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Mengele vive

Mengele vive

Elça Zaivler

Socióloga

Maio de 1945: com a tomada de Berlim pelos russos e o suicídio de Hitler, termina, na Europa, a Segunda Guerra Mundial. Maio de 1985: surgem na imprensa brasileira as primeiras reportagens sobre Joseph Mengele, o último dos grandes criminosos nazistas.

O principal significado da dimensão que assumiu em nosso cotidiano o que ficou conhecimento como "o caso Mengele" pode ser procurado através das reações da opinião pública brasileira diante das revelações.

A descoberta do corpo de Mengele deu origem a uma emocionante história policial que, durante dois meses, ocupou os noticiários atraindo a atenção de todo o país. Identificado a um personagem de cinema ou de romance policial, deslizava para a ficção, carregando para fora do mundo a imagem da maldade e do horror. Sua proximidade, entretanto, não podia deixar de ser sentida à medida que a história ia envolvendo personagens e lugares familiares.

Pelas 400 mil mortes a ele atribuídas e pelo sadismo das torturas a que submetia os prisioneiros com suas experiências, Mengele transformou-se num símbolo do racismo criminoso do III Reich. A idéia de que encontrara acolhida num país onde — pelo menos, oficialmente — a falta de preconceitos e a ausência de conflitos raciais são motivo de orgulho nacional, causou surpresa e indignação. A presença de Mengele foi sentida como uma vergonha para os brasileiros.

Era necessário que o caso fosse desvendado o mais rapidamente possível, para manifestar a repugnância que inspirava ao espírito nacional. Mas também como uma tentativa de responder à pergunta sempre presente: como foi possível que acontecesse?

Genocidio foi a palavra criada para designar o grande crime cometido durante a Segunda Guerra: o extermínio sistemático dos judeus pelos nazistas alemães. Precedida por progressivas restrições de direitos, medidas de segregação, perseguições, formação de guetos e expulsões, a política de extermínio só foi, entretanto, adotada oficialmente em 1941, com o nome de "solução final".

Se nem todos os alemães eram anti-semitas, uma reação de indiferença e tolerância (muitas vezes forçada pelo terror) contribuiu para que a perseguição atingisse esses limites. Por outro lado, o nazismo sustentava-se politicamente através de uma intensa propaganda, que encontrava eco no anti-semitismo do povo alemão.

A propagação do ódio ao judeu em tamanha escala explica-se em parte pela situação vivida pela Alemanha: diante de uma situação de crise e instabilidade, o povo alemão tendeu a transferir seus receios, transformando o judeu em bode expiatório. Uma tal substituição, contudo, só foi possível em virtude de uma longa tradição de preconceito e desconfiança com relação aos judeus.

As origens desse preconceito na Alemanha recuam até a Idade Média, e há, efetivamente, uma continuidade histórica nessa reação contra o judeu. Contudo, a diferença entre o antigo e o novo anti-semitismo é essencial para a compreensão das conseqüências desses tipos de preconceitos.

Dois tipos de anti-semitismo

Se no passado ocorriam massacres, eles eram provocados por uma explosão do ódio aos judeus em função de circunstâncias específicas que levavam a uma reação aguda e violenta. É certo que a Alemanha nazista também vivia uma situação crítica, mas isto não anula a diferença básica e fundamental entre os dois tipos de anti-semitismo: o antigo, baseado na religião, admite a conversão do judeu; o moderno, baseado no racismo, exige sua exclusão e, no limite, o seu extermínio.

No Brasil, não existe própriamente uma consciência anti-semita. Como doutrina organizada, a perseguição ao judeu foi pregada unicamente pelo integralismo, na década dos 30. Embora a política de imigração de Getúlio Vargas não tenha aberto as portas aos refugiados da Alemanha nazista, seu regime não apresentava outros sinais de anti-semitismo. Posteriormente à época da Segunda Guerra, afora algumas tentativas esparsas de propaganda anti-semita, que não encontraram eco junto à população, não se formularam propostas de limitação de direitos ou segregação nem, tampouco, se difundiu um sentimento de ódio aos judeus.

É inegável, contudo, que existe um estereótipo bastante difundido entre os brasileiros acerca do judeu. A fama de pão-duro, ganancioso e esperto nos negócios, sem chegar a ser desonesto, espalha-se através de frases e ditados largamente conhecidos. "A diferença entre um judeu e um turco — aprendemos — é que ambos vendem a mãe, mas o turco não entrega".

O sentimento que se expressa nesse gênero de frases é antes de desconfiança que de ódio. Possivelmente, seja uma reação à própria imagem de desconfiado que o judeu tem entre nós: "Isto, Jacozinho — diz o pai judeu a seu filho depois de deixá-lo esborrachar-se no chão — é pra você aprender a não confiar nem no pai".

É freqüente que essa imagem negativa sustentada abstratamente combine-se a uma atitude pretensamente tolerante. É o que se revela em afirmações do gênero: "Eu não tenho nada contra os judeus mas, cá entre nós, como comerciantes eles são espertos demais". Começa-se por negar o anti-semitismo e passa-se a enumerar os defeitos do judeu.

Mantém-se muitas vezes uma atitude positiva, baseada na amizade ou outro tipo de relação pessoal. Quando se diz: "Fulano é judeu, mas é um bom sujeito", expressa-se, na verdade, um julgamento negativo sobre a categoria, embora colocado em segundo plano.

Estereótipos deste tipo revelam o funcionamento do preconceito antisemita: o judeu é uma categoria definida, que pode ser objeto de um julgamento. Esse julgamento geralmente é negativo, pois fixamos como "defeitos" do judeu atributos que poderiam pertencer a qualquer pessoa. Essa entidade, "judeu", serve então para julgar qualquer indivíduo pertencente ao grupo.

Como surge a identidade

Apresentando-se sob uma forma aparentemente inofensiva, perpetua-se um preconceito que, dependendo de circunstâncias especiais, poderá assumir uma forma mais agressiva, dando ocasião a discriminações concretas sobre indivíduos específicos. Uma pessoa pode ter relações com muitos judeus sem se lembrar sequer de perguntar sobre sua ascendência. Mas se lhe calhar, por exemplo, um patrão judeu, manifestará, muito provavelmente, seu preconceito na primeira ocasião em que lhe negarem um aumento. E isso, com uma frase muito simples: "Judeu pão-duro!". Assim, somente no momento em que um indivíduo se encaixa no estereótipo assume aos nossos olhos a identidade de um verdadeiro judeu.

Para compreender melhor essas atitudes, convém lembrar que o preconceito étnico foi moldado no Brasil sobre o modelo das relações com negros e índios. Suas características são as do chamado "preconceito de marca" (como o chamou o sociólogo Oracy Nogueira), que toma por critério os traços físicos visíveis, a aparência racial. No caso dos judeus, em que a presença destes traços é muito mais escassa (ou menos visível), torna-se mais fácil a assimilação e menos freqüente a discriminação.

A característica mais importante, para o nosso caso, desse tipo de preconceito, é a ideologia que o acompanha. Ela propõe ao mesmo tempo a miscigenação racial e a assimilação cultural, e não a segregação e o racismo que acompanham outras espécies de preconceito. Valoriza-se aqui, ostensivamente, o igualitarismo racial e condenam-se as manifestações públicas e intencionais de preconceito, que — como diz O. Nogueira — "assumem o caráter de um verdadeiro atentado a um valor social que conta com o consenso de quase toda a sociedade brasileira".

Essa falsa "democracia racial" acoberta, na verdade, uma forma velada de preconceito, pois a ideologia da miscigenação não propõe uma mistura indiscriminada de raças, mas visa claramente ao "branqueamento" da população. O sentido dessa valoração se revela na diferença da intensidade de preconceito contra negros e mulatos. E o mesmo raciocínio é aplicado ao aspecto cultural: a proposta assimilacionista pretende o abandono de seus próprios valores e hábitos por parte de grupos étnicos específicos e a adoção do padrão cultural branco dominante.

A inserção dos judeus na sociedade brasileira se deu de forma não conflitiva, e as posições econômicas por eles ocupadas não significaram ameaça, real ou fictícia, a interesses e privilégios. Não assumiram aqui o papel de bode expiatório que tiveram na Alemanha nazista e outros países europeus. Por outro lado, são um grupo caracterizado por uma identidade cultural altamente persistente que manteve através da história sua especificidade religiosa e cultural. A comunidade que se estabeleceu no Brasil preservou a coesão e a solidariedade interna, dando preferência aos casamentos dentro do grupo.

Essa resistência à dissolução da identidade afronta a ideologia da assimilação, aguçando o preconceito. Os estereótipos negativos que, para outros grupos, funcionam como uma pressão sobre os indivíduos no sentido da assimilação, no caso dos judeus produzem uma reação de reafirmação da identidade.

O preconceito brasileiro, como se vê, aproxima-se do antigo antisemitismo alemão, mais que do moderno: visa, como ele, à "conversão" (embora não especificamente religiosa). O procedimento de lançar sobre o outro estereótipos negativos, de modo a afirmar a própria superioridade, está presente, entretanto, em ambos os casos.

A indignação dos brasileiros pela presença de Mengele no Brasil é, sem dúvida, uma condenação e manifestação de repúdio aos horrores dos campos de concentração. Mas não deixa de ser também resultado do escândalo provocado por manifestações ostensivas de preconceito, em geral, numa sociedade que cultiva o "igualitarismo racial" como um valor social. E uma reação de incômodo diante da apresentação desmascarada e violenta daquilo que sobrevive entre nós de forma pacífica e disfarçada.

O caso Mengele mexeu com os sentimentos que reprimimos e mantemos nas regiões mais profundas do nosso inconsciente. Talvez esteja aí a razão mais forte de sua repercussão entre nós. É preciso estar atento. Há um Mengele em cada um de nós?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1985
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