, Dietz, 1974, p. 353-4. Discute-se em que medida Rosa Luxemburgo, nos seus últimos meses de v ida, teria mudado de posição relativamente ao bolchevismo, e a questão específica do fechamento da Assembléia Constituinte. Na sua biografia de Luxemburgo, J.P. Nettl afirma que ela muda de posição em rejação ao problema específico, mas que este é o único ponto em que Luxemburgo se desdiz no que se refere à crítica do bolchevismo. Mais do que isto, a tese de que ela mudou de posição relativamente à questão específica da dispersão da assembléia russa deve se apoiarem algo mais sólido do que o fato de que ela foi contrária à convocação de uma Assembléia Constituinte na Alemanha.
  • 13
    Utilizo a tradução francesa de Serge Legran, Paris, Albatros, Les Îles d'or, 1957.
  • 14
    Stanford, California, Stanford University Press, 1977.
  • 15
    Tentou-se justificar essa política dizendo que a repressão das outras tendências socialistas era normal :os bolcheviques acabavam precisamente de derrubar um governo em que estavam representados mencheviques e sociais-revolucionários, sendo esse ato político, ele próprio, legitimado pelo caráter "reacionário" ou imobilista da política de uns e de outros, sobretudo no que concerne à guerra e a questão agrária. O projeto de "derrubar" o governo provisório poderia se justificar: mas por que métodos e com que fim? A esquerda menchevique não pregava outra coisa desde havia algum tempo (mas não por meio de uma insurreição), e o Comitê Central menchevique acabara aceitando essa perspectiva – tarde demais entretanto. Os bolcheviques derrubaram Kerensky para governar como partido único (a aliança com os sociais-revolucionários de esquerda, segundo os próprios bolcheviques – ver Trotsky – era tática e transitória). Ora, a pretensão a se apresentar como o partido da classe – veremos pouco a pouco – só podia conduzir a um encadeamento de violências.
  • 16
    Quando, por volta do final do ano, depois do golpe de Estado do almirante Koltchak, a direita e a extrema direita passam a dominar os movimentos antibolchcviques,o CC menchevique não só apoia o lado vermelho na guerra civil, como incita os seus membros a participar da guerra desse lado. Em conseqüência dessa política os mencheviques são. de novo legalizados (30 de novembro de 1918). Mas "esta medida não mudava grande coisa no plano prático. Nos sovietes locais á 'maioria revolucionária' não aplicava o decreto e as autoridades policiais continuavam a prender os mencheviques sem fornecer qualquer justificação (...) Um dos seus jornais reapareceu mas foi de novo proibido um mês um mês e 14 números depois. Como se mantiveram as prisões em série e algumas execuções, a medida de 'legalização' parece ter provocado espanto entre os partidários de Lenin, pois ele se dispôs a explicá-la (...)" (Shapiro, op.cit., p. 170).
  • 17
    Ver a respeito Brovkin, op. cit., p. 51
  • 18
    Veja-se o que escreve a esse respeito Brovkin, visando em particular mas não exclusivamente os mencheviques: "Os bolcheviques convocaram o terceiro congresso (...) como um contrapeso à Assembléia Constituinte, para demonstrar que as massas os apoiavam ainda. A pequena fração menchevique (50 membros) nesse congresso reunido rapidamente o qualificou de escárnio
    (mockery), estratagema
    (ploy) destinado a cobrir o crime bolchevique (o fechamento da Assembléia Constituinte] com o manto da legilimidade(...). A dispersão não foi debatida. Os representantes dos partidos da oposição não foram admitidos na comissão de poderes. Tanto os mencheviques como os sociais-revolucionários reclamaram do fato de que foi recusada de maneira arbitrária a admissão ao Congresso de vários delegados provinciais pertencentes aos seus partidos. O governo bolchevique não prestou contas ao Congresso da sua política a partir de outubro. Em compensação, as orquestras locavam canções revolucionárias, e os bolcheviques fizeram discursos sobre a inevitabilidade da revolução mundial" (Brovkin, op. cit., p. 62).
  • 19
    Ver Brovkin, op. cit., p. 70: " (...) O CC menchevique enviou um protesto veemente ao CC bolchevique, mas sem resultado. O aparelho administrativo
    (machinery) de convocação e de direção do congresso era controlado pelos bolcheviques".
  • 20
    Ao contrário dos mencheviques, eles tinham tentado sublevar-se contra os bolcheviques. Para julgar essa política é preciso não esquecer o que foi a prática governamental bolchevique nesse período.
  • 21
    Termrismus und Kommunisimus. Ein Beitrag zur Natureschichte der Revolution. Berlin. E. Berger, s/d. Cito a edição Dietz, Berlim. Abrevio por TK (K).
  • 22
    A guerra civil começa propriamente no verão de 18, com o levante da Legião Tcheca (tropa constituída em parte por ex-soldados de origem tchecoslovaca do exército austríaco, aprisionados pelos russos) apoiado pelos sociais-revolucionários. Um governo de maioria SR é constituído em Samara. Outros governos, mais à direita, serão constituídos em outras cidades.
  • 23
    O livro foi escrito, ou pelo menos terminado, depois da revolução alemã de novembro de 1918 (Kautsky diz ter interrompido a sua redação no momento da revolução), e após a ruptura da coalizão entre os sociais-democratas e os sociais-democratas independentes (SPDU, partido ao qual Kautsky pertence desde 1917). Os dois partidos dividem o poder durante um período bastante curto, depois da vitória da revolução de 1918 e da proclamação da república. O livro é também posterior ao assassinato de Luxemburg e de Liebknecht (janeiro de 1919), mas é anterior à adesão da maioria dos sociais-democratas independentes à Terceira Internacional.
  • 24
    Se, em certo sentido, o terror havia começado antes (desde o início tinha havido repressão de massa contra os oficiais) a repressão muda de caráter no verão de 1918 (cf. Brovkin, op.cti., p. 280, "a aplicação do terror" muda): "Em junho de 1918, a lista de inimigos do bolchevismo incluía não só ex-policiais, oficiais, proprietários e os "Cadetes" (membros do Partido Constitucional Democrático), mas também camponeses ricos, pequenos comerciantes, e operários que sustentavam os mencheviques e os sociais-revolucionários" (Brovkin, op. cit., p. 280). E Brovkin cita uma entrevista de Dzerzhinskii publicada pela
    Novaia Zliizu de 19/6/18: "A sociedade e a imprensa não compreendem corretamente as tarefas e o caráter de nossa comissão [extraordinária]. Eles concebem a luta conta a contra-revolução em termos da polícia de Estado normal, e é por isso que eles reclamam garantias, tribunais, enquetes, investigações etc. Nós não temos nada em comum com os tribunais militares revolucionários. Nós representamos o terror organizado. Isso deve ser dito com franqueza – o terror é absolutamente necessário nas circunstâncias presentes. Nossa tarefa é lutar contra os inimigos do poder soviético. Nós aterrorizamos os inimigos do poder soviético de maneira a esmagar o crime no seu berço". (Brovkin, op. cit., p. 281). Kautsky cita por sua vez uma declaração assinada por Dzerzhinsky, onde se diz: "(...) a Comissão extraordinária pan-russa declara (...) que ela não fará nenhuma diferença entre os guardas brancos das fileiras das tropas de Krasnov e os guardas brancos dos partidos menchevique e social-revolucionário de esquerda. A férula da Comissão extraordinária atingirá com o mesmo rigor uns e outros. Os socialistas revolucionários de esquerda e os mencheviques por nós aprisionados serão [considerados como] reféns, e o seu destino dependerá do comportamento dos dois partidos" (extraído do
    Izvestia do Comitê executivo central pan-russo, n.o 59, de 1.o de março de 1919, citado por Kautsky, (TC (K), Dietz, p. 333, fr. , p: 224).
  • 25
    Ver Brovkin, op. cit., p. 193.
  • 26
    "Os tribunais revolucionários e as comissões extraordinárias se tornaram armas do terror. Tanto uns como os outros se impuseram violentamente, sem contar as expedições de represálias militares cujas vítimas são numerosas. O número de vítimas das comissões extraordinárias será sempre difícil de estabelecer. Houve milhares delas. O cálculo mais moderado dá o número de 6.000. Outros testemunhos dão o dobro, mesmo o triplo desse número. É preciso acrescentar inúmeras vítimas arbitrariamente aprisionadas, maltratadas ou torturadas até a morte" (idem, p. 220, 221).
  • 27
    Terrorisimis und Kommunismus, 1920, abreviarei por TC (T). Tradução inglesa:
    Terrorism und Communism, Michigan University Press, 1961. Utilizei ainda duas traduções francesas, uma editada pela Promethée, e outra que é de A. Rosmer (salvo indicação expressa, a tradução francesa utilizada é a primeira). O posfácio à introdução tem a data de 29 de maio de 1.920, e o epílogo a de 12 de junho do mesmo ano.
  • 28
    A expressão é utilizada por Michael Lowy na parte final do seu livro
    La théorie de la révolution chez le jeune Marx, Paris, Maspero, 1970. Toda essa parte final do livro foi omitida na edição brasileira, o que a meu ver se justifica pelas razões indicadas pelo autor. O reverso da moeda é o desaparecimento de importante análise crítica, em estilo luxemburguista, do Trotsky do inicio dos anos 20.
  • 29
    O texto inglês diz "exclusivo".
  • 30
    O texto ingles diz "dominação".
  • 31
    O texto inglês diz "direta".
  • 32
    E não de 1865, como se lê na tradução francesa do livro de Schapiro. A carta, escrita numa mistura de alemão, inglês e francês, evoca a situação dos jacobinos alemães de Mogúncia, os quais, após a ocupação da cidade pelas tropas napoleônicas, proclamaram a república e declararam a anexação dela a França, mas que por falta de apoio popular foram esmagados pelos prussianos em l793:"Dependerá do curso das coisas em Berlim [saber] se nós não seremos obrigados a chegar a uma posição semelhanie à dos "clubistas" de Mainz, na antiga revolução. Tudo na Alemanha vai depender da possibilidade de fornecer apoio à revolução proletária através de algum tipo de segunda edição da guerra dos camponeses. Então, a coisa será excelente"
    (Werke, Berlin, Dietz, vol. 29, p. 47).
  • 33
    Nos textos oficiais da Terceira Internacional encontrar-se-á a idéia de que um governo revolucionario não tem necessidade de contar imediatamente com o apoio da maioria dos explorados: "(...) a idéia habitual dos velhos partidos e dos velhos lideres da Segunda Internacional, de que a maioria dos trabalhadores e dos explorados pode, em regime capitalista, sob o jugo escravista da burguesia (...) adquirir urna plena consciência socialista, a firmeza socialista, convicções e caráter; essa idéia, nós dizemos, engana os trabalhadores. Na realidade, é só depois que a vanguarda proletária sustentada pela única classe revolucionária ou pela sua maioria, tiver derrubado os exploradores, os tiver quebrado, houver libertado os explorados das suas servidões (...) é só então e ao preço da mais dura guerra civil, que a educação, a instrução, a organização das mais amplas massas em torno do proletariado, sob a sua influência e a sua direção, poderá ser feita, e que será possível vencer o egoísmo delas, seus vícios, suas fraquezas, sua falta de coesão, alimentados pelo regime da propriedade privada, e transformá-las em uma vasta e livre associação de trabalhadores livres" ("Les taches principales de I'Internationale Communiste" em
    Theses, conditions et status de I'Internationale Communiste, texto oficial votado no segundo Congresso Mundial da I.C., Bibliotèque Communiste Normande, s/d, s/ lugar de publicação, p. 3 e 4). Literalmente, o texto só exclui a necessidade do apoio do conjunto dos explorados. Mas dada a maneira pela qual ele está construído –o sujeito é a vanguarda e não a classe, a tese a refutar é a "dos velhos lideres da Segunda Internacional", os quais, parece, nem sempre insistiram na necessidade de um apoio majoritário mais vasto do que o do proletariado –, ele legitima de fato uma posição "vanguardista". Esta é, de resto, afirmada em outros textos da mesma coletânea, relativos ao exercício do poder revolucionário, em que o partido é posto acima de todas as formas de organização proletária: " (...) o trabalho nos Sovietes, como nos sindicatos de indústria que se tornaram revolucionários deve ser invariável e sistematicamente dirigido pelo partido do proletariado, isto é, pelo partido comunista. Vanguarda organizada da classe operária, o partido comunista responde igualmente às necessidades econômicas, políticas e espirituais do conjunto da classe operária. Ele deve ser a base dos sindicatos e dos Sovietes, assim como de todas as outras formas de organização proletária"
    (Thèses ..., op. cit., p. 29). Trata-se evidentemente de recusar todo tipo de regime "parlamentar" e "toda ficção de vontade popular" ("Os partidos comunistas e o parlamentarismo", idem, p. 48). Quanto à organização interna dos partidos comunistas, os documentos propõem não só a centralização mais estrita, mas uma disciplina quase ou pura e simplesmente militar: "(...) Os partidos que pertencem à Internacional Comunista devem ser edificados sobre o princípio do centralismo democrático. Na época atual de guerra civil encarniçada o partido comunista não poderá cumprir o seu papel se ele não for organizado da maneira mais centralizada, se nele não for admitida uma disciplina de ferro beirando a disciplina militar e se seu organismo central não for munido de amplos poderes, exercer uma autoridade incontestada, beneficiar da confiança unânime dos militantes" ("Conditions d'admission de partis dans l'I.C", idem, p. 22).
  • 34
    Trotsky,
    Nos tâches politiques, tradução de D. Fraenkel, Paris, Gonlhier, coleção Mediations, 1971.
  • 35
    Cf. idem, p. 121 "(...) em política "externa" esses métodos [os do "substituismo" interno, RF] se manifestam nas tentativas de lazer pressão sobre as outras organizações sociais, utilizando a força abstrata dos interesses de classe do proletariado, e não a força real do proletariado consciente dos seus interesses de classe".
  • 36
    Poder-se-ia citar nesse contexto um discurso pronunciado por Trotsky no décimo congresso do Partido Comunista (o discurso é de 14 de março de 1921). Trata-se de responder à "oposição operária", que propõe uma certa autonomia das bases operárias (segundo Schapiro, op. cit., tratava-se de qualquer maneira de uma democratização muito limitada, no sentido de que ela tocariam essencialmente nas relações entre a base e a direção do Partido): "(...) a oposição operária veio com
    slogans perigosos, no sentido de que eles transformaram em fetiche os princípios democráticos. Eles puseram acima do Partido os direitos dos operários de eleger representantes para as organizações de operários, como se o paitido não tivesse o direito de assegurar a sua ditadura mesmo no caso em que esta ditadura se choca de modo temporário com o estado de espírito cambiante da democracia operária. Em Petrogrado o camarada Zinoviev declarou, com algum exagero, que se permitirmos a reunião do "Congresso dos Produtores" de Schlyapnykov, 99 % será constituído por gente sem partido, por SR e por mencheviques. Isto é um exagero monstruoso e deve ser imediatamente riscado do registro. O que significa para a ilustração da Internacional que nossa 'democracia dos operários' consiste em 1% que votam pelos outros 99%? Isto é um exagero monstruoso! Mas mesmo se nós reduzirmos bastante os 99% de Zinoviev, sobrará ainda um número substancial [de pessoas insatisfeitas, RF]. As informações que chegam das províncias mostram que os comunistas locais não dispõem de ajuda para resistir à pressão dos elementos anárquicos (...) É essencial estar consciente do direito de nascimento revolucionário-histórico, que tem o Partido, de sustentar a sua ditadura, sem olhar para as vacilações temporárias das massas amorfas, sem olhar mesmo para as vacilações temporárias da classe operária. Esta consciência é essencial à nossa coesão; sem isto, o Partido corre o perigo de morrer em cada virada" (Discurso pronunciado por Trotsky no dia 14 de março de 1921, por ocasião do décimo Congresso do Partido. Citado por James Bunyan,
    The Origins of Forced Labor in the Soviet State 1917-1921.
    Documents and Materials. Baltimore, John Hopkins University Press, 1967, p. 251 (em cooperaçã o com o Hoover Instituí on War, Revolution and Peace, Stanford, Califórnia). Leíamos ainda uma passagem: "Em nenhum momento a ditadura se baseia no princípio formal da democracia dos operários. Sem dúvida a democracia operária é o único método pelo qual as massas podem ser introduzidas cada vez mais na luta política [o texto se interrompe, RF]. Isto é um truismo, e estou de acordo que as vezes esse truismo foi esquecido. Isto deve ser corrigido e devemos usar de novos métodos de propaganda, mas com a condição de que o conjunto do partido esteja unido na compreensão de que acima e abaixo (over and above) do aspecto formal está a ditadura do Partido, que salvaguarda os interesses de base da classe operária, mesmo quando os estados de espírito desta classe vacilam de modo temporário. Se a assim chamada oposição operária não entende isto conseqüências severas resultarão provavelmente desse fracasso" (idem, p. 252). "(...) queremos conservar a ditadura do Partido (...) (ib.). "Afirmamos que os interesses econômicos da classe operária estão acima do critério formal da democracia dos operários" (¡b). "É preciso que o nosso partido seja o único partido no país e que toda insatisfação seja introduzida através do partido (...)" (idem, p. 253).
  • 37
    A tradução francesa diz "des droits démocratiques".
  • 38
    Tradução inglesa: "the dictatorship of the proletariat".
  • 39
    Tradução inglesa: "of the general socialist task".
  • 40
    Tradução inglesa: "path".
  • 41
    Tradução inglesa: "to throw democracy aside".
  • 42
    Ver Schapiro, op. cit., cap. XIV, p. 212 e seguintes.
  • 43
    Tradução inglesa: "free hiring".
  • 44
    Rosmer: "banalités".
  • 45
    Von der Democratic zur Staats-Sklaverei. Eine Auseinandersetzung mit Trotsky. Berlim, Verlaggenossenschaft Freiheit, 1921. Abrevio por DSS (K). O livro não está traduzido nem em francês nem em inglês.
  • 46
    Nessa primeira versão do presente texto omito a análise de
    Der Bolclievismus in der Sackgasse, Berlim, Dietz, 1930 (traduçã o francesa
    Le bolclievisme dans limpasse, editado pelas Presses Universitaires de France em 1981, sob a direção de H. Weber), livro com o qual deveria terminar a discussão da polêmica entre Kautsky e os bolcheviques.
  • 47
    "Uma nuance, de fato! Toda baixeza se transforma numa façanha majestosa quando um comunista a pratica. Toda bestial idade é permitida, quando ela é executada em nome do proletariado. Assim, os Conquistadores espanhóis praticavam também atos sangrentos, na América do Sul, em nome de Deus" (idem, p. 125).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      2001
    CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: luanova@cedec.org.br